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- como tantos outros autores estiveram - em estudar a loucura, mas, ao contrário, em buscar quais as condições de possibilidade que fizeram transformar o louco em doente mental. Eis um dos motivos que o fazem singular. Por que Foucault? Por sua reflexão e visão crítica em relação aos postulados teóricos científicos com relação aos saberes, especialmente, no que diz respeito à loucura. Por aprofundar-se no estudo das “engrenagens do submetimento, da fabricação dos sujeitos submetidos” (Eribon, 2004, p. 10). Por questionar e estranhar as ditas verdades absolutas. Por optar em problematizar o presente, ao invés de naturalizá-lo. Por um gosto pelas desmistificações, pelo espírito resistente às evidências e às constatações verificáveis, pela desconfiança às falsas continuidades, por ter pensado a história de maneira singular, em lugar de legitimar o que já se sabia. Por valorizar a surpresa, o acaso, a contingência da história de vidas simples, singulares, de ‘homens infames’. Por não se afirmar sob nenhuma posição dogmática, e por duvidar sempre de tudo que é colocado como definitivo, natural, inquestionável. Por não temer os paradoxos nem as contradições. Pela sua originalidade em “não transformar nossa finitude em fundamento de novas certezas” (Veyne, 1985, p.37). Por um novo jeito de olhar... Por que Foucault? Porque é a partir de suas ideias sobre as condições sócio- históricas do aparecimento dos saberes a respeito do homem, que ele nos leva a pensar de que maneira se constituem as noções de loucura, de doença mental e dos dispositivos ligados a elas. Não só por isso, como também, pelas problematizações provocadas por ele, que nos conduzem a uma compreensão mais clara sobre as questões relacionadas à psiquiatria, ao direito, ao hospital, ao asilo, e aos demais temas que propusemos a estudar e a desenvolver como matéria nesta dissertação. 41 Michel Foucault, portanto, é o autor com quem nos identificamos e com quem concordamos ser possível ousar questionar o campo do instituído, rompendo com seus antigos paradigmas. Pretendemos discutir sobre isso, trazendo uma outra interrogação: de que forma, efetivamente, é possível produzir-se conhecimentos capazes de se insurgirem contra aquilo que os saberes sobre o homem acudiram a gerar e a aprimorar? Em outras palavras e de maneira mais específica: como seria possível romper com tais paradigmas quando nos referimos às instituições totalitárias - tais como o asilo e a prisão, só para citar algumas - que se encontram amparadas e apoiadas em saberes secularmente impostos pelas ciências do homem? Pensamos que nossas indagações poderão ser discutidas ao longo desse trabalho, amparadas nos ensinamentos de Michel Foucault que, como analisa Heliana Conde Rodrigues (2002), faz história praticando raridades, provocando inquietações, pois se trata de um ‘historiador de problemas’. Foucault parece vir para romper com o que está posto, romper com o naturalizado, com as continuidades, com o definitivo. Ele, de fato, parece vir, parafraseando Paul Veyne (1990), para ‘sacudir’ a história. 3.1. O Método Arqueogenealógico de Michel Foucault Acreditamos que, ao inventar um novo estilo de pensar no campo mesmo da filosofia - através da construção de seu método arqueogenealógico 30 -, Foucault nos mostra que as evidências, as certezas, as naturalizações são, de fato, saberes produzidos e, assim sendo, podem ser transformados. Detendo-nos por uns instantes especificamente no que tange à loucura, podemos constatar que a sustentação foucaultiana baseia-se na idéia de que a loucura é uma construção histórica e cultural, rompendo, assim, com a leitura naturalista que, até então, lhe era conferida. Através do método arqueogenealógico o autor analisa em que práticas o conceito de loucura foi gestado, iniciando o processo analítico de trás para frente, isto é, a partir da história do presente até encontrar uma descontinuidade histórica. Desta forma, já não se pode mais olhar a loucura como algo natural nem 30 O método arqueogenealógico de Michel Foucault pretende descrever a constituição das ciências a partir de uma inter-relação de saberes através da análise das relações de poder. Ou seja, a arqueologia procura buscar quais os conjuntos de regras que definem um saber; enquanto a genealogia busca o ‘como’ e o ‘por que’ desses saberes se transformarem, isto é, quais as relações de forças que os fizeram mudar. 42 contínuo, mas sim como algo que só existe no momento em que é postulada historicamente e dentro de um determinado contexto. Para o autor, a ideia de arqueogenealogia remete à pesquisa detalhada de ‘como’ surgem determinadas regras a respeito de determinado saber, e ‘por que’ estes saberes se transformam. Dito de maneira mais simplificada, a arqueologia trata das condições de possibilidade para a produção de saber, enquanto que a genealogia trata das relações de poder. Como Foucault leciona, os fatos históricos variam a cada tempo e se impõem como verdades, assim como os diferentes conceitos de loucura foram impostos através de discursos tidos como verdadeiros ao longo dos tempos. O que Foucault tentou fazer em sua História da Loucura foi procurar balizar qual o tipo de poder que a razão tentou exercer sobre a loucura no século XVII, como ela emergiu na história e como foi construída. Para ele, a loucura erigiu-se pelo o que se disse a respeito dela (Machado, 1981, p. 161). Neste ponto, a diferença entre Foucault e os epistemólogos franceses da época se situa no fato de que ele não toma a emergência do acontecimento como uma verdade, mas tão somente como um problema. Daí ele ser conhecido com um ‘historiador de problemas’. Segundo ele, é necessário se fazer uma história das problematizações, ou seja, a história da maneira pela qual as coisas produzem problemas (Calderon, 2003). Partindo de uma problematização do presente e analisando arqueogenealogicamente as descontinuidades da história, Foucault levanta pertinentes questões: quais as condições de possibilidade que fizeram, em uma determinada época, com que a loucura fosse pensada, inicialmente como desrazão, para depois ser considerada como alienação? A quem interessava que ela assim fosse entendida? Quais as relações de poder que produziram estes discursos, estas práticas de subjetivação, enfim, esses saberes? Acompanhando Foucault, pensamos que a loucura - assim como a delinquência - há que ser vista de maneira circunstanciada, e não de forma linear e ingenuamente naturalizada. Foucault indicava como as diferentes leituras sobre a loucura se inscreviam em pressupostos filosófico, moral, religioso e científico que regulariam as práticas sociais sobre ela, e que era isso que deveria ser colocado em evidência numa arqueologia da loucura. Dito de outra maneira, o que Foucault ressaltou foi como a experiência da loucura foi objeto de silêncio e de exclusão social como seu correlato; necessário seria realizar a arqueologia desse silêncio (BIRMAN, 2011). 43 A análise epistemológica foucaultiana caracteriza-se por cortes, rupturas, e pela noção de descontinuidade histórica, que é um princípio que mina as noções filosóficas da essência imutável do homem. Ela permite transformar discursos considerados universais, na medida em que possibilita a análise do momento de surgimento e de desaparecimento de uma forma de saber e das práticas a ele atreladas. Se trouxermos novamente à baila a questão do ‘Grande Internamento’ ocorrido no século XVII, poderemos entender melhor a noção de descontinuidade, que constitui um dos elementos fundamentais do pensamento de Foucault. Como foi comentado no Capítulo 2, depois de ser internado junto aos socialmente indesejáveis, o louco, agora despossuído de razão, é extraído daqueles pobres e libertinos e