Grátis
129 pág.

Denunciar
Pré-visualização | Página 27 de 42
47 A palavra ‘técnica’ se origina do grego ‘tekhné’. 80 acompanhando Eugenia Vilela, que “os resistentes à ordem totalitária sempre foram aqueles que possuíam, segundo a expressão de Hannah Arendt, o hábito de viver consigo mesmo de forma explícita” (2001, p. 246). A este ‘modo de ser’ Michel Foucault denominou de ‘ética’, assunto que abordaremos um pouco mais adiante neste mesmo capítulo. Retornando à prática do profissional ‘psi’, concordamos com Foucault que pensar significa desnaturalizar o que parece evidente ou, ainda, não tomar os fatos como naturais; pensar significa buscar compreender os jogos que determinam o que pode e o que não pode ser dito; pensar é fornecer instrumentos de análise da situação presente, através de uma percepção profunda de tal modo que se possam localizar os pontos aos quais estão ligados os poderes, “fazendo um sumário topográfico e geológico da batalha” (Foucault, 1975, p. 151). Pois, ao se trabalhar no campo mesmo de uma instituição totalitária, tal como os manicômios, prisões e afins, não é incomum deparar- se no centro de um campo de batalha – por vezes silenciosa – mas, com efeito, uma batalha! E por ser silenciosa, ela torna-se ainda mais perigosa. Portanto, é de suma importância que estejamos atentos a todos os jogos de saber/poder que se insinuam sub- repticiamente, tentando se instituir como postulados sólidos, globais, previsíveis e definitivos, que obstaculizam, sobremaneira, não somente a possibilidade de uma visão crítica dos discursos e das práticas características nesse tipo de instituição, como também de calarem os saberes dominados. Por saber dominado entendemos uma série de saberes que são desqualificados como saberes ditos comuns, ingênuos, inferiores; saberes singulares, “esses saberes das pessoas que são saberes sem senso comum e que foram de certo modo deixados em repouso, quando não foram efetivamente e explicitamente mantidos sob tutela” (Foucault, 1999, p. 12). Não é incomum constatar-se essa afirmação do autor. Pelo contrário, é bastante comum observar-se certos diálogos entre especialista e paciente no interior das ‘instituições de sequestro’48, onde o saber ‘psi’ tenta se estabelecer com seus discursos hierarquizantes - respaldados por uma suposta cientificidade e, portanto, considerados verdadeiros - sobre o saber particular, diferencial e crítico daqueles que ousam se contrapor à unanimidade que os circundam. A este saber desqualificado 48 Entende-se por ‘instituição de sequestro’, termo cunhado por Michel Foucault, aquelas que capturam o indivíduo e o colocam dentro de um espaço fechado onde ele vai ser produzido. 81 porque descontínuo e heterogêneo - do psiquiatrizado, do doente, do ‘médico paralelo e marginal’ em relação ao saber médico -, Foucault (1999) nomeou de ‘saber das pessoas’: um saber capaz de oposição e de luta contra a tirania do discurso totalitário, científico; um saber feito de crítica; um saber que produz resistência. Pensamos que caberia aos operadores da saúde recusar os conceitos universais, não por terem causas duvidosas, mas pelo simples fato de que seu conteúdo varia com o tempo e com as circunstâncias (Foucault, 1984b). Em seu A Nau do Tempo-Rei, Peter Pál Pelbart enfatiza a necessidade de uma desconstrução da racionalidade, subsumindo que a nossa razão, a forma hegemônica de racionalidade vigente é carcerária, mesmo quando ela é edulcorada pelos burocratas do desejo com uma terminologia inefável. Seria preciso desmontar essa racionalidade a fim de deixar o pensamento permeável à desrazão. Isto não significa optar pela irracionalidade [...], mas praticar um trânsito com tudo aquilo que os loucos nos sugerem, embora eles mesmos, por estarem imersos nesse funcionamento exclusivo, tenham sido reduzidos a corpos passivos e impotentes (PELBART, 1993, p. 161). Mas voltemos à questão dos saberes, proposta por Foucault. Durante o período de nosso trajeto no MJ vivenciamos situações bastante incômodas, provocadoras de um imenso mal-estar. Dentre tantas, parece-nos de suma importância enfatizar uma delas, já brevemente citada no Capítulo 3. Sabe-se que - de acordo com a Lei de Execução Penal 49 -, no que diz respeito à execução das Medidas de Segurança quanto à cessação da periculosidade do paciente inimputável, o Art. 176 da referida lei determina que, Em qualquer tempo, ainda no decorrer do prazo mínimo de duração da medida de segurança, poderá o Juiz da execução, diante de requerimento fundamentado do Ministério Público ou do interessado, seu procurador ou defensor, ordenar o exame para que se verifique a cessação da periculosidade, procedendo-se nos termos do artigo anterior (LEI DE EXECUÇÃO PENAL). O artigo anterior 50 refere-se à época em que o laudo deverá ser elaborado pelo perito forense. Todavia, como se observa no artigo seguinte (Art. 176), é concedido ao próprio paciente o direito de reivindicar por sua desinternação - observando-se todos os requisitos exigidos -, ainda que antes do fim do prazo mínimo de duração da medida. Isto significa dizer que o sujeito é legalmente reconhecido e autorizado a externar o saber sobre si mesmo: é ele, e não apenas o saber médico, quem solicita a revogação da 49 Lei 7210 de 11 de Julho de 1984. 50 Art. 175. A cessação da periculosidade será averiguada no fim do prazo mínimo de duração da medida de segurança, pelo exame das condições pessoais do agente, observando-se o seguinte [...]. 82 sua medida de segurança. Esta inversão de conhecimento proporciona ao sujeito/ paciente manifestar-se, e é exatamente sobre esta manifestação de saber exercida por aqueles que, usualmente não o exercem, que Foucault denominou de ‘saberes sujeitados’, como refletíamos há pouco, ou seja, “saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível de conhecimento” (Foucault, 1999, p. 12). Quando o paciente mesmo manifesta o saber sobre si, ele exerce, ao mesmo tempo, um poder sobre aqueles que procuram inabilitá-lo, fragilizá-lo. Portanto, é essencial que esses saberes desqualificados, não legitimados, intervenham sobre a instância teórica e unitária da instituição, que tenta filtrar, ordenar e tutelar esses saberes locais em nome de um saber científico. Assim sendo, indagamos se não caberia ao profissional ‘psi’ exercer - à semelhança do que faz o paciente -, sua análise crítica e sua resistência em relação ao saber ‘vindo de cima’, aquele que supõe saber mais do que o próprio sujeito sabe de si. E mais: não caberia a ele procurar reativar e intensificar os saberes ditos menores, mantidos sob a tutela dos saberes vinculados à instância médica-jurídica, intervindo de modo que eles possam se exercer com liberdade? No caso da solicitação do exame de cessação de periculosidade partindo do paciente mesmo, não deveria o profissional, não somente incentivar o paciente a fazê-lo, como também agilizar os meios para que o referido exame fosse, de fato, realizado? Contudo, na prática, a teoria no MJ era outra... Nós - os operadores da saúde -, optávamos pelo silêncio cauteloso, pela prudência taciturna, pela fraqueza, pela negação absoluta em relação à existência do Art.176 da Lei de Execução Penal. Os que se aventuravam a pô-lo em evidência - tanto o paciente quanto o profissional ‘psi’ -, costumavam ser vistos como insurgentes, costumavam se vistos como traidores mesmo da instituição. 4.2. Estratégias de resistência: procurando saídas na prática “Mesmo quando a relação de poder é completamente desequilibrada, quando verdadeiramente se pode dizer que um tem todo o poder sobre o outro, um poder só pode