Grátis
129 pág.

Denunciar
Pré-visualização | Página 32 de 42
as diferentes formas de os profissionais psi se adequarem – mas não de se conformarem – às estratégias presentes no campo institucional, criando recursos que promovam a reorganização e a recriação do dia-a-dia de suas práticas. Tais invenções vão, por outro lado, gerando novos saberes e viabilizando, assim, condições de possibilidade para que o próprio paciente possa resistir ao que lhe é imposto. Deste modo acreditamos em uma possível mudança na concretude do cotidiano manicomial. Não obstante o papel do profissional de saúde encontrar-se atrelado a um sistema de poder, funcionando como mais uma peça da engrenagem institucional, paradoxalmente, esse lugar leva o mesmo profissional, tanto a utilizar intervenções normatizadoras e adaptativas, quanto a produzir práticas que promovam a criação de novas aberturas e de novos modos de produção de subjetividades. Assim como o GIP mobilizou os intelectuais franceses a trabalharem ao lado dos detentos, Felix Guattari e Suely Rolnik (1986) nos advertem, igualmente, de que não há mais porque se aceitar falsas neutralidades. Destarte, entendemos que a tarefa do profissional ‘psi’ é a de se inquietar, de se surpreender diante das verdades absolutas, diante do estagnado e, a partir daí, questionar os jogos presentes no campo do instituído, desmontando a ‘historia oficial’, descolando os pontos de solda, possibilitando novos desenhos e novas verdades passíveis de transformação. Indo um pouco mais além - e diríamos, de forma ousada e provocativa -, Peter Pál Pelbart (1993) sugere que o profissional ‘psi’ possa, enfim, desarrazoar... De acordo 95 com o autor, não se trata de gritar novas palavras de ordem em substituição às antigas, pois, a desrazão não é uma nova ideologia, muito menos uma nova tecnologia - mas o exercício, no seio do próprio pensar e das práticas sociais, de uma nova forma de relacionar-se com o acaso, com o desconhecido [...]. Trata-se de não burocratizar o acaso com causalidades secretas ou cálculos de probabilidade, mas fazer do acaso um campo de invenção e imprevisibilidade; de não recortar o desconhecido com o bisturi da racionalidade explicativa [...]. Trata-se enfim de um pensamento que não transforma a força em acúmulo, mas em diferença e intensidade (PELBART, 1993, p.107). Por conseguinte, o operador da saúde não pode se deixar apaziguar nem deixar de se surpreender com aquilo que está posto, nem tampouco em adaptar-se à cronicidade do instituído. Ou ele se adéqua às praticas e instrumentos teóricos pré-estabelecidos e, dessa forma se identifica maciçamente com os valores institucionais, ou ele tenta desestabilizar esse lugar neutro e seguro implementado e sustentado pelo poder hegemônico, resistindo a ele através de uma bricolagem, “usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras” (Certeau, 2005, p.40). 96 Capítulo 5 Os pequenos grandes homens Essas vidas, por que não ir escutá-las lá onde, por elas próprias, elas falam? 60 Dizer as imagens e as palavras – os olhos e as vozes – é a única forma de dar visibilidade à impossibilidade de sentido de certos acontecimentos. 61 5.1. O silêncio dos sujeitados Antes de iniciar este capítulo gostaria de esclarecer que, parte dele, foi elaborada na primeira pessoa por um simples motivo: se assim não o fizesse, me soaria como algo artificial, como se alguém estivesse falando por mim... Assim como nós, ‘psis’, muitas vezes falamos pelo paciente... Ao longo de meu trajeto no MJ fui reunindo - sem objetivo definido -, imagens de alguns homens e mulheres que, por alguma razão me afetavam mais do que as imagens de alguns outros. Assim, sem muita explicação, me vi nas mãos com histórias de personagens vivas num mundo quase morto. Histórias que demonstravam um misto de amargura, desamparo, ódio, ingenuidade, desesperança, alheamento, enfim, histórias que, para muitos, seriam consideradas ‘histórias de loucura’. E em algum momento do qual não consigo precisar com exatidão, comecei a perceber que aquelas imagens, despretensiosamente gravadas ao longo dos anos, poderiam servir como instrumento facilitador na tentativa de desnaturalizar o que secularmente vinha sendo instituído: a maneira de se olhar o louco-criminoso. O audiovisual poderia contribuir para a promoção de novos entendimentos e perspectivas acerca da loucura. Como é comum na produção de documentários, nenhum roteiro foi produzido com antecedência. Tampouco me inquietei em fazer marcações preliminares, nem em elaborar perguntas pré-programadas ou locais de filmagem previamente determinados. Não houve preocupação com nenhum detalhe técnico como luz, som, ou posicionamento de câmera. Sequer houve cenário: o paciente era o cenário mesmo. 60 A vida dos homens infames. (1977 d, p. 208). 61 Corpos inabitáveis, errância, filosofia e memória, (2001, p. 251). 97 Este trabalho de captação de imagem do dia-a-dia dos pacientes do MJ começou por um desejo em travar uma comunicação informal e mais próxima com o paciente, liberando-nos, a mim e a ele, do habitual setting terapêutico. A maioria dos encontros foi gravada no pátio da instituição, no interior das enfermarias, nas saídas extramuros e alguns, por questões de preservação do próprio paciente 62 , foram tomados dentro da sala de atendimento. As imagens e as conversas iam sendo gravadas sem qualquer objetivo específico: apenas o de ouvir o que aqueles sujeitos tinham a dizer - ou a não dizer; suas histórias de vida, o seu cotidiano ou, simplesmente, o que quisessem falar; de que forma resistiam - ou não - às imposições institucionais. Ao longo dos anos, fui guardando esses pedaços de histórias, aqui e ali, e decidi valorizar exclusivamente o testemunho daqueles que, via de regra, são sujeitos considerados como ‘não confiáveis’ e ‘não privilegiados’, ou seja, priorizei tão somente a palavra dos ‘homens infames’. Entendo que, ao falar de si, o homem cria possibilidades de resignificar não o passado, mas o presente mesmo, podendo, assim, transformá-lo, e a simples captação de suas imagens, por si só, proporcionaria a escuta e o acolhimento do sofrimento daqueles sujeitos. Assim, acredito que, ao invés de se falar pelo paciente, deveríamos dar-lhe a palavra. Por conseguinte, minha intenção foi a de criar condições para que eles pudessem falar por si próprios, ao invés de serem falados por aqueles que usualmente se apoderam de seus discursos. Falar por si mesmo, fora do enquadre terapêutico, fora da situação ‘especialista- paciente’, possibilita ao sujeito sentir-se mais livre para deixar surgir suas outras facetas, suas histórias de vida - reais ou inventadas -, seus gostos e preferências, seus sonhos e desilusões. Pelo fato de conhecer os pacientes há muitos anos, a minha presença nas conversas facilitou o modo como eles se expressaram. Não havia interesse de em me colocar em um papel de destaque ou de liderança, nem tampouco de me posicionar de forma neutra, impessoal, ‘superior’, como se fosse detentora de alguma espécie de poder. Pelo contrário, a captura das imagens se deu de maneira bastante natural, instaurando-se um modo peculiar de discursividade entre entrevistador e entrevistado: eram, na verdade, encontros e conversas. Não havia nenhuma intenção, naquela situação, em entender os motivos que pudessem ter levado o sujeito à execução 62 Como havia livre acesso aos pacientes e, inclusive, toda a liberdade do uso da câmera