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existência de uma verdade absoluta, estabilizadora, inquestionável. Em contrapartida, propõe verdades parciais, não definitivas, passíveis de transformação. Verdades, que se deslocam dos pontos de solda, formando novas costuras, novas verdades. Sem dúvida, Michel Foucault pensa a história em termos de descontinuidade, de rupturas, de singularidade, com temporalidades distintas, utilizando-se da história para romper com o presente, para desnaturalizá-lo. Segundo advertem Araújo e Fernandes, [...] o fator singular presente no depoimento oral é que a fonte é constituída por uma narrativa e que esta consiste na interpretação da experiência vivida, longe da objetividade e da verdade almejada pela historiografia tradicional [...] o papel do historiador é justamente tentar ’desnaturalizar’ as construções da memória oficial (ARAÚJO e FERNANDES, 2006, p. 23). Ao se falar em memória oficial 65 , lembramos Portelli que, ao longo de suas pesquisas, optou pelas histórias construídas pelos ‘pequenos homens’, ao invés de se apoiar na historicização da memória oficial das ‘grandes elites’. Para ele, “a história oral nos conta menos sobre eventos do que sobre significados. [...] entrevistas revelam eventos desconhecidos [...] que sempre lançam luz sobre áreas inexploradas da vida diária das classes não hegemônicas” (Portelli, 1997 a p. 31). E é destas classes não hegemônicas que a História Oral pretende falar. Ela se propõe a problematizar este social, insistindo em alguns pontos nevrálgicos que se mantêm invisíveis, escondidos e geralmente incômodos. Da mesma forma pensamos que assim deva ser o papel do profissional ‘psi’ operando no interior das instituições, qual seja, o de tentar desnaturalizar as construções da memória oficial, o de apontar para os ‘não-ditos’, o de recusar a responder sempre prontamente ‘porque sempre foi assim’; ao invés disso, ele deverá buscar revelar as redes de poder , os jogos de verdade, os processos de ocultação dos acontecimentos, trazendo à tona a vivência pessoal e a subjetividade de cada paciente para enfim, evidenciar o relato desses ‘pequenos grandes homens’. 65 Segundo Michael Pollak (1989), a memória oficial, geralmente construída intencionalmente, pode disputar espaço com as chamadas ‘memórias subalternas’, onde o silêncio aparece como uma estratégia de sobrevivência. 108 Daisy Perelmutter (2006) reforça esta idéia, afirmando que “[...] o que a história oral nos parece trazer de forma caudalosa são as representações da experiência vivida, o sentido atribuído ao passado pelos próprios sujeitos que o protagonizaram”. Vemos assim que, o que importa é a maneira como os entrevistados vão contar a história: os enganos ou as fantasias transformam-se em detalhes riquíssimos de investigação. O mesmo ocorre com os delírios e alucinações que compõem, por vezes, o relato de alguns pacientes do MJ. Ouvir o outro é, não só ouvi-lo e valorizá-lo em suas palavras, mas é também se responsabilizar pelo vínculo formado neste encontro: É evidente que eu me sinto responsável por aquela favela, por aquelas pessoas do lixo que eu filmei. Obviamente se é uma imagem decente que eu transmito deles, eu suponho que vou ser fiel a uma relação com os favelados em geral, com as pessoas do lixo em geral, etc., mas o importante são aquelas pessoas que tem nome; não é uma confiança de classe desencarnada, é encarnada em pessoas que foram gentis comigo (COUTINHO, 1997, p. 170). Reconhecer o outro, portanto, possibilita ao sujeito se apossar de sua própria história contribuindo, ele mesmo, para a formação de novas subjetividades. Assim como Coutinho, temos outros autores que costumam ouvir as histórias dos ‘pequenos homens’. Em seu documentário, Notícias de uma guerra particular, João Moreira Salles não mostra a polícia nem o ‘dono do morro’, mas a história comum dos moradores, dos ‘sem história’, dos ‘homens infames’. Assim como o rapper MVBill, que ouviu os invisíveis ‘falcões’ do tráfico, ao invés dos ‘grandes traficantes’. Foi através dos recursos audiovisuais - da fotografia e da filmagem - que começamos a perceber o quanto eles poderiam contribuir para libertar o sujeito do destino que já lhes havia sido traçado. Sem dúvida, podendo narrar a sua própria história, o paciente encontra-se mais disponível a fazer novas movimentações e prováveis mudanças: a palavra possibilita-o a apropriar-se de sua vida mesma. A câmera torna-se, assim, a prova daquilo que não pode ser dito nem visto. A partir dela, é possível passar-se a palavra ao louco - mas não à loucura como uma entidade genérica, que fique bem claro. Não nos interessa uma narrativa histórica geral que fale sobre a loucura, mas tão somente nos interessa ouvir a palavra de sujeitos singulares, de identidades nomeáveis, marcadas nos seus corpos e nas suas almas. Como nos ensina Eugénia Vilela: 109 no testemunho, aquele que se manifesta passa a existir para além de um discurso legitimado pelos jogos de verdade [...] pois adquire, por um lado, uma dignidade decorrente da sua condição de homem-memória e, por outro, uma legitimidade e identidade sociais enquanto portador de história. [...] Dar sentido através dos nomes aos acontecimentos sem memória é não dizer o outro, mas erguer a voz do outro, é construir linguagens de resistência (VILELA, 2001, p. 245- 248). Dito de outra maneira, o ato de testemunhar, de falar com sua própria voz, desafia os jogos legitimados pelos diferentes regimes de poder/saber, afirmando-se como um ato mesmo de resistência. Resistência que cria condições de possibilidade de produção de novos sentidos, de novos significados, de novas linguagens, e não apenas aquela produzida pelo especialista ou mesmo pelo conhecimento científico. Ao passar a palavra a esses sujeitos, temos apenas uma certeza: a de não se falar por eles, mas sim, a de oferecer acesso para que suas histórias individuais possam se destacar sobre aquilo a que foram previamente destinadas. Não é incomum que esses sujeitos sejam ‘falados’ através da voz do profissional ‘psi’, tanto através de laudos, como de pareceres, ou ainda na prática mesma de suas relações. O louco, o delinquente, o demente, o inimputável, o encarcerado, passa a ter nenhuma importância; ele sequer é ouvido. Fala-se por ele. Mas, se por acaso, vier a tomar a palavra, isto poderá significar o grande risco dele ser punido. Podemos observar esse fenômeno quando, ao definir o que é o MJ a partir de sua própria experiência vivida lá dentro Anderson fala com a sua própria voz 66 . Contudo, sob outras circunstâncias, a sua palavra poderia ser vista como algo perigoso e, justamente por não possuir crédito algum, o que o paciente dissesse poderia ser entendido da forma que melhor aprouvesse à instituição. Neste caso, a saída tradicional é, presumindo-se ali um sujeito louco e intrinsecamente perigoso, segregá-lo ao silêncio da tranca. Sabe-se que, ao longo dos séculos, a instituição totalitária vem se manifestando como uma grande expert em calar ou em distorcer a voz do sujeito asilado. Dificilmente ouvimos relatos provindos dos próprios pacientes quanto ao método de internação a que são submetidos, quanto às formas de tratamento que lhe são impostas, e quanto aos seus direitos e deveres a serem cumpridos durante o período de cumprimento da medida de segurança. Fala-se sobre a loucura, sobre a delinquência, sobre o manicômio, sobre a prisão, fala-se... Mas não se ouve a voz daqueles que lá habitam. 66 Estamos nos referindo ao seu comentário sobre se o MJ seria um hospital ou uma prisão. 110 Acreditamos na importância da participação do indivíduo no processo de mudança, no seu reconhecimento como autor e transformador de sua própria história. Conhecendo