Grátis
129 pág.

Denunciar
Pré-visualização | Página 7 de 42
partir da lendária atitude de Pinel ao desacorrentar os loucos. Contudo, esta ‘libertação da loucura’ decantada por Pinel, não permitiu conceder aos alienados uma atenção médica nem sequer filantrópica; muito pelo contrário, jamais se uniu, de forma tão rija e solidamente a loucura ao internamento. O asilo construído pelo escrúpulo de Pinel não serviu para nada e não protegeu o mundo contemporâneo contra a grande maré da loucura. Ou melhor, serviu, serviu muito bem. Se libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou ao louco o homem e sua verdade. Com isso, o homem tem acesso a si mesmo como ser verdadeiro, mas esse ser verdadeiro só lhe é dado na forma da alienação. (Foucault, 2009 a, p. 522) Nesta sua obra, Foucault desmistifica o humanismo terapêutico e libertador de Pinel, desmascarando a psiquiatria como sendo a responsável pelo tratamento da loucura. Em um caminho contrário, ele “mostra o caminho que foi preciso a história seguir para que a psiquiatria tornasse o louco doente mental” (Machado, 1981, p. 58). O ato fundador de Pinel não é retirar as correntes dos alienados, mas sim o ordenamento do espaço hospitalar. Através da “exclusão”, do “isolamento”, do “afastamento” para prédios distintos [...] a categoria da loucura se destaca, então, em sua especificidade [...]. E, dessa maneira, ela se tornou doença. A partir do momento em que é isolado em 20 seu próprio espaço, o insano aparece, sem duvida, sequestrado como os outros, porém, por outras razões. Por causa de doença (CASTEL, 1978, p. 83). Deste modo, segundo Michel Foucault, perde-se, definitivamente, a relação com a loucura e mantém-se uma ligação lastimável com a doença mental, lá, onde se imagina o perigo, a revelação, a verdade; lá, onde surge “o temor, incessantemente repetido durante séculos, de ver a estiagem da loucura elevar-se e submergir o mundo” (Foucault, 1964, p. 213). Ao migrar para a região da doença mental, a loucura é incluída no universo dos interditos de linguagem; a internação clássica enreda com a loucura [...] tudo o que caracteriza o mundo falado e interditado da desrazão; a loucura é a linguagem excluída – aquela que, contra o código da língua, pronuncia palavras sem significação (‘os insensatos’, ‘os imbecis’, ‘os dementes’), ou a linguagem que pronuncia palavras sacralizadas (‘os violentos’, ‘os furiosos’), ou ainda a que faz passar significações interditadas (‘os libertinos’, ‘os obstinados’). A reforma de Pinel é muito mais um arremate visível dessa repressão da loucura como palavra do que uma modificação (FOUCAULT, 1964, p. 215). De acordo com o autor, o sujeito-louco só pôde ser novamente ouvido, de fato, a partir da contribuição da obra de Sigmund Freud, quando, então, dá-se a palavra ao louco e ouve-se seu delírio, aparentemente sem sentido. Asilando-se os excluídos, tem-se a possibilidade de estudá-los em seus pormenores e, deste modo não somente extrair-lhes a sua verdade, mas igualmente categorizá-los e rotulá-los. Como já dissemos, transmuta-se a representação do louco para o de doente mental. Para tanto, criam-se domínios de conhecimento e uma série de disciplinas – tais como a psiquiatria e a psicologia – que passam a discorrer sobre a doença através de discursos com estatuto de verdade observável e ordenável por seus especialistas. Com relação a esse tópico iremos mais à frente discuti-lo. Com a presença regular e contínua da figura do médico nos locais de internação, constata-se a sua função moral e de caráter higienista, mais do que de caráter curativo propriamente dito: o médico é “o agente das sínteses morais” (Foucault, 1968, p. 82). Por sua vez, o asilo mesmo é marcado não somente por suas características de tratamento moral, mas também se constitui como uma estrutura que objetiva a loucura como doença mental (Fonseca, 2002). 21 2.2.2. Surge uma nova invenção: o ‘crime de loucura’. Faz parte integral da psiquiatria, enquanto ‘ciência’ da mente humana, a noção de que os esquizofrênicos paranoides são perigosos. Assim como os verdadeiros crentes do judaísmo acreditam que os judeus são o Povo Escolhido e assim como os verdadeiros crentes do cristianismo acreditam que Jesus é Deus, assim também os verdadeiros crentes da psiquiatria acreditam que a esquizofrenia paranoide é uma doença identificável e que os que sofrem dessa doença são perigosos. 14 Thomas Szasz Enganam-se aqueles que creem terem as ciências ‘psi’ parado por aí. Além de observar-se que o hospício fabrica a loucura - pois que ele introduz no jogo do médico e do paciente, a loucura como anomalia, como perigo, como objeto de investigação científica -, constata-se também a criação de novas figuras e novas terminologias no campo dessas ciências. (Fonseca, 2002). Michel Foucault inicia a sua aula de cinco de fevereiro de 1975, no Collège de France, apontando para um novo personagem – o do ‘monstro’ – que passa a circunscrever os anos iniciais da psiquiatria penal e a sua transição para a figura do anormal e do mais tarde denominado ‘louco-criminoso’. A partir de uma série de casos 15 que apresentavam aproximadamente a mesma forma e que se desenrolaram no final do século XIX - entre 1800 e 1835 -, a psiquiatria criminal se viu prestes a descobrir que certos atos monstruosos nos quais não se podia observar nenhum interesse aparente, eram produzidos, não pela ausência da razão, mas por uma certa dinâmica mórbida dos instintos, por “movimentos inesperados e incontroláveis das paixões e afetos” (Carrara, 1998, p. 72). Constituía-se, desse modo, a categoria nosológica da ‘monomania’16 que, segundo Robert Castel, foi tomada pela medicina mental para justificar e interpretar um novo tipo de comportamento que lhe escapava e que, por suposto, deveria ser atribuída ao campo do judiciário (Castel, 1977). Desde aí, a noção de instinto, segundo Foucault, 14 A Escravidão Psiquiátrica (1986). 15 O autor aponta para os três grandes monstros fundadores da psiquiatria criminal: a mulher de Sélestat, que matou a própria filha, cortou-lhe em pedaços e comeu-a; o caso de Papavoine que assassinou duas crianças e, finalmente, a Sra. Cornier que matou uma menina de dezoito meses, cortando-lhe o pescoço e separando-lhe o tronco da cabeça. 16 Segundo Carrara (1998), a monomania foi entendida, inicialmente, como uma forma de loucura definida pela presença de delírios. Progressivamente passou a codificar uma perturbação mental acompanhada de emoções incontroláveis. 22 terá um papel central no problema da anomalia: ele vai tornar inteligível ao mecanismo penal, um crime sem interesse e, destarte, não passível de ser punido. Assim, partindo- se desses casos, inauguraram-se as reflexões iniciais sobre a relação entre crime e loucura. Ao problematizá-los, Foucault passa a questionar o motivo pelo qual estes crimes tomaram tanta importância nos meios médicos e jurídicos da época. O assassinato monstruoso e sem motivo configura-se, agora, como ‘loucura criminal’, loucura esta que só teria por sintoma o próprio crime. Szasz é enfático em sua crítica quanto à tentativa de se relacionar crime e loucura: A mistificação do conceito de doença mental e sua mistura com o crime são agora úteis para a psiquiatria institucional, assim como a mistificação do conceito de bruxaria e sua mistura com o de envenenamento já foi útil para a Inquisição. [...] A doença mental é o conceito nuclear da psiquiatria institucional, assim como o era a heresia para a teologia da Inquisição. O fato tanto da heresia quanto a doença mental serem crimes de pensamento - e não crimes de ato -, ajuda a explicar os métodos asquerosos usados