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do delito. Ainda, segundo a autora, a Psiquiatria surge como instrumento de transformação do louco em doente mental e, a sua história se confunde com a história mesma do Direito Penal. A medicina psiquiátrica passa a intervir na modulação da pena e com isso, cada vez menos, os conceitos por ela utilizados tornam-se de caráter médico: surge a figura, cunhada por Foucault, do médico-juiz, , aquele que pretende tratar, julgando. Conforme leciona o autor, a psiquiatria para se justificar como poder e ciência da higiene pública - e, portanto, de proteção social -, precisa mostrar que é capaz de perceber um certo perigo, mesmo onde nenhum outro possa ver (Foucault, 2001). Assim, no decorrer do século XX, organiza-se efetivamente um poder médico- judiciário que leva o indivíduo diante de um tribunal não apenas com o seu crime: ele vai acompanhado de um exame psiquiátrico, o qual que diz muito mais respeito ao tipo de vida que este sujeito está submetido, ao seu comportamento disciplinar, à sua relação com seus subordinados dentro do cárcere, enfim, ao nível de perigo que ele ainda possa representar, do que, na realidade, ao próprio ato por ele cometido. Segundo Cristina Rauter, passa-se a exercer um tipo de controle mais amplo e eficiente: Enquanto a justiça só pode agir sobre o delito quando este já tiver sido cometido, a psiquiatria aparece como capaz de prevê-lo em função de critérios de periculosidade definidos ‘cientificamente’. O ato criminoso torna-se resultado inevitável de uma condição mórbida que já se esboçava desde a infância. A criminalidade atravessa a vida do indivíduo, o crime é sempre uma virtualidade (RAUTER, 2003, p. 113). 26 Vê-se, destarte, a produção de um discurso criminológico sobre a figura do louco-criminoso que, desconhecida pelos juristas, passam estes a contar com a intervenção da psiquiatria para assessorá-los, resultando, assim, na profícua união entre o direito e a medicina que, agora, funcionam juntos como a principal defesa à sociedade contra essa figura estranha e obscura do louco-criminoso. Conforme pensamos, a noção de medida de segurança perde a sua especificidade como medida de tratamento e ganha contornos puramente jurídicos. Nota-se, neste caso, que a psiquiatria - e por que não dizer também a psicologia -, funciona como uma prática essencialmente disciplinar, coercitiva e produtora de subjetividade: em seu nome o sujeito inimputável não só é produzido como também é condenado. Como já dissemos, é o manicômio o lugar que lhe é destinado. Detenhamo-nos um pouco sobre ele - o MJ. O Manicômio Judiciário (MJ) 20 é um hospital psiquiátrico-penal, que custodia em sistema de reclusão, sob regime fechado, indivíduos portadores de sofrimento mental que cometeram crime. Sua população é composta por cerca de 200 pacientes, sendo a grande maioria masculina. Ao longo dos anos lá trabalhados, constatamos que o MJ abriga uma série distinta de pacientes portadores de transtorno mental, que se distribuem em uma escala que varia, tanto de acordo com o tipo de delito cometido, quanto com o nível de seu comprometimento psíquico. Assim, poderíamos observar, por um lado, desde as expressões mais brandas de esquizofrenia, até as mais sérias e agudas formas de psicose, como também uma variação entre alguns tipos de delito considerados leves até aqueles classificados como mais graves. Estes indivíduos, considerados por lei como sendo inimputáveis, encontram-se incursos no Art. 26 do Código Penal 21 , que afirma ser isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente em virtude de perturbação de saúde 20 Apesar da mudança ocorrida em sua nomenclatura a partir do falecimento de Heitor Carrilho, em 1954 - passando a ser nomeado de hospital ao invés de manicômio -, optei por manter a utilização de Manicômio Judiciário, usando a sigla MJ, por acreditar que desta forma estaria sendo mais fiel à idéia mesma que ele representa. Parece-nos que de nada adiantaria mudar-se o nome se a prática continua sendo a mesma. 21 O Código Penal vigente é ainda o de 1940, ao qual foram feitas algumas alterações através da Lei de Execuções Penais 7.209/84. Entretanto, ainda permanece a mesma orientação no que se refere à atuação frente ao doente mental. 27 mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (Decreto-Lei 7209 de 11 de Julho de 1984, Código Penal Brasileiro). Uma vez enquadrados no artigo 26 do Código Penal, os mesmos serão absolvidos de seus crimes, mas pesará sobre eles uma nova modalidade de apenação - a ‘medida de segurança’ - que será, no próximo subcapítulo, problematizada. 2.3.2. O surgimento da Criminologia e suas confusas terminologias O termo Criminologia foi criado por Raphael Garófalo, como sendo a ciência da criminalidade, do delito e da pena. Baseada na observação e nos fatos, a criminologia tratava de explicar a origem da delinquência. Garófalo concebeu sua concepção de delito natural partindo da ideia lombrosiana do ‘criminoso nato’. Este conceito apareceu em 1871 com a publicação da obra L’Uomo delinqüente de Cesare Lombroso, que acreditava ser o criminoso possuidor de uma série de estigmas anatômicos indicadores de certas anomalias. As ideias defendidas por Lombroso acerca do ‘criminoso nato’ professavam que, pela análise de determinadas características somáticas seria possível antever aqueles indivíduos que se voltariam para o crime. Lombroso – médico de pensamento positivista - realizava estudos de anomalia craniana nos estabelecimentos prisionais italianos, tentando responder às questões deterministas a partir da chamada antropometria 22 criminal. Para ele, o individuo criminoso tinha em sua face – e o autor acreditava que o rosto era o ‘espelho da alma’ –, aquilo que dizia respeito ao próprio crime, a algo intrínseco à subjetividade e ao corpo desse sujeito, que seria, então, criminoso por essência. O delinquente era considerado um ‘louco atávico’ que produzia os instintos de seus ancestrais mais primitivos. Foi por exemplo, através da comparação das medidas do corpo humano que cientistas do século XIX chegaram à conclusão de que o negro era inferior ao branco por possuir um cérebro menor do que aquele. As pessoas já não eram definidas apenas 22 Processo ou técnica de mensuração do corpo humano ou de suas várias partes. (Novo Dicionário Aurélio) 28 pela cor da pele, ou pelo ângulo facial. Começaram a surgir maneiras cada vez mais refinadas de classificação, que isolavam e estigmatizavam aqueles que não cumpriam o padrão pré-estabelecido pela sociedade de classes. A ciência passa a classificar o sujeito com fins de controle e segregação. Aqueles conotados como diferentes, ocuparam e ocupam na historia e nas relações de poder, um lugar à margem, à exclusão. A partir daí, todas as pesquisas científicas dobrariam seus esforços para demonstrar que os comportamentos antissociais provinham essencialmente de causas orgânicas e, até mesmo o crime, deveria ser explicado por meio de fenômenos causais. Órgãos internos e externos eram avaliados com o objetivo de relacionar suas lesões às manifestações da alienação mental. A maioria dos documentos clínicos traz descrição minuciosa desses caracteres morfológicos, sendo registrados também os traços físicos indicativos de degeneração. Em uma das conferências proferidas por Franco Basaglia, quando de