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Fidelidade Societária

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FIDELIDADE SOCIETÁRIA
Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 51 | p. 17 | Jan / 2011DTR\2011\1108
Marco Túlio de Rose
Mestre em Direito pela UFRGS. Professor em cursos de Pós-graduação em Cooperativismo na
UFRGS e na Unisinos. Advogado.
Área do Direito: Comercial/Empresarial; Bancário
Resumo: O conceito da fidelidade societária evolui do direito romano e implica em deveres de
participação do sócio, como colaborador da sociedade que integra, alcançando todo tipo societário,
mormente as sociedades de pessoas e nelas as sociedades cooperativas. O principal dever exigido
é a impossibilidade de o sócio concorrer ou colaborar com quem concorre com a sua sociedade. As
colidências deste instituto com o direito do consumidor e a própria disciplina da concorrência não
podem ir a ponto de sacrificar o instituto, pois com isso estaria sacrificada a própria sociedade.
Palavras-chave: Fidelidade societária - Deveres de participação do sócio - Colaborador da
sociedade - Sociedades de pessoas - Sociedades cooperativas - Impossibilidade de concorrer -
Colidências do instituto - Direito do consumidor - Disciplina da concorrência.
Abstract: The concept of company fidelity evolves from the Roman Law and implies in participation
duties/obligations of the partner, as a collaborating member in the partnership he integrates. This
concept reaches all kinds of companies/partnerships, mainly the people ones and, within these, the
cooperatives companies. The main required duty of a partner is to be unable to take part or
collaborate in other companies which his own company concurs with. The collision of this institute
with the Costumers Code and the concurrence issue itself can't get to the point where this institute will
end up sacrificed, because that would mean leading us to the end of the partnerships themselves.
Keywords: Company fidelity - Duties/obligations of the partner - Collaborating member - People
ones - Cooperative companies - Unable to take part or collaborate in other companies - Collision of
institute - Costumers code - Concurrence issue.
Sumário: 1.INTRODUÇÃO
- 2.ANTECEDENTES NO MUNDO E NORMAS BRASILEIRAS - 3.FUNDAMENTOS E
CONSEQUÊNCIAS - 4.PROBLEMATIZAÇÕES - 5.CONCLUSÕES - 6.REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
1. INTRODUÇÃO
1.1 Visão geral
A manifestação de vontade dos contratantes é essencial em todos os contratos, pois sem aquela,
estes não existem. No contrato de sociedade, mais que essencial, ela é transcendental.
A manifestação de vontade dos fundadores de uma sociedade permite que, em sendo vários os
contratantes, remanesça o contrato, mesmo após a morte de um deles, demonstrando a
transcendência daquela, circunstância que não passou despercebida ao gênio do direito romano, nos
albores da elaboração contratualística no Ocidente.
Essa manifestação de vontade, tão poderosa que permite perdurar o contrato mesmo após a falta de
um ou alguns de seus emissores, contanto que permaneçam mais de um, tem igualmente outro
poder: poder de limitar manifestações de vontade pelos membros da sociedade, fundadores ou não,
quando possam colidir com os objetivos da entidade.
Nasce este poder da constatação de que o sócio, nos limites das obrigações assumidas no seu
ingresso, ou ao longo de sua permanência, tem, como contrapartida aos seus direitos sociais, a
obrigação genérica de guardar o espírito original do contrato celebrado, não sendo permitido que sua
conduta desmereça, objetivamente, este dever de lealdade.
A este dever de observância do espírito originário do contrato, com suas consequências de direitos e
obrigações recíprocas, chama-se dever de fidelidade societária.
1.2 Peculiaridades
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A força, peculiar e intensa, da manifestação de vontade dos sócios fundadores e a proteção que o
direito a ela confere possibilitam o fenômeno jurídico de estes, em alguns tipos societários,
convencionarem documento normativo, que é o estatuto, regulando ingresso e saída de sócios, sem
necessidade de alterar o ato constitutivo, nem o estatuto, pelo fluxo de admissões e demissões.
Tal manifestação de vontade é distinta da existente em outros tipos contratuais. Konder Comparato,
comentando lição de Arangio Ruiz, explicita que nos demais contratos, como a compra e venda,
comparecem interesses econômicos distintos e justapostos (alienante quer se desfazer de bem
integrante do seu patrimônio e adquirente deseja adquiri-lo). No contrato de sociedade, no entanto,
desejam os celebrantes, de forma continuada, satisfazer interesse comum, inalcançável por seus
esforços individuais. 1
No contrato de sociedade, a satisfação do interesse pessoal das partes, necessariamente, passa
pela realização prática de uma atividade comum, a ser em comum alcançada, por um meio prático,
abstratamente previsto no objeto social, contratual ou estatutário. Como dizia Pontes de Miranda, "o
interesse em ser comum um fim, faz ser comum o interesse".
Decorre dessa circunstância, realização comum de atividade para alcançar comum objetivo, a
conclusão de que o dever de colaboração entre sócios é amplo, desdobrando-se em todos os
sentidos positivos compreendidos no objeto social, pena de frustrar a finalidade social almejada.
Deriva da mesma circunstância – realização comum de atividade para alcançar comum objetivo –
amplo dever de abstenção, evidenciado na vedação de concorrência, direta ou indireta, do sócio
para com a sociedade da qual faz parte.
Nesta direção, Comparato é preciso, no sentido de considerá-la como manifestação, pura e simples,
da affectio societatis romana. 2
No direito italiano, em obra até hoje não superada, Dalmartello funda o dever de lealdade em um
princípio geral de conservação e estabilidade do ente e da empresa social, diante das trajetórias
individuais de seus componentes. 3
1.3 Regra geral
O princípio do dever da colaboração social, notadamente nas sociedades de pessoas (sem excluir as
sociedades de capital), informa a regra geral sobre o assunto, defendendo alguns, como Emilio Betti,
que o mesmo é, na sua aplicação adequada ao direito societário, uma simples decorrência do
princípio da boa-fé contratual, regra de ouro de todo o direito das obrigações.
Em decorrência deste princípio, extrai-se, enquanto regra geral sobre a matéria, o preceito de que é
proibido ao sócio concorrer, direta ou indiretamente, ajudando ao concorrente direto, por si, ou por
interposta pessoa, com a sociedade.
O concorrente, enfatiza Konder Comparato, em magistral parecer a propósito da matéria, "é o
contrário do colaborador". 4
2. ANTECEDENTES NO MUNDO E NORMAS BRASILEIRAS
2.1 Direito romano
Vem da genial intuição do jurista romano a noção de affectio societatis e sua diferenciação, já
comentada, dos demais contratos, conforme os estudiosos, localizada em glosas de Ulpiano e Gaio.
5
Os especialistas no direito deste período identificam, nas sociedades então existentes, o
reconhecimento do dever do associado de subministrar seus bens ou indústria, prestando os
serviços prometidos, tendo em troca o direito de levar adiante os negócios comuns e realizar as
operações sociais. 6
Destaca-se como característico do contrato social a sua natureza intuitu personae, visto que a
sociedade produz entre seus membros obrigações recíprocas, apreciáveis segundo o princípio da
boa-fé, que não são distintas, como nas demais figuras contratuais, para cada uma das partes, mas
da mesma natureza. 7
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Entende-se, já no direito romano, ser a principal obrigação do sócio aportar, conforme comprometido,
capital ou indústria, para a sociedade, garantindo aos consócios o direito ao desfrute deste aporte. 8
Tamanho era o característico de pessoalidade emprestado ao contrato de sociedade, pelo romano,
que seu direito, em regra, não admitia a continuidade dos negócios societários quando ocorresse a
exclusão, por qualquer motivo, de um sócio, mesmo que houvesse outros aptos a continuar com a
sociedade.
A possibilidade de dissolução parcial da sociedade somente vem a ser admitida no direitoromano
tardio, ao tempo de Justiniano, ainda assim se o contrato de sociedade contivesse cláusula expressa
de não dissolução no caso de morte de um dos sócios. 9
Conclusivamente, com o direito romano afirma-se (de modo tão eloquente que a expressão até hoje
encontra má tradução), a affectio societatis.
2.2 Ordenações
O desenvolvimento jurídico das últimas fases do direito romano, em matéria de direito societário, não
encontrou sucessão na Idade Média, onde o modelo no qual se plasmava a ideia societária era o da
sociedade familiar.
Em face disso, o decesso de um sócio, mesmo que por morte, implicava, por força de lei, ainda que
o contrário convencionalmente constasse, na dissolução social.
Exemplo eloquente encontra-se nas Ordenações Alfonsinas, 4.44, que diz: "Morrendo qualquer dos
companheiros, logo acabará o contrato da companhia, e não passará a qualquer dos seus herdeiros,
posto que no contrato se declare que passe a eles".
2.3 Direito germânico e espanhol
A reação à regra do direito romano clássico, com a afirmativa do critério pretoriano verificado no
período tardio, no sentido de ser possível a exclusão do sócio infiel, com a continuidade da
sociedade pelos remanescentes, afirma-se no século XIX através dos Códigos Comerciais prussiano
e austríaco. O primeiro, na regra 133 (§ 133), declara que a sociedade mercantil pode ser dissolvida
quando sócio contravém, intencionalmente, ou por grave negligência, uma obrigação essencial que
lhe cabe por contrato, acrescentando o § 140 que o tribunal, ao invés de dissolver a sociedade, pode
excluir o faltoso.
Ambos admitem a chamada dissolução parcial, que é a exclusão do sócio que descumpra com
compromisso essencial junto à sociedade. Na mesma linha, o Código de Comércio espanhol de
1829. O passo decisivo, para as codificações societárias sepultarem o modelo romano da dissolução
completa da sociedade a partir da infidelidade de um sócio, é dado no Código italiano de 1865.
O Código Comercial brasileiro de 1850, nos arts. 308 e 335, possibilitava a resolução parcial do
vínculo social se houvesse exercício, pelo sócio da indústria, de atividade comercial fora da
sociedade. Em face disso, J. X. Carvalho de Mendonça propugnava que nas sociedades de pessoas
a exclusão dos sócios era possível fora dos casos legais, com base no contrato social e na
deliberação majoritária, solução consagrada na jurisprudência do tempo, 10 sendo que Teixeira de
Freitas, no Esboço, art. 3.219, contemplava a possibilidade de o contrato prever justa causa para
exclusão de sócio e continuidade da sociedade.
2.4 Direito italiano e codificações do século XX
O século XX já encontra o espírito jurídico acostumado com a ideia da dissolução parcial da
sociedade e sua derivada, qual seja a possibilidade de o instrumento contratual ou institucional
prever a possibilidade de exclusão do sócio infiel ao princípio básico da affectio societatis.
Assim, o Código Civil ( LGL 2002\400 ) italiano, nos arts. 1.420, 1.446, 1.459 e 1.466, contempla
disposições que permitem a exclusão do sócio concorrente com a atividade empresarial da
sociedade, repetidas no atual Código, nos arts. 2.301, 2.390 e 2.487. No mesmo sentido o Código
Comercial, arts. 157 e 158, e o Código Civil ( LGL 2002\400 ) , art. 990, de Portugal e ainda o Código
suíço das Obrigações, no art. 577.
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Por sua vez, no direito francês, tal possibilidade, embora não conte com lei expressa, é admitida por
aplicação analógica extensiva do art. 1.184 do vetusto Código Civil ( LGL 2002\400 ) , como se colhe
da seguinte lição de Planiol, recolhida por Comparato: "Deve-se admitir que a exclusão pode ser
pronunciada por fatos que não são expressamente previstos nos estatutos, na medida em que os
fatos reprováveis atribuíveis ao sócio sejam contrários às obrigações para ele decorrentes de seu
ingresso no sindicato. A exclusão, neste caso, funda-se no princípio de direito comum que autoriza a
resolução de um contrato sinalagmático se uma das partes deixa de cumprir suas obrigações". 11
2.5 A lei cooperativista e o Código Civil de 2002
O Código Beviláqua não apresentou normas específicas quanto ao problema da fidelidade do sócio à
sociedade e das sanções pelo descumprimento deste dever. Explica-se com facilidade essa omissão
pelo laconismo com que a mesma lei tratou as sociedades, dentro da visão dicotômica do direito civil
e do direito comercial, ficando a disciplina societária mais afeta ao último ramo e à sua legislação
complementar do que ao regramento do direito comum.
No entanto, a Lei das S.A., em 1976, no seu art. 115, prevê a possibilidade de ser considerado
abusivo o exercício do direito de voto pelo sócio que tenha o escopo, em proveito pessoal, de
prejudicar a companhia ou os demais acionistas.
O dispositivo, na amplitude de sua redação, possibilitava até mesmo a exclusão do sócio, tendo, no
entanto, a Lei 10.303, de 2001, clausurado a censura do voto danoso, nesses casos, à anulabilidade
do voto e sujeição do sócio infiel à indenização por perdas e danos, "ainda que o voto não haja
prevalecido", estipulando-se elas na transferência, para a sociedade, das vantagens auferidas pelo
mesmo acionista.
Evidencia-se que o instituto da fidelidade societária é extensivo a todo o direito societário,
independentemente da natureza da vinculação, pessoal ou investidora de capital, do sócio na
sociedade. A diferença entre sociedades de pessoas e sociedades de capital, para fins de
aplicabilidade do instituto, é meramente de grau de incidência da sanção.
Naturalmente, nas sociedades de pessoas, onde o elemento da colaboração pessoal dos sócios em
relação ao desenvolvimento das atividades sociais avulta, as normas legislativas são mais rígidas no
estabelecimento da sanção cabível à infidelidade, ou permitem que seja estatuída maior rigidez.
Neste sentido, é paradigmática a Lei 5.764/1971, a Lei das Sociedades Cooperativas, que principia
por impedir o ingresso, na sociedade, dos agentes de comércio e empresários que operem no
mesmo campo econômico da sociedade (art. 29, § 4.º); segue possibilitando a eliminação do sócio
por infração legal ou estatutária do quadro social (art. 33) e anteriormente permite ao estatuto social
da entidade fixar as condições para eliminação dos cooperados (art. 21, II).
Finalmente, ao final do século XX, no reordenamento jurídico do direito societário, unificado para
todo o direito privado, transplantando regra que o velho Código de Comércio traçava para o sócio de
indústria, na sociedade de capital e indústria (art. 317), o art. 1.006 do CC/2002 ( LGL 2002\400 ) fixa
regra de ouro aplicável ao conjunto das sociedades simples: "O sócio, cuja contribuição consista em
serviços, não pode, salvo convenção em contrário, empregar-se em atividade estranha à sociedade,
sob pena de ser privado de seus lucros e dela excluído".
Completam-se, assim, a origem e o arcabouço legislativo do instituto da fidelidade societária, cuja
existência é justificada por várias teorias, que se complementam, explicam a razão de ser do
princípio da não concorrência do sócio para com a sociedade, têm consequências práticas bem
delimitadas e regras de processo de forma sólida assentadas – como adiante será visto.
3. FUNDAMENTOS E CONSEQUÊNCIAS
3.1 Teorias fundamentais
Várias teorias procuram fundamentar o instituto da fidelidade societária. Em linhas gerais, justificam
a existência do instituto com base ou na existência legal que a prevê; ou no comparecimento de
regra interna societária que a explicita; ou, ainda, no pressuposto de um dever genérico de
cooperação entre os sócios.
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A linha teórica que funda a obrigação de fidelidade essencialmente na existência de previsão legal
teve peso em eras mais antigas, quando, por influência do direito romano, entendia-se que, em
princípio, salvo regra expressa permitindo a continuidade associativa, o decesso de um sócio
implicava na dissolução da sociedade. Contra tal tipo de solução, altamente prejudicial à
continuidade do entesocial entre os membros remanescentes do empreendimento, construiu-se a
alternativa da possibilidade de exclusão do sócio infiel e continuidade do negócio societário, contanto
que a lei assim o permitisse.
A teoria teve o mérito de possibilitar a dissolução parcial, mas foi pouco a pouco superada, a
começar pelo raciocínio de que a lei não é um fim em si mesma, devendo ela ter um fundamento que
justifique a existência da norma.
Na linha evolutiva temporal das teses justificadoras, visando superar a rígida exigência da previsão
legislativa, avultou, como justificativa para sustentação do instituto, a previsão específica no
regramento interno societário, fosse o estatuto social, fosse o simples contrato social.
No Brasil, perfilhava a tese J. X. Carvalho de Mendonça. 12 Na Itália, a influente voz de Vivante
entendia os casos de exclusão por inadimplemento ou concorrência como matéria a ser
taxativamente determinada no estatuto da sociedade. 13
O mais completo representante da teoria contratualística seria, sem dúvida, Arturo Dalmartello,
sendo de notar que, embora ele conclua pela necessidade da previsão na norma societária interna,
com o que pode ser considerado um defensor da teoria do fundamento contratualístico, na verdade,
o aprofundamento da matéria em seus estudos acaba por descortinar novos horizontes teóricos.
Assim que reconhece, inicialmente, o estudioso italiano de direito societário, fundar-se o instituto no
princípio geral da conservação e estabilidade do ente social, com primazia em relação às trajetórias
individuais de seus componentes, para concluir que o instituto da exclusão nada mais é que a
manifestação da supremacia ou soberania que todo ente associativo deve ter nos confrontos com os
componentes da associação. 14
Ao defender a teoria contratualista, como fonte das disposições relativas à fidelidade societária,
Dalmartello tece considerações que ultrapassam os limites formais da teoria. Neste sentido, afirma
que a razão prática da eleição de pessoa certa não pode consistir em outra que não a expectativa,
juridicamente tutelada, de uma contribuição pessoal do indivíduo com quem se conclui o contrato
social. Essa expectativa de um contratante não pode surgir que não seja da promessa de outro
contratante de executar uma prestação pessoal, aportando a própria e específica capacidade
técnica, a própria e particular experiência e, em geral, a própria garantia pessoal. 15
O jurista italiano descarta, por outro lado, a teoria do poder corporativo disciplinar, por entendê-la
incompatível com a natureza contratualística e paritária da relação social, fixando-se, ao fim e ao
cabo, no fundamento contratualístico, no sentido de entender que é ele mais fiel à vontade
consensual dos sócios.
Na verdade, a linha de raciocínio de Dalmartello apenas é contratualística no sentido de divergir dos
que emprestavam à regra um característico publicístico, razão pela qual a mantinham como tendo
origem no texto de direito positivo. A evolução do seu pensamento, contudo, aprofunda o aspecto
meramente formal da existência do contrato para fixar no dever imanente de colaboração dos sócios,
integralmente distinto da figura dos parceiros nos contratos bilaterais típicos, a origem do instituto da
fidelidade societária. Vai além da letra do contrato para radicar-se na ontologia do próprio contrato,
ou, se assim se quiser, na sua teleologia.
Nessa linha de pensamento, malgrado dizendo discordar de Dalmartello, é que se situa o
pensamento mais atualizado sobre a matéria, como encontramos no próprio direito peninsular, em
Giuseppe Bobbino.
Defende este jurista ser dominante a doutrina que vislumbra o fundamento da exclusão do sócio
(para ele o instituto é adequado apenas às sociedades de pessoas) na violação, ou na
impossibilidade superveniente, da obrigação de colaboração que constituiria uma obrigação
fundamental a cargo de todos os sócios. 16
Na doutrina francesa, cabe registrar a posição de Yves Chartier, que considera existir ao encargo
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dos sócios uma obrigação de boa-fé, o que deslocaria o fundamento do instituto para o tão
conhecido dever de boa-fé objetiva, fonte de uma grande parte do direito privado moderno. 17
Pode-se concluir, portanto, que os fundamentos da fidelidade societária evoluem de uma base
exclusivamente legal para uma visão contratualista, e, dela, aprofundam para o dever de
colaboração pessoal de cada sócio para com o outro, que constituiria a própria boa-fé objetiva do
negócio jurídico societário.
3.2 Aplicação geral no direito societário
A maioria dos estudiosos da matéria societária entende que a fidelidade social é instituto ínsito de
todo o direito societário, tendo por objeto tanto as sociedades de pessoas, como as de capital.
Talvez melhor que todos, exprime esse raciocínio Fábio Comparato, no momento em que analisa a
infidelidade societária sob o prisma da concorrência do sócio para com sua sociedade e formula a
frase lapidar: "O sócio é o colaborador e o concorrente é o contrário do colaborador". 18
A propósito da colaboração do sócio para com a sociedade, Dalmartello, conceituando-a como
"cessão de força volitiva e intelectual", a entendia como obrigação fundamental do contrato de
sociedade. 19
Muito embora a maior parte dos exemplos de infidelidade societária tenha campo fértil de
demonstração nas sociedades de pessoas, por outro fundamento, sem dúvida alguma abrangente de
todo e qualquer tipo de sociedade, mutatis mutandis, tem ela aplicabilidade plena às sociedades de
capital. Fala-se do princípio da preservação da empresa.
Fran Martins, colhendo lição de Avelãs Nunes, autor de clássica obra sobre o assunto, O direito de
exclusão dos sócios nas sociedades comerciais, aponta este fundamento como essencial para a
exclusão do sócio, considerando-o inerente à própria natureza do contrato de sociedade,
"naturalmente contido em todos os contratos sociais, por forma a que seja sempre possível à
sociedade, mesmo além dos casos enumerados em lei, ou mesmo na ausência deles, e apesar do
silêncio dos estatutos, excluir o sócio que não cumpra as suas obrigações ou que comprometa, com
a sua presença, o bom andamento da empresa social". 20
A lição de Avelãs Nunes, base para o pensamento de Fran Martins, é enfática e arremata o ponto:
"Já se vê como por este lado vem também afirmada a ideia (que nos parece fundamental) de que as
sociedades comerciais de todos os tipos não podem ser privadas do direito de excluir do seu seio os
sócios que não colaboram na prossecução do escopo para que foram criadas". 21
Todavia, no âmbito das sociedades de pessoas é que o instituto evidencia sua maior pujança
aplicativa.
3.3 Aplicação rigorosa nas sociedades de pessoas
Muito embora em alto nível teórico a distinção entre sociedades de pessoas e sociedades de capital
seja questionável, os dois conceitos jurídicos são corriqueiros e, dentro da relatividade ínsita à
dogmática jurídica, de plena funcionalidade, dado que facilmente identificáveis as forças de atração (
affectio societatis) congregadoras do fenômeno societário, num caso e no outro, a saber, na
sociedade de pessoas, a colaboração pessoal e recíproca, nas sociedades de capital, a junção de
recursos financeiros no intuito de sua multiplicação.
Se o dever de colaboração é o fundamento da fidelidade societária, em qualquer espécie de
sociedade reconhecida pelo direito, com muito maior razão ele há de ser averiguado naqueles tipos
onde a ajuda pessoal e recíproca é de rigor, pois faz parte da essência da entidade.
Essa circunstância não escapou a Carvalho de Mendonça, que defendia, nas sociedades de
pessoas, a possibilidade de exclusão dos sócios, mesmo fora das hipóteses legais, desde que
infringente cláusula do contrato social e presente deliberação majoritária dos demais, solução técnica
à qual adere Konder Comparato.
Dalmartello fazia esse dever de fidelidade oscilar de intensidade quanto maior fosse a participação
na vida social e maior fosse a possibilidade de conhecer a fundo os segredos daempresa, deixando
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claro que nas sociedades de capital esse dever era atenuado, mas jamais ausente. 22
Giuseppe Bobbino, por sua vez, não reconhecia sequer o dever de fidelidade nas sociedades de
capital, onde, em seu entendimento, ao contrário do que ocorre nas sociedades de pessoas, é
plenamente possível compartilhar a necessidade de sobrevivência da sociedade sem o sacrifício do
status do sócio, seja qual for a sua conduta externa. 23
Em todos os autores que se aprofundam no instituto, mormente no direito italiano, existe inequívoca
compreensão de que, entre as sociedades de pessoas, aquela em que é mais acentuado o dever de
fidelidade societária é justamente a sociedade cooperativa, como consequência, conforme
Dalmartello, do caráter personalístico da sociedade. 24
O festejado Cesare Vivante, melhor que ninguém, explica a causa dessa ênfase: "A sociedade
cooperativa tem um caráter pessoal, porque tanto no contrato constitutivo, como nos sucessivos
contratos de agregação de novos sócios, têm-se em conta as pessoas desses. O Código guarda
este caráter pessoal, neste sentido consente ao estatuto fixar os requisitos da escolha dos novos
sócios e tolhe, ao meio, os obstáculos que se interpõem, nas sociedades ordinárias, ao câmbio de
serviços recíprocos entre sociedade e sócios e favorece a cooperação do sócio na economia social.
Para manter honrado e homogêneo o grupo social, o legislador faculta ao estatuto de acrescer novos
casos de exclusão aos indicados em lei. Em regra, aproveitam os estatutos para excluírem os sócios
de má conduta; que retardam o pagamento da quota ou outros débitos, ou aqueles que aderem a
outra sociedade concorrente". 25
Passível de sanção sendo o sócio infiel, a exclusão é, de regra, a reprovação normal a essa conduta,
ainda que não necessite ser a única, podendo o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade
permitir outras sanções, de menor gravidade, contanto que façam cessar o estado de infidelidade.
3.4 A exclusão social como consequência
Aos que fundamentam a possibilidade da exclusão social na violação de elementares obrigações dos
sócios, dentro de qualquer tipo societário, com especial projeção nas sociedades de pessoas,
deixando em segundo plano, ou desprezando, uma teoria de disciplinamento interno societário,
pouco espaço pode haver para outra cominação que aquela do recesso forçado do sócio
inadimplente.
Explica-se principiando pela alternativa descartada, o chamado poder disciplinar societário. Se
existente este, ou seja, se admitido que o corpo societário adquire um determinado poder sobre seus
sócios, no sentido de disciplinamento de suas condutas internas, forçoso seria admitir a gradação de
penalidades, como forma de cumprir o princípio jurídico da proporcionalidade, mormente em se
tratando de infrator primário.
Todavia, a seguirmos a vertente principal de compreensão do instituto como fundada no princípio
geral de conservação e estabilidade do ente societário, ou mesmo na boa-fé objetiva dos sócios, em
face do dever de colaboração recíproca a que se obrigaram, a gradação gera paradoxos.
A igualdade dos sócios entre si, nos termos do contrato ou estatuto societário, princípio imanente de
todas as relações jurídicas na espécie, é evidentemente incompatível com a tolerância, mesmo que a
título de punição branda, de um sócio que descumpre esse dever, diante de todos os demais que
religiosamente o executam. Dependendo da situação, não é descartável que o infrator realize um
raciocínio de custo-benefício, no qual a expectativa de ganho compense o eventual prejuízo de uma
punição branda.
Dalmartello radica a sanção societária na repressão das seguintes condutas: possibilidade de
traição; possibilidade de desfrute, em causa própria, do que é de todos; possibilidade de conhecer
segredos técnicos e critérios administrativos da sociedade; possibilidade de conflitos de interesse
entre sócio e sociedade, com resolução prejudicial à última; possibilidade de retardamento da
finalidade social; e a certeza da imoralidade daquele que se obrigou a colaborar e culmina por
concorrer com o próprio ente do qual participa. 26
A enunciação do jurista permite que se apreenda a impossibilidade de convivência entre sócios,
quando um incorre em comportamento que preencha, de forma nítida, essas possibilidades. Daí o
imperativo da exclusão, em suas distintas denominações, como eliminação, decesso, recesso ou
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retirada forçada.
Pode-se, no entanto, admitir, em sociedades numerosas, como cooperativas de serviços ou trabalho,
que o estatuto consagre uma oportunidade de purga da mora societária, qual seja a advertência ao
infrator da conduta antissocietária e a assinatura de um prazo razoável para que ele faça cessá-la,
sob pena de exclusão, fato que se justifica em nome dos interesses maiores da entidade, que, como
em toda cooperativa, é o de eliminar os efeitos deletérios da intermediação econômica, o que
fundamentaria a oportunidade de manter coeso o quadro social.
3.5 O controle judiciário da exclusão
A possibilidade de cognição judiciária, no que se refere às discussões decorrentes da exclusão
societária, gera debate a propósito dos limites da cognição judiciária sobre o tema.
Duas correntes tradicionais ostentam pontos de vista antagônicos.
A primeira delas, representando opinião firme na jurisprudência italiana, a partir de tradicional
posição da sua Corte de Cassação, afirma que o controle jurisdicional limita-se à existência do fato e
à legitimidade da causa, não podendo ingressar no mérito da mesma causa, visto tratar-se de um
poder discricionário da sociedade e dos sócios. 27
A segunda amplia as possibilidades de cognição, entendendo que compete ao juiz fixar um limite ao
poder de transformação dos direitos na pessoa jurídica, podendo para isso anular decisões
administrativas excessivas, por aplicação do princípio da proporcionalidade. 28
Tais posições doutrinárias devem sofrer, na adaptação ao direito positivo brasileiro, os influxos da
concepção nacional sobre o poder cognitivo do Poder Judiciário, não se podendo olvidar que, desde
1934, as Constituições brasileiras mantêm constante o princípio que Pontes de Miranda
cognominava de ubiquidade judiciária, qual seja o de que nenhuma lesão de direito deve ficar à
margem da apreciação judicial, o que significa dizer que, no direito judiciário, a linha evolutiva
brasileira é no sentido de jurisdicionalização dos conflitos de interesse, em sentido amplo, ao
contrário da tradição europeia, que, muitas vezes, limita inclusive o poder cautelar do juiz em
determinadas matérias, como as de interesse da Administração.
Os defensores da restrição ao exame, pelo Judiciário, do mérito da decisão societária, em última
análise, apegam-se ao conceito de personalização reconhecida dos entes morais, para entender que
tais decisões, passadas no âmbito interno de uma sociedade com personalidade legalmente
reconhecida, assemelham-se às decisões de foro íntimo de uma pessoa natural, de regra imunes à
revisão judicial.
Todavia, é forçoso reconhecer que mesmo as decisões de uma pessoa natural, quando ultrapassam
o seu foro íntimo, no eventual choque de interesses juridicamente protegidos com a conduta de
outras pessoas, são passíveis de revisão judiciária.
No caso das pessoas jurídicas, essa possibilidade de conflito inicia dentro da própria sociedade, que,
não sendo um todo orgânico, conjuga interesses individuais em torno de um empreendimento
coletivo, por isso mesmo sendo absolutamente natural o confronto entre interesses coletivos, de um
lado, e o interesse individual atingido pelas medidas tomadas por aqueles, de outro.
Todavia, os próprios defensores da cognição judiciária sobre atos societários de eliminação ou
exclusão societária por infidelidade bem observam: havendo o reconhecimento legal de um poder
discricionário da sociedade, não cabe ao juiz sub-rogar-se como gestor societário: "O Tribunal julga,
não governa. A gestão infeliz não é assunto judiciário".29
Neste sentido, cabem automaticamente à espécie as lições da doutrina administrativista, sobre o
controle do poder discricionário da Administração Pública pelo Poder Judiciário e as hipóteses em
que é exercitável. 30
Assim, sem dúvida nenhuma pode o Judiciário interferir, controlando:
a) a existência de fundamento legal, contratual e estatutário para a medida societária, entendida
nessas duas últimas hipóteses a compatibilidade com o figurino legal da prescrição;
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b) a obediência ao processamento interno societário da medida, quando previsto, assegurado, em
qualquer hipótese, o direito de defesa, em face do comando constitucional vigente que o torna
universal;
c) a existência da causa alegada;
d) a compatibilidade entre a causa e a medida tomada, eliminando-se o desvio de poder do ato
societário; e
e) a proporcionalidade da medida com a gravidade da infração.
De outra feita, como princípio básico de hermenêutica aplicável a litígios dessa natureza, não se
pode esquecer que o poder societário tem por escopo impor aos membros do grupo, através de
sanções predeterminadas, uma regra de conduta que vise compeli-los a agir conforme a finalidade
do interesse coletivo que é a razão de ser do próprio grupo, enquanto sociedade organizada. Nesse
sentido, a predominância do interesse coletivo sobre o interesse individual deve ser a tônica. 31 O
Judiciário deve, nesse sentido, ser o ponto de equilíbrio, no sentido de impedir o esmagamento do
indivíduo pelo coletivo. Todavia, não pode, a esse título, pena de desvirtuar sua cognição a um ponto
de interferência indébita, prestigiar o individualismo, em detrimento da concepção coletiva.
4. PROBLEMATIZAÇÕES
4.1 Introdução ao ponto
A disciplina jurídica societária relaciona-se com outros campos normativos, num processo de
integração nem sempre tranquilo, tanto quanto nem sempre há regras de direito positivo que
permitam, sem maiores dificuldades, coordenar regras e harmonizar interesses sob seu pálio
formados.
Em matéria de fidelidade societária, mormente em se tratando de sociedades cooperativas,
registram-se conflitos notáveis entre as disciplinas internas de tais cooperativas, quando vedam o
relacionamento comercial dos cooperados com os concorrentes da cooperativa, e princípios
genéricos do direito de concorrência, que sancionam a abusividade de condutas econômicas que
culminem por eliminar a possibilidade de concorrência.
Nesse sentido, há quem defenda, principalmente no caso das cooperativas de serviços, que elas não
podem ter nos seus estatutos sociais regras que impeçam os seus cooperados de se vincularem a
outras entidades que sejam concorrentes da própria cooperativa.
Uma variante dessa posição desborda para o direito do consumidor, onde doutrinadores sustentam
que regras de fidelidade podem se constituir em obstáculo à livre escolha do consumidor, vindo a se
configurar como práticas abusivas, na conformidade dos cânones de direito positivo da disciplina.
Cumpre, ao final, examinar essas posições, no sentido de saber se elas representam, ou não,
restrições ao regramento societário da fidelidade.
4.2 Disciplina da concorrência
Entendem alguns que a exigência de fidelidade societária esbarraria nas normas de direito
econômico, diante do princípio constitucional da livre concorrência.
Nesse sentido, o comportamento societário que estipule, para os sócios de sociedades de pessoas,
mormente sociedades cooperativas, a vedação de relacionamento econômico com entidades que
concorrem com a cooperativa estaria situado nos limites do abuso do poder econômico, visto que
seria presumível, pela exigência de exclusividade de relacionamento, a tentativa de dominação de
mercados, eliminação da concorrência e aumento arbitrário de lucros.
A análise do argumento passa por uma constatação inicial que pode parecer acaciana, mas não o é,
em um tempo de afirmação de novos ramos jurídicos, nos quais seus adeptos, muitas vezes, lhe
emprestam um caráter excessivamente abrangente: os princípios da liberdade de iniciativa, da livre
concorrência, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao
abuso do poder econômico, todos eles, não excludentes, mas harmonizáveis, sendo plena de valor a
afirmativa de Eros Grau quando ressalva que "seu conteúdo é determinado pela sua inserção em um
FIDELIDADE SOCIETÁRIA
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contexto de princípios, no qual e com os quais subsiste em harmonia". 32
A salientar que um elastério por demais dilatado no direito econômico e na disciplina da concorrência
culminaria por eliminar aquilo que pretende proteger, uma vez que o regramento rígido da
concorrência acaba implicando no cerceamento da liberdade, sem o qual ela simplesmente deixa de
existir.
A segunda constatação, quando é argumentado que a exigência da fidelidade poderia gerar uma
relação de exclusividade, numa qualificação desta como ilícito, é precisamente no sentido de que as
relações de exclusividade comercial e seu uso não constituem, em regra, ilícito de qualquer
natureza.
Define-se juridicamente a exclusividade como a obrigação assumida por uma parte de contrair
exclusivamente com outra a prestação de um bem ou serviço determinado, ou também a atuação em
determinado território de atuação. 33
Túlio Ascarelli ensinava, em obra célebre ( Teoria de la concurrencia y de los bienes immateriales),
que, "sendo necessária, fora as hipóteses em que é legalmente disciplinada, uma cláusula de
exclusividade deve conter-se nos limites convenientes e ter sua justificativa fundada em interesses
socialmente apreciáveis". 34
Em geral, exige-se que a cláusula de exclusividade se contenha nos seguintes limites:
a) a obrigação é recíproca e limitada no tempo e no espaço, extensão e objeto, e deve trazer
benefícios ao consumidor. 35
Assim, a cláusula de exclusividade não é em si abusiva, e o eventual excesso na sua utilização não
se presume, devendo vir cabalmente demonstrado, inclusive com histórico da formação do mercado
que é considerado por ela atingido, pois a dominação do mercado, a tentativa de eliminação da
concorrência e o aumento injustificado de preços podem ser consequência precisamente do
acolhimento do ponto de vista das entidades que alegam o abuso por parte de outras sociedades,
como acontece de forma nítida no caso dos embates entre grandes conglomerados financeiros,
nacionais e internacionais, e as cooperativas de serviços médicos e odontológicos brasileiras.
A salientar que a própria lei brasileira de defesa da concorrência considera que a conquista de
mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência do agente econômico em
relação aos seus competidores não caracteriza dominação de mercado relevante de bens ou
serviços, 36 sendo que este processo natural bem pode ser a livre associação de agentes
econômicos e profissionais, que procurem, coletivamente, negociar suas forças econômicas,
mormente se resultantes de esforços pessoais, entre eles o mais relevante, que é o trabalho.
b) o direito da concorrência, conforme ensinam seus estudiosos, deve pautar-se pela razoabilidade,
sendo que este princípio, pela investigação despida de dogmatismo, pode evidenciar o contrário do
que a aparência demonstraria. 37
Exemplo típico do princípio da razoabilidade pode ser encontrado em leading case sobre a fidelidade
societária diante de alegações genéricas de ofensa ao direito concorrencial, envolvendo cooperativa
de trabalho médico, no qual a Min. Nancy Andrighi, no STJ, ao decidir válida cláusula que impedia o
sócio desta cooperativa de integrar os quadros de entidade concorrente da cooperativa, diante da
alegação de ofensa à livre concorrência, assim se manifestou:
"Verificado, como explanado no item anterior, que o pacto cooperativo impede a associação do
cooperado à outra sociedade prestadora de serviços de plano de saúde, resta, ainda, a análise de
ser válida ou não tal cláusula de exclusividade e fidelidade perante a Lei Antitruste.
As cláusulas de exclusividade sempre restringem, de alguma forma,o nível de concorrência
existente em dado mercado relevante. Um franqueador, por exemplo, frequentemente impede o seu
franqueado de comercializar produtos de empresas concorrentes, fato esse capaz de restringir a
concorrência. Não se pode considerar nula, entretanto, toda cláusula que restringe a concorrência,
porque é da essência dos contratos empresariais restringir a concorrência. Como exemplos de
restrições válidas da concorrência encontram-se, de um lado, o pacto de não concorrência firmado
entre alienante e adquirente de estabelecimento comercial, como reconhecido pelo CC/2002 ( LGL
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2002\400 ) , em seu art. 1.147, e, de outro, o tratamento jurídico conferido às patentes, premiando-se
com o direito ao uso exclusivo aqueles que tenham contribuído para o aprimoramento dos padrões
tecnológicos existentes. A conclusão pela nulidade ou validade da restrição à concorrência, como
bem anota a doutrina antitruste, em exegese adequada dos arts. 20 e 21 da Lei 8.884/1994, resulta
da identificação das restrições concorrenciais legítimas, porque razoáveis, e das ilegítimas, por lhes
faltarem a razoabilidade. A este instituto antitruste, originado no common law e desenhado pela
Suprema Corte dos EUA no início do século XX, chama-se regra da razão. No julgamento de United
States vs. Transmissouri Freight Association (166 U290, 312), de 1897, o Juiz White, da Suprema
Corte dos EUA, em voto vencido, expressamente enunciou a regra da razão, ao incluir, em
conclusão interpretativa, a expressão não razoável após a palavra restrição, no § 1.º da Lei
Sherman, de 1890, ainda em vigor: ’Qualquer contrato, união em forma de truste ou não, ou acordo,
em restrição não razoável do comércio entre os Estados, ou perante outros países, é declarado
nulo’.
A tese vencida desenvolvida pelo Juiz White foi acolhida pela Suprema Corte dos EUA no
julgamento de Standard Oil of New Jersey vs. United States, de 1911, e de United States vs.
American Tobacco. A enunciação clara da regra da razão foi conferida pelo Juiz Brandeis, em voto
proferido no julgamento de Chicago Bd. of Trade vs. United States, de 1918: ’A validade de um
contrato ou cláusula não pode ser determinada simplesmente pela análise referente à existência de
uma restrição à concorrência. Vincular, restringir, isto é da essência do contrato. O verdadeiro teste
da validade está em se verificar se a restrição imposta apenas visa regular e talvez promover a
concorrência, ou se simplesmente visa suprimir ou mesmo destruir a concorrência. Para aplicar essa
distinção o Tribunal deve sempre considerar os fatos peculiares à atividade econômica em que a
restrição está sendo aplicada, bem como analisar as condições dessa atividade econômica antes e
depois da imposição da restrição, a natureza da restrição e seus efeitos, reais ou prováveis. A
história da restrição, o mal nela considerado existente, a razão para se adotar uma sanção especial,
o propósito ou escopo que se busca atingir, são todos fatos relevantes. E isto não se dá porque uma
boa intenção possa isentar uma restrição supostamente negativa, ou o inverso, mas porque o
conhecimento acerca do intento perseguido poderá ajudar o Tribunal a interpretar fatos e a inferir
consequências’.
Neste contexto, a regra da razão constitui o marco divisor da licitude ou ilicitude das cláusulas
restritivas da concorrência. O seu fundamento está na percepção de que algumas restrições à
concorrência fomentam a rivalidade econômica no mercado pertinente (as restrições ditas boas, ou
razoáveis), enquanto outras impedem o desenvolvimento econômico e o estabelecimento de
concorrentes (essas, as chamadas más restrições, ou não razoáveis). A regra da razão constitui,
assim, uma forma de interpretação lógica, por meio da qual os efeitos restritivos da concorrência são
comparados com os efeitos promotores da concorrência, ou efeitos ditos pró-competitivos. Desse
balanço aufere-se o saldo líquido para a concorrência: se positivo, a cláusula restritiva deve ser
aprovada, porque beneficia o nível de concorrência existente; se negativo, deve ser sancionada,
porque a restrição da concorrência prepondera sobre a sua promoção, em prejuízo do mercado, dos
concorrentes e também dos consumidores. No processo em análise, ao se aplicar a regra da razão,
as seguintes observações podem ser realizadas.
Primeiro, a (…), em suas diversas cooperativas formadas para a prestação de serviços médicos por
meio de planos de saúde, compete no Brasil com rivais formidáveis em tradição, qualidade e porte
financeiro; umas derivam sua penetração no mercado do tempo em que atuam no setor; outras
derivam de alianças firmadas com instituições financeiras e congêneres de porte, isso quando não
representam, claramente, empresas criadas e geridas pelo próprio grupo financeiro já consolidado.
Disso resulta concluir ser acirrada a competição no setor.
Segundo, a competitividade existente no mercado de serviços de planos de saúde implica
reconhecer a necessidade de prestação desse serviço em âmbito nacional, porquanto coberturas
meramente estaduais ou regionais são, cada vez mais e mais, insuficientes ao atendimento das
necessidades do consumidor, dado que: (a) certos tratamentos médicos são oferecidos apenas nos
grandes centros urbanos; e (b) a mobilidade crescente das pessoas, decorrente da facilitação dos
meios de transporte e da conjuntura do mercado de trabalho, torna exigível a prestação em âmbito
nacional.
Terceiro, considerando que a prestação em âmbito nacional é essencial à manutenção da
competitividade da prestadora de plano de saúde, deve-se concluir que a (…), cuja penetração de
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mercado está concentrada em determinados centros regionais, possui baixo grau de competitividade
no setor, em especial se comparada com sociedades prestadoras de plano de saúde em âmbito
nacional.
Do exposto pode-se concluir que a cláusula de exclusividade exigida não caracteriza abuso de
posição dominante, nos termos dos arts. 20 e 21 da Lei 8.884/1994, porquanto tal prática não
inviabiliza a entrada de concorrentes de porte na região indicada no processo em análise. Ao
contrário, bem aplicada a regra da razão na hipótese, deve-se concluir que a cláusula de
exclusividade adotada mais propicia do que restringe a competitividade no setor, porquanto aumenta
a rivalidade econômica existente entre a (…) e as prestadoras de plano de saúde de porte, em
especial aquelas que atuam em todo o mercado nacional e que, por essa razão, não deixarão de
ingressar e atuar de forma competitiva nos mercados regionais onde a (…) se faz presente com
maior grau de penetração." 38
Por sua vez, sociedade em que o sócio concorre com ele mesmo não é sociedade, pois o sócio,
principalmente nas sociedades de pessoas, violaria seu dever essencial, sua obrigação fundamental,
que é o dever de colaboração. 39
Conforme Arturo Dalmartello, concorrência com a sociedade existe quando um sócio tem a
possibilidade de desfrutar, em causa própria, o que é de todos, prejudicando a sociedade, ou quando
tem a possibilidade de conhecer segredos técnicos e critérios administrativos da sociedade, e
usá-los em benefício próprio ou de terceiros, ou ainda quando, em flagrante violação do dever de
boa-fé contratual, procura individualisticamente satisfazer um interesse, obtendo vantagem para si
superior à que obteria na sociedade. 40
Em todos esses casos, ensina o notável societarista peninsular, ocorre o inverso do dever do sócio,
razão pela qual a exclusão, a priori, do dever de não concorrência, em nome do direito econômico,
implicaria em colocar, no plano do ilícito, a própria sociedade, interpretação que, como toda exegese
que leva ao absurdo, deve ser rejeitada.
Naturalmente que as regras elementares do direito societário, em face da possibilidade de
cartelização, não são igualmente absolutas. Assim, quando houver a necessidade demonstrada de
impedir uma real cartelização, deve haver uma ponderação de valores jurídicos que comparecem em
ambas as disciplinas,força que uma não suprima a outra, mas seja procurada uma forma razoável
de coexistência conjunta, na medida em que "não é legítima a regra de solução que, a pretexto de
harmonizar a convivência entre direitos fundamentais, opera a eliminação de um deles ou lhe retira a
sua substância elementar". 41
No caso de serviços, principalmente de profissionais liberais, deve haver ainda um cuidado
especialíssimo na configuração do que seja mercado dominante e cumpre ter atenção para o que
observa José de Oliveira Ascensão: "A concorrência desleal é própria da atividade econômica (art.
212/proêmio). As profissões liberais intelectuais escapam a esta delimitação. Não são encaradas
legalmente por este ponto de vista, não obstante o seu evidente significado econômico também, mas
antes de mais pelo prisma de um alto nível deontológico de serviços prestados". 42
Em se tratando de sociedades cooperativas, o próprio Tribunal Econômico da Comunidade Europeia
traçou decisão exemplar, admitindo a restrição à livre comercialização por parte dos seus
associados, desde que razoavelmente estabelecida, como se vê do trecho destacado: "… mesmo
que uma cooperativa tenha uma posição dominante num determinado mercado, uma alteração
estatutária que proíba seus membros de participar de outra forma de cooperação organizada que
faça concorrência direta com ela não constitui um abuso de posição dominante contrária ao art. 86
do Tratado [da Comunidade], contanto que a disposição acima citada se limite ao que for necessário
para assegurar o funcionamento adequado da cooperativa e manter o poder contratual em relação
aos produtores". 43
Cumpre dizer que o STJ, através de recentes decisões, revisou a fundamentada opinião que
entendia válido o estabelecimento da fidelidade societária a partir de cláusula estatutária inibitória do
auxílio, pelo sócio de uma cooperativa, a concorrente da própria cooperativa, sendo o leading case
desta revisão o REsp 1.172.603/RS, julgado pela 2.ª T. daquela Corte, cujo teor reproduzimos nos
trechos essenciais:
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"Direito econômico – Livre concorrência – Inexistência de violação do art. 535 do CPC ( LGL 1973\5 )
– Cooperativa de saúde – Submissão irrestrita às normas jurídicas que regulam a atividade
econômica – Cláusula de exclusividade para médicos cooperados – Impossibilidade tanto sob o
aspecto individual quanto sob o aspecto difuso – Inaplicabilidade ao profissional liberal do § 4.º do
art. 29 da Lei 5.764/1971, que exige exclusividade – Violação, pelo tribunal de origem, do art. 20, I, II
e IV; do art. 21, IV e V, ambos da Lei 8.884/1994, e do art. 18, III, da Lei 9.656/1998 – Infrações ao
princípio da livre concorrência pelo agente econômico configuradas.
(…)
2. A Constituição Federal de 1988, ao tratar do regime diferenciado das cooperativas, não as
excepcionou da observância do princípio da livre concorrência estabelecido pelo inc. IV do art. 170.
(…)
4. Ao médico cooperado que exerce seu labor como profissional liberal não se aplica a exigência de
exclusividade do § 4.º do art. 29 da Lei 5.764/1971, salvo quando se tratar de agente de comércio ou
empresário.
5. A cláusula de exclusividade em tela é vedada pelo inc. III do art. 18 da Lei 9.656/1998, mas, ainda
que fosse permitida individualmente a sua utilização para evitar a livre concorrência, através da
cooptação de parte significativa da mão de obra, encontraria óbice nas normas jurídicas do art. 20, I,
II e IV, e do art. 21, IV e V, ambos da Lei 8.884/1994. (…)
Voto – O Exmo. Sr. Min. Humberto Martins (relator): (…)
O STJ tem acórdãos considerando válida e considerando inválida cláusula de exclusividade firmada
entre a (…) e seus médicos cooperados.
(…)
’(…) 1. Os contratos de exclusividade das cooperativas médicas não se coadunam com os princípios
tutelados pelo atual ordenamento jurídico, notadamente à liberdade de contratação, da livre iniciativa
e da livre concorrência.
2. As relações entre a Cooperativa e os médicos cooperados devem obedecer à cláusula final inserta
no art. 18, III, da Lei 9.656/1998, estando as disposições internas daquele ente em desarmonia com
a legislação de regência.
3. O referido dispositivo enuncia: "Art. 18. A aceitação, por parte de qualquer prestador de serviço ou
profissional de saúde, da condição de contratado, credenciado ou cooperado de operadora de
produtos de que tratam o inciso I e o § 1.º do art. 1.º desta Lei, implicará as seguintes obrigações e
direitos: (…) III – a manutenção de relacionamento de contratação, credenciamento ou
referenciamento com número ilimitado de operadoras, sendo expressamente vedado às operadoras,
independente de sua natureza jurídica constitutiva, impor contratos de exclusividade ou de restrição
à atividade profissional".
4. Deveras, a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , de índole pós-positivista, tem como fundamentos
a livre concorrência, a defesa do consumidor, a busca pelo pleno emprego (art. 170, IV, V e VIII, da
CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem assim a dignidade
da pessoa humana, como fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1.º, III e IV, da
CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ), com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º,
I, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ) e com ratio essendi dos direitos dos trabalhadores à liberdade de
associação (art. 8.º da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ). Regras maiores que prevalecem à interdição à
exclusividade.
5. Destarte, o direito pleiteado pela recorrente compromete, por via oblíqua, os direitos à saúde (art.
196 da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ), na medida em que a exclusividade cerceia o acesso àqueles
médicos profissionais vinculados à cooperativa.
6. Destarte, a tutela dos interesses privados não pode se sobrepor ao interesse público,
notadamente quando envolver interesses constitucionais indisponíveis (…)’ ( REsp 768.118/SC, 1.ª
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T., j. 11.03.2008, rel. Min. Luiz Fux, DJe 30.04.2008).
’Agravo regimental – Recurso especial – Unimed – Médico cooperado – Cláusula de exclusividade –
Validade.
1 – Consoante entendimento desta Corte, é válida a cláusula do estatuto social que impõe aos
médicos cooperados o dever de exclusividade, vedando a vinculação a outra congênere, sob pena
de exclusão do seu quadro associativo. Precedentes.
2 – Agravo regimental desprovido’ ( AgRg no REsp 179.711/SP, 4.ª T., j. 29.11.2005, rel. Min.
Fernando Gonçalves, DJ 19.12.2005, p. 411).
(…)
O ser humano, mesmo antes de nascer, adere a um ordenamento jurídico que surgiu
independentemente da sua vontade, originário do pacto social adotado pelo seu Estado soberano
que lhe abarca.
Ao longo da sua vida, o Estado poderá impor-lhe situações jurídicas independentemente da sua
anuência e poderá facultar-lhe a criação de outras.
A celebração de um contrato ilustra a geração de um status jurídico ou situação jurídica de maneira
voluntária. Já o dever de se portar de acordo com o que é permitido pelas normas concorrenciais
gera uma relação jurídica para o cidadão que não considera a sua vontade individual.
O fato gerador da relação jurídica contratual entre o médico cooperado e a (…) é completamente
diferente do fato gerador da relação jurídica estatutária concorrencial travada entre a (…) e a
sociedade.
A diversidade é tão patente que a contratual está inserida no regime jurídico de direito privado e a
concorrencial no regime jurídico de direito público.
O interesse de resistir à cláusula contratual de exclusividade tem natureza individual, portanto
divisível, não decorre, na forma do inc. III do parágrafo único do art. 81 do CDC ( LGL 1990\40 ) , de
origem comum, como atestado em decorrência da assunção da competência para julgar o feito pela
4.ª Turma desta Corte.
Já o direito à livre concorrência, assegurado pelo inc. IV do art. 170 da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ,
possui natureza difusa, pois, na forma do inc. I do parágrafo único do art. 81 do CDC ( LGL 1990\40 )
, é transindividual – de natureza indivisível –, tendo comotitulares pessoas indeterminadas e ligadas
por circunstâncias de fato.
(…)
Ora, ainda que a cláusula contratual de exclusividade não encontrasse óbice no inc. III do art. 18 da
Lei 9.656/1998, questionar-se-ia a sua validade quando a multiplicidade dos seus efeitos pudesse
violar direitos coletivos lato sensu.
Hipoteticamente, exigir contratualmente – o estatuto social não deixa de ter natureza jurídica de
contrato – exclusividade de profissionais da construção civil sem que isto tornasse inviável a atuação
de outros agentes econômicos não violaria o ordenamento pátrio.
O mesmo poderá ser dito quando tal cláusula impedir a atuação de outros agentes econômicos?
(…)
Da aplicabilidade do direito concorrencial às cooperativas
O Poder Constituinte estabeleceu tratamento diferenciado para a cooperativa, vedando a
interferência estatal no seu funcionamento, dispensando-a de autorização para a sua formação (art.
5.º, XVIII), possibilitando a criação de regime tributário diferenciado para os seus atos (art. 146, III, c),
favorecendo a sua forma na atividade de garimpo (art. 174, §§ 3.º e 4.º) e dando-lhe papel relevante
na política agrícola (art. 187, VI).
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Entretanto, não há, no capítulo que trata dos princípios gerais da atividade econômica, qualquer
norma que a excepcione da observância do princípio da livre concorrência estabelecido pelo inc. IV
do art. 170.
Se houvesse alguma exceção para as cooperativas, deveria ela estar no Texto Constitucional, pois o
Poder Constituinte foi claro quando desejou excepcionar – eis o texto:
’Art. [1]77. Constituem monopólio da União:
I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;
II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades
previstas nos incisos anteriores;
IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo
produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados
e gás natural de qualquer origem;
V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de
minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção,
comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas
b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) ’.
O monopólio imposto ou garantido pela lei tem como finalidade o atendimento ao interesse público
primário, como bem ilustrado por Ejan Mackaay e Stéphane Rousseau, no livro Analyse économique
du droit, 2. ed., Paris, Dalloz, 2008. Eis as suas palavras:
’Dans la conception de la concurrence exposée ici, les seuls monopoles durables sont ceux dont
l’existence est garantie par la loi’.
A opção do Poder Constituinte por monopólios da União representa os anseios da nação, visto que
uma Constituição promulgada é fruto da convergência dos desejos sociais, portanto legítima a opção
por monopólios da União, e ilegítima qualquer forma de monopólio por cooperativas.
Logo, as cooperativas estão sujeitas a todas as normas jurídicas do sistema concorrencial.
Da inaplicabilidade do § 4.º do art. 29 da Lei 5.764/1971 aos cooperados em questão
A norma jurídica em questão veda a tergiversação, ou seja, a confusão de interesses que possa
prejudicar a atividade cooperada. Eis o seu texto:
’Art. 29. O ingresso nas cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados
pela sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas
no estatuto, ressalvado o disposto no artigo 4.º, I, desta Lei.
(…)
§ 4.º Não poderão ingressar no quadro das cooperativas os agentes de comércio e empresários que
operem no mesmo campo econômico da sociedade’.
Entretanto, a proibição de tergiversação abrange apenas, e tão somente, os agentes de comércio e
os empresários – não toca aos profissionais liberais.
Assim, a cláusula de exclusividade para os médicos que atuam como profissionais liberais não pode
ser embasada em tal norma e, além disso, o objetivo daquela cláusula de proteger a atividade
cooperada não se sobrepõe ao princípio constitucional de livre concorrência.
Da conduta contrária às normas jurídicas relativas à livre concorrência
A cláusula de exclusividade aqui debatida é vedada pelo inc. III do art. 18 da Lei 9.656/1998, mas,
ainda que fosse permitida individualmente, a sua utilização para evitar a livre concorrência, através
da cooptação de parte significativa da mão de obra, encontraria óbice nas normas jurídicas
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concorrenciais.
A livre concorrência é definida por Luciano Sotero Santiago, no seu livro Direito da concorrência:
doutrina e jurisprudência, Salvador, JusPodivm, 2008, da seguinte forma:
’A livre concorrência se caracteriza pela livre ação dos agentes econômicos, de forma que estes
tenham liberdade para empregar os meios que julgarem próprios e adequados para conquistarem a
preferência do consumidor. A livre concorrência se caracteriza, também, na liberdade em que os
agentes econômicos, atuais ou potenciais, têm para entrar, permanecer e sair do mercado. A livre
concorrência se caracteriza, ainda, pela liberdade de escolha para o consumidor’ (grifo meu).
A dominação de mercado pode ser feita de diversas formas, dentre elas a manipulação de preços, a
manipulação dos insumos e a manipulação da mão de obra.
A primeira forma é mais visível à sociedade, pois toca diretamente às pessoas que vão adquirir os
produtos ou serviços ofertados. As outras duas não são tão facilmente percebidas, pois tocam ao
aspecto interno da atividade empresarial.
A exigência de exclusividade no fornecimento de insumo ou de mão de obra inviabiliza a instalação
de concorrentes na mesma área de atuação da empresa que utiliza tal prática, denotando uma
dominação artificial de mercado que impede o ingresso de outros agentes econômicos na área de
atuação da dominante.
Poder-se-ia presumir a boa-fé daqueles que dominam o mercado por meio de um processo natural
de liderança, mas, em relação àqueles que o fazem artificialmente, deve ser presumida a má-fé,
sendo certo que a exigência de exclusividade é, no presente caso, um mecanismo artificial de
dominação de mercado.
Trata-se, aqui, de relevância geográfica do mercado, uma vez que o impacto da lesão à livre
concorrência abrange um ou alguns municípios com baixo índice populacional, e que trata-se de
prática restritiva vertical, pois, apesar da equivalência econômica nacional entre a (…) e as outras
empresas de planos de saúde, no município ou nos municípios em questão, a citada cooperativa tem
posição exclusiva ou dominante e, com base nesta qualidade fática, impõe acordos de exclusividade.
Eis o inteiro teor da cláusula de exclusividade do art. 18, e, do Estatuto da (…):
’Art. 18. O associado se obriga:
(…)
e) ( sic) não participar de entidades que desenvolvam atividade concorrente à operacionalidade
social da Cooperativa, mesmo na simples condição de credenciado, relacionado, ou de qualquer
outra forma, que torne o nome disponível para atendimentos (…)’.
O impacto concorrencial dessa cláusula foi descrito com clareza no voto do Relator-Conselheiro do
Cade no processo administrativo respectivo (f. dos presentes autos):
’Para reforçar a restrição à concorrência da cláusula de exclusividade da (…), depreende-se da
análise dos autos que, na região geográfica de atuação (…) da Representada, essa exerce posição
dominante, uma vez que congrega 74% dos médicos da região. Isto é, do total dos médicos
legalmente habilitados da região, 74% se encontram sujeitos à obrigação de exclusividade, ou, mais
especificamente, 90% dos oftalmologistas, 58% dos oncologistas, 67% dos ortopedistas, 100% dos
cirurgiões plásticos e dos fisiatras, 78% dos anestesiologistas e 60% dos ginecologistas são
cooperados da (…)’.
(…)
Deve ser observado que o § 3.ºdo art. 20 da Lei 8.884/1994 presume posição dominante quando a
empresa – ou grupo de empresas – controla 20% de mercado relevante, podendo este percentual
ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia (…).
De fato, as concorrentes poderiam cobrir as receitas dos médicos obtidas através da (…), mas
estar-se-ia fixando outra barreira de ingresso no mercado, conforme explicitado por Richard A.
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Posner, no seu livro Economic analysis of law, 5. ed., New York, Aspen Law & Business, 1998. Eis
os seus dizeres:
’Sometimes monopoly will persist without any legal barriers to entry. Maybe the monopolist’s costs
are so much lower than those of any new entrant that the monopoly price is lower than the price that
a new entrant would have to charge in order to cover his costs. Or maybe the monopoly price,
although higher than the entrent’s costs would be, holds no allure because the prospective entrent
knows that if he enters the market the monopolist can easily charge a remunerative price that is
below the entrant’s costs, the monopolist being the more efficient producer. Monopoly may also be a
durable condition of the market because there is room for only one seller (see § 12.1 infra). But even
if the costs of the new entrant are the same as those of the monopolist, it does not follow that the
threat of entry will always deter charging a monopoly price. Since cost is negatively related to time (it
would cost more to build a steel plant in three months than in three year), immediate entry into a
monopolized market at costs comparable to the monopolist’s will often be impossible. So there will be
an interval in which monopoly profits can be obtained, even though there are no barriers to entry in
the sense of a cost disadvantage for a new entrant’.
A imposição do ônus de pagar mais do que é pago aos médicos pela (…) significaria aumentar o
preço final do agente econômico concorrente, portanto fixaria outra barreira de ingresso.
Feitas estas considerações, percebe-se que o acórdão atacado violou o art. 20, I, II e IV, o art. 21, IV
e V, ambos da Lei 8.884/1994, e o art. 18, III, da Lei 9.656/1998."
O aresto transcrito – reitere-se – significa a última palavra, nos dias de hoje, sobre esta matéria, pela
mais alta Corte de decisões sobre normas infraconstitucionais no país. Seu teor, todavia, suscita,
respeitosamente, várias dúvidas, que permitem a defesa de ponto de vista integralmente contrário,
como discorreremos a seguir.
O art. 29, § 4.º, da Lei 5.764/1971, estabelece, como princípio geral, que o sócio de uma cooperativa
não pode auxiliar o concorrente desta cooperativa. 44 Sua inserção, como parágrafo, por outro lado,
demonstra que os requisitos de ingresso e permanência no quadro de uma cooperativa dependem
da regra estatutária interna desta mesma cooperativa, conforme está escrito no caput do mesmo
artigo. 45 De outra feita, o art. 21 da Lei 5.764/1971 outorga, ao estatuto social, o direito de regular as
causas de eliminação do quadro social da entidade, que, na esteira da regra legal expressa, bem
pode ser a vedação do auxílio à empresa concorrente. 46
No cotejo legal societário feito pelo acórdão, nenhuma invocação é realizada quanto ao art. 1.006 do
CC/2002 ( LGL 2002\400 ) , plenamente aplicável às sociedades cooperativas de serviços e trabalho,
como sociedades simples que são. 47
A leitura do art. 18, III, da Lei 9.656/1998, mesmo na redação que lhe foi conferida por medida
provisória, não permite entender como aplicar norma que fala de uma relação contratual entre um
prestador e um tomador de serviços e transpô-la para o contexto de uma relação societária como a
que enlaça um cooperado e uma cooperativa.
Leia-se a propósito o dispositivo legal invocado:
"Art. 18. A aceitação, por parte de qualquer prestador de serviço ou profissional de saúde, da
condição de contratado, credenciado ou cooperado de uma operadora de produtos de que tratam o
inciso I e o § 1.º do art. 1.º desta Lei, implicará as seguintes obrigações e direitos:
(…)
III – a manutenção de relacionamento de contratação, credenciamento ou referenciamento com
número ilimitado de operadoras, sendo expressamente vedado às operadoras, independente de sua
natureza jurídica constitutiva, impor contratos de exclusividade ou de restrição à atividade
profissional. (Inciso III com redação determinada pela MedProv 2.177-44/2001)".
Poder-se-ia dizer que a sociedade é um contrato na sua formação, muito embora a doutrina, desde
Tulio Ascarelli, mencione a existência de um contrato especial, um contrato plurilateral de
organização. No entanto, não se entende que a relação sócio-sociedade, quando não se trata de
fundação de uma sociedade, tenha vínculo contratual.
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Na verdade, a relação entre uma cooperativa e um cooperado é interna e a relação prevista no art.
18, III, é uma relação obrigacional externa.
No que diz respeito aos dispositivos da Lei Antitruste invocados, são eles:
"Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob
qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda
que não sejam alcançados:
I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II – dominar mercado relevante de bens ou serviços;
(…)
IV – exercer de forma abusiva posição dominante.
(…)
Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no
art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
(…)
IV – limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;
V – criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa
concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;
(…)."
As normas acima reproduzidas necessitam primeiramente de uma configuração precisa e restrita,
sob pena de acabarem tornando ilícita a própria concorrência, na medida em que um ato praticado
para diferenciar uma entidade de outra sempre poderá, por desigualar os players, ser considerado
um falseamento da livre concorrência, o que naturalmente geraria o paradoxo de que falsear a
concorrência seria sinônimo de ganhar a própria concorrência.
Justamente por isso, o art. 20, § 1.º, da Lei 8.884/1994 determina que a conquista de mercado
resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus
competidores não caracteriza o ilícito de dominar mercado relevante.
De outra feita, como já foi dito, torna-se necessário delimitar com a máxima precisão o que seja
mercado relevante, no caso de uma cooperativa, notadamente de profissionais liberais, como é o
caso das cooperativas médicas, o que não parece ter sido preocupação do aresto em análise.
Sabe-se que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica tem entendido como mercado
relevante o número de médicos inscritos no Conselho Regional de Medicina de uma determinada
região, o que nos parece francamente insatisfatório, pois o que é destacável, em termos de
concorrência, é o número de clientes atendidos pelos concorrentes. Entender dessa forma mercado
relevante seria o mesmo que considerar posição dominante de mercado aquela ocupada por
empresa que tivesse o maior número de empregados, o que muitas vezes pode significar
exatamente o contrário.
As considerações genéricas realizadas no aresto não ultrapassam, respeitosamente, a aplicação da
regra da razão, como anteriormente feita, no aresto relatado pela Min. Nancy Andrighi, sendo de
salientar, como reconhece a melhor doutrina jurídica sobre direito econômico no País, que esta regra
constitui adequada válvula de escape a uma interpretação aberta da lei, que sem ela culminaria em
penalizar como atos anticoncorrenciais praticamente todos os atos concorrenciais: "Não obstante as
discussões sobre a origem da regra da razão, deve-se destacar a técnica jurídica utilizada: quando
aplicada, essa regra faz com que não haja a composição do suporte fáticonecessário à incidência da
norma que determinaria a ilicitude do ato (no caso, o art. 1.º do Sherman Act). Isto é, para que seja
composto o suporte fático previsto na hipótese normativa, necessário se faz que a prática em
questão restrinja a concorrência de forma não razoável, sendo esse fator componente
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(indispensável) do mesmo suporte fático. Sem esse, o suporte fático não se completa, a incidência
da norma é afastada e, por óbvio, suas consequências (a vedação, a ilicitude) não se produzem.
Tem-se, então, como resultado, a licitude da prática restritiva da concorrência". 48
A fidelidade societária, mormente em sociedades cooperativas, é regra básica para manutenção da
integridade deste tipo societário e continuidade dos seus elevados objetivos. Trata-se, por outro lado,
de regra interna de relação entre cooperativa e seus sócios, e sua deliberação coletiva, por via
estatutária, tem por base a defesa coletiva do mercado de trabalho dos cooperativados, que fica
extraordinariamente desprotegido mediante ajustes individuais.
Entender que uma norma societária interna, que pode a qualquer tempo ser modificada por seus
autores, é uma norma capaz de prejudicar o funcionamento ou desenvolvimento de concorrentes
equivale a determinar como uma cooperativa deve ser internamente gerida, circunstância que de
imediato esbarra em dispositivo constitucional explícito, que veda a interferência estatal no
funcionamento de uma cooperativa. 49
A aplicação pura e simples do princípio constitucional da livre concorrência, em cooperativas que
reúnem profissionais que se defendem coletivamente de tendências de aviltamento das suas
condições de trabalho, deve ser ponderada igualmente com os princípios sociais do trabalho, visto
terem ambos a mesma dignidade constitucional. 50
Último e não menos importante, em se tratando de cooperativas de saúde, entidades sem fins
lucrativos que têm destaque privilegiado no próprio texto da Lei Maior, 51 há que se ver em que
medida a sua existência não constitui fator extremamente relevante para a eficiente prestação de
serviços na área da saúde, outro valor constitucional que integra a ordem econômico-social.
O grande respeito ao STJ e suas decisões não impede que se aponte, especificamente nesta, a
consideração de apenas um fator, com o desprezo de outros que constituem a ordem
econômico-social, algo que é profligado mesmo pelos estudiosos da disciplina jurídica da
concorrência. 52
4.3 Disciplina do consumidor
Autores há que defendem o direito de livre escolha irrestrita do consumidor, para afastar o dever
societário de fidelidade pelo membro de uma sociedade de pessoas. 53 O fundamento estaria no
entendimento de que as normas concorrenciais são adotáveis pela disciplina consumerista.
A afirmativa registra séria discordância técnica, na medida em que se entende que o direito do
consumidor e o direito da concorrência correspondem a lógicas diferentes e escopos distintos. Ao
contrário, em várias legislações, o interesse do consumidor é efetivamente um critério de apreciação
das exceções às regras da concorrência. 54
Assim, ao contrário do que é afirmado, o interesse do consumidor, se demonstrado estar em
consonância com as regras societárias, é exceção válida, em bom direito, à rigidez da disciplina
concorrencial, nela admitida em face da acima explanada regra da razoabilidade.
Por outro lado, a legislação brasileira não contempla, no seu avançado ordenamento consumerista, o
direito do consumidor de escolher a conformação dos serviços e produtos que o fornecedor venha a
lhe ofertar, mas, isso sim, escolher entre acervos de distintos consumidores.
A objeção neste sentido parte de uma interpretação literal do art. 18 da Lei 9.656/1998, a lei que
regula os planos de assistência à saúde suplementar, cujo teor impediria cooperativas de saúde (que
congregam médicos e odontólogos) de exigir de seus cooperados cláusulas de exclusividade de
atendimento. Todavia, como essas cooperativas, notadamente, não excluem a possibilidade de
atendimento por parte de seus cooperados, mas somente sua vinculação econômica a entidades
concorrentes, e como essas regras são internas à sociedade e criadas pelo próprio corpo de
cooperados, torna-se bastante fácil averiguar a inadequação do texto às conclusões no sentido da
objeção apontada.
Assim, não há fundamento legal independente, nesta disciplina, que afaste o regramento em prol da
fidelidade societária.
5. CONCLUSÕES
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O conceito da fidelidade societária evolui da própria noção de affectio societatis, criada pelo direito
romano e aperfeiçoada ao longo dos séculos, sendo decomposto num conjunto de deveres de
participação do sócio, demonstrativos de sua condição indeclinável de colaborador da sociedade que
integra.
Alcança este conceito todo tipo de sociedade, juridicamente personificada, admitida pelo direito,
muito embora nas sociedades de pessoas, notadamente nas sociedades cooperativas, seja mais
severa a cobrança do dever de participação dos sócios.
Entre esses deveres avulta o da não concorrência do sócio com a sociedade, ou da não colaboração
do sócio com o concorrente da sociedade.
Pode este conceito sofrer problematizações decorrentes da disciplina jurídica da concorrência, não
sendo, entretanto, admissível que o direito concorrencial suprima o dever de fidelidade, pois estaria,
no caso concreto, afastando a própria razão de existir da sociedade.
Nos casos em que haja uma colidência de valores jurídicos da concorrência com os deveres da
fidelidade societária, uma ponderação de direitos, de forma que a afirmação de um não elimine a
existência de outro, deve ser admitida
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