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1 PREFEITURA DE SÃO GONÇALO SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO HISTORIANDO AS ARTES IX ARTE MAIA O dia 17 de novembro de 1839 assinala o nascimento da arqueologia americana. Nessa data, o aventureiro americano John Lloyd Stephens e o pintor britânico Frederick Catherwood, depois de abrir caminho pela selva quase impenetrável, começaram a desobstruir o misterioso local da antiga cidade maia de Copán, encravada nas montanhas da Honduras ocidental. Após um século de pesquisa, os estudiosos haviam decifrado somente alguns hieróglifos, na maioria símbolos de datas e calendários, e apenas arranhando a superfície dos significados simbólicos de algumas das imagens gravadas e pintadas. Entretanto, na década de 1970, o minucioso trabalho de décadas obteve um notável avanço. Em uma série de encontros nas ruínas de Palenque e em suas proximidades, denominados conferências Mesa Redonda, estudiosos dos maias de diversas disciplinas, reuniram-se para fazer uma investida coordenada à obstinada escrita dos antigos maias. Baseando-se no trabalho de estudiosos precedentes, finalmente conseguiu-se revelar o código hieroglífico. Subitamente, a intricada iconografia começou a fazer sentido. Imagens podiam, então ser ligadas a outras imagens, e principiaram a surgir vastos padrões. REDESCOBRINDO UM MUNDO PERDIDO Enquanto trabalhava no antigo sítio de Palenque, encravado na floresta tropical úmida do Sudeste do México, na primavera de 1949, o arqueólogo mexicano Alberto Ruz Lhuillier fez uma descoberta que revolucionaria nossa compreensão da natureza das pirâmides maias. A descoberta de Ruz, o Templo das Inscrições com a câmara mortuária de Pacal, levou à recuperação de uma parte central das antigas instruções maias para preservar a essência do espírito após a morte e, em seguida, ressuscitá-lo para a vida eterna. Do mesmo modo que os antigos egípcios, os maias codificaram cuidadosamente as instruções para conquistar a vida eterna em sua arquitetura, nas pinturas, inscrições hieroglíficas e nos sepulcros. Na época da assombrosa descoberta de Ruz, os estudiosos julgavam que as pirâmides maias eram apenas templos, e que, ao contrário de suas contrapartidas egípcias, não teriam sido construídas para ser sepulturas de homens-deuses. Entretanto, desde a abertura da sepultura de Pacal, os arqueólogos descobriram uma outra visão. Os maias acreditavam que os reis divinos eram a fonte de fartura para as suas cidades e que eles podiam manipular as forças da vida e da morte para garantir a fertilidade da natureza, o comércio e as colheitas – sobretudo de milho. O que esses homens foram em vida eram-no ainda mais na morte, admitindo-se que alcançaram a ressurreição no Outro Mundo. De sua apoteose divina, conseguida com dificuldade no além-túmulo, os mortos ancestrais ouviam as preces de seus descendentes, orientavam-nos e aconselhavam- nos, e intercediam por eles junto aos deuses. A pirâmide de Pacal estava até equipada 2 com um “tubo espiritual”, que se estendia da câmara mortuária até a Câmara da Visão, no alto do templo, de modo que a alma do rei pudesse ascender quando chamada pela visão extática de seus descendentes. Na época pré-histórica, os maias aprenderam a cultivar feijão, abóbora, pimenta, cacau, tabaco e – acima de tudo – milho. Eles também colhiam as fontes silvestres de drogas alucinógenas, que os auxiliavam em suas viagens de visão transcendental. Criaram um sistema de agricultura em terrenos elevados, em que cavavam intricadas redes de canais e empilhavam a lama orgânica fértil entre os canais, para constituir terrenos prodigiosamente produtivos. A primeira civilização a surgir nas Américas foi a dos olmecas, que viviam ao longo da costa do golfo do México, onde ficam os estados de Veracruz e Tabasco. Os maias herdaram muito da espiritualidade desses povos mais antigos. No séc. II a.C., muitas das cidades maias já haviam emergido das florestas e selvas da região de Peten, na Península de Yucatán. A primeira dentre elas era a gigantesca cidade de Tikal, cujo nome maia era Yax Balam – “Primeiro Jaguar”. Por volta dessa mesma época, no México Central, Teotihuacan, a primeira cidade verdadeiramente metropolitana nas Américas, tomou forma. Os reis sagrados de Teotihuacan, a sexta cidade do mundo da época, reuniram exércitos gigantescos e criaram um império, que se estendia ao Sul e a Leste, até Tikal. No final do século VIII, contudo, as grandes cidades do período clássico começaram a declinar e, no início do século IX, elas haviam, uma a uma, deixado de ser geradoras de poder espiritual e desapareceram. Não sabemos por que isso ocorreu, embora diversos fatores possam ter contribuído para esse súbito e misterioso colapso de uma grande civilização. A intensificação da guerra, o uso excessivo dos recursos naturais, a seca e a desnutrição podem ter finalmente corroído a confiança dos maias em seus reis-xamãs. Existem indicações de revoltas populares, e é fácil imaginar massacres dos nobres que haviam sido os governantes, sacerdotes e artistas. Sabemos que povos não maias ou maias de Tabasco e do México Central invadiram essas terras e que esses novos povos prosperaram por certo tempo em grandes centros urbanos, como Chichén- Itzá. Entretanto, na década de 1540, quando os espanhóis conquistaram a maioria das terras maias, mal restava um traço da grande civilização de outrora com sua profunda e antiga espiritualidade. O que os próprios maias não destruíram da sua sabedoria oculta, os espanhóis liquidaram. Diego de Landa, o primeiro bispo de Yucatán, recolheu os livros maias remanescentes e queimou-os em uma enorme fogueira pública. Ele também impôs as leis da Igreja tão severamente que, em 1568, foi chamado de volta à Espanha pela Inquisição, devido ao tratamento cruel a seu rebanho maia. Os conquistadores espanhóis reuniram os maias das cidades das planícies e levaram-nos, em marcha forçada, para as montanhas ao sul. Os que ficaram tornaram-se escravos dos vencedores. Com a queima dos livros e a destruição das últimas cidades maias, o que restava da sabedoria secreta maia se perdeu. Quase. Ao longo dos séculos que se seguiram, quatro livros, ou códices, que sobreviveram às devastações do bispo Landa e dos camponeses maias, vieram à luz, juntamente com tentativas de Landa de traduzir alguns dos hieróglifos e registrar a vida e os rituais da civilização que destruíra. Um quinto códex, do período pós-clássico, que fora traduzido para o espanhol durante o período colonial, também surgiu. Esse era o hoje famoso Popol Vuh, ou “Livro do Conselho”. Esse códex traduzido reflete as crenças dos maias-quichés mexicanizados e representa uma minúscula fração de um antigo vasto mundo de mitos e ensinamentos sobre a ressurreição que constituíram a espiritualidade do período clássico maia. Apesar de todas as suas limitações, o Popol Vuh ainda nos proporciona alguns importantes vislumbres desse mundo perdido e nos ajuda a interpretar 3 as imagens religiosas dos túmulos, templos antigos, da cerâmica funerária e dos textos hieroglíficos. O Popol Vuh narra a história das quatro criações do mundo e dos seres humanos. Cada criação era um aperfeiçoamento da anterior, já que os deuses criadores, reunindo-se em conselho, esforçavam-se por se recriar em forma humana. Na aurora da presente era, que começou em 13 de agosto de 3114 a.C., segundo os textos maias do período clássico, os deuses finalmente foram bem-sucedidos – porém excessivamente. Criaram seres humanos que sabiam tanto quanto eles e, como afirma o Popol Vuh “(...) então eles viam tudo sob o céu com perfeição. (...) Eles compreendiam tudo com perfeição (...) e isso não pareceu bom ao Construtor e Escultor (os deuses criadores) (...)”. Os criadores divinos ficaram alarmados com o seu êxito. Então, eles atacaram o primeiro homem e prejudicaram a sua “visão”, para que ele não pudesse mais ter o conhecimentodos deuses. Os maias acreditavam que a linguagem escrita, os livros e o aprendizado, de um lado, e a experiência espiritual extática, de outro, eram os dois meios complementares que os seres humanos haviam desenvolvido laboriosamente para recuperar sua visão divina original. A preocupação maia com o restabelecimento da visão própria dos deuses e, por seu intermédio, a recuperação da beleza oculta da divina essência de sua alma expressam-se de muitas maneiras. Uma é a criação de máscaras e trajes esmerados, que eles acreditavam ser ajudas à capacitação sobrenatural. Com exceção de algumas peças em mosaico de jade, nenhuma máscara maia antiga escapou a devastação do tempo. Mas sabemos de representações em pedra que eram primorosas obras-primas fantásticas de extraordinária beleza. Em geral, as máscaras eram presas a adornos de cabeça que tornavam seu simbolismo ainda mais complexo e contribuíam para seu poder sobrenatural. Uma das cenas mais impressionantes e comoventes que ilustram um rei-xamã colocando uma máscara provém da cidade destruída de Yaxchilán. Em um painel bastante danificado, na lateral de um templo, vemos o rei Jaguar-Escudo e uma de suas esposas frente a frente, despedindo-se. O xale adornado escorregou do ombro dela. Ele, já vestido, com a couraça de algodão almofadado, pronto para a batalha. Ela entrega-lhe uma máscara mágica de jaguar – emblema de seu homônimo e uay. Trajes fantásticos, em geral, acompanhavam as máscaras e adornos de cabeça. Uma parte importante de muitos desses trajes era armações posteriores em estrutura de vime, com frequência decorados com altos e majestosos arcos de plumas de quetzal. Existem exemplos de trajes que representam os deuses, os monstros do Mundo Inferior em profusão na cerâmica funerária pintada e em monumentos de pedra esculpida. Alguns dos mais recorrentes são as estelas do rei Dezoito Coelhos, o mais importante rei de Copán. Na tampa do seu sarcófago, Pacal é mostrado usando o saiote reticulado de Primeiro Pai – Senhor da Vida, com que ele apareceu ao renascer na aurora do novo universo. O significado dessa imagem cifrada era que, já no momento da morte, o processo de ressurreição poderia começar. Essa escultura era para os olhos da alma de Pacal, a fim de que ela pudesse lembrar que a ressurreição está escondida na morte, que a morte usa o traje da vida e que ele – Pacal – podia reviver. Os reis-xamãs, sacerdotes, guerreiros e outros maias também usavam pintura corporal. Os arranjos cromáticos da pintura continham significados simbólicos. 4 As máscaras, os trajes e a pintura corporal dos maias destinavam-se a trazer a este mundo o poder invisível dos deuses por intermédio da pessoa que usava os símbolos mágicos. O fascínio maia pela beleza escondida sob a superfície do mundo aparece igualmente na construção das pirâmides. Escavando a profundidade dos templos dos períodos clássico e pós-clássico, os arqueólogos encontraram estruturas ainda mais antigas, enterradas sob as fachadas mais recentes. Essas pirâmides mais antigas são frequentemente cobertas por gigantescas máscaras de deuses, moldadas em argamassa e pintadas de vermelho-sangue. Hoje sabemos que os maias não destruíam suas pirâmides anteriores. Em vez disso, eles construíam sucessivas gerações de templos por cima das existentes. Assim, concentravam e ampliavam a energia divina que forçava para cima através do centro das pirâmides, proveniente do Mundo Inferior, cada vez mais adelgaçava a membrana entre este mundo e o Outro Mundo, e tornava a abertura do portal no interior dos templos progressivamente mais fácil. Os antigos xamãs e artistas seguiram à frente no caminho para a imortalidade e foram as suas percepções e visões extáticas que moldaram a arte e a espiritualidade maias. Os xamãs eram conhecidos como geradores de itz (substância sagrada) – aqueles que podiam produzir a substância divina e orientá-la para criar fartura e vida. Pintar, esculpir, escrever e confeccionar máscaras eram formas de gerar itz. Os famosos murais de Bonampak, encravada nas selvas da bacia de Usamacinta, são os mais bem preservados de todas as pinturas de parede maias. Quando foram descobertos, em 1946, eles estavam completamente encerrados em camadas escurecidas de calcita, devido a séculos de água da chuva escorrendo nas câmaras em que as pinturas haviam sido feitas e dissolvendo o calcário do teto e das paredes. Nestas condições os arqueólogos não perceberam muitos pormenores. Recentemente, o governo mexicano removeu a calcita e uma equipe de historiadores da arte, com o auxílio de técnicas de realce computadorizadas, criou imagens em cores perfeitas das pinturas, como originalmente se mostravam. O que surgiu é surpreendente. Os antropólogos então perceberam no azul do fundo do mural as águas de Xibalba e toda a cena ocorrida no Mundo Inferior. Prisioneiros torturados, de cujas pontas dos dedos pingava sangue devido às unhas terem sido arrancadas, se punham diante de chefes maias prestes a enviá-los para a morte sacrificial. Na antiga crença maia, todos são exortados pelos deuses a fundir-se com eles e viver eternamente. A salvação da alma morta é paga com o derramamento do próprio sangue – literal e figuradamente. Os maias utilizavam muitos objetos e lugares como instrumentos para ajudá-los a abrir os portais para a realidade divina. Eles utilizavam características físicas, como cavernas e cenotes, colinas e montanhas – qualquer lugar em que pudesse encontrar configurações que lhes lembrassem o centro divino. Também criaram as suas superfícies fracionadas de fabricação 5 humana. Dentre elas, achavam-se as pirâmides-templos. Elas eram, com frequência, construídas sobre cavernas com água estagnada. Onde não havia cavernas, eles construíram as pirâmides sobre “lugares de sonho” subterrâneos e as câmaras mortuárias de reis-xamãs ancestrais, como Pacal. Frequentemente, os arquitetos e artistas maias criavam cadeias inteiras de montanhas vivas, completas, com seus próprios planaltos e vales fendidos. Todas as pirâmides maias eram providas com aberturas artificiais de caverna nos templos em seu topo: pátios de jogos com paredes inclinadas, destinados a oferecer vislumbres dos acontecimentos míticos, também criavam portais fendidos. Simultaneamente com esse permanente mecanismo de portais, os maias também utilizavam meios portáteis, como os pratos de oferendas que ofereciam um mapa para as destinações do Outro Mundo. Os xamãs maias viam nos misteriosos e suaves movimentos das constelações e da Via Láctea, sobretudo em determinadas noites importantes, o desenrolar anual da aterradora e assombrosa luta entre os deuses da vida e os demônios da morte. Nessas datas sagradas, os reis- xamãs consagravam seus campos de bola na calada da noite, enquanto as estrelas mudavam de posição em silencioso esplendor. Os xamãs maias criaram dois calendários diferentes que, uma vez que interagiam entre si, revelavam as ligações ocultas entre todos os acontecimentos terrenos e do Outro Mundo. Um calendário era particularmente sagrado. Ele expressava diretamente o drama divino, que se demarcava sob a forma de ciclos sempre recorrentes de 260 dias, divididos em treze meses. O outro calendário, como o nosso calendário moderno, era composto de 365 dias. Uma vez que os dias dos dois calendários encaixavam-se como as engrenagens de uma vasta máquina, eles produziam um ciclo sacro de 52 anos. Segundo os xamãs, os acontecimentos humanos eram mais oportunos se ressoassem com as sutis vibrações assim como com os grandes arroubos do poder divino, quando os deuses criavam, destruíam e recriavam os padrões de tempo. Os videntes maias recomendavam as datas mais carregadas de ch’ulel (essência vital) para ações humanas específicas, como plantar e colher, casar, dar nome às crianças, consagrar campos de bola, ritualmente ativar ou desativaras pirâmides-montanhas vivas, erigir monumentos de pedra e seguir para a guerra. As ruínas de Copán são frequentadas por um sentido de tempo – e seu fim catastrófico. No alto de um montículo na extremidade setentrional da antiga entrada do campo de bola para o Mundo Inferior, acha-se um misterioso monumento que os arqueólogos chamam de Altar L. O Altar L é uma estranha testemunha da calamidade desconhecida que surpreendeu a cidade. No lado sul, defrontando-se com o campo de jogo de 6 bola, a escultura está completa. Podemos ver uma representação de U-Cit Tok (o último rei) e de Yax Pac (seu importante antepassado), sentados frente a frente, envolvidos em uma espécie de ritual. Mas, no lado norte, o artista começou o trabalho, esboçou as figuras, e em seguida, praticamente em meio a um gesto, largou as ferramentas e abandonou o local – para sempre. A data do Altar L – a última data registrada em Copán – é 10 de fevereiro de 822 d.C. SANGUE E ÊXTASE Seis deuses nus agacham-se simultaneamente sobre tigelas abarrotadas com tiras de papel, no intemporal Vácuo do Outro Mundo. Sob seus pés, juntam-se palavras, para criar um ondulante chão de hieróglifos. Erguem os instrumentos de auto-sacrifício e, simultaneamente, enterram os cravos afiados e primorosamente entalhados nos pênis. Seu sangue sacro salpica o Vácuo. A criação do mundo começou! Essa é a cena em um vaso hoje famoso do período clássico, de Huehuetenango, na Guatemala. Ela representa uma das várias versões dos primeiros momentos da criação, como os maias a imaginavam. Nela, a descrição primordial, o universo irrompe na existência das imaginações carregadas de ch’ulel (essência vital) dos deuses criadores, em meio às visões extáticas que provocaram mediante o rito de sangria. Segundo os maias, esse temível auto-sacrifício do Ser Divino fornecera a força vital que criou, sustentou e eternamente recriou o universo e os seres humanos. De sua parte, os seres humanos eram obrigados a participar desse sacrifício divino original, repetindo-o em seus rituais de auto-sacrifício, mantendo assim a energia criadora do Ser Divino circulando por todos os níveis da realidade. No processo, a alma era autorizada a se envolver em atos sagrados de co-criação e a alcançar uma unidade com o Ser Divino que lhe garantiria a sobrevivência após a morte. Essas cerimônias de sangria assumiam diferentes formas e tinham diversos propósitos. Os maias faziam sangria em muitas ocasiões de menor importância – o nascimento de uma criança, a consagração de uma nova casa, o primeiro plantio da estação. Mas eles guardavam as formas mais impressionantes de sangria para acontecimentos públicos, importantes festas religiosas e a criação de obras de arte. Preparavam-se para atingir os estados alterados de consciência, que eram fundamentais para esses rituais, isolando-se, jejuando, abstendo-se do contato sexual e ingerindo drogas alucinógenas, como balché, peiote, cogumelos tóxicos e sementes de ipoméia. Perfuravam-se com cravos de obsidiana ou sílex, ou com espinhas de arraia-lixa, profusamente ornamentados, que eram rematados com tremeluzentes adornos de pequeninas plumas de quetzal. Depois de abrirem uma ferida com o sangrador, os maias passavam grossas cordas de cânhamo, frequentemente com espinhos entrançados, pelos membros que sangravam. Eles inclinavam-se sobre pratos de oferendas cheios de tiras de papel. Quando ficava impregnado de itz, o papel era incendiado. A fumaça sagrada que se desprendia desses pratos de oferendas formava nuvens de ch’ulel materializado, à imitação das nuvens de tempestade que carregavam a chuva, do Mundo Superior. Em geral, a coluna ascendente estirava-se na Serpente da Visão posterior, de cuja 7 boca aberta surgia uma Realidade divina para pronunciar palavras de sabedoria, habilitar com sua energia sobrenatural e inspirar com elevadas imagens de verdade e beleza – imagens de vida, de criação e do Ser. O sangue podia ser tirado de diversas partes do corpo, inclusive braços, coxas e mãos. Quando era tirado das mãos, no que os pesquisadores denominam “ritos de espargimento”, era espargido sobre pratos de oferendas que simbolizavam a terra, à imitação do plantio de grãos de milho. Os ritos de espargimento eram atos de magia simpática, destinados a estimular o milho a produzir uma colheita farta. As fontes mais sagradas de itz (substância sagrada) humano eram as orelhas, a língua e o pênis. Os reis xamãs, escribas, artistas e outros maias abriam as orelhas a fim de ouvir os oráculos e revelações dos deuses. Eles abriam a língua para conseguirem dizer o que haviam escutado. E abriam o pênis para recriar as próprias vidas e as vidas de seus reinos e de seu povo. Essa sangria se constituía como expressão de um contrato emotivo. Uma vez que os deuses haviam demonstrado seu amor por suas criaturas com intensidade esmagadora, pela ferocidade de seu auto-sacrifício original e contínuo, os seres humanos tinham de retribuir-lhes na mesma moeda. Além desse esquema de retribuição, os maias também faziam sangria para solicitar ajuda e conselho aos deuses e antepassados divinizados para invocar as energias de que necessitavam para suas tarefas de formação do mundo e para alcançar seu objetivo criador máximo – e unidade extática com o grande Mistério. Quando faziam sangria para pedir ajuda, os maias estavam buscando uma visão concreta e uma esmagadora experiência emocional com o Ser Divino. Em um lintel entalhado de Yaxchilán, uma rainha, a senhora Xoc, ainda segurando os instrumentos de sangria que acabou de utilizar, contempla o guerreiro antepassado que invocou da boca com presas de uma aterrorizadora Serpente da Visão. O guerreiro surge inteiramente armado, brandindo um escudo feito de um rosto humano esfolado e a lança de guerra de Tlaloc. A senhora Xoc buscou e recebeu a temível energia de um ameaçador deus-guerreiro. Esse lintel de Yaxchilán, e outros como ele, indicam, além dos atos de súplica, a sangria como um método para invocar forças sobrenaturais. Embora a súplica e a invocação sejam estreitamente relacionadas, a invocação exige mais envolvimento ativo por parte do suplicante. Requer de quem busca a visão ousada e imaginação para penetrar profundamente no interior da alma e se concentrar na visão que ele/ela está tentando concretizar. Esse envolvimento com o mundo interior era certamente a força dinâmica central nos rituais de sangria. O objetivo supremo da sangria, para os antigos maias, era alcançar enlevada unidade com o Deus da criação. AS CRIAÇÕES DA SERPENTE-RELÂMPAGO No final da estação arqueológica de 1989 em Copán, William Fash e Ricardo Agurcia fizeram uma descoberta quando abriam um túnel no interior de uma pirâmide do período clássico, a que os arqueólogos deram o nome de Estrutura 16. Eles toparam com as ruínas de um templo muito mais antigo, enterrado dentro da construção mais recente. Essa pirâmide anterior era profusamente decorada com máscaras em estuque da Principal Divindade-Pássaro, vomitando a cabeça de Itzam-na. 8 O templo antigo fora originalmente pintado de vermelho-vivo e sustentara um telhado circular de um branco brilhante. Antes de a nova pirâmide ser construída sobre ele, o velho templo fora ritualmente desativado e recebera uma espessa camada de argamassa, para encerrar lá dentro sua força acumulada. A descoberta de Fash e Agurcia dessa pirâmide escondida foi um acontecimento notável. Porém, havia mais por vir. Durante a estação de 1990, os arqueólogos estavam cavando junto à parede oeste do templo antigo, apressando-se para completar o levantamento antes do início da estação das chuvas. Em 30 de maio, véspera do último dia de trabalho, eles subitamente ultrapassaram um vão de porta obstruído por pedregulhos comprimidos, no lado da pirâmide interna, e acharam-se em uma sala pintada de um fantástico vermelho-sangue. Eles souberam imediatamenteque estavam em um extraordinário espaço ritualístico. Em 1º de junho, fizeram uma descoberta espetacular, abriram o coração da “montanha viva” e puderam vislumbrar o âmago do seu poder sobrenatural. Em um pequeno nicho na sala vermelha, eles acharam um esconderijo de instrumentos sacrificiais: facas de sílex, uma conta de jade, uma espinha de arraia-lixa, conchas de ostras cobertas de espinhos e vértebras de tubarão. Porém, muito mais significativo do que esse equipamento para sangria, eles se depararam com nove dos chamados sílex excêntricos mais fascinantes já descobertos, cada um com mais de 45 cm de comprimento. Fragmentos do tecido verde-azulado em que haviam sido envoltos ainda aderiam aos misteriosos objetos. Em toda a área maia encontram-se sílex excêntricos. São grandes pedaços chatos de pedra, entalhados com imagens de deuses e demônios. Mas as pedras que Fash e Agurcia descobriram são particularmente poderosas e evocativas. Criadas para se assemelhar a relâmpagos em ziguezague congelados, as formas projetam- se com entalhes afiados e bordas pontiagudas, semelhantes a escamas. Antes de desativar a pirâmide antiga, os sacerdotes-xamãs envolveram cuidadosamente essas peças em tecido da cor do oceano do Outro Mundo. Depois, colocaram no centro vermelho da pirâmide, “mumificaram” o templo e encerraram essas criações de raios em si mesmas. Outra descoberta feita por arqueólogos de um notável monumento foi em Quirigua, a antiga rival de Copán nas montanhas da Guatemala. Denominado Estela C, esse te-tun, ou “pedra-árvore”, como os maias chamavam essas lajes entalhadas, apresenta um dos raros relatos hieróglifos subsistentes dos primeiros momentos da criação. Ele tem início com a palavra hal, que significa “falar”, “fazer aparecer” e “manifestar”. Como a narrativa hebraica do Livro do Gênesis e no posterior Evangelho de São João, a criação maia começou quando o aspecto criador de Deus “falou” em meio ao nevoeiro carregado de relâmpagos de seu êxtase de sangue. O que ele falou “apareceu” ou “manifestou-se”. A inscrição de Quirigua afirma que o Ser Divino imaginou e exprimiu uma cena em que três deuses criadores – os Remadores Jaguar e Arraia-Lixa e o “Deus Vermelho Casa Negra”, colocaram as três pedras da lareira primordiais da nova criação no centro do “Céu Deitado, Lugar das Primeiras Três Pedras”. Sabemos, por outras 9 inscrições e esculturas, que o “Lugar das Primeiras Três Pedras” ficava no centro do oceano do Outro Mundo, “Céu Deitado”, quando este ainda cobria a Terra. Outra fonte para nosso crescente conhecimento dos antigos mitos da criação maia é o chamado Vaso dos Sete Deuses. Essa cerâmica funerária, do período clássico, apresenta sete deuses criadores, reunidos em conselho para planejar a ressurreição do universo. Os deuses têm uma cor intensa contra o fundo negro do Mundo Inferior. Seis deles estão sentados defronte do sétimo, chamado Deus L, Itzam-na, o rei do Mundo Inferior, que se recosta em um trono coberto por uma pele de jaguar. As figuras divinas representadas nesse vaso são, simultaneamente, os demônios de Xibalba e os deuses da vida do Mundo Superior. Nessa época remota, antes e depois do espaço terreno, os deuses e demônios eram e serão um só, e o Mundo Superior, o Mundo Inferior e o plano da Terra são idênticos. O Popol Vuh descreve a criação como a obra de Primeiro Pai e Primeira Mãe e denomina-os “O Artífice” e “A Modeladora”. Eles conferenciam com um conselho de deuses semelhante àquele do Vaso dos Sete Deuses. Surpreendentemente, a exposição do Popol Vuh, como a da moderna teoria da evolução, pinta a criação como uma série de épocas cósmicas, em que diversas criaturas vivas se desenvolvem e depois desaparecem em extinções em massa, apenas para serem seguidas por formas de vida novas e mais evoluídas, em um progressivo florescimento do Ser no tempo e no espaço. Os seres humanos chegam a ser mostrados como evolução de um passado primata. Ainda não sabemos o suficiente para conformar essas diferentes narrativas da criação em um todo coerente. Entretanto, talvez exista um problema mais básico do que a nossa falta de conhecimento. Parece cada vez mais provável que os maias não estivessem interessados em coerência lógica. Em vez de teologia sistemática, eles criaram uma vívida, vigorosa e caleidoscópica mitologia. Podemos perceber cinco dinâmicas básicas do processo de criação que os maias acreditavam serem usadas pelo Ser Divino para manifestar o mundo. Implícita nos textos da criação do período clássico e do Popol Vuh, bem como evidenciada no vaso de Huehuetenango e em muitas outras cerâmicas funerárias, a primeira dinâmica era a visão extasiada do Ser Divino. Essa visão, como a dos escribas-xamãs e dos artistas, era poderosamente extática em vez de lógica. A segunda dinâmica, tal como registrado na Estela C de Quirigua, era o ato de o Ser Divino pronunciar a Palavra criadora. Muitas narrativas da criação de diversas épocas e lugares começam com essa Palavra sagrada. Elas fazem-no porque, ao nomear as coisas, as palavras definem objetos e acontecimentos, tornando-os reais. A linguagem oral e, posteriormente, escrita – torna as imagens concretas. Os antigos maias compreendiam o poder das palavras e acreditavam que a linguagem era um dom dos deuses e uma faculdade que partilhavam com eles. A terceira dinâmica do processo de criação era a da expressão artística. Os deuses criadores eram itz’atob – “sábios” e “artistas celestes” que pintaram as fases iniciais do novo mundo que desabrochava. Primeira Mãe era também uma pintora que coloriu a Terra, determinadas árvores e flores e outros objetos especiais com sua tonalidade preferida – o vermelho de seu sangue menstrual e teceu o cosmo para a existência em seu tear celestial. Primeiro Pai e Primeira Mãe eram ambos escultores. A quarta dinâmica da criação era sexual. Ela foi mostrada, no vaso de Huehuetenango e em outras fontes, como as ejaculações sanguíneas dos deuses criadores em rituais de sangria fálicos. 10 Entretanto, a expressão mais impressionante dessa energia da criação sexual é a gigantesca Árvore do Mundo/Falo Cósmico, esculpida em um único bloco de pedra imenso, que se projeta do solo no extenso terraço diante da construção que os arqueólogos denominam Palácio do Governador, em Uxmal. A quinta maneira que os maias tinham de descrever o processo da criação era o de dar à luz. DEUS Como os xamãs e místicos de todas as religiões, os maias acreditavam que todas as coisas nasciam, viviam e morriam dentro do Ser Divino, como expressões de Sua essência clara-escura. Os deuses eram manifestações fragmentadas do grande Mistério, que se comprazia em multiplicar-se e dividir-se em incontáveis seres vivos, cada um com um diferente – mas não tão diferente – conjunto de qualidade. Essa celebração da diversidade na unidade é verdadeira para todas as doutrinas politeístas ou de muitos deuses. As espiritualidades politeístas enfatizam as muitas faces do Ser Divino, ao passo que as religiões monoteístas enfatizam Sua unidade. A ALMA Em um vale remoto na extrema orla sudoeste da área maia, situam-se as ruínas de Toniná. No período clássico, essa cidade isolada, cercada por todos os lados de montanhas da exuberante floresta úmida, dominava a fronteira extrema do reino maia. Além desse remoto posto avançado da civilização, as tribos bárbaras dos mixtecas e outros povos belicosos corriam as colinas enevoadas. Toniná, como todas as cidades maias, imaginava-se como o centro do universo. Para reforçar a circulação de ch’ulel que sua localização mitologicamente centralizada proporcionava, os construtores de Toniná haviam talhado a cidade em uma montanha, no topo do vale. Os habitantes de Toniná haviam erigido seus palácios e pirâmides-templos, praças e campos de bola em uma série de terraços e plataformas talhados nas vertentes das montanhas. Ao fazê-lo,eles haviam transformado a montanha natural em uma enorme pirâmide artificial e, desse modo, proclamavam que toda a cidade era uma montanha viva – na verdade, a “Primeira Montanha Verdadeira”, de que principiara a criação. Na época antiga, a cidade inteira foi pintada de branco e vermelho. Ela assentava como uma sobrenatural pedra preciosa, cintilando na vastidão verde que rolava como as ondas do oceano do Outro Mundo em direção ao aterrador reino dos deuses e demônios. Segundo seus habitantes, os bárbaros que vivam além dos limites do minúsculo estado eram os próprios demônios do Mundo Inferior. Pelos padrões dos antigos maias, Toniná era uma cidade pequena, mas era invulgarmente belicosa. Mais do que muitos centros maias, sua arte pública celebrava a tortura e o sacrifício da decapitação de cativos nobres. O famoso ‘Muro de estuque de Toniná’ retrata o temível cadafalso em que ocorriam essas torturas e degolamentos. O 11 cadafalso (estrutura provisória de madeira sobre a qual os condenados à morte eram executados.) apresenta-se decorado com as cabeças de chefes inimigos e um gigantesco demônio-esqueleto dança em meio aos suportes de vime, balançando a cabeça recém-decepada de um cativo famoso. A cabeça aperta os olhos fechados e está engasgada com a língua. Um outro monumento de Toniná é o grande campo de jogo de bola do rei- xamã Baknal-Chac. As inscrições revelam-nos que Baknal-Chac, como a personificação da árvore do Mundo e do Sol, consagrou esse campo de jogo de bola em 7 de julho de 696 e denominou-o “Sete Campo de Bola Três Conquistas Lugar Amarelo Preto”. Os estudiosos julgam que “Sete Lugar Amarelo Preto” pode ter sido outro nome para a fenda de que nasceu Primeiro Pai. “Três Conquistas” referia-se tanto aos degraus sacrificiais do ritual – os “degraus da morte”, pelos quais as vítimas sacrificiais eram roladas para baixo – quanto às três descidas mitológicas ao Mundo Inferior. Baknal-Chac considerava seu campo de bola um gerador de ressurreição cósmica, uma réplica terrena do lugar do Outro Mundo onde a morte se transformava em vida. Sob a vegetação emaranhada do piso do campo de bola, os arqueólogos fizeram uma descoberta estarrecedora, que alteraria nossa compreensão das antigas crenças maias acerca da origem e do destino potencial da alma humana. Enquanto removiam os séculos de terra e mato do marcador central do “Sete Lugar Amarelo Preto”, eles aos poucos revelaram a imagem de um jovem embalando um estranho objeto nos braços. Especialistas em questões maias nunca haviam visto esse objeto antes e não sabiam como interpretá-lo. Esse misterioso marcador central apresentava-se sob a forma de um disco de calcário esculpido, fixado no chão de terra do campo de bola. Por baixo dele, havia um cilindro de pedra oco, com vários pés de profundidade, que simbolizava o portal para o Mundo Inferior. O marcador-tampa desse portal para a dimensão oculta sob a terra mostrava um homem, identificado pelos hieróglifos que orlavam o disco como Fumaça de Seis Céus, sentado sobre uma plataforma. A inscrição indicava que Fumaça de Seis Céus morrera em 5 de setembro de 775 e fora sepultado em 22 de maio de 776. Os marcadores dos campos de bola maias, como os visores de barcos com fundo de vidro, eram “transparentes”. Eles ofereciam uma visão dos acontecimentos que ocorriam no eterno agora do Mundo Inferior-Outro Mundo. Por causa disso e pela inscrição hieroglífica, os arqueólogos sabiam que Fumaça de Seis Céus, em sua imagem no campo de bola, estava vivo em algum lugar no Outro Mundo, além dos portões da morte. Eles viam-no sob o chão de campo de jogo de bola, virtualmente. Enquanto prosseguia a decodificação do marcador do campo de jogo de bola de Toniná, em Yaxchilán os estudiosos estavam tentando decifrar a misteriosa expressão ch’ay saknik-nal. Pelo resto da inscrição, eles sabiam que era uma espécie de expressão de morte. Experimentaram-se diversas interpretações, mas nenhuma parecia adequar-se, até que Nikolai Grube e David Stewart, dois dos mais criativos decifradores de hieróglifos antigos, fizeram um progresso surpreendente. Descobriu-se que a palavra ch’ay era um verbo que significava “perdeu energia”, “diminuiu”, ou “expirou”. E sak-nik- nal podia ser traduzido como o substantivo a “Criatura Flor Alva”. Essa expressão, 12 portanto, dizia: “A Criatura Flor Alva perdeu energia” ou “A Criatura Flor Alva expirou”. Uma vez que esse texto se referia a uma pessoa, e não a uma flor especificamente, os estudiosos compreenderam que, nessa expressão de morte, eles haviam deparado com o ideograma maia central para a alma humana. A imagem do Mundo Inferior de Fumaça de Seis Céus podia, então, ser decodificada. Fumaça de Seis Céus fizera uma descida bem-sucedida à terra da morte e estava sentado no Mundo Inferior-Outro Mundo, apertando enlevado ao peito a própria alma. O resultado final era a invocação do eu, da própria essência. Lá estava esse homem há muito morto, ainda visível no Mundo Inferior, segurando nos braços a própria alma, uma alma que por casualidade era o próprio Ser Divino! Uma das maias vigorosas representações da alma maia em sua plenitude madura é a imponente estátua de Primeiro Pai após sua ressurreição como o deus-milho. Essa elegante escultura de Copán é notavelmente semelhante a estátuas do Buda Sakyamuni. Primeiro Pai acha-se de pé, em uma atitude de tranquilidade energizada. O cabelo comprido espalha-se em torno do rosto como os raios do sol. Em torno do pescoço, ele exibe um crânio pendente, para proclamar seu triunfo sobre a morte. Ele mantém a mão esquerda na posição de palma aberta, exatamente como a de Buda em seu gesto de “concessão de dádivas”. Ele ergue a mão direita, com a palma para a frente, exatamente na mesma posição que a de Buda em seu gesto de “sem temor”. Mesmo os pormenores da expressão no rosto de Primeiro Pai são praticamente idênticos aos do Buda Sakyamuni. Ambos apresentam uma paz que transcende o mundo. Ambos olham para baixo – ou para dentro, com olhos de grossas pálpebras. Em ambas as imagens, as testas são altas, representando inteligência extraordinária; as faces são serenas, mas firmes; os lábios estão levemente separados, indicando que eles estão prestes a pronunciar palavras de confiança. Para os maias a alma podia dar sua colaboração à contínua criação de muitas maneiras, governando, guerreando, curando, lavrando, gerando filhos, educando e criando objetos verdadeiros e belos. Fundamentalmente, ela contribuía para o contínuo triunfo da expansão de ch’ulel (essência vital) ao desenvolver a si mesma pela educação e vínculo extático com os deuses. O SEGREDO DO XAMÃ Uma série de grandiosos lintéis esculpidos das selvas de Chiapas retrata os rituais de sangria xamânicos da família real de Yaxchilán. As cenas apresentam diversas cerimônias que ocorreram ao longo de um período de anos, muitas delas realizadas pelas esposas do grande rei Jaguar-Pássaro. Grande quantidade delas foi esculpida pelo artista-xamã conhecido como o Artista Cortador de Biscoitos, devido à profundidade dos seus cortes e às bordas bem acabadas. Essas esculturas mostram os bonitos detalhes das técnicas de tecelagem maias e os delicados motivos decorados de seus trajes. 13 Uma das cenas mais extraordinárias desenrola-se no Lintel 15. Ali vemos a senhora Seis Tonéis fascinada pela visão que invocou, com seu recém-terminado rito de sangria. Ela está ajoelhada em uma sala escurecida, aninhando nos braços uma cesta trançada. A cesta contém os seus instrumentos de sangria, juntamente com tiras de papel ensanguentado. A corda que ela, momentos antes, passou através da língua pende-lhe do antebraço. Ela está usando um elegante huipil – uma longa túnica solta, com motivos cruzados, brincos, um pingente, pulseiras de jade primorosamente trabalhadas e a gargantilha especial, usada para rituais de sangria.Seu cabelo negro e liso está atado atrás com tiras de papel respingadas de sangue – com exceção de três cachos altivos, dois dos quais formam um arco sobre a testa, mantidos no lugar por enfeites tubulares. O desalinhado mas altivo penteado da senhora Seis Tonéis transmite uma combinação de cuidadosa sofisticação e frenético abandono – sem dúvida, o resultado do ritual que ela acabou de terminar. Seu rosto é uma imagem da beleza maia. Ela inclina a cabeça levemente para cima, exibindo o grande, carnudo e aristocrático nariz índio e o comprido queixo levemente retraído. Os olhos amendoados erguem-se para a visão que se materializou à sua frente. O vigoroso maxilar pende sem energia, devido à exaustão e talvez para proteger a língua ferida. Os lábios cheios estão ligeiramente entreabertos, mostrando os salientes dentes incisivos – um indicador de beleza feminina, aos olhos dos antigos maias. À sua frente, no chão, acha-se um prato de oferendas, transbordante de tiras de papel impregnadas de sangue. Ela já ateou fogo ao papel e nuvens de fumaça avolumam-se para o alto. Acopladas às ondas de fumaça, as espirais de uma enorme Serpente da Visão erguem-se para o teto. A cobra imensa apresenta as marcas em losango da cascavel e está salpicada com as gotas de sangue da senhora Seis Tonéis, que a trouxeram de sua toca no Outro Mundo até o plano da Terra. Ela joga a cabeça para trás engasgada com a visão que a rainha havia buscado. A visão em si é uma enorme figura masculina, cuja cabeça e a mão direita estão emergindo dos maxilares da serpente. Seu cabelo está preso e ondula acima da cabeça como as penas da cauda de um pássaro tropical. Ele usa compridos brincos pendentes que se lançam para frente. Seus olhos fitam a senhora Seis Tonéis, muito abaixo, e o grosso lábio inferior tomba enquanto ele abre a boca para falar. A mão gesticula com indiferente autoridade, com o dedo indicador apontando, como que para explicar algo. A natureza oracular da visão revela-nos que o objetivo da sangria de senhora Seis Tonéis era convocar um antepassado do Outro Mundo, para trazer-lhe conhecimento sobrenatural. Os traços da visão são de tal modo semelhantes aos seus, que poderíamos facilmente imaginá-lo como seu pai. Essa cena impressionante é a representação mais naturalista de uma Serpente Visão que chegou até nós. É também a imagem mais vigorosa da função oracular de muitos dos ritos de sangria. Sabemos que uma das mais importantes 14 responsabilidades das almas que haviam conquistado a ressurreição por meio das aterrorizantes provas nas mãos dos Senhores da Morte era voltar a este mundo quando os seus descendentes chamavam, e conceder-lhes o privilégio de seu conselho e sabedoria, como almas eternas que haviam se tornado deuses. Como os bodhisattvas budistas, as almas maias que sobreviveram à morte aparentemente não podiam passar completamente ao reino da bem-aventurança até haverem salvado outras. Essa responsabilidade de aconselhamento por parte dos antepassados divinizados era o motivo por que os xamãs de Palenque haviam equipado o túmulo de Pacal com o tubo espiritual. Podemos apenas esperar que a senhora Seis Tonéis tenha recebido a sabedoria que estava buscando em seu ritual xamânico e que o seu “pai” ressuscitado, como um Senhor da Vida tenha considerado agradável o seu realçado papel criador. O xamanismo – o poderoso processo psicológico e espiritual para transformar a morte em vida em todas as dimensões da Realidade – era a força motriz por trás de todos os aspectos da antiga vida maia. Duas descobertas arqueológicas, ambas em Copán, evidenciaram o influente papel do xamanismo na antiga religião maia. A primeira descoberta concentrou-se no conjunto Sepulturas, localizado a certa distância do centro da antiga cidade. Ali, vastos quadriláteros interligados de quartos, casas de banho e cozinhas ao ar livre constituíam a habitação de extensos clãs familiares da nobreza de Copán. A principal construção do conjunto possui uma sala de audiências no topo de uma escada de grande altura, que foi construída para imitar a escadaria das grandes pirâmides- templos da Acrópole de Copán. Curiosamente, a fachada da construção é esculpida com cenas de escribas segurando tinteiros de conchas e pincéis de calígrafo. No topo, achava- se um banco esculpido, em que os estudiosos pensavam que os patriarcas escribas conduziam audiências semi-reais. Dessa plataforma, esculpida com figuras de deuses- escribas, esses poderosos ah tz’ibob (“escribas”) principais emitiam julgamentos sobre rixas interfamiliares, elaboravam e aplicavam as normas da comunidade e realizavam rituais de sangria públicos. Sabemos até o nome de um desses influentes escribas – Mac Chaanal. Outra descoberta que confirmou a posição dos escribas na sociedade maia foi a de um túmulo no interior da principal pirâmide na Grande Praça de Copán. A escada e a balaustrada desse templo são esmeradamente esculpidas nas figuras de Serpentes da Visão, mostrando os mais poderosos reis da dinastia de Copán. Essas esculturas celebram a impressionante revelação da Presença Divina ao longo da história da cidade. Os degraus que circulam essas espectrais “hierofanias” de pedra são cobertos por hieróglifos. O túmulo no interior desse templo, erguido ao milagre da escrita, continha o corpo de um homem importante. A princípio, os arqueólogos pensaram que ele devia ter sido rei; foi até acompanhado na morte por uma criança sacrificada. Entretanto, quando examinaram com mais atenção os objetos enterrados com ele – dez recipientes com tinta, um código deteriorado e uma tigela representando um escriba-xamã, chegaram a uma impressionante conclusão: esse homem fora sepultado no interior de uma montanha viva como os grandes reis maias, mas não era um rei – era um escriba! Os estudiosos atualmente supõem que fosse o irmão de um dos reis-xamãs de Copán. Não por acaso, 15 ele foi enterrado precisamente no interior da pirâmide que celebrava o divino poder da escrita. A MORTE A morte é o princípio e fim de todos os nossos mitos e religiões. O momento preciso da morte física foi o tema de algumas das mais vigorosas criações artísticas que os maias produziram. Uma imagem vigorosa deste momento é uma que aparece entalhada em quatro ossos descobertos no túmulo do chamado Soberano A, em Tikal, e, novamente em um sílex excêntrico de um desconhecido sítio do período clássico. Essa imagem pinta a morte como o súbito afundamento da Canoa da Vida. Nessas imagens, a vida humana é uma viagem de canoa pela superfície das profundezas abissais do oceano do Outro Mundo. Modelada de acordo com as naves de alto-mar dos mercadores maias, a Canoa e seus passageiros simbolizam a noção maia de que todos nós somos mercadores de vida, dando e recebendo todos os nossos dias. Nesse caso, nossos parceiros de comércio são os deuses. A Canoa da Vida é movida pelos dois Remadores, aspectos dos Deuses Gêmeos. Os primeiros dois ossos mostram a Canoa da Vida movendo-se rapidamente pelas águas, conduzindo o Soberano A em sua viagem de vida. Na Canoa, com ele, acham-se um iguana, um macaco-aranha, um papagaio e um cachorro. Na proa, o envelhecido Remador Jaguar fustiga a água com o remo, arfante com o esforço. Na popa, o velho Remador Arraia-lixa está também concentrado no trabalho. O rei, no centro da Canoa, usa o adorno de cabeça de seu posto, inclusive uma folha que o proclama a encarnação da Árvore do Mundo. Ele e o que talvez sejam seus gênios familiares animais comprimem o pulso contra a testa – na arte maia, um gesto de desespero. Os hieróglifos que acompanham essa cena de viagem dizem: “Soberano A viajou de canoa quatro Katunob (oitenta anos) até seu passamento.” Outra imagem da morte é o já citado sílex excêntrico. O magistral itz’at “sábio artista” que preparou esse sílex entalhou a Canoa da Vida. A proa é a cabeça de crocodilo de Primeiro Senhor/Vênus.A popa representa o aspecto semelhante ao humano de Primeiro Jaguar. Esses símbolos dos Deuses Gêmeos são repetidos sob a forma dos Remadores, que ali servem de guias espirituais à alma do senhor desconhecido. Não aparecem os remos, e a Canoa parece ser autopropulsora. O rei, no centro, usa um adorno de cabeça com penas de quetzal, cujas plumas rodopiam ao vento da súbita arremetida para baixo da Canoa. O paralelo que o artista traçou entre a imagem de Primeiro Jaguar e a do rei moribundo revela a esperança maia de que, ao se fundir com Primeiro Pai no momento da morte, eles poderiam repetir-lhe a “paixão” como ele, e, assim, garantir a ressurreição – semelhante à dele. O artista retratou as terríveis forças da gravidade sobre a Canoa e seus ocupantes, enquanto eles mergulham abaixo da superfície. A quilha da Canoa arqueia-se, curvando-se como um arco, e o rei e seus companheiros Remadores são arremessados para trás, quando o mergulho da nave acelera. O observador acompanha fascinado, 16 enquanto a Canoa da Vida se torna a Canoa da Morte arrojando-se no insondável mar do Outro Mundo. OS JULGAMENTOS DE XIBALBA Segundo os maias, o sofrimento é uma parte inevitável da vida e a crueldade é um aspecto inerente a toda alma. Uma das mais vigorosas representações tanto de sofrimento como de crueldade dos antigos maias que chegou até nós é uma estatueta do período clássico, proveniente de Campeche, no Yucatán ocidental. Essa estatueta era originalmente um relicário, que outrora conteve uma espécie de troféu de guerra. Ela é confeccionada sob a forma de um prisioneiro horrendamente torturado. O outrora nobre guerreiro acocora-se, com os braços torcidos para trás, à altura dos cotovelos, e os joelhos bem afastados. O peito foi forçado para a frente e uma fiada de gravetos foi- lhe atada de um lado a outro das costas. O rosto está sovado e inchado. O couro cabeludo foi removido – mas não completamente; está pendurado por um retalho de pele na nuca. As mãos e os pés foram retorcidos até se desarticularem. Como ato final de selvageria, ele foi pouco antes eviscerado, havendo o estômago sido arrancado junto com os intestinos. A cabeça do prisioneiro estica-se para trás, sua boca escancara-se em um berro de agonia. O homem que serviu de modelo para essa aterrorizante imagem da dor provavelmente não viveu bastante para sentir as chamas queimarem-lhe as costas, quando a madeira foi incendiada. Os maias encaravam esses atos humanos de brutalidade como formas especializadas da crueldade natural que suportavam todos os dias da sua vida terrena. Dados provenientes dos ossos de cidadãos maias comuns revelam que a desnutrição crônica predominava entre as classes mais pobres de diversas cidades, sobretudo perto do fim do período clássico. Rio Azul e Kalak’mul são impressionantes exemplos disso. E, nos túmulos da Copán do século VIII, os pesquisadores descobriram esqueletos – tanto de ricos como de pobres – que revelam sinais de fome e doença em escala maciça. Originalmente muitíssimo bem-sucedidos com sua localização no fértil vale de Copán, os milharais dessa cidade estendiam-se por quilômetros em todas as direções, junto com vastas plantações de abóbora, pimenta e feijão. As montanhas circundantes eram cobertas por florestas compactas de carvalhos e pinheiros e, no próprio vale, floresciam sumaúmas e outras árvores tropicais. Mas, à medida que a população crescia, devido em parte a uma enorme afluência de imigrantes do Leste não-maia, a cidade ampliou-se em um processo que denominaríamos atualmente de expansão urbana. Ela começou tragando fecundas terras agrícolas, à medida que as subdivisões de todas as classes, mas sobretudo as abastadas, se deslocavam da área da acrópole. Além da usurpação de valiosos terrenos agrícolas, a proliferante população começou a despojar as montanhas de suas árvores. Quantidades imensas de madeira eram necessárias para cozinhar, assim como para os fornos de cal em que se preparava a argamassa para projetos de construção sempre crescentes. No final do século VIII, as consequências dessa expansão urbana eram demasiadamente evidentes. As doenças, inclusive as relacionadas com a subnutrição, de 17 que sofriam os habitantes de Copán e outros maias em circunstâncias semelhantes, aparecem na arte como os demônios do Mundo Inferior. Doenças pulmonares, causadas pela fumaça do fogo para cozinhar, são representadas como jorros de sangue escorrendo de peitos emagrecidos; parasitos intestinais são mostrados em visões radiográficas de abdomes inchados, em torrentes de diarréia sanguinolenta e gases líquidos. Os maias do período clássico convivam com um sistema de classes cada vez mais opressor, feiticeiros malévolos e operações militares intensificadas. As classes mais altas expandiam-se muito mais rapidamente do que os camponeses. Essa crescente multidão de nobres exigia demais dos agricultores e trabalhadores, exatamente no momento em que as reservas estavam minguando, como resultado tanto da seca prolongada quanto de catástrofes ecológicas produzidas pelo homem, como a de Copán. A nobreza alimentava-se melhor, ampliava-se e vivia mais do que os camponeses, cada vez mais pressionados, que a sustentavam. Os maciços projetos de construção dos períodos clássico e pós-clássico sobrecarregaram ainda mais os maias comuns. Tinham de ser erigidos cada vez mais palácios, pirâmides e pátios de jogo de bola para o prazer e a utilização ritual. Para os maias do período clássico, a guerra tornou-se cada vez mais uma questão de conquista territorial e material. No século IX, a disputa entre cidades reduzira antigas grandes cidades de saber elevado e elegante arte a conjuntos de fortalezas e cada vez mais bárbaras. Quando os espanhóis chegaram, no início do século XVI, só restavam algumas cidades de tamanho razoável e os mais estavam encerrados em um pesadelo de mútua destruição assegurada. Naqueles mesmos murais em Bonampak, com o Mundo Inferior Azul como fundo, observamos algumas das mais horripilantemente realistas representações de guerra já criadas. O rei Chaan Muan, de Bonampak, conduz seus guerreiros à batalha contra uma tribo da selva. Situada na exaltada Xibalba local de todas as atrocidades humanas, a cena está impregnada da desesperada energia de homens que sabem que, se forem derrotados ou capturados, um destino pior do que a morte os aguarda. Nessa pintura vivamente colorida, vemos imagens de brutalidade executadas com cuidadosa atenção aos detalhes: cabeças e mãos decepadas, sangue esguichando e as expressões transtornadas de guerreiros surpreendidos em um exasperante frenesi de batalha, com os brancos dos olhos faiscando ferozmente contra o castanho-escuro dos seus rostos. O rei Chaan Muan investe para a frente, agarrando um chefe inimigo pelo cabelo – o gesto ritual maia de captura formal, reconhecido tanto pelo vencedor como pela vítima. O chefe inimigo já foi despojado de seus ornamentos e vestido com uma saia de tiras de papel ou pano, para indicar a sua condição de prisioneiro de guerra, bem como a mutilação e o sacrifício que serão a sua sorte. Chaan Muan usa uma blusa sem mangas, de pele de jaguar, um gigantesco adorno de cabeça com uma máscara de jaguar, braceletes e gargantilhas de jade. Um de seus capitães acha-se a seu lado, usando um adorno de cabeça com um filhote de jaguar rosnando e uma cabeça recém-decepada em torno do pescoço. A batalha desenrola-se tumultuadamente em torno dessas figuras centrais, enquanto os senhores de Bonampak, com trajes extravagantes, abrem caminho em meio às fileiras inimigas. Um guerreiro vestido como um crocodilo brande a lança enquanto salta para a refrega, do lado direito. Abaixo da 18 cena de captura, um ahau, usando uma máscara de Monstro Cósmico-cabeça de veado, golpeia, com a lança, um adversário na testa. A boca da vítima escancara-se em um arquejo de dor e incredulidade.Sabemos muitíssimo bem o que aconteceu com os guerreiros aprisionados nessa cena por suas imagens de dor no mural do “Juízo”, em Bonampak. Seus dedos foram torcidos até se desarticularem e as unhas foram arrancadas. Eles foram espancados e cortados com afiadas facas de sílex ou obsidiana. Por fim, foram sacrificados. Eles não estavam sozinhos. As fachadas das construções cercadas, no pátio do jogo de bola, em Toniná, são decoradas com prisioneiros de guerra amarrados e torturados, e são muitas as cerâmicas funerárias que retratam os destinos a se tornar findados. Em toda área maia, estelas e painéis esculpidos apresentam cenas desta mesma natureza. Em Dos Pilas, na Guatemala, vemos a imagem do chamado Soberano Três, vestido com seu suntuoso traje de guerra de Tlaloc (Vênus), de pé sobre uma plataforma e sustentando o peso tanto do Soberano Três como da plataforma, um prisioneiro de guerra faz uma careta, sob a tensão da carga. Em Piedras Negras, também na Guatemala, um ahau desconhecido senta-se em um estrado, bem acima de dois criados em pé. O imponente adorno de cabeça, em forma de pássaro quetzal, forma um arco acima de sua cabeça. Com uma das mãos ele segura a lança de batalha e, com a outra, aperta o joelho. Está sentado com uma das pernas dobrada sobre o estrado e a outra balançando sobre a lateral, em uma postura descontraída. Como ornamento, ele usa sobre o peito um corpo humano reduzido. A seus pés, oito prisioneiros estão firmemente amarrados juntos. Todos mostram sinais de haverem sido torturados. Um prisioneiro bem vestido agacha-se na base da plataforma, exatamente abaixo do senhor, com o pescoço esticado para trás, a fim de fitar nos olhos o seu algoz. Em contraste com o desespero e a dor dos prisioneiros, o soberano e seus criados parecem destituídos de emoção. Pela postura no estrado e o rosto impassível enquanto contempla os seus troféus de guerra, o próprio soberano demonstra displicente indiferença para com a difícil situação de suas vítimas. Após a tortura e o sacrifício, as cabeças das vítimas eram frequentemente espetadas em tzompantlis ou “armações de crânios”, onde se juntavam aos crânios putrefatos de vítimas anteriores. Enquanto o nome de cada um dos findados era registrado e comemorado, a colocação da cabeça na armação de crânios, ao lado de tantos outros, sublinhava a natureza impessoal da humilhação, sofrimento e crueldade que a tortura de prisioneiros e o sacrifício humano encarnavam. As almas mais amadurecidas dentre os torturados – aqueles que se haviam fortalecido mediante anos de sangria, privação e visões extáticas, e que também haviam aceitado e praticado as próprias crueldades em outros – suportavam os tormentos, acreditando que o seu sacrifício era o necessário reverso da fortuna que todo ser humano tinha, cedo ou tarde, de sofrer. Mediante o atordoamento da dor, os prisioneiros torturados buscavam o transformador golpe do machado e o fogo no sangue que os libertaria para a eternidade. 19 A dignidade e transcendência que os maias buscavam no sofrimento – e na tortura – manifestam-se no rosto de muitos dos prisioneiros retratados em painéis e estelas esculpidos, murais e cerâmicas pintados e em estatuetas. Uma estatueta em especial é extraordinariamente vigorosa. Recuperada em Jaina, a antiga ilha- cemitério maia, ao largo do litoral oeste de Campeche, no Yucatán, os estudiosos acreditam que essa estatueta seja a imagem de um homem verdadeiro. Os traços de seu rosto são tratados com sensibilidade, e a barriga avantajada, com um umbigo realista, foi executada com uma naturalidade que só poderia advir de uma experiência de observação pessoal do homem. O artista apresentou- o completamente despido, com os braços amarrados às costas, à altura dos cotovelos, mas orgulhosamente de pé. O contorno recuado do couro cabeludo, as bochechas macilentas, o cavanhaque e a barriga revelam que ele alcançou a meia-idade avançada. O que impressiona nele é o seu porte. Ele foi espancado até ficar ensanguentado. O nariz está inchado onde os captores o quebraram. Ele faz uma ligeira careta e seus lábios entreabrem-se, no que parece ser um esforço para evitar o nariz ferido e respirar pela boca. As sobrancelhas estão ligeiramente franzidas e há bolsas de exaustão sob os olhos. No entanto, no momento de humilhação total, ele encara o artista que o está esboçando. Ele irradia vigor. Pode até estar conversando com o artista enquanto aguarda, provavelmente com um grupo de outros prisioneiros, a etapa seguinte e mais dolorosa de sua provação. Privado da família, dos amigos e de sua amada cidade natal, ele enfrenta uma morte solitária e terrível. Decaiu de uma elevada posição de riqueza e privilégio para a condição de um “findado”. O JOGO DE BOLA E O SACRIFÍCIO HUMANO O jogo de bola era tão fundamental na determinação não só da sorte do universo como, ainda mais importante, da sorte da alma individual, que os maias enterravam o equipamento e os troféus do jogo de bola com os mortos. Junto com o “Livro dos Mortos” em cerâmica funerária, praticamente as únicas outras coisas que os falecidos levavam consigo eram os tacos, as fibras de palmeira, e os protetores de joelhos e antebraços. Das ruínas úmidas e sombreadas pela floresta do pátio de jogo de bola de Coba, com seus muros cavernosos e cobertos de musgo, aos pátios nos cumes varridos pelo vento da região montanhosa da Guatemala e à imperial arena cheia de luz de Chichén-Itzá, todos os pátios de jogo de bola maias seguiam o mesmo modelo básico. Embora houvesse variações locais em detalhes arquitetônicos, todos os pátios de jogo de bola maia refletiam as estruturas do universo e do corpo humano. Os pátios de jogo de bola eram, em geral, construídos ao longo de um eixo Norte-Sul, que conduzia ao Mundo Superior e ao Mundo Inferior. As paredes dos pátios continham marcadores esculpidos em série de ambos os lados – em Copán, cabeças de arara; em Toniná, prisioneiros amarrados; e no Yucatán setentrional, aros entalhados em forma de serpentes emplumadas enroscadas. Os pesquisadores ainda não compreenderam inteiramente o 20 simbolismo intricado da arquitetura dos pátios de jogo de bola nem o significado espiritual dos marcadores nas paredes. Além das cangas, fibras de palmeira e protetores, o equipamento do jogo de bola incluía máscaras e trajes rebuscados, com que os jogadores assumiam a identidade dos deuses e demônios mais importantes. Nesses temíveis jogos – na maioria, se não todos, fraudados, os algozes-atletas reis em geral usavam os trajes dos Senhores da Vida e vestiam os adversários condenados com os ornamentos dos demônios do Mundo Inferior ou de Itzam-Yeh. Com frequência, junto com os trajes de demônios, os jogadores adversários usavam tiras de tecido para indicar sua condição de vítimas do sacrifício. Os vencedores, com frequência, pintavam o corpo, exceto o rosto, com tinta preta, para indicar que eles, haviam integrado as características dos Senhores da Morte. Em um painel esculpido, proveniente de uma cidade desconhecida, possivelmente Kalak’mul, na área de Peten do que hoje é a Guatemala moderna, vemos o rei vitorioso vestido como Primeiro Jaguar, com adornos de guerra de Tlaloc. Ele usa um turbante-balão de pele de jaguar, um pingente com crânio, joelheiras com o rosto de Tlaloc e um protetor no antebraço direito com garras de jaguar incrustadas. Ele lança a bola em direção ao seu prisioneiro que, exausto, cai ao chão. O que em breve será findado está usando um adorno de cabeça de Itzam-Yeh e tiras de tecido com buracos, para indicar que seu fim está se aproximando depressa. Os painéis esculpidos do grande pátio de jogo de bola de Chichen-Itzá apresentam essa mesma luta entre Primeiro Jaguar e Itzam-Yeh. Os jogadores vestidos como Itzam-Yeh estão fadados a morrer. Uma sequência menos óbvia de vencedor e perdedor, no jogo cósmico entre os Deuses Gêmeose os demônios de Xibalba, aparece em uma série de três painéis esculpidos, proveniente de um sítio desconhecido. Ali vemos jogadores vestidos como Primeiro Senhor e Primeiro Jaguar em suntuosos atavios – imponentes punhos e gargantilhas de jade, peles de jaguar e reluzentes adornos de cabeça com penas de quetzal, enfrentando um adversário, trajado como o Deus L/Itzam- na. O jogador que representa Primeiro Jaguar ajoelha-se, a fim de aparar a bola nos quadris e arremessá-la violentamente em direção ao “rei-demônio”, que espera para recebê-la no seu taco. O personificador do Deus L é uma figura volumosa, com um adorno de cabeça com um pássaro. O resultado desse jogo, pelo menos, parece ser incerto, embora também fosse seguramente preestabelecido. Além dos jogos humanos, também subsistiram representações, do período clássico, dos jogos de bola divinos entre Primeiro Senhor e Primeiro Jaguar e os habitantes de Xibalba. No marcador do pátio de jogo de bola da cidade em ruínas de La Esperanza, vemos um ávido Demônio Zero ajoelhando-se sobre uma joelheira ricamente ornamentada, para fazer uma jogada com os quadris, com a cabeça de Primeiro Senhor como bola. 21 Lamentavelmente, não sabemos de fato como o pitz (jogo de bola) era jogado. Muitos dos ensinamentos específicos da tecnologia da ressurreição, codificados em seu complexo simbolismo, estão perdidos para sempre. Entretanto, pelos indícios fragmentários que ainda existem, os pesquisadores conseguiram reunir as linhas gerais do antigo jogo. Sabemos que a bola tinha de 30 a 45 cm de diâmetro, e era com frequência – se não sempre – formada em torno do crânio de uma vítima sacrificada. Era feita de chicle proveniente dos seringais do litoral de Veracruz e pesava cerca de 3,5 kg. Também sabemos que os xamãs, às vezes mulheres, realizavam as cerimônias iniciais. O jogo principiava de uma das seguintes maneiras: uma rainha, um anão ou o capitão de uma das equipes arremessava a bola na direção dos jogadores adversários; ou a bola, suspensa de um andaime que simbolizava os caibros do telhado da casa dos Deuses Gêmeos, era derrubada e colocada em jogo entre os capitães adversários. Semelhante ao arremesso da bola ao alto no basquetebol moderno, esses capitães deviam, então, disputar a posse. Refletindo os mitos de descida de Primeiro Pai e dos Deuses Gêmeos, as equipes terrenas eram constituídas de um único jogador cada uma, ou de dois jogadores de cada lado. Pelo exame da iconografia maia e comparação de formas posteriores de jogo de bola, sobretudo tal como era disputado pelos astecas, os pesquisadores supõem que não se permitia aos ah pitzlawalob (jogador de bola) maias usar as mãos. Somente os ombros, antebraços, quadris e joelhos podiam entrar em contato com a bola. Sempre que possível, os jogadores tentavam acertar a bola nos marcadores fixados nas paredes das construções do recinto. Mas não fazemos ideia de como os maias contavam os pontos. Alguns jogos não eram jogos de forma alguma. Em Yaxchilán e em outros locais, a “bola” é representada como um prisioneiro, firmemente amarrado em posição esférica. A vítima é apresentada despencando por um lance de escada para ser golpeada pelo rei, que está aguardando embaixo para arremessar a bola humana com o quadril ou o ombro. Nessas cenas, vemos os falsos pátios de jogo de bola da Escada de Três Conquistas e Lugar das Seis Escadas em ação. Alguns estudiosos supõem que, às vezes, atirar um prisioneiro amarrado pela escada do sacrifício abaixo tornava o lugar do sacrifício da decapitação, como lance final do jogo. Pelas máscaras e trajes que os jogadores usavam e pelo que sabemos acerca da tortura de prisioneiros, com a ingestão coagida de drogas alucinógenas, os pesquisadores supõem que muitos dos jogos – se não todos – eram disputados em um estado alterado de consciência. Assim que o portal do hom (abismo do Mundo Inferior) se houvesse aberto, os maias podiam sentir o pátio de jogo de bola terreno como o Pátio Cósmico. Parte de uma tradição ameríndia quase universal, que se estendia do que é hoje o sudoeste dos Estados Unidos ao centro da América do Sul, os xamãs e videntes de diferentes povos indígenas imaginaram uma diversidade de significados para o jogo. O próprio jogo de bola maia expressava pelo menos três níveis de significado. O mais antigo deles era agrícola-astronômico. Originando-se desse nível mais básico de simbolismo, dois grandes jogos eram disputados todo ano. Eles eram calculados para refletir as complexas relações entre as posições das estrelas, dos planetas e do Sol, as estações seca e chuvosa, assim como os ciclos de desenvolvimento das colheitas, sobretudo do milho. O primeiro jogo ocorria no equinócio da primavera, durante a estação seca, quando os agricultores maias plantavam os milharais. O segundo jogo era disputado no equinócio do outono no início da estação chuvosa, quando o milho estava amadurecendo pouco antes da colheita. Além desse sistema de símbolos baseado na natureza, a segunda camada de significados que os maias discerniam era política. Os reis maias converteram a ênfase agrícola-astronômica em uma triunfante celebração de seu poder sobre os ahauob (reis- xamãs) inimigos das cidades vizinhas. 22 Entretanto, os xamãs do período clássico, mesmo os reis-xamãs com seus planos políticos, viam um terceiro significado nessa mais sagrada de todas as encenações rituais, um significado bem mais absorvente do que os outros. Para aqueles que tinham olhos para enxergar, o significado mais profundo do pitz era a sua concretização do Juízo Final e o esperado triunfo da alma individual em sua busca pela imortalidade. Ao fraudar os jogos, de modo que suas vitórias estivessem garantidas, os reis-xamãs e senhores menos importantes esperavam obter a experiência de que necessitariam a fim de vencer o jogo final além-túmulo. No período clássico, as vítimas maias eram quase sempre senhores nobres e guerreiros de fora das cidades vitoriosas. Às vezes, como no caso do desventurado Dezoito Coelhos, eram reis-xamãs inimigos. Como vemos representado em um vaso de cerâmica da área de Peten, no Yucatán, as crianças eram também, ocasionalmente, sacrificadas. No final da época pós-clássica, os maias haviam começado a sacrificar igualmente as mulheres. A forma mais comum e mais importante que o sacrifício humano assumia no período clássico era a decapitação, mas a remoção dos maxilares e o evisceramento eram também praticados. No final do período clássico e no período pós- clássico, outras formas de sacrifício tornaram-se importantes. O sacrifício do coração é um deles. O exemplo mais intenso desse tipo é o da Estela 11, de Piedras Negras, Guatemala, o qual mostra a etapa final do ritual de elevação do chamado Soberano Quatro. Os hieróglifos que a acompanham informam-nos que esse acontecimento ocorreu em 13 de novembro de 729. Ali vemos o rei sentado no nicho cósmico da plataforma. O rei usa um imponente adorno de cabeça com penas de quetzal, que cintilam como os raios do sol e emolduram uma máscara que representa Primeiro Senhor/Chac-Xib-Chac. O Soberano Quatro senta-se de pernas cruzadas, com as mãos sobre as pernas, proclamando-se o ressuscitado Primeiro Pai/Primeiro Senhor, a nova Principal Divindade-Pássaro, feiticeiro cósmico e o governante do universo. Uma vítima sacrificada jaz na base do tablado, sobre uma tigela de oferendas cheia de tiras de papel. A tigela simboliza o universo. O “findado” foi submetido pouco antes ao sacrifício do coração. Um pequeno fardo enrolado com plumas de quetzal, representando um pé de milho germinando, foi colocado na cavidade ensanguentada do peito. Esse pé de milho com plumas de quetzal é uma versão em miniatura da Árvore do Mundo em seu aspecto de Pé de Milho Cósmico. Sua colocação na cavidade no peito da vítima significa que o desventurado homem deu a sua essência vital – o centro do seu Ser – paradar origem à Árvore da Vida e ressuscitar o universo. Sabemos, pela própria iconografia, que os ahauob (Senhores) maias experimentavam exatamente essa relação de geminação com seus prisioneiros. Sacrificavam reis inimigos e nobres tornavam-se os “irmãos” dos senhores vitoriosos e, por extensão, de todos os cidadãos das cidades vencedoras. Havendo dado a vida para aumentar o fluxo de ch’ulel (essência vital) nos reinos vitoriosos, os findados ficavam eternamente ligados como protetores divinos àqueles que os haviam enviado ao Mundo Superior. Os antigos xamãs afirmavam que somente aqueles que conseguem aceitar o êxtase sombrio e brilhante das próprias mortes conseguem viver vidas terrenas plenas. 23 A RESSURREIÇÃO Os maias acreditavam que realmente há existência contínua além-túmulo. Em sua cerâmica funerária, os maias retrataram o momento miraculoso – cósmico e individual – em que, contra todas as probabilidades, o sak-nik-nal (alma humana) como Primeiro Pai/Milho irrompeu da Região da Morte e ascendeu à glória no infinito Outro Mundo. Vemos essa ressurreição assombrosa em uma cena em um prato de oferendas do período clássico. A imagem nesse prato é lembrar à alma morta o renascimento que poderia conquistar para si mesma se derrotasse os Senhores de Xibalba. Nesse prato de oferendas, vemos Primeiro Pai comprimindo-se para cima pela rachadura no Casco da Tartaruga Cósmica. Ele já está livre da cintura para cima, quando acena uma saudação para Primeiro Senhor. O casco da tartaruga está lenta e dolorosamente abrindo-se. A face da Tartaruga está contorcida enquanto ela dá à luz o deus transfigurado. No lado direito do casco da Tartaruga, vemos Primeiro Jaguar com um grande jarro nas mãos, derramando itz (substância sagrada) na rachadura que se alarga. À esquerda, vemos Primeiro Senhor recitando um encantamento mágico para acelerar a passagem do Primeiro Pai da morte eterna para a vida eterna. O Casco da Tartaruga Cósmica, simbolicamente, é o corpo físico que fulminado pelo raio da morte, racha-se em decomposição e libera a alma. O Popol Vuh nada diz acerca do paraíso do Mundo Superior-Outro Mundo. Entretanto, pelos dados que subsistiram do período clássico, parece indiscutível que o mais importante dos locais do Mundo Superior-Outro Mundo, para onde as almas deificadas viajavam após a morte, era Metawil, a morada de Primeiro Pai, Primeira Mãe e de seus três filhos. Referência bibliográfica: GILLETTE, Douglas. O SEGREDO DO XAMÃ. Os ensinamentos perdidos dos antigos maias. Editora Rocco. Rio de Janeiro, 2001.