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Autores: Profa. Ivy Judensnaider Prof. Maurício Felippe Manzalli Colaboradores: Prof. Vinícius Albuquerque Prof. Franklin de Oliveira Lacerda História da Globalização Sumário História da Globalização APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 ORIGENS HISTÓRICAS, CAPITALISMO MERCANTIL E AS CRÍTICAS LIBERAIS .............................9 1.1 A Inglaterra e a primeira Revolução Industrial ........................................................................ 17 1.2 O apogeu: a segunda Revolução Industrial ............................................................................... 25 1.3 A crise ........................................................................................................................................................ 34 1.4 A Primeira Guerra Mundial .............................................................................................................. 41 2 A CRISE DE 1929 ............................................................................................................................................. 46 2.1 A gênese da crise .................................................................................................................................. 46 2.2 O New Deal ............................................................................................................................................. 52 3 A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL ............................................................................................................... 55 4 TEORIAS EXPLICATIVAS DA ECONOMIA E DO COMÉRCIO MUNDIAL ......................................... 61 4.1 Teoria “Pura” do Comércio Internacional ................................................................................... 61 4.1.1 O mercantilismo ...................................................................................................................................... 62 4.1.2 Visão de David Hume acerca do comércio internacional ....................................................... 63 4.2 Relações internacionais na visão da Teoria Clássica .............................................................. 65 4.2.1 Adam Smith e suas vantagens absolutas ..................................................................................... 65 4.2.2 David Ricardo e suas vantagens comparativas .......................................................................... 67 4.3 Comércio internacional na visão neoclássica: o Modelo Heckscher-Ohlin .................. 69 4.4 Relações internacionais na perspectiva marxista ................................................................... 70 4.4.1 Abordagem de Karl Marx ..................................................................................................................... 71 4.4.2 Abordagem de Paul Marlor Sweezy ................................................................................................ 72 4.4.3 Visão de imperialismo por Rosa Luxemburg ................................................................................ 73 Unidade II 5 REORDENAMENTO MONETÁRIO-FINANCEIRO MUNDIAL .............................................................. 81 5.1 A Conferência de Bretton Woods e suas instituições ........................................................... 81 5.2 Os Anos Dourados do Capitalismo ................................................................................................ 84 5.3 A Guerra Fria .......................................................................................................................................... 88 5.4 O fim do Acordo de Bretton Woods e o processo inflacionário ........................................ 92 5.5 A crise do petróleo e os efeitos na economia mundial ........................................................ 97 6 DO KEYNESIANISMO AO NEOLIBERALISMO .......................................................................................102 6.1 Mises e Hayek ......................................................................................................................................109 6.1.1 Mises e sua praxeologia .....................................................................................................................109 6.1.2 Hayek e o neoliberalismo econômico ............................................................................................111 6.2 Neoliberalismo, neossocialismo ou social democracia .......................................................114 6.3 Mudanças no cenário mundial: desafios para superar a crise .........................................120 6.4 Consenso de Washington ...............................................................................................................124 7 GLOBALIZAÇÃO E MUNDIALIZAÇÃO .....................................................................................................127 7.1 Diferentes conceitos de globalização.........................................................................................128 7.1.1 A perspectiva histórica ...................................................................................................................... 130 7.1.2 A perspectiva da compressão do espaço e do tempo ............................................................131 7.1.3 A perspectiva da ideologia ................................................................................................................131 7.1.4 A perspectiva econômica .................................................................................................................. 132 7.2 Ajustamento macroeconômico nos países centrais como fundamentação ao processo de globalização econômica ..........................................................................................134 7.3 Globalização e seu paradigma produtivo .................................................................................136 7.4 As dinâmicas da globalização .......................................................................................................141 7.4.1 Globalização comercial .......................................................................................................................141 7.4.2 Globalização produtiva ...................................................................................................................... 144 7.4.3 Globalização financeira ..................................................................................................................... 146 7.4.4 Globalização tecnológica .................................................................................................................. 147 7.5 Dos obstáculos à globalização ......................................................................................................149 7.6 Das reações à globalização .............................................................................................................152 8 CRISE ECONÔMICA DE 2008 E AS RELAÇÕES ECONÔMICAS DO INÍCIO DO SÉCULO XXI ....................................................................................................................................155 8.1 O caráter cíclico do capitalismo ...................................................................................................155 8.2 Schumpeter e as contradições do capitalismo ......................................................................156 8.3 Crise de 2008 .......................................................................................................................................160 9 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Unidade I 1 ORIGENS HISTÓRICAS, CAPITALISMO MERCANTIL E AS CRÍTICAS LIBERAIS Para quese possa perceber a forma com que o capitalismo se desenvolve, é importante lembrar que as cidades e os comerciantes travaram uma intensa luta política contra a autoridade feudal para que suas atividades ficassem livres das amarras e do excesso de regulamentação. Neste aspecto, não se deve deixar de lado as transformações provocadas pela perda de poder político da Igreja Católica e o surgimento de uma nova classe social, a dos camponeses expulsos de suas terras e que, dali para frente, estavam dispostos a vender sua força de trabalho em troca de salário. O que ainda é importante para que possamos entender o cenário de desenvolvimento industrial que teve início na Inglaterra e, posteriormente, disseminou-se pelo restante da Europa? Basicamente, são dois os aspectos que tornam possível a compreensão dos primórdios da história do capitalismo: o primeiro diz respeito à acumulação de capital necessária para os investimentos na indústria; o segundo está relacionado à existência de uma classe social que chamará para si a tarefa de empreender, criar, construir e conquistar. Sabemos que uma das primeiras fontes de acumulação do capital foi a venda ou o arrendamento de terra, mas nem tal negócio, tampouco o comércio em si – que ainda era local e se resumia à troca de artigos artesanais ao lado de produtos agrícolas – podem explicar a transformação pela qual a economia feudal passaria. Investiguemos, então, como ocorreu a acumulação de capital que seria, posteriormente, investido nas indústrias nascentes. Aos poucos, os comerciantes romperam seus laços com o antigo sistema e com a produção agrícola, passando a depender, e cada vez mais, da renda do comércio para sobreviver: surgiam gradualmente oportunidades de ganho que iam além da mera economia de subsistência e que tinham por objetivo um mercado amplo e crescente. É evidente que a fonte de acumulação de capital tem de ser buscada não dentro, mas fora desse pequeno modo de produção que os artesanatos urbanos entronizavam: nos desenvolvimentos que logo viriam perturbar a simplicidade primitiva dessas comunidades urbanas. Esses desenvolvimentos tomaram a forma do surgimento de uma classe privilegiada de burgueses que, separando-se da produção, começaram a se empenhar exclusivamente no comércio atacadista (DOBB, 1986, p. 63). Se a renda da aristocracia feudal provinha do excedente de trabalho servil (que, embora não apresentasse taxas significativas de crescimento em função da baixa produtividade e da falta de incremento tecnológico, era capaz de satisfazer as necessidades imediatas dos senhores feudais), a nova riqueza da burguesia emergente teve como origem as atividades relacionadas às trocas comerciais. 10 Unidade I Lembrete A burguesia, ou a classe média, se formou a partir das populações urbanas e era composta basicamente por comerciantes, empresários e industriais. Para além da melhoria na qualidade de vida da burguesia, que passou a ter acesso a matérias-primas e produtos de alto padrão, são dois os pontos que, segundo Dobb (1986), explicam os ganhos que o comércio representava para a burguesia: Em primeiro lugar, boa parte do comércio naqueles tempos, sobretudo o exterior, consistia na exploração de alguma vantagem política ou pilhagem quase declarada. Em segundo lugar, a classe de mercadores, assim que assumiu alguma forma de corporação, adquiriu prontamente poderes de monopólio que protegiam suas fileiras da concorrência e serviam para transformar as relações de troca em sua própria vantagem, em seus negócios com produtos e consumidor (DOBB, 1986, p. 65). Tratava-se do início do processo de obtenção de lucro por meio da exploração comercial e da alienação, sobre as quais Marx iria se debruçar. Marx também nos dá outra explicação para o enriquecimento da burguesia: o aumento da oferta de metais preciosos no século XVI. O aumento da disponibilidade de moeda foi fundamental para o desenvolvimento do modo de produção capitalista, porque estava relacionado a “uma quantidade de dinheiro suficiente para a circulação e a formação correspondente de um entesouramento” (DOBB, 1986, p. 131). Essa moeda foi utilizada não apenas para investir em novos negócios, mas também para a aquisição de terras e propriedades dos antigos senhores feudais, falidos e endividados. Aos poucos, o mercado cresceu, ampliando as possibilidades de negócios. Não cresceu por meio do consumo interno, já que a classe ascendente contribuía pouco para o consumo interno do país, em função de um padrão de vida limitado e de gastos parcimoniosos. De fato, a indústria – em especial a inglesa – dependeu basicamente dos mercados de exportação. Ainda, em vez de contribuir com seu poder de consumo para o desenvolvimento da economia, a classe burguesa envolveu-se em transações bancárias, comprando títulos da dívida pública da Coroa e do Estado. Além de essa estratégia trazer vantagens políticas, também promoveu a acumulação e a concentração de capital nas mãos de poucos. Finalmente, “a suposição de que a abundância de dinheiro deve ser desejada por si mesma, e não porque pode permitir a promoção de relações de comércio mais lucrativas, cada vez mais sai de cena” (DOBB, 1986, p. 152). Essa nova forma de riqueza, portanto, esteve desde o início associada à obtenção e à venda de ações e ao comércio exterior. O capital obtido por meio da especulação e do mercado externo foi redirecionado ao desenvolvimento interno das manufaturas do país: no momento em que a indústria nacional passou a representar maiores possibilidades de lucro, inverteu-se o foco de interesse da burguesia, que passou 11 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO a defender uma “política protecionista” da indústria nascente. O objetivo era excluir a concorrência das indústrias estrangeiras em solo nacional e criar mais empregos com a renda advinda da exportação de bens. Esse, aliás, seria um dos argumentos a favor de uma balança comercial favorável. A ênfase conferida às virtudes do aumento da exportação esperava pelo aparecimento de um poderoso interesse manufatureiro, distinto do comercial, pois era benéfico para o fabricante que o mercado para seu produto se mostrasse tão amplo quanto possível, como também redundava em sua vantagem que a importação dos artigos competitivos fosse reduzida. É verdade que ele tinha ainda interesse em incentivar a barateza de suas matérias-primas e da subsistência dos trabalhadores: fato que vimos a doutrina mercantilista levar inteiramente em conta ao reservar sua recomendação de exportação às manufaturas e restringir sua condenação às importações do que não fosse matéria-prima ou mercadorias acabadas, destinadas ao consumo de luxo (DOBB, 1986, p. 151). Exportações Importações Figura 1 – Balança comercial favorável Para Hobson (1985), duas doutrinas econômicas (e extremamente míopes, em sua opinião) ganharam robustez naquele instante. A primeira estava relacionada ao fato de que “o comércio importador devia restringir-se a mercadorias que não eram nem podiam ser vantajosamente produzidas no país” (HOBSON, 1985, p. 31). A segunda dizia respeito à necessidade de uma balança favorável (mais exportações, comparativamente às importações) em cada caso. No caso da Inglaterra, o saldo deveria ser positivo nas relações comerciais com cada país com o qual ela negociava. Em função disso, [...] a Inglaterra cortou deliberadamente todo o comércio com a França durante o período de 1702 a 1763, aplicando um sistema de tarifas proibitivas, estimulado por duplo temor: o de que o balanço ficasse desfavorável para o pais e o de que os produtos têxteis franceses pudessem, com sucesso, concorrer com as mercadorias inglesas no mercado interno inglês. Por outro lado, desenvolvia o comércio com Portugal sob o argumento de que com 12 Unidade I esse país obtinha um balanço mais favorável do que com qualquer outro (HOBSON, 1985, p. 31). Se a riqueza significava estocar metais, o Estado chamava para si a tarefa de estimular as exportações,inibir as importações, descobrir novas fontes de metais e tornar proibitiva a saída de ouro e prata do país. Observação O mercantilismo é o conjunto de estratégias conduzidas pelo Estado para promover a indústria e estimular o estoque de moedas. Para o Estado, o metalismo – quer dizer, “a ideia generalizada de que um país seria tão mais próspero e poderoso, na razão direta da quantidade de metais preciosos que ele possuísse” (REZENDE, 2007, p. 122) – significava (e de forma totalmente errônea) que os negócios seriam estimulados por força da baixa de juros permitida pela abundância de moeda. Se a estocagem de metais não fosse possibilitada pela extração das minas, deveria ser obtida por meio de uma balança comercial favorável. A ideia básica mercantilista era que o volume das exportações superasse sempre o das importações, que deveria ser o mais reduzido possível; ou seja, deveria exportar o máximo e importar o mínimo necessário. E, para que tal acontecesse, o caminho mais fácil era a aplicação de uma política protecionista (REZENDE, 2007, p. 123). Foi essa política de ação do Estado que contribuiu para a acumulação primitiva do capital sob a forma de propriedades e títulos que seriam, no momento apropriado, investidos na produção. É claro que a transferência de riqueza aos burgueses não teria bastado para impulsionar o desenvolvimento do capitalismo; ela precisava estar – e efetivamente esteve – aliada ao desapossamento dos proprietários anteriores, gerando uma classe de destituídos e pobres que, depois, constituiria a classe proletária. A burguesia ascendeu em detrimento da pauperização dos pequenos proprietários, que perdiam seu patrimônio a preços em queda e presenciavam sua valorização, em seguida, nas mãos pouco numerosas dos seus detentores. Sem esse processo, torna-se claro que uma oferta abundante e barata de mão de obra não poderia estar à disposição, a menos que houvesse um regresso a algo bem parecido com o trabalho servil. A força de trabalho não teria sido “ela própria convertida em sua mercadoria” em escala suficientemente ampla, e estaria faltando a condição essencial para o aparecimento da mais-valia industrial como uma categoria econômica ‘natural’ (DOBB, 1986, p. 132). É importante termos em mente que a emergência do capitalismo mercantil se valeu da reformulação de estruturas feudais de dominação em estruturas capitalistas de dominação. Como nos lembra Dobb (1986), a existência de uma classe privilegiada se manteve: os privilégios, antes exclusivos da sociedade feudal, foram conquistados pela nova burguesia mercantil por meio de acordos econômicos, sociais e políticos. Dos novos comerciantes, Dobb revela: 13 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Preocupavam-se tanto com as condições de comércio (das quais dependia sua margem de lucro) quanto com seu volume, sendo-lhes indiferente se negociavam com escravos ou marfim, lã ou tecidos de lã, estanho ou ouro, desde que fosse lucrativo. Adquirir privilégio político era sua primeira ambição. A segunda era que o menor número possível de pessoas dele desfrutassem. Como eram essencialmente parasitas da antiga ordem econômica, embora pudessem exauri-la e enfraquecê-la, seu sucesso, em última análise, estava ligado ao do corpo que os nutria (DOBB, 1986, p. 88). O capital mercantil nos séculos XIV e XV acumulou-se a partir dos juros cobrados pelos grandes comerciantes nos empréstimos feitos aos pequenos produtores e aos empobrecidos. As novas organizações de comerciantes ricos, que monopolizavam o comércio atacadista e se posicionavam contra a nobreza e a Igreja, cobravam taxas administrativas altíssimas e excluíam de suas fileiras os varejistas e os artesãos. A participação mínima dos trabalhadores na produção comercial para a qual contribuíam também colaborou para a acumulação de capital mercantil. Já no século XVI, a exploração do trabalho assalariado – ou seja, a maximização do uso da força de trabalho e a queda dos salários – passou a representar uma oportunidade cada vez maior de obtenção de lucro. O proletariado, cada vez mais desesperado por meios de sobrevivência, competia entre si, oferecendo sua força de trabalho por salários reduzidos. Faltava, ainda, que se desse o aprimoramento da técnica, fator essencial para o aumento da produtividade do trabalho e, portanto, da mais-valia industrial, o que ocorreu com as grandes invenções que revolucionaram a indústria como a máquina de fiar, tear mecânico, máquina a vapor, lançadeira volante, patentes para técnicas diversas de fundição, bombeamento de minas e obras hidráulicas. Para termos uma ideia da velocidade com que essas invenções foram incorporadas aos processos industriais, citamos alguns exemplos no caso da indústria têxtil inglesa: em 1730, surgiu a máquina fiadora de rolos; em 1738, a lançadeira volante; em 1748, a máquina de cardar; em 1764, a máquina jenny de fiar, e assim por diante. Figura 2 – A máquina a vapor inventada por James Watt (1736-1819) Para Hobson (1985), a introdução do maquinário permitiu, finalmente, o desenvolvimento da atividade industrial. 14 Unidade I O desenvolvimento da indústria mecanizada pode, portanto, ser medida pelo número e complexidade crescente dos processos relacionados entre si na unidade mecânica ou máquina e, também, pela redução correspondente da dependência do produto em relação à qualificação e força de vontade do ser humano, que cuida da máquina e coopera com ela (HOBSON, 1985, p. 56). Segundo Marx e Engels, [...] o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos (MARX; ENGELS, 1999, p. 9). A introdução da máquina alterou o processo de produção, provocando a divisão do trabalho. Smith (1996) mostrou como a divisão de trabalho gerava riqueza por meio do aumento da produtividade, usando o exemplo de uma fábrica de alfinetes: Um operário desenrola o arame, outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-se três ou quatro operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente, e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes também constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as quais, em algumas manufaturas, são executadas por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa duas ou três delas. [...] Se, porém, tivessem trabalhado independentemente um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado para esse ramo de atividade, certamente cada um deles não teria conseguido fabricar 20 alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1 (SMITH, 1996, p. 66). A divisão de trabalho ocorria até o limite da extensão do mercado. Mais: como cada um buscava seu próprio interesse e como o interesse de cada um tinha que levar em consideração o interesse do outro, o bem-estar de todos estava garantido. O que dava essa certeza para Smith era a sua crença na existência de um mecanismo natural de autorregulação na natureza que, espelhado no sistema econômico, o manteria em funcionamento e em crescimento (HEILBRONER; MILBERG, 2008). A divisão do trabalho e a introdução da máquina afetaram o espaço em que essa produção ocorria, tornando a fábrica o lugar apropriado para a produção, em vez das pequenas oficinas de manufatura. Ainda, no momento em que a técnica passou a ser empregada amplamente, os destituídos de terra transformaram-se em trabalhadores assalariados (DOBB, 1986). A adoção do maquinário utilizado nas fábricas e a caracterização e expansão do proletariado como classe trabalhadora, explorada e assalariada, apontavam para o distanciamento cada vez maior da atividade econômicaindustrial com relação à economia comercial e mercantil dos séculos XVII e XVIII. 15 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Nesse período, as velhas estruturas fabris continuaram a conviver com técnicas produtivas modernas. Em algumas regiões, o trabalho ainda ocorria em pequenas firmas que empregavam poucos trabalhadores, ou seja, em firmas nas quais o empregador não era o grande capitalista, mas o empreiteiro intermediário. A manutenção de resquícios desses padrões de indústria domiciliar, inclusive, explica a demora na consagração de um caráter homogêneo da classe trabalhadora, que seguia envolvida com o sistema dos ofícios e pequenas unidades produtoras. Portanto, o capitalismo ganhou seus contornos específicos no instante em que a máquina foi introduzida e a produtividade aumentou. Afinal, [...] ele não opera sua extração de excedente econômico, nem se apropriando do produtor – como na escravidão –, nem do trabalho do produtor – como na economia [...] senhorial. O capitalismo extrai excedente dentro do próprio processo de produção, de um produtor livre, através da diferença de valor, que esse produtor recebe pela venda da mercadoria força de trabalho, em relação às mercadorias que essa força de trabalho produz (REZENDE, 2007, p. 139). Ainda, esse excedente se somou ao que ocorria na esfera do consumo: o produtor, pelo seu trabalho, recebia dinheiro em vez de mercadorias. Quando ele adquiria mercadorias, “não o faz[ia] pelo valor que elas possuíam quando da sua produção, mas sim pelo que [teriam] após passarem pela esfera da distribuição e chegarem à do consumo, agregando sobrepreços” (REZENDE, 2007, p. 139). E, para que sempre houvesse mão de obra disposta a vender sua força de trabalho por salário, o capitalismo não realizava o pleno emprego, levando à formação do exército de reserva de mão de obra, “constituído por trabalhadores mantidos desempregados [...] para permitir a rotatividade da mão de obra, barateando os salários e dificultando a formação do proletariado em um bloco coeso” (REZENDE, 2007, p. 140). Na Europa, como também aconteceu na colônia americana, buscou-se restringir o acesso das pessoas à propriedade e às terras. Tornou-se claro para os que desejavam reproduzir as relações capitalistas de produção no novo país que a pedra fundamental de seus esforços devia ser a restrição da propriedade da terra a uma minoria e a exclusão da maioria quanto a qualquer participação na propriedade (DOBB, 1986, p. 160). Afinal, o fácil acesso a propriedades a partir de uma política de distribuição de terras tornava escassa a mão de obra. Na Inglaterra a mesma política foi executada, e as pequenas propriedades foram substituídas por maiores: os agricultores eram expulsos por meio do aumento de multas e taxas sobre os arrendamentos e, às vezes, até mesmo acabavam doando suas terras a outros camponeses por dificuldades de mantê-las frente à competição com outros proprietários que detinham mais técnica e capital. [...] dois tipos bem diversos de donos de mercadorias têm de se defrontar e entrar em contato: de um lado, os donos do dinheiro, meios de produção e de subsistência, desejosos de aumentar a soma de valores possuídos pela 16 Unidade I compra da força de trabalho de outras pessoas; de outro, os trabalhadores livres, vendendo sua própria força de trabalho. [...] Com essa polarização do mercado de bens, as condições fundamentais da produção capitalista passam a ter existência. O sistema capitalista pressupõe a separação completa dos trabalhadores de toda propriedade dos meios pelos quais podem realizar seu trabalho. [...] A chamada acumulação primitiva, portanto, nada mais é que o processo histórico de divorciar o produtor dos meios de produção. [...] A expropriação do produtor agrícola, ou camponês, assim afastado de qualquer propriedade do sono, é a base de todo o processo (MARX apud DOBB, 1986, p. 160). Aqui vale a pena uma observação: embora alguns historiadores afirmem ter sido o aumento da classe proletária nos primeiros momentos do capitalismo um resultado espontâneo do crescimento demográfico excepcional, é importante lembrar que a população total de países como França e Inglaterra declinava; era a classe social dos empobrecidos que inflava desproporcionalmente. Afinal, se o proletariado nos séculos XVI e XVII era pequeno e tinha mobilidade restrita e se, em grande medida, ele era composto por quem tinha algum tipo de ligação com a terra, em período posterior ele seria “tirado da terra e [...] [seriam] removidos os obstáculos à mobilidade da mão de obra da aldeia para a cidade. Só então a indústria capitalista pôde atingir maturidade completa” (MARX apud DOBB, 1986, p. 166). De fato, do século XVI ao XVIII, a lei inglesa empenhou-se em esmagar o trabalhador inglês e reduzi-lo ao mínimo, em eliminar toda expressão ou ato que indicasse qualquer descontentamento organizado, e em multiplicar as penalidades a serem aplicadas quando este pensasse em seus direitos naturais (MARX apud DOBB, 1986, p. 167). Quando não havia oferta para mão de obra suficiente, a Coroa permitia o emprego de trabalho compulsório. Mesmo em momentos de escassez de mão de obra, as leis determinavam o nível máximo dos salários, obrigavam os desempregados ao trabalho, encaminhavam os mendigos a casas de correção e até mesmo expulsavam pessoas do reino. Na Alemanha, a Guerra dos Trinta Anos congelou a economia por um tempo – o que, no fim, contribuiu para que os salários se estabilizassem. Observação A Guerra dos Trinta Anos envolveu a Alemanha e outros países europeus em uma série de conflitos causados por divergências políticas e religiosas. Na Inglaterra o cenário era outro: os salários reais, que haviam sofrido aumento até o século XV, se estagnaram – ainda que os preços dos produtos começassem a inflacionar, principalmente com a afluência de metais preciosos. Na França e na Inglaterra, eles se mantiveram por todo o século XVII abaixo do que haviam estado nos anos quinhentos. Para Dobb (1986), 17 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Com a nova e mais poderosa onda de cercamentos na parte final do século XVIII, desalojando o exército de aldeões das últimas magras terras que estes possuíam às margens das terras comunais, surgiu, entre a década de 1760 e o final das guerras napoleônicas, uma tendência para um declínio maior dos salários reais, tendência que coincidiu com uma nova época de expansão industrial (DOBB, 1986, p. 171). Nesse novo sistema, a sociedade se tornou compelida a buscar os seus próprios interesses e o lucro. A burguesia passou a ser responsável pelos investimentos, pelos empreendimentos e pela disseminação do sistema para todos os cantos do planeta. Segundo Marx e Engels (1999), [...] a burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais [...]. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, criar vínculos em toda parte. [...] Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama de civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança (MARX; ENGELS, 1999, p. 12-4). 1.1 A Inglaterra e a primeira Revolução Industrial Por que a Revolução Industrial ocorreu inicialmente na Inglaterra? Quais as condições ou circunstâncias que permitiram à Inglaterra obter a primazia no processo de desenvolvimento industrial? Aqui nos interessa descobriro que teria levado a Inglaterra a realizar, e melhor do que os outros países, a acumulação primitiva de capitais [...] que permitiu a introdução contínua de inovações técnicas e da forma fabril de produção. Esse pioneirismo da Inglaterra foi fundamental para que ela se mantivesse, durante todo o século XIX, como a nação líder de uma economia-mundo bastante ampliada, e não mais comercial, mas industrial e capitalista (REZENDE, 2007, p. 141). Em primeiro lugar, a Inglaterra havia enriquecido com o comércio e com a pirataria, sendo que a riqueza oriunda dessas atividades ficou nas mãos da burguesia comercial. Em função dos excedentes econômicos, a acumulação primitiva de capitais promovida entre os séculos XVI e XVIII sustentou e financiou o parque industrial nascente. A formação de poupança, essencial para os investimentos solicitados pela atividade fabril, foi estimulada. Esses novos valores, totalmente distintos daqueles que haviam vigorado durante o feudalismo, aderiram com perfeição a um novo tempo contaminado pelo empreendedorismo e pelo crescimento econômico. 18 Unidade I Em segundo lugar, deve ser considerado o contexto político da Inglaterra: a cisão entre Estado e Igreja acabou por servir aos interesses de uma reforma ética que pregava o lucro como objetivo, o trabalho como virtude (e não como uma punição) e a mobilidade social como prêmio para o esforço pessoal. O desenvolvimento científico também era notável e as sociedades destinadas ao culto e à transmissão do saber espalhavam-se por toda a Europa. Já distante da escolástica medieval, o contexto agora é o do Renascimento, que dissemina por toda a Europa os ventos do racionalismo cartesiano, da filosofia kantiana e de Spinoza, da dialética hegeliana, da pintura holandesa e da revolução científica de Newton. De fato, o humanismo e a busca de compreensão da natureza por meio da ciência vão dar a esse momento uma característica especial, e a Inglaterra saberá aproveitar essa oportunidade ao máximo. Embora durante muito tempo tenha prevalecido na História Econômica Geral certa “leitura” que manteve indústria e universidade em esferas distintas, algumas evidências apontam para a existência de uma estreita relação entre elas, em especial na Inglaterra, “local de um entusiasmo peculiar pela ciência e engenharia” (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 83). Lá surgiram, por exemplo, a Royal Society (presidida por Isaac Newton) e a Philosophical Society of Edinburgh, inaugurada em 1737 e que tinha, entre seus mantenedores e membros, vários grandes proprietários de terra. Afinal, “não menos importante foi o entusiasmo da aristocracia inglesa da terra pela agricultura científica: os donos de terra ingleses deixaram claro um interesse em questões como rotatividade das colheitas e fertilizantes” (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 83). Ainda, além do desenvolvimento na Ciência e Engenharia na Inglaterra, outros fatores podem explicar a origem da Revolução Industrial ali, alguns tão fortuitos [...] quanto os imensos recursos das minas de carvão e ferro existentes em solo inglês; outros tão propositais quanto o desenvolvimento de um sistema nacional de patentes que de forma deliberada estimulou e protegeu o próprio ato de inventar. Iniciada a revolução, ela se autoalimentou. As novas técnicas (em especial, na indústria têxtil) simplesmente acabaram com a concorrência do fabrico artesanal no mundo, aumentando assim de forma inimaginável os próprios mercados (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 83). Quanto ao papel das instituições bancárias naquele instante, temos duas possíveis interpretações: uma que privilegia o papel da atividade bancária comercial e outra que reconhece a importância das operações financeiras dos bancos, especialmente no tocante às operações de crédito para industriais e empresários. De qualquer forma, é importante notar que não havia ainda o conceito dos bancos como agentes para captação de poupança e recursos com o objetivo explícito de agenciar fundos para investimentos. Segundo Heilbroner e Milberg (2008), o capital era acumulado e as indústrias cresciam, mas isso ocorria porque os salários eram mantidos em patamares extremamente baixos e porque poupadores importantes (agricultores, donos de terra e fabricantes prósperos) contribuíram para que volumosas quantias de dinheiro fossem colocadas à disposição para investimentos. Parece evidente, a essa altura, que todas essas vantagens por si só não teriam sido suficientes para explicar o incrível desenvolvimento industrial na Inglaterra: “o que em última instância fez funcionar todos 19 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO esses fatores foi a energia de um grupo de Novos Homens que transformou as oportunidades latentes da história em um veículo de sua própria ascensão à fama e à fortuna” (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 83). John Wildinson (industrial do aço), James Watt (fabricante de máquinas a vapor), John Roebuck (magnata do ferro), Matthew Boulton (fabricante de botões), Richard Arkwright, John Kay, Samuel Need e Jedediah Strutt, todos envolvidos com a indústria têxtil: esses foram os ingleses talentosos e empreendedores (na maioria, de origem social bastante humilde) que souberam fazer uso das condições históricas excepcionais, inventando, investindo e fabricando riqueza e fortuna nas novas indústrias. Nem sempre preocupados com o bem-estar de seus empregados, eles desejavam a expansão e o crescimento. Os Novos Homens foram, em todos os momentos, empreendedores-organizadores. Trouxeram consigo uma nova energia, tanto inquieta quanto inesgotável. Num sentido econômico, e também político, merecem o epíteto de “revolucionários”, porque a mudança que introduziram foi nada menos que total, avassaladora e irreversível (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 86). Dessa lista de nomes, também podemos depreender o tripé que sustentou a industrialização inglesa: a indústria têxtil, a siderurgia e a mineração de carvão (REZENDE, 2007). A fabricação de tecidos de algodão (acelerada pela utilização da lançadeira volante e do tear mecânico) totalmente mecanizada permitiu o incremento da produção e a exportação do produto; a siderurgia possibilitou a construção de estradas de ferros; a mineração do carvão (combustível da máquina a vapor) acompanhou a expansão. A fome, as doenças e as deficiências tecnológicas não conseguiam mais frear a produção de mercadorias. Os valores ligados ao capitalismo industrial (do lucro e do progresso econômico focados no mercado) tiveram papel mais importante para o desenvolvimento industrial da época do que qualquer tipo de superioridade intelectual ou científica britânica. Faltava somente que o fabricante se visse motivado a investir no crescimento industrial e que a Inglaterra monopolizasse o mercado mundial. Os riscos dos investimentos do mercado do algodão valiam a pena, o que atraiu empresários dispostos a se envolverem com o desenvolvimento tecnológico necessário para a revolução industrial. Os subprodutos do algodão eram um ótimo investimento, na medida em que a maquinaria necessária para produzi-los era simples e barata e o lucro que dela se obtinha era crescente. A revolução industrial britânica não teria ocorrido sem a contribuição das condições fornecidas pela indústria do algodão, ou seja, sua familiaridade com o ambiente fabril (e a necessidade dele derivada de manutenção física das fábricas), o emprego de numerosa mão de obra e seu peso no montante total do comércio inglês: A indústria algodoeira foi assim lançada, como um planador, pelo empuxo do comércio colonial ao qual estava ligada; um comércio que prometia uma expansão não apenas grande, mas rápida e sobretudo imprevisível, que encorajou o empresário a adotar as técnicas revolucionárias necessárias para lhe fazer face. Entre 1750 e 1769, a exportação britânica de tecidos de algodão aumentou mais de dez vezes (HOBSBAWM, 2010, p. 68). 20 Unidade I Até mesmo a Índia deixou de representar um continente exportador e passou ao papel de compradordos produtos de algodão, já que perdia a corrida industrial. Pela primeira vez, invertia-se a relação de comércio existente há muito tempo entre Oriente e Ocidente. À Inglaterra coube o monopólio do mercado exportador, principalmente por meio dos acessos obtidos nas colônias que, por sua vez, passaram a depender das importações britânicas – ainda mais em períodos de guerra na Europa. Hobsbawm (2010) nos relata que, em 1814, a exportação inglesa era de quatro jardas de algodão para cada três jardas usadas internamente, enquanto em 1850 essa proporção subiu de treze para oito jardas. A paisagem inglesa se modificou profundamente. Centenas de fábricas se espalharam pelas cidades e essas cidades se transformaram [...] no centro produtor e consumidor de toda a economia, relegando o campo a uma posição economicamente secundária. [...] A [...] cidade de Manchester teve sua população de 17 mil habitantes em 1760 decuplicada para 180 mil em 1830. Por volta de 1850, várias cidades industriais inglesas possuíam cerca de 300 mil habitantes – Bradford, Liverpool, Leeds, Sheffield, Birmingham, Bristol –, e Londres concentrava 4 milhões de habitantes em 1880. Uma vez desencadeado, esse processo de urbanização que a fábrica provoca torna-se irreversível; a Inglaterra vê sua população rural, que representava 52% em 1851, baixar para 31% em 1881, e para apenas 22% em 1911 (REZENDE, 2007, p. 143). Figura 3 – A industrialização. Sheffield, Inglaterra, 1850 É claro que o desenvolvimento industrial na Inglaterra não necessariamente trouxe apenas modificações positivas. De fato, as degradadas e imundas cidades inglesas viam circular trabalhadores esfomeados que viviam em condições totalmente insalubres e conviviam com a fome resultante da explosão populacional e da escassez de terras aráveis e produtivas. 21 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Figura 4 – Moradias operárias em Londres, século XIX, em ilustração de Gustave Doré Aquele era um tempo de exploração humana – das crianças em particular – motivada pela crença do progresso daqueles que detinham os meios de produção. Saiba mais Sugerimos a leitura das obras de Charles Dickens. Entre seus livros, recomendamos: DICKENS, C. Tempos difíceis. São Paulo: Boitempo, 2013. ___. Oliver Twist. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Oliver Twist também foi transformado em filme: OLIVER Twist. Dir. Roman Polanski. Reino Unido: TriStar Pictures, 2005. 130 minutos. Huberman (1974) conta o que era considerado normal, no século XIX, em termos de duração de um dia de trabalho em uma fábrica inglesa: As crianças agora trabalhavam em fábricas, sob a direção de um supervisor cujo emprego dependia da produção que pudesse arrancar de seus pequenos corpos, com horários e condições estabelecidos pelo dono da fábrica, ansioso por lucros. Até mesmo um senhor de escravos das Índias Ocidentais poderia surpreender-se com o longo dia de trabalho das crianças. Um deles, falando a três industriais de Bradford, disse: “Sempre me considerei infeliz pelo fato de ser dono de escravos, mas nunca, nas Índias Ocidentais, pensamos ser 22 Unidade I possível haver ser humano tão cruel que exigisse de uma criança de 9 anos trabalhar 12 horas e meia por dia, e isso, como os senhores reconhecem, como hábito normal (HUBERMAN, 1974, p. 192). Heilbroner (1996) também narra a miséria e a exploração infantil. Conforme o autor, Em 1828, The Lion, uma revista radical para a época, publicou a incrível história de Robert Blincoe, uma das oito paupérrimas crianças que haviam sido enviadas para uma fábrica em Lowdham. Os meninos e as meninas – tinham todos cerca de dez anos – eram chicoteados dia e noite, não apenas pela menor falta, mas também para desestimular seu comportamento preguiçoso. E comparadas com as de uma fábrica em Litton, para onde Blincoe foi transferido a seguir, as condições de Lowdham eram quase humanas. Em Litton, as crianças disputavam com os porcos a lavagem que era jogada na lama para os bichos comerem; eram chutadas, socadas e abusadas sexualmente; o patrão delas, um tal de Ellice Needham, tinha o horrível hábito de beliscar as orelhas dos pequenos até que suas unhas se encontrassem através da carne. O capataz da fábrica era ainda pior. Pendurava Blincoe pelos pulsos por cima de uma máquina até que seus joelhos se dobrassem e então colocava pesos sobre seus ombros. A criança e seus pequenos companheiros de trabalho viviam quase nus durante o gélido inverno e (aparentemente apenas por pura e gratuita brincadeira sádica) os dentes deles eram limidados! (HEILBRONER, 1996, p. 101). Heilbroner e Milberg (2008, p. 89), por sua vez, relatam a trágica vida dos operários: Era um período cruel. As intermináveis horas de trabalho, a sujeira generalizada e o ruído pesado nas fábricas, a falta das mais elementares precauções de segurança, tudo combinado para conferir ao início do capitalismo industrial uma reputação de que jamais se recuperou na mente de muitas pessoas neste mundo. Pior ainda eram as favelas para as quais retornava a maioria dos operários após a jornada de trabalho. A expectativa de vida ao nascer, em Manchester, era de 17 anos – número que refletia uma taxa de mortalidade infantil acima de 50%. Marx e Engels (1999) explicam a situação do proletariado naquele instante. Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que só podem viver se encontrarem trabalho, e que só encontram trabalho na medida em que este aumenta o capital. Esses operários, constrangidos a vender-se diariamente, são mercadoria, artigo de comércio como qualquer outro; em consequência, estão sujeitos a todas as vicissitudes 23 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO da concorrência, a todas as flutuações do mercado. O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho [...] [reduz o custo do operário] aos meios de manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua existência (MARX; ENGELS, 1999, p. 18). Exemplo de aplicação O trabalho infantil ainda é uma tragédia nos nossos tempos. Em sua opinião, há semelhanças entre a exploração do trabalho infantil nos dias de hoje e a da Revolução Industrial? Segundo Heilbroner e Milberg (2008), a Revolução Industrial inglesa transformou uma sociedade agrícola e comercial em uma sociedade industrial. Portanto, esse processo, muito lentamente, foi modificando as principais características da economia inglesa e incorporando aos poucos as mudanças tecnológicas que efetivamente se traduziram em alterações visíveis na vida das pessoas e na organização das empresas. Afinal, a Inglaterra, excepcionalmente, comportava uma classe de empresários capitalistas agrícolas que empregavam, por sua vez, um grande proletariado rural. Ainda assim, não fugia à regra geral da época: eram os mercadores que controlavam as cidades europeias e não aqueles cuja fortuna vinha do mundo agrícola – fazendeiros, advogados, comerciantes ou ainda mineradores e fabricantes que começavam a surgir. Isso se dava por conta do sistema de indústria doméstica, em que o mercador comprava e revendia os produtos dos artesãos e de quem dependiam os primeiros capitalistas industriais. Apenas no século XIX essas transformações estarão cristalizadas: até lá, o campo – fornecedor da matéria-prima das tecelagens e das manufaturas têxteis – ainda ocupará espaço privilegiado na economia; depois disso, ganharão importância as fábricas e a produção de bens de capital, que foi uma das razões para o fantástico crescimento da Inglaterra. 24 Unidade I Regiões metalúrgicas Bacias carboníferas Figura 5 – Economia inglesa ao final do século XVIII Tal processo pode ser facilmente explicado: foi o desenvolvimento da produção de bens de capital, principalmente para a mineração, que permitiu a invenção das ferrovias. As minas precisavam de máquinas a vapor e de meios de transporte, demandando indústrias de bens de capital e as elevando ao mesmo patamarde desenvolvimento que a indústria algodoeira. Os homens de negócios, que integravam a classe média e precisavam encontrar onde investir seu capital acumulado, passaram a se dedicar à construção de ferrovias: de 28 milhões de libras investidas em ferrovias em 1840, segundo Hobsbawm (2010), o investimento em 1850 passou para 240 milhões de libras: O capital encontrou as ferrovias, que não podiam ter sido construídas tão rapidamente e em tão grande escala sem essa torrente de capital, especialmente na metade da década de 1840. Era uma conjuntura feliz, pois de imediato as ferrovias resolveram virtualmente todos os problemas do crescimento econômico (HOBSBAWM, 2010, p. 88). Devemos lembrar que a produção de bens de capital é fundamental para o surgimento de uma economia industrializada. Os baixos salários dos trabalhadores e a produção limitada de bens de consumo em momento posterior explicam-se no contexto da opção pelo desenvolvimento do setor de bens de capital em detrimento dos bens de consumo. Mais: já consagrada na Inglaterra, havia chegado o momento de a Revolução Industrial alcançar outras nações. 25 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO 1.2 O apogeu: a segunda Revolução Industrial De forma resumida, o século XVIII ficaria marcado pela conformação de estruturas sociais bastante específicas. Contribuíram para isso o crescimento demográfico (principalmente em função da queda da mortalidade advinda das melhorias nas técnicas de saúde pública), a expansão do mercado por meio da divisão do trabalho e dos acréscimos na produtividade e as invenções que transformariam as cidades e a produção. Entre 1775 e 1875, o mundo experimentou um “vasto boom secular” caracterizado por progresso econômico, ainda que desigual entre os países europeus. A fábrica passou a centralizar o trabalho coletivo e alienante. O operário não mais precisava oferecer habilidades de manuseio das ferramentas: pelo contrário, neste novo cenário são as máquinas que exigem do trabalhador obediência. Além disso, [...] era agora necessário capital para financiar o equipamento complexo requerido pelo novo tipo de unidade de produção; e criara-se um papel para um tipo novo de capitalista, não mais apenas como ursurário ou comerciante em sua loja ou armazém, mas como capitão de indústria, organizador e planejador das operações da unidade de produção, corporificação de uma disciplina autoritária sobre um exército de trabalhadores que, destituídos de sua cidadania econômica, tinham de ser coagidos ao cumprimento de seus deveres onerosos a serviço alheio pelo açoite alternado da fome e do supervisor do patrão (DOBB, 1986, p. 262). Esse cenário nos permite perceber a Revolução Industrial como “uma série contínua de transformações que perdurou além mesmo do século XIX, em vez de como uma modificação feita de uma só vez” (DOBB, 1986, p. 269). No entanto, “uma vez vinda a transformação crucial, o sistema industrial embarcou em toda uma série de revoluções na técnica de produção, como traço notável de uma época do capitalismo amadurecido” (DOBB, 1986, p. 270). A especialização e a divisão do trabalho permitiam inovações, caracterizando um processo cumulativo e irreversível em termos de produtividade, concentração da produção, acumulação e propriedade do capital. Essa última tendência, filha da complexidade crescente do equipamento técnico, é que iria preparar o terreno para outra transformação crucial na estrutura da indústria capitalista, e gerar o “capitalismo de corporação” monopolista (ou semimonopolista ou quase monopolista) em grande escala da era atual (DOBB, 1986, p. 270). Aqui já identificamos o aparecimento de características mais próximas às do nosso contexto contemporâneo. O espírito comercial e prático dos capitalistas aliado às invenções, ao aumento populacional e à disposição dos trabalhadores – sem terra e recém-chegados aos ambientes urbanos – de submeterem sua força de trabalho a condições desfavoráveis de emprego que garantissem apenas sua sobrevivência passaram a caracterizar as estruturas sociais da Revolução Industrial. As invenções serviam à economia de tempo e à maximização da força de trabalho, e a acumulação do capital excedia o crescimento da oferta de trabalho. No seu auge, as transformações provocadas pela Revolução Industrial foram anormalmente rápidas e se distinguiram em muito dos padrões anteriores. As mudanças na economia, na indústria, nas relações sociais, 26 Unidade I na produção e no comércio indicavam o surgimento de um novo indivíduo que acreditava no progresso e na mudança. As deficiências do mercado e a baixa produtividade já não eram mais obstáculos para uma sociedade que convivia com uma oferta abundante de mão de obra e com o avanço das técnicas de produção. A grande revolução de 1789-1848 foi o triunfo não da “indústria” como tal, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da sociedade “burguesa” liberal; não da “economia moderna” ou do “Estado moderno”, mas das economias e Estados com uma determinada região geográfica do mundo (parte da Europa e alguns trechos da América do Norte), cujo centro eram os Estados rivais e vizinhos da Grã-Bretanha e França (HOBSBAWM, 2010, p. 20). De fato, o cenário estava preparado para a expansão da Revolução Industrial para além das fronteiras inglesas, e isso ocorreria com a segunda Revolução Industrial, conjunto de inovações que permitiu ao capitalismo sair de sua infância e desenvolver-se. Dos produtos dominantes durante a Revolução Industrial inglesa, apenas a estrada de ferro continuou recebendo um notável impulso, ampliando-se continuamente. O ferro deixou de ser um produto industrializado, para se transformar em matéria-prima para o aço. O vapor de água foi substituído pela eletricidade e pelo petróleo, como fonte de energia. A indústria química permitiu a crescente independência industrial das matérias-primas naturais. A fábrica concentrou-se em escala jamais imaginada. A ciência tornou-se matéria auxiliar da técnica. E a administração dos negócios adquiriu um caráter científico (REZENDE, 2007, p. 145). Como consequência dessas transformações, a composição do capital também se modificou. Os investimentos para a criação e para a ampliação das fábricas eram agora vultosos demais e proliferaram sociedades anônimas, dependentes dos grandes aportes financeiros oferecidos pelo setor bancário. Na luta pela sobrevivência, os grandes capitais engoliram os menores. Em busca de produtividade, as empresas passaram a reinvestir os lucros em pesquisa. “Um exemplo perfeito, tanto da subordinação da ciência à técnica, como da administração profissional, foi fornecido por Frederick W. Taylor (1885-1915), com seus métodos que procuravam obter o máximo de rendimento produtivo por operário” (REZENDE, 2007, p. 148). Os governos e os homens de negócio do Ocidente não encontravam impeditivos para suas pretensões capitalistas. Ainda: embora o iluminismo objetivasse a libertação do indivíduo, tratava-se de uma liberdade atrelada à sociedade capitalista, em que os iluministas emancipariam os futuros burgueses já pertencentes à alta sociedade. Não por acaso, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial inglesa ocorreram no mesmo período e em lugares próximos: ambas foram fruto do desenvolvimento do capitalismo liberal burguês. Elas serviram como marcas cruciais e divisoras de águas entre a existência das velhas civilizações e o domínio europeu (principalmente britânico) do resto do mundo. Foi esse desenvolvimento do capital burguês o que permitiu à Inglaterra a superioridade técnica, militar e comercial, por meio da qual essa nação poria em prática empreendimentos capitalistas e expansionistas. Além disso, a Inglaterra, cuja estabilidade fizera com que a conquista de autonomia por parte das suas 27 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO colônias não implicasse grande perda econômica, soube administrar melhor todas as guerras travadas com o inimigo francês,ainda que este dispusesse de mais recursos. Em 1848, uma revolta na França contra o autoritarismo e as péssimas condições da economia francesa acabou servindo de estímulo à propagação de um clima revolucionário para dezenas de outros países na Europa. Figura 6 – Propagação da Revolução de 1848 pelo restante da Europa. Em branco, os países liberais; em amarelo, os conservadores Saiba mais Sugerimos o filme a seguir, que retrata o período revolucionário na França: OS MISERÁVEIS. Dir. Tom Hooper. EUA: Working Title Films, 2012. 158 minutos. O desapego aos ideais tradicionais e religiosos daria lugar à máxima da Revolução Francesa, que pretendia a liberdade, a igualdade e a fraternidade de todos os homens, desde que respeitados o progresso e o racionalismo inerentes ao desenvolvimento do capitalismo. Afinal, foi a Revolução Francesa que pôs fim de fato aos resquícios das relações sociais feudais: a monarquia tinha interesse nas novas ideias da classe média para se modernizar e a classe média dependia da boa vontade do príncipe para que as ações direcionadas ao progresso do capitalismo tivessem espaço em meio aos interesses aristocráticos e clericais. Lembrete A Revolução Francesa foi o conjunto de revoltas que culminaram com a substituição da monarquia por um regime republicano secular. 28 Unidade I Entretanto, é necessária uma observação: embora a Revolução Francesa, de cunho burguês, tenha ocorrido em 1789, “não foi senão a partir de 1804 que seu governo tomou certas medidas de favorecimento à burguesia, como a criação do Banco da França, construção de novas estradas, remodelação dos portes, e incentivos à mecanização da produção” (REZENDE, 2007, p. 149). O cenário era propício, já que desde o século anterior os governos franceses vinham adotando políticas protecionistas à indústria nacional; em contrapartida, a hegemonia política da nobreza dona das terras servia como empecilho ao crescimento industrial. A força política da nobreza, que controlava o Estado, criava obstáculos intransponíveis ao desenvolvimento industrial. O país era coberto por barreiras alfandegárias locais e provinciais, que forçavam o pagamento de tributos pela passagem por qualquer parte de seu território, tal como desde a Idade Média. Essas barreiras faziam com que o mercado interno não fosse na realidade único, e sim a soma de uma centena ou mais de mercados locais, e tornava proibitivo o envio de mercadorias de uma região a outra. Como se isso não bastasse, havia limitações legais ao livre trânsito dos produtos agrícolas, sendo os agricultores obrigados a vender sua produção somente nos mercados locais (MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 262). A Revolução Francesa e o período napoleônico representaram a vitória e o triunfo da burguesia na França e, terminadas as guerras napoleônicas, o ritmo de industrialização na França intensificou-se de forma significativa: no norte, a indústria de tecidos se estabelece; nas minas do Noroeste e na Lorena, a produção de ferro e carvão aumenta. Nas fábricas, empregam-se os antigos operários das corporações aniquiladas pela força das indústrias, buscando vagas como assalariados nas fábricas capitalistas. Lembrete Na Inglaterra, diferentemente do que ocorreu na França, a mão de obra nas indústrias se formou a partir dos camponeses expulsos dos campos. A industrialização também acabou alcançando a Suíça e a Holanda, já que nesses países a burguesia estava no poder havia muito tempo. Segundo Magalhães Filho (1991), na Holanda, apesar de a burguesia ser predominantemente comercial, sua posição estratégica e as riquezas de suas colônias asiáticas davam-lhe posição privilegiada. Na Dinamarca, as restrições e amarras feudais haviam sido abolidas em 1788; a economia, desde então, havia se especializado na exportação de cereais e animais, principalmente para a Inglaterra. Na Bélgica, desenvolveu-se a produção de carvão e a indústria siderúrgica; também cresceu a produção de produtos alimentícios e expandiu-se a indústria têxtil. Na Alemanha, a unificação nacional em 1870 permitiu que o país finalmente se industrializasse, distanciando-se da economia agrária. 29 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Limite da Confederação Germânica do Norte em 1867 Limite do Império Alemão em 1871 Figura 7 – Unificação alemã: em amarelo, o reino da Prússia em 1864; em rosa, as aquisições prussianas entre 1865 e 1866; em verde, a Alsácia e a Lorena, adquiridas em 1871 Nesse processo, a Prússia desempenhou importante papel, liderando as áreas alemãs mais desenvolvidas e, por meio de uma política militarista agressiva, combatendo a Dinamarca, a Áustria e a França. Ciente de que os capitais originários das atividades agrícolas e da indústria têxtil e siderúrgica são insuficientes para promover uma industrialização nos moldes requeridos pela segunda Revolução Industrial, o Estado joga todo seu peso a fim de viabilizá-la, atuando como produtor e grande consumidor (forças armadas, administração, serviços públicos) (REZENDE, 2007, p. 152). Como exemplo dessa atuação centralizadora e forte do Estado da Prússia, podemos citar a prática de dumping, sistematizada com o objetivo de criar vantagens para os produtos alemães. Observação A prática de dumping consiste em estabelecer preços diferenciados para o mercado interno (mais elevados) e para o externo (mais baixos), fazendo com que o consumidor interno subsidie as exportações. 30 Unidade I Em função das necessidades nacionais, o Estado alemão também privilegiou o ensino técnico e a pesquisa científica. Segundo Rezende (2007, p. 153), “as indústrias Krupp, por exemplo, chegaram a ter em seus quadros funcionais um corpo de cientistas maior que o de qualquer outra universidade, às vésperas da Primeira Guerra Mundial”. A unificação também foi fundamental para o desenvolvimento industrial na Itália. Nesse país, o processo de industrialização respeitou as características geográficas e econômicas do país. Segundo Rezende (2007, p. 154), [...] existiam duas Itálias. Uma Itália do Norte, com uma agricultura progressista, com um sistema bancário desenvolvido, e com uma indústria centrada nas cidades de Milão (têxtil e metalúrgica), Turim (mecânica e têxtil), Gênova (têxtil e construção naval) e Veneza (têxtil), ligadas por uma razoável rede ferroviária. E uma Itália do Sul, atrasada, essencialmente rural, com apenas uma grande cidade, Nápoles, que no entanto concentrava mais uma atividade comercial, que propriamente industrial. Reino da Sardenha em 1815 Território anexado em novembro de 1860 Território anexado em 1859 Território anexado em 1866 Território anexado em março de 1860 Território perdido para a França em 1860 Francesa desde 1768, antes genovesa Fronteira internacional em 1914 Figura 8 – Unificação italiana 31 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Dentro desse contexto, os interesses dos grandes proprietários de terra se uniriam aos interesses dos industriais, e a Itália do Sul passou a oferecer a mão de obra tão necessária à Itália do Norte. Observação Ainda nos dias de hoje, percebe-se essa divisão na Itália, com as indústrias concentrando-se ao norte e a agricultura, ao sul. Não será a Europa a única região a se contaminar pelos ares da industrialização, e o Japão é um exemplo de como o desgaste do poder dos senhores feudais acabou por permitir que o desenvolvimento econômico ganhasse impulso por meio da junção de forças entre o Estado e a burguesia. Assim, ao final do século XIX, impostos feudais são substituídos por tarifas alfandegárias, e os antigos samurais (a serviço dos senhores feudais) são substituídos por soldados profissionais. No entanto, é importante lembrar que os senhores feudais não perderam suas terras nesse processo, e a organização tributária passou a arrecadar recursos dos senhores proprietários de terras, dirigindo-os para investimentos industriais. Segundo Magalhães Filho (1991, p. 285), [...] a grande vantagem comparativa da indústria japonesa estará em seussalários, mais baixos que os de qualquer outro país industrial. O fato de as restrições feudais terem sido abolidas sem que fosse modificada a estrutura de propriedade da terra transforma a maior parte dos lavradores em pequenos arrendatários, que em épocas de más colheitas, não podendo pagar suas rendas, são obrigadas a abandonar o campo. [...] É esse crescente fluxo para as cidades que forma os grandes contingentes de mão de obra necessários à industrialização, permitindo ao mesmo tempo manter muito baixos os níveis salariais. Outro exemplo de industrialização, agora no Novo Mundo, diz respeito aos Estados Unidos. Segundo Rezende (2007, p. 156), inicialmente colônia inglesa, “independentes em 1781, e tendo reafirmado sua independência com a Guerra de 1812-14 com a Inglaterra – motivada pelos impedimentos que os ingleses faziam ao comércio com a França napoleônica e suas dependências –, os Estados Unidos mantêm até 1860 a dicotomia herdada de seu passado colonial”: ao Sul, estavam os estados que viviam da agricultura e eram, portanto, escravocratas. “As colônias de Maryland, Virgínia, Carolinas do Norte e do Sul e Geórgia exportavam fumo, e em escala menor, arroz, anil, cânhamo, linho e resinas vegetais, importando quase tudo o que consumiam” (MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 274). Ao Norte, as colônias não apresentavam condições geográficas favoráveis para a agricultura, tendo sido povoadas posteriormente, por religiosos fugitivos da Grã-Bretanha e da Europa continental: de origem burguesa, esses habitantes trouxeram técnicas de produção e uma cultura voltada para o comércio e para a manufatura. Ao final do século XIX, tem início um movimento separatista: os estados sulistas (Confederados) formam um novo país e os estados do Norte reagem, defendendo a União. Segundo Magalhães Filho (1991, p. 279), [...] a guerra durou quatro anos. As mortes militares alcançaram 529 mil homens. O Sul foi completamente derrotado e sua economia primária 32 Unidade I reorientada em benefício das indústrias do Norte. O custo total da guerra ultrapassou a quantia de 8 bilhões de dólares, incluindo-se apenas os gastos diretos dos dois governos. Vencedor, o norte “abole a escravidão e garante as condições para seu crescimento econômico, com uma industrialização caracterizada pela presença de grandes trustes e cartéis (Carnegie, Ford, General Electric, Westinghouse)” (REZENDE, 2007, p. 156). Estados da União Estados Confederados 1 – Oregon 13 – Pensilvânia 1 – Texas 2 – Califórnia 14 – Massachusetts 2 – Lousiana 3 – Área indígena 15 – Nova Iorque 3 – Arkansas 4 – Kansas 16 – Vermont 4 – Mississippi 5 – Wisconsin 17 – New Hampshire 5 – Alabama 6 – Michigan 18 – Maine 6 – Tennessee 7 – Missouri 19 – Rhode Island 7 – Geórgia 8 – lllinois 20 – Connecticut 8 – Carolina do Sul 9 – Indiana 21 – New Jersey 9 – Carolina do Norte 10 – Kentucky 22 – Delaware 10 – Virgínia 11 – Ohio 23 – Maryland 11 – Flórida 12 – Virgínia Ocidental Figura 9 – A Guerra Civil Americana (Guerra de Secessão) 33 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Saiba mais Sugerimos que você veja o filme a seguir, que retrata a Guerra de Secessão e os debates acerca da escravidão: LINCOLN. Dir. Steven Spielberg. EUA: DreamWorks Pictures, 2013. 150 minutos. No século XIX, a Revolução Industrial estava consolidada na maior parte dos países da Europa. O operário, que não possuía nada além de sua força de trabalho, empregava-se nas pequenas ou grandes fábricas e sujeitava-se a condições extremamente precárias e insalubres. Não havia como protestar ou como lutar por quaisquer melhorias de salário: sequer havia garantia de emprego, já que a ameaça da substituição da mão de obra por máquinas funcionava como uma espada sobre a cabeça do trabalhador. De fato, havia tanta revolta que, ao final do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX, as invasões de fábricas por operários se tornaram uma constante. Fábricas destruídas espalhavam-se pelo campo e a cada uma o comentário era “Ned Ludd passou por aqui”. O boato era que um Rei Ludd ou um General Ludd estava dirigindo as atividades da turba. Não era verdade, claro. Os Luddites, como eles eram chamados, inflamavam-se pelo puro e espontâneo ódio às fábricas, que viam como prisões, e ao trabalho assalariado, que desprezavam. [...] Para a maior parte dos observadores [...], as classes baixas estavam escapando do controle e era preciso agir severamente para acabar com a situação. E, para as classes altas, aqueles acontecimentos pareciam indicar que um violento e terrificante Armageddon se aproximava (HEILBRONER, 1996, p. 102-3). As condições desesperadoras dos trabalhadores alimentariam e impulsionariam as revoltas do final do século XIX e do início do XX, sob os auspícios da atuação política dos socialistas, anarquistas e comunistas; Marx e Engels, por seu turno, depois de oferecerem o arcabouço teórico necessário para a compreensão da formação do lucro e da acumulação capitalista, propunham a revolução comunista como salvação para os operários e, por que não dizer, para o próprio capitalismo. Saiba mais Sugerimos o filme a seguir, baseado no livro homônimo de Émile Zola, que narra a trajetória de um grupo de mineiros grevistas franceses, no século XIX: GERMINAL. Dir. Claude Berri. França: AMLF, 1993. 160 minutos. 34 Unidade I 1.3 A crise No final do século XIX, deflagra-se a primeira crise geral do capitalismo. A miséria social produzida e intensificada pela Revolução Industrial fomentou levantes trabalhistas e a aparição de movimentos contrários à industrialização. Todos estavam insatisfeitos, e a insatisfação não atingia apenas o proletariado. Entre os indignados, podiam ser encontrados pequenos comerciantes, pequenos burgueses e fazendeiros; em suma, todos – exceto os grandes proprietários dos meios de produção, a quem a Revolução Industrial proporcionava grandes lucros –, sofriam com a desigualdade de renda. De fato, ao longo da segunda metade do século, a economia já havia dado sinais de que algo não corria bem: recessões, fracas e de curta duração, e depressões, mais profundas e duradouras, ameaçavam o desenvolvimento até então exponencial do capitalismo e implicavam desemprego, queda de produção e consumo e baixa na qualidade de vida. Além disso, o proletariado, frente às condições constantes de miséria às quais era submetido e sofrendo ainda mais intensamente com as oscilações do sistema capitalista, se organizava em sindicatos e se interessava por ideias que preconizavam a democracia e a efetiva participação política que lhe fazia falta: Por toda a parte os grupos excluídos defrontavam-se com novas oligarquias que não atendiam às suas necessidades e não respondiam aos seus anseios. Estes extravasavam em lutas visando tornar mais efetiva a promessa democrática que a acumulação de riquezas e poder nas mãos de alguns, em detrimento da grande maioria, demonstrara ser cada vez mais fictícia. [...] Ideias socialistas, anarquistas, sindicalistas, comunistas ou simplesmente reformistas apareceram como críticas ao mundo criado pelo capitalismo e pela liberal-democracia (COSTA, 2003). Datam desse período a disseminação das correntes do socialismo utópico, a publicação do Manifesto Comunista (1848), a organização da Primeira Internacional (1864) e, após seu fracasso, da Segunda Internacional (1889), a publicação de O Capital (1867), os escritos anarquistas, a Comuna de Paris (1871) e a mobilização política sindical e partidária do operariado. O socialismo utópico (que se contrapunha ao socialismo científico de Marx e Engels por conta da ausência de ações propositivas em sua teoria e de seu pacifismo) teorizava acerca do que deveria ser considerada uma sociedade justa e igualitária, mas não elaborava quaisquer métodos revolucionários para alcançá-la. Além disso, os autores dessa corrente responsabilizavam as classes superiores pela modificação social necessária ao estabelecimento do socialismo. A críticade Marx e Engels aos socialistas utópicos era simples: para eles, não se podia ignorar a questão de classe inerente à desigualdade social. Era preciso atentar para as distinções de classe, em vez de dar preferência aos valores burgueses e entendê-los como representativos da sociedade em seu conjunto. Com esse propósito, em 1848, Marx e Engels publicam o Manifesto Comunista, convocando todos os operários do mundo para que se unissem e se comprometessem com a revolução socialista. Para seus autores, o vetor de qualquer ação revolucionária era a classe trabalhadora e só ela poderia conquistar a própria emancipação, fazendo-se essencial a libertação autônoma, por baixo, do 35 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO proletariado com relação à burguesia. Além disso, os autores propunham uma união internacionalista de todo o operariado para que se pusesse fim à concentração de riqueza própria do capitalismo monopolista. De fato, Marx e Engels enxergavam, também, uma contradição inerente ao capitalismo. Essa contradição era o que explicava as crises e antecipava a intensificação inevitável do conflito entre a centralização dos meios de produção e a exploração do proletariado, situação que supostamente levaria o capitalismo à sua decadência. E o mais importante – a contradição fundamental da sociedade capitalista – o fato de que enquanto a produção em si é cada vez mais socializada, o resultado do trabalho coletivo, a apropriação, é privado, individual. O trabalho cria, o capital se apropria. No capitalismo, a criação pelo trabalho já se tornou uma empresa conjunta, um processo cooperativo com milhares de operários trabalhando em conjunto (frequentemente, para produzir apenas uma coisa, como por exemplo o automóvel). Mas os produtos, socialmente produzidos, são apropriados não pelos seus produtores, mas pelos donos dos meios de produção – os capitalistas. E aí está o problema – a origem do conflito. A produção socializada contra a apropriação capitalista (HUBERMAN, 1974, p. 293). Anos depois, Marx publicou O Capital, em que definiu conceitos que seriam utilizados tanto por socialistas quanto por estudiosos em geral por muitas décadas. Em O Capital podemos ler, por exemplo, que o capitalismo se baseia na exploração da força de trabalho e na obtenção de mais-valia: uma ínfima parte do trabalho do proletário (tão especializado que o impede de ter uma noção integral do produto final do esforço conjunto dos trabalhadores) paga seu salário, sendo todo o resto revertido em lucro para o proprietário dos meios de produção. Lembrete O Capital é um livro teórico, extenso, que gira em torno de uma crítica econômica ao capitalismo e procura compreendê-lo. Indiferente à organização política do proletariado no final do século XIX, entretanto, o capitalismo tinha outros problemas a resolver. Afinal, chegara o momento em que se tornava evidente que a exploração promovida pelo capitalismo, e da qual ele se alimentava, tinha seus limites. A lucratividade não mais crescia de acordo com o aumento de produtividade, uma vez que a mais-valia só poderia ser obtida por meio da exploração de mão de obra e essa, por sua vez, além de possuir limites fisiológicos naturais, tornava-se mais cara à medida que era mais empregada. Diminuindo-se a taxa de lucro e, com isso, as oportunidades de investimento, inevitavelmente a produção entrou em um período de depressão que se destacou das crises conjunturais e periódicas às quais os capitalistas já haviam se acostumado. A redução da margem de lucro, segundo Hobsbawm (2010), teve duas consequências: em primeiro lugar, por conta do ambiente extremamente competitivo entre as empresas, o mercado viveu a experiência da queda dramática e constante no preço dos artigos acabados; em segundo, houve a manutenção dos 36 Unidade I custos de produção, que não se beneficiaram da queda geral dos preços. Na verdade, depois de 1815, a situação geral dos preços era de deflação e não de inflação, e os lucros experimentavam um leve recuo. Uma possível saída era que o custo de vida diminuísse, para que os salários também pudessem diminuir. Havia, entretanto, o impedimento representado pela política protecionista do Parlamento, que permitia o monopólio da propriedade fundiária e criava obstáculos para as importações: como exportar para países se estes não tinham recursos, dada a impossibilidade de exportar para países que adotavam políticas protecionistas? O capitalismo industrial, então, dava lugar ao capitalismo monopolista, em que grandes grupos controlavam partes igualmente grandes do mercado referente à sua produção – sem, com isso, eliminar necessariamente a concorrência: um número pequeno de empresas eliminava seus concorrentes menores e competia pelo mercado entre si, às vezes chegando a acordos para dividi-lo. Aço, metalurgia, indústria química, siderurgia, mineração e outros setores: os países industrializados deparavam com o estabelecimento de monopólios empresariais especializados e os países não industrializados forneciam os produtos primários necessários a tal produção, importando produtos acabados. Via-se, também, a consolidação e a crescente importância do monopolismo bancário, por meio do qual as empresas particulares e governos, cujos interesses convergiam, controlavam empresas menores e influenciavam a política exterior com seus empréstimos e concessões de crédito. Um a um os principais setores industriais haviam caído em mãos de grandes grupos, e a tendência indicava que, a seu tempo, os demais setores viriam a ter o mesmo destino. Montados em sua posição monopolística, os grandes grupos ditavam os preços, mantendo-os anormalmente altos, de modo a auferir maiores lucros, mas podendo baixá-los até onde fosse preciso para aniquilar um concorrente. Os pequenos produtores que ainda restavam nesses setores iam sendo deliberadamente engolidos, e os que compravam ou vendiam para esses grupos eram obrigados a ceder às suas exigências. A não ser em ramos inteiramente novos, passara à lembrança a época em que qualquer um podia vir a estabelecer-se. Surgira o capitalismo monopolista (MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 324). A racionalização da produção e a obtenção de margens consideráveis de lucro permitiam o investimento em novas técnicas e novos produtos, assim como transferia às empresas o poder de definir os preços de mercado. Porém, embora lucrassem com o capitalismo, os regimes monopolistas não agradavam inteiramente à classe média de burgueses, comerciantes e proprietários agrícolas. Para muitos, os cartéis, trustes e manobras perpetrados pelos grandes grupos empresariais ameaçavam a livre concorrência a que a sociedade já estava acostumada. Na indústria ferroviária, a ação predatória dos grandes empresários acabou por fazer com que os moradores da Califórnia só pudessem usar os trens de uma única e grande empresa. “Mas não foi apenas a indústria ferroviária que utilizou o poder econômico para criar uma posição monopolizadora. Na fabricação de uísque e de açúcar, no tabaco e nos alimentos para o gado, em pregos, anéis de aço, 37 HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO aparelhos elétricos, lâminas de metal, em fósforos e carne” (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 107), em todos os setores da economia americana, surgiram gigantes monopolizadores, cuja atuação e controle inviabilizavam qualquer concorrência. Aos poucos, a produção industrial passou a se concentrar nas mãos de poucas unidades de negócio. Nos Estados Unidos, segundo Heilbroner e Milberg (2008, p. 108), A transformação foi dramática. Em 1900, por exemplo, a quantidade de fábricas têxteis, ainda que grande, diminuiu em um terço desde a década de 1880; durante o mesmo período, o número de fabricantes de implementos agrícolas despencou em 60%, e a quantidade de fabricantes de couro, em três quartos. Na indústria de vagões, duas empresas dominavam o cenário em 1900, num contraste com as 19 em 1860. A indústria de biscoitos doces e salgados passou de umas poucas empresas, menores
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