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79 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Unidade II Nesta unidade, teremos contato com o reordenamento monetário-financeiro em período de Segunda Guerra Mundial, taquigrafando o que viria a ser o capitalismo dali em diante. Veremos o surgimento das instituições de Bretton Woods e avançaremos para os anos dourados do capitalismo, o fim do acordo de Bretton Woods e, como ele, a chegada de uma nova forma de política econômica e condução do capital – a saber, o neoliberalismo. O tratamento da evolução do capitalismo avança para a discussão da globalização e seus diferentes conceitos e dinâmicas, obstáculos e reações. Finalizaremos a unidade com breve tratamento da crise de início do século XXI. Esperamos que você aprecie a leitura. 5 REORDENAMENTO MONETÁRIO-FINANCEIRO MUNDIAL Entre 1942 e 1944, em Bretton Woods, foi realizada uma conferência que reuniu os países aliados contra o eixo fascista. Seu objetivo era a estabilização econômica e o alcance do pleno emprego. Várias propostas foram apresentadas, porém, as únicas levadas realmente em consideração foram as britânicas, desenvolvidas por John Maynard Keynes, e as dos Estados Unidos, apresentadas por Harry Dexter White. Era necessário que se criasse um sistema que superasse as deficiências do padrão-ouro e do câmbio livre, sendo que a crítica mais acirrada quanto ao padrão-ouro vinha da Inglaterra e de Keynes (MODESTO, 2013). 5.1 A Conferência de Bretton Woods e suas instituições Para Keynes, o padrão-ouro criava problemas fundamentais. Ele acreditava que uma economia em crescimento necessitava de expansão monetária, a fim de que se pudesse fazer frente a esse maior volume de produtos, não pressionando os juros para cima e/ou os preços para baixo. No padrão-ouro, a disponibilidade de moeda dependia de um fator exógeno que, no caso, era a disponibilidade de ouro. Caso o ouro fosse escasso, poderia não haver moeda suficiente para que se realizassem as transações normais dessa economia. Uma forma de se combater esse problema era o aumento na taxa de juros, de modo a atrair ouro de outros países; essa política, entretanto, não era prejudicial apenas para os outros países (que, de certa forma, agem da mesma forma), mas também para o próprio país que havia adotado tal medida, dado que um aumento na taxa de juros prejudicava o consumo e o investimento interno. O outro problema era o “ajuste assimétrico”. Para Keynes, quando uma economia crescia mais do que as outras, ela incorria em problemas de déficit comercial. Afinal, quando cresce a renda de um país, também cresce a necessidade de se importar bens, enquanto as exportações dependem da renda de outros países. Sendo assim, segundo Keynes, se um país crescesse mais do que os outros, a demanda por importação cresceria mais depressa que a possibilidade de exportar; logo, haveria o problema de como se pagar pela diferença. Havia duas soluções nesse caso: ou o país se endividava (o que não podia ser feito infinitamente) para cobrir os déficits, ou restringia as importações, o que era prejudicial para todos 80 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II os envolvidos. Por exemplo: o país A importava do país B; quando o país A criava impedimentos aos produtos importados do país B, ele reduzia a renda do país B; com uma menor renda, o país B importaria menos produtos, que poderiam ser, no caso, os produtos do país A. Já o câmbio livre (que foi adotado por praticamente todos os países no início da década de 1930) consistia na estratégia de que cada país determinasse a taxa de câmbio que julgasse a correta para cada momento. O problema é que em momentos de depressão e desemprego, os países desvalorizavam a sua moeda com o intuito de elevar as suas exportações líquidas, transferindo assim os seus problemas para os seus vizinhos. Com o tempo, esse tipo de política foi perdendo a eficácia, pois quando um país desvalorizava a sua moeda, o outro reagia da mesma forma a fim de se proteger de tal medida. Por outro lado, a proposta americana era muito mais modesta, pois a grande preocupação dos EUA no pós-guerra era a adoção de práticas restritivas quanto ao comércio internacional. O Plano White previa a criação de uma instituição com um papel duplo. O primeiro seria o de funcionar como um fórum: esse fórum avaliaria se poderiam ou não ser feitos os ajustes nas taxas de câmbio entre os países-membros, sendo esses ajustes permitidos quando o país provasse que a sua economia havia passado por mudanças fundamentais, tornando necessários ajustes na taxa. Esse mecanismo eliminaria as desvalorizações oportunistas, cujo objetivo era o de transferir problemas para os seus vizinhos. A segunda função era a de financiar o ajuste de curto prazo do balanço de pagamentos, de modo que esse desajuste não causasse pressão sobre a taxa de câmbio. O tesouro seria composto pelas moedas dos países-membros, em quantidades proporcionais à importância dessas moedas no comércio e na economia internacional. Assim, um país poderia recorrer à instituição comprando a moeda que precisasse para ajustar a sua economia. Segundo Modesto (2013), é importante notar que o Plano Keynes estava preocupado com as crises de balanço de pagamentos causadas por fugas de capitais, pois ele tinha convicção de que algumas classes de capitais desestabilizavam a economia internacional e doméstica, sem trazer nenhum beneficio. O Plano White, em contrapartida, se preocupava com o funcionamento do comércio internacional. A instituição prevista pelo Plano White não tinha condições de criar liquidez internacional; esta dependia de um estoque definido de moedas nacionais e, sendo assim, a liquidez internacional dependeria da política monetária dos países que emitissem essas moedas internacionalmente aceitas. Logo, haveria um limite para a ajuda financeira dessa instituição, a qual, alías, não poderia promover o ajuste expansivo proposto pelo Plano Keynes, pois não teria controle sobre as reservas dos países-membros e nem a autoridade para coagir países superavitários a expandir a sua demanda. Como não podia deixar de ser, o Plano White foi o vencedor e, então, foram criados o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial (CARVALHO, 2004). Temos então que as medidas adotadas foram as do Plano White, e não as do Plano Keynes. Ainda como parte do efeito dominó ocasionado pela crise de 1929 e envoltos na comoção causada pela Segunda Guerra Mundial, os países industrializados estabeleceram um conjunto de normas para a paridade cambial, tornando as moedas indexadas ao dólar, sendo este ancorado na conversibilidade ao ouro. Data dessa época o surgimento do Banco Internacional de Reconstrução de Desenvolvimento (Bird), constituinte do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), como mais um resultado de Bretton Woods. 81 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Conforme Manzalli e Gomes (2006, p. 89-90), [...] o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são dois importantes organismos criados para promover a coordenação de políticas entre países, notadamente na área financeira, mas muitas vezes tal coordenação ocorre em detrimento de interesses de sociedades. Com o avanço do comércio de longa distância na Europa, surge certa tendência de que as coordenações financeiras, predominantemente administradas por famílias dos comerciantes locais, passem a desempenhar um papel primordial na definição dos interesses políticos e econômicos de diversos gruposno continente. Com o tempo, o desenvolvimento do comércio privado de moedas e instrumentos financeiros. De acordo com Sandroni (1996), a criação do FMI em 1944 foi impulsionada pela tentativa de promover a cooperação monetária entre todos os países do mundo. Essa iniciativa partiu da necessidade de equilibrar paridades monetárias justas entre diferentes moedas, evitando desvalorizações concorrenciais e formando um grande fundo com recursos dos países-membros. Esses recursos seriam utilizados em favor de países que encontrassem dificuldades nos pagamentos internacionais, principalmente aqueles que apresentavam recorrentes déficits em sua conta de transações correntes. Uma das principais funções do Fundo era regular as paridades das moedas. Tinha o objetivo essencial de presidir um regime internacional de câmbio praticamente fixo, promovendo a cooperação monetária internacional mediante uma instituição permanente que servisse de mecanismo para consulta e colaboração sobre problemas monetários. Em seu instrumento constitutivo estabeleceu-se, ainda, que recursos financeiros do Fundo seriam oferecidos temporariamente aos países-membros para proporcionar- lhes oportunidades de corrigir desequilíbrios no seu balanço de pagamentos, sem recorrer a desvalorizações cambiais, consideradas destrutivas da prosperidade internacional (MANZALLI; GOMES, 2006, p. 96). Já o Banco Mundial, instituição financeira internacional ligada à Organização das Nações Unidas (ONU) e também criada em 1944, tinha como propósito o financiamento de projetos de recuperação e de promoção de desenvolvimento econômico dos países atingidos pela guerra (SANDRONI, 1996). Figura 18 – Edifício sede da ONU, em Nova York 82 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Na prática, esse papel ficou a cargo do chamado Plano Marshall, e o banco passou a lidar de modo crescente com o tema do desenvolvimento econômico e a atuar, sobretudo, nos países subdesenvolvidos (BAUMANN, 2004). Formalmente, seu intuito era canalizar capital para investimentos que permitissem elevar a produtividade das empresas, o padrão de vida das pessoas e as condições de trabalho nos países-membros. Assim, a preocupação primordial do Banco Mundial seria aquela ligada à melhoria das condições de vida da população, quer dizer, às questões de cunho qualitativo (e não quantitativo- financeiro, a exemplo do FMI). Conforme salientam Manzalli e Gomes (2006), o objetivo básico do Banco Mundial era o de auxiliar a reconstrução e o desenvolvimento de territórios dos países-membros atingidos pela destruição da guerra. Esse objetivo deveria ser atendido por meio de atividades dedicadas a: • Prover capital para fins produtivos. • Promover o investimento externo privado. • Complementar o investimento privado mediante o fornecimento de capital para fins produtivos. • Promover o crescimento equilibrado de longo prazo do comércio internacional. • Manter o equilíbrio nos balanços de pagamento mediante o incentivo internacional a investimentos para o desenvolvimento de recursos produtivos. Os resultados das políticas keynesianas logo se fariam sentir e a economia americana viveria o seu período de maior riqueza e crescimento. 5.2 Os Anos Dourados do Capitalismo No mundo pós-guerra, os avanços da ciência podiam ser traduzidos em técnicas e tecnologias que não necessitavam ser compreendidos por quem deles se beneficiava (HOBSBAWM, 2008). A física quântica, desenvolvida por Einstein no começo do século, estava então aplicada nos produtos do cotidiano e, para utilizá-los, não era necessário entender a teoria subjacente. A luta pela existência na Terra, impulsionada pela Guerra Fria, lançou as sementes para a corrida espacial: americanos e soviéticos disputavam, se não um lugar ao sol, ao menos um lugar na imortalidade do espaço. A segunda metade do século XX também assistiria ao debate e à especulação sobre o próprio caráter do processo de conhecimento científico. Das teorias sobre falseabilidade de Popper, passando pela investigação das revoluções científicas e quebras de paradigma de Kuhn, os cientistas se perguntariam: o conhecimento leva à certeza ou apenas nos aproximamos, probabilisticamente, da verdade? É possível algum conhecimento certo e seguro sobre o mundo que nos cerca? Existe avanço no conhecimento científico? Como lidar com esse saber que, ao mesmo tempo em que se produz em circunstâncias e processos ainda desconhecidos, pode provocar o fim da humanidade? Aos poucos, formava-se uma nova mentalidade, que tinha como escopo compreender os impactos sociais dos desenvolvimentos científicos e que se construía a partir da percepção de que vivíamos em um mundo destinado ao progresso e, ao mesmo tempo, à destruição. 83 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Naquele momento, o sistema de mercado passou a ser sinônimo de inconteste riqueza e desenvolvimento. Para os Estados Unidos, os anos posteriores ao final da Segunda Guerra haviam sido nada mais do que a continuidade da estupenda performance que beneficiou o país nos anos de conflito armado, embora tenha sido notável o fato de que as taxas de crescimento fossem lentas, comparativamente às de outras nações. As economias dos países desenvolvidos caminhavam em direção ao pleno emprego, finalmente atingido na década de 1960: a crença era de crescimento e prosperidade contínua, não havendo por que duvidar de que o desenvolvimento dos anos de 1960 não fosse se reproduzir na década posterior (HOBSBAWM, 2008). Mesmo as nações do bloco não capitalista cresciam e a fome e miséria ainda não se faziam visíveis, apesar dos indícios de explosão populacional e de exclusão dos povos do Terceiro Mundo na repartição do bolo dourado do capitalismo (e essa exclusão se confirmaria na década de 1980, apesar das taxas elevadas de crescimento na década de 1970 de países como o Brasil). Na década de 1960, a produção de manufaturas produzidas no mundo já havia se quadruplicado, e o comércio mundial dos produtos da industrialização havia se multiplicado por dez (HOBSBAWM, 2008). Além disso, os Estados Unidos impulsionavam o crescimento de outras nações, particularmente os perdedores da Segunda Guerra, Alemanha Ocidental e Japão, e as guerras intervencionistas (Coreia e Vietnã, por exemplo) saciavam as necessidades expansionistas e de mercado das grandes corporações transnacionais. Mesmo os organismos internacionais criados ao final da década de 1940 (FMI e Banco Mundial) estavam a serviço das políticas hegemônicas norte-americanas, pelo êxito econômico de tais políticas. Não havia tampouco qualquer temor em relação ao esgotamento dos recursos ambientais provocado pelo uso indiscriminado de fontes fósseis de energia: apenas anos depois o primeiro choque do petróleo impulsionaria, de forma mais institucionalizada, as preocupações ambientais que se alastrariam pelo mundo nas décadas de 1980 e 1990. Tanto quanto em outros momentos da história, o progresso se fazia perceber pelas inovações tecnológicas decorrentes dos desenvolvimentos científicos, e o uso da terra e de seus recursos nada mais era do que fruto do direito legítimo do ser humano de habitar o mundo e dele retirar o necessário, ou o mais que necessário. Os números relativos à posse de automóveis, telefones e outros bens industrializados (grande parte deles usando a tecnologia desenvolvida durante os anos de guerra) provavam o crescimento econômico e a disseminação do bem-estar para todos aqueles que houvessem (por bem ou por mal) adotado o modelo capitalista como exemplo. O crescimento desmedido camuflava outra realidade, a deque parcelas cada vez maiores da população estariam desempregadas em breve, especialmente em função do uso intensivo da tecnologia. A crise se faria anunciar em meados da década de 1970, com o esgotamento das políticas que combinavam liberalismo econômico e bem-estar social. Assim, entre 1950 e 1970, o mundo viveu um período de crescimento econômico surpreendente. Dada sua grande singularidade, nunca havia ocorrido no sistema capitalista um momento de prosperidade tão duradoura. Judt (2008, p. 331-2) descreve o período da seguinte forma: “na Europa Ocidental, as três décadas que seguiram a derrota de Hitler foram deveras ‘gloriosas’. A extraordinária aceleração do crescimento econômico foi acompanhada por uma era de prosperidade sem precedentes”. 84 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Observação No mundo não capitalista, 1949 marcaria a Revolução Chinesa e a ascensão de Mao Tsé-Tung. Com os comunistas no poder, a China passaria por uma série de reformas. Rompendo com a hegemonia do capitalismo, a República Popular da China coletivizaria as terras, nacionalizaria as empresas estrangeiras e colocaria a economia sob o controle do Estado. No mesmo ano, em Cuba, Fulgêncio Batista seria deposto e Fidel Castro, com o apoio da União Soviética, implantaria no país um regime antiamericano e anticapitalista. Em 1960, a média de desemprego na Europa Ocidental era de 1,5%. Durante a era de “ouro”, não houve fome endêmica, a não ser como produto de guerras e de estratégias políticas, como no caso da China. A produção de alimentos cresceu mais depressa do que a população, tanto nos países desenvolvidos quanto nos não industriais. A produção de manufaturas quadruplicou entre o início da década 1950 e o início da década de 1970 (HOBSBAWN, 2008). Observação Buscando um grande salto na economia, a China fez em 1959 mudanças estruturais na sua agricultura. O cultivo, que antes era privado, passou a ser organizado em comunidades. Essa coletivização forçada fez com que a produtividade fosse reduzida. Ainda, muitos camponeses foram mobilizados para a produção de fero e aço. Durante a década de 1950, o índice anual médio de produção per capita cresceu 6,5% na Alemanha, 5,3% na Itália e 3,5% na França. Percebem-se quão espantosos são esses resultados se comparados aos dos períodos anteriores; por exemplo, entre 1913 e 1950, o mesmo índice foi de 0,4% na Alemanha, 0,6% na Itália e 0,7% na França. Mesmo quando comparada ao próspero império guilhermino (após 1870), a economia alemã alcançou uma média anual de 1,8%. Já na década de 1960, a velocidade do crescimento começou a diminuir; mesmo assim, as economias do Oeste Europeu prosperavam em níveis historicamente incomuns. De modo geral, de 1950 a 1973, o PIB per capita alemão mais do que triplicou, em termos reais. A França apresentou um crescimento do PIB per capita de 150%, o que corresponderia a uma média anual de crescimento de 6,52%. A Itália, tendo partido de um patamar inferior, registrou níveis ainda maiores de crescimento. Países historicamente pobres também apresentaram um grande crescimento econômico. O PIB per capita na Áustria cresceu 203%; na Espanha, 265%. A economia holandesa cresceu 3,5% ao ano entre 1950 e 1970, o que representa sete vezes mais do que o índice anual médio registrado nos quarenta anos anteriores (JUDT, 2008). Três aspectos propiciaram essa era “gloriosa”: a expansão do comércio, o aumento da produtividade do trabalho e a mudança de uma Europa quase toda ainda pré-industrial. 85 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO A Europa Ocidental abandonou o protecionismo em favor do comércio liberalizado; em vez de os governos cortarem gastos e orçamentos, eles os aumentaram. Em quase todas as regiões se observou a elevação do investimento público de longo prazo em infraestrutura e maquinaria; fábricas e máquinas foram atualizadas ou substituídas (MODESTO, 2013). Em função da liberalização do comércio, muitos países obtiveram um aumento mais rápido no comércio exterior do que na própria produção interna, verificando-se no Pós-Guerra um grande avanço na superação da estagnação observada em décadas anteriores. Nos 45 anos seguintes a 1950, o volume mundial de exportação cresceu 16 vezes. Todos os países industrializados foram beneficiados, dada a imensa expansão do comércio internacional (JUDT, 2008). Outro ponto alto foi a produtividade do trabalho: entre 1950 e 1980, a produtividade do trabalho superou três vezes os índices registrados nos 80 anos anteriores. Mas como foi possível tal aumento de produtividade? Isso foi possível porque, até 1945, a maior parte da Europa ainda era pré-industrial. Os países mediterrâneos, a Escandinávia, a Irlanda e o Leste Europeu eram essencialmente rurais. Em 1950, três a cada quatro adultos empregados eram camponeses na Iugoslávia e na Romênia. Em Portugal, Espanha, Grécia, Hungria e Polônia, um trabalhador a cada dois estava na agricultura; na Itália, dois a cada cinco. Na Áustria, um a cada três trabalhava na fazenda; na França, quase 30% da força de trabalho exerciam algum tipo de atividade agrícola, e mesmo na Alemanha Ocidental, esse índice era de 23%. No Reino Unido, apenas 5% da população economicamente ativa se dedicavam a alguma atividade agrícola; na Bélgica, o índice era de 13%: somente nesses dois lugares a revolução industrial do século XIX realmente trouxe uma mudança de uma sociedade agrária para uma pós- agrária (JUDT, 2008). Porém, na década de “ouro”, um número cada vez maior de pessoas saiu do campo para as cidades. Já em 1977, apenas 16% da força de trabalho italiana se envolviam em alguma atividade agrícola. Para que tenhamos uma dimensão da mudança na Itália, na região da Emília-Romana a população economicamente ativa envolvida com a agricultura caiu drasticamente, de 52% em 1951 para 20% em 1971. Esse processo se verificou em quase toda a Europa: na Áustria, o índice caiu para 12%; na França, 9,7%; na Alemanha Ocidental, 6,8%. Em 1971, apenas 20% da força de trabalho espanhola ocupavam-se com a agricultura. Na Bélgica, o índice era de 3,3%; no Reino Unido, de 2,7% (JUDT, 2008). A agricultura foi perdendo continuamente a sua participação no PIB. Tomando como exemplo a Itália, entre 1949 e 1960, a presença do setor na produção nacional decresceu de 27,5% para 13%. O setor mais beneficiado foi o de serviços (inclusive o emprego público), no qual a maioria dos camponeses e seus filhos procurou emprego. Países como Itália e França e partes da Escandinávia e Irlanda transformaram-se de economias agrícolas em economias de serviço, praticamente pulando o estágio industrial, no período de uma única geração. Segundo Judt (2008), no final da década de 1970, a grande maioria da população ativa na Grã-Bretanha, Alemanha, França, nos países do Benelux, na Escandinávia e nos países alpinos trabalhavam no setor de serviços (comunicações, transportes, mercado financeiro, administração pública etc.). Uma era deveras “gloriosa”. Ainda assim, é oportuno questionar: como economias destroçadas pela guerra conseguiram tamanha reviravolta? Afinal, para fazer o que foi feito era necessário um 86 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II volume enorme de recursos. O “motor” desse período “glorioso” foram os EUA, por meio do Plano Marshall (MODESTO, 2013). Como mencionado anteriormente, o plano vencedor na convenção de Bretton Woods foi o Plano White. Assim, as únicas fontes de financiamentos paraas enormes importações que os países europeus precisavam fazer tinham origem no FMI e no Banco Mundial. Isso implicava monstruoso endividamento. Mesmo que os países conseguissem esse empréstimo, as obrigações do endividamento faziam com que essas nações reduzissem drasticamente o seu nível de atividade, resultando em um significativo declínio no nível de vida e em forte agitação política e social. Mesmo que os países optassem por uma taxa de cambio flexível, para que as economias deficitárias apertassem o cinto era necessário levá-las a um nível de estagnação, quase de miséria. Para evitar a possibilidade de nações europeias enfrentarem um eleitorado desesperado, que poderia optar por um sistema comunista dado o futuro sombrio que o sistema de Bretton Woods oferecia, os EUA criaram o Plano Marshall, a fim de que o comunismo não se espalhasse (JUDT, 2008). O Plano Marshall cumpria com o segundo papel proposto pelo Plano Keynes, o de ajuste expansivo. Os EUA, como grandes superavitários, cobriam os déficits das economias devastadas pela guerra, o que proporcionou esse crescimento sustentado no período (JUDT, 2008). Outra crise se fazia anunciar no horizonte. 5.3 A Guerra Fria Retomemos, inicialmente, as circunstâncias econômicas e políticas existentes no período denominado anos dourados do capitalismo. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a humanidade mergulhou em outra “guerra” bastante singular. De modo bastante apropriado, o filósofo Thomas Hobbes (HOBBES apud HOBSBAWM, 2008, p. 224) afirmou: “a guerra consiste não só na batalha, ou no ato de lutar: mas num período de tempo em que a vontade de disputar pela batalha é suficientemente conhecida”. Sem dúvida, o impasse pós-Segunda Guerra Mundial entre URSS e EUA foi um desses períodos. Esse constante confronto entre as duas superpotências (URSS e EUA) ficou conhecido como Guerra Fria, mas, apesar de esse período ter no título a palavra “guerra”, não houve um confronto militar direto entre as duas superpotências, embora disputassem, e de forma contínua, a hegemonia militar, econômica e política mundial. Segundo Hobsbawm (2008), o período da Guerra Fria pode ser dividido em duas partes: a primeira, de 1945 até meados da década de 1970; a segunda, da década de 1970 até a gradual dissolução da União Soviética (fruto da independência de suas repúblicas) em 1991. Em termos objetivos, a Guerra Fria não consistia de fato em um perigo iminente de guerra mundial, já que as duas superpotências haviam aceitado a distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial: a URSS controlava ou influenciava uma parte do globo (as zonas ocupadas pelo Exército Vermelho e/ou forças comunistas no fim da guerra), e os EUA controlavam e exerciam predominância sobre os países capitalistas, além do hemisfério Norte e oceanos. Porém, visto que a sociedade do século XX já havia passado por duas guerras mundiais, parecia bastante factível a possibilidade de uma “Terceira Guerra Mundial” travada pelos EUA de um lado e a União Soviética do outro. 87 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Lembrete A União Soviética, a China e Cuba são exemplos de países que aderiram ao socialismo ou ao comunismo, sistema político que busca a igualdade para todos, de modo a acabar com a iniciativa privada e manter a economia sob o controle do Estado. É importante destacarmos que a Guerra Fria teve antecedentes anteriores à Segunda Guerra Mundial. No entanto, no período de 1941 a 1945, essas desavenças apenas foram deixadas de lado, visto que o fascismo e o nazismo eram inimigos mais perigosos (JUDT, 2008). Antes da Segunda Guerra Mundial, as relações entre EUA e o Reino Unido, de um lado, e a URSS, do outro, sempre tinham sido tensas. A diferença era que nenhum desses países fora responsável por grandes extensões de terras no continente europeu. Além disso, os três países tinham estado separados, entre outras considerações, pela presença da França e da Alemanha. Mas, com a humilhação francesa em 1940 e a derrota alemã cinco anos mais tarde, tudo mudou. A retomada da Guerra Fria na Europa era sempre possível, e não era evitável. Foi causada pelos objetivos e necessidades incompatíveis das várias partes interessadas (JUDT, 2008, p. 118). Nenhuma das duas superpotências queria o conflito direto, pois ambas possuíam armamentos nucleares: um conflito direto significaria uma tragédia de dimensões globais. Contudo, o medo de que a sua rival se tornasse mais poderosa fez com que ambas iniciassem uma corrida armamentista, espalhando exércitos e armamentos em seus territórios e nos países aliados. Assim, desde o aceite da distribuição de forças (mesmo que desigual) entre as duas superpotências até o início da década de 1970, supunha-se ser possível a coexistência pacífica. Afinal, os EUA haviam saído da guerra com enorme riqueza e poder e, por isso, a postura da União Soviética era basicamente defensiva. Contudo, dessa situação surgiu uma política de confronto dos dois lados. A URSS, consciente da precariedade e insegurança de sua posição, via-se diante do poder mundial dos EUA, conscientes da precariedade e insegurança da Europa Central e Ocidental e do futuro incerto de grande parte da Ásia. O confronto provavelmente teria surgido mesmo sem ideologia (HOBSBAWM, 2008, p. 230). Apesar de não haver perigo de guerra iminente, a rivalidade e intransigência das superpotências fizeram com que os dois lados se lançassem à corrida armamentista, envolvendo assim cada vez mais recursos materiais e humanos na contínua preparação de uma guerra que passou a ser chamada de paz armada e que tinha por finalidade a obtenção da supremacia do poder político. Nessa época, foram criados dois blocos. Do lado socialista, estavam os países ligados pelo Pacto de Varsóvia, que reunia a URSS (o grande expoente do grupo), a China, Cuba, a Alemanha Oriental, a Albânia, a Coreia do Norte, 88 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II a Polônia, a Romênia e a Tchecoslováquia, entre outros. Do lado capitalista, estavam os países ligados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), reunindo os EUA, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha Ocidental, o Canadá, a Itália, a Áustria, a Suécia, a Espanha, a Bélgica, a Dinamarca, a Holanda e a Grécia. Países do leste europeu República da ex-URSS Outros países Região de Kaliningrado, pertencente à República Russa Figura 19 – Leste europeu (1945 a 1989) Os EUA, com medo de que a revolução se espalhasse pelo mundo, iniciou uma política de combate ao comunismo usando todos os meios possíveis, inclusive filmes veiculados no cinema, para fazer propaganda positiva a respeito dos benefícios que o capitalismo podia oferecer. A partir da forte preocupação das potências capitalistas com o desenvolvimento econômico e com a influência que o bloco socialista poderia exercer, foi formulado o Plano Marshall para a reconstrução dos países afetados pela guerra, assim como o Conselho de Assistência Econômica Mútua (Comecom), que levou auxílio aos países socialistas. Dessa forma, tentava-se evitar uma depressão acirrada e garantir que não houvesse estagnação da economia mundial. Um combate direto entre as duas superpotências nunca ocorreu, porém quando os EUA se envolveram oficialmente na guerra da Coreia (de 1950 a 1953), fizeram-no porque sabiam que pelo menos 150 aviões chineses eram, na verdade, aeronaves soviéticas dirigidas por pilotos soviéticos (HOBSBAWM, 2008). 89 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr amad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Outros acontecimentos também alteraram o equilíbrio das superpotências. Um deles foi com o episódio da Baía dos Porcos (em Cuba) que por pouco não deflagrou uma guerra entre os americanos e os russos. O mesmo ocorreu com a entrada dos EUA na Guerra do Vietnã, desaprovada por muitos e com previsão de derrota por outros. Figura 20 – Vietnã Outro marco importante da Guerra Fria foi a divisão da Alemanha. Em 1961, a cidade de Berlim foi dividida por um muro: ao lado do bloco socialista, a Alemanha Oriental ficou sob o domínio soviético; ao lado do bloco capitalista, a Alemanha Ocidental, sob o domínio de EUA, Grã-Bretanha e França. Figura 21 – Muro de Berlim Tanto o governo americano quanto o soviético injetaram capitais para a reconstrução da Alemanha que lhe coubera, pois isso era usado como exemplo de êxito para os blocos que lideravam, capitalista ou socialista. 90 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Observação Em função disso, a economia alemã passou a ser uma das mais desenvolvidas do mundo, juntamente com o Japão. Saiba mais Sobre a Guerra Fria, sugerimos o filme a seguir: O ESPIÃO que saiu do frio. Dir. Martin Ritt. Reino Unido: Salem Films, 1965. 112 minutos. Aos poucos, a polaridade EUA/URSS foi sendo quebrada. O arsenal nuclear, um dos pilares da Guerra Fria, começou a ser conquistado por outros países, como Grã-Bretanha (1952), França e China (década de 1960), Israel e África do Sul (décadas de 1970 e 1980). Além disso, os efeitos do Plano Marshall foram se tornando visíveis, com a participação expressiva da Alemanha e do Japão na economia mundial. De acordo com Hobsbawm (2008, p. 238), “à medida que a Guerra Fria se estendia, abria-se um crescente fosso entre a dominação esmagadoramente militar, e portanto política, que Washington exercia na aliança e o enfraquecimento da predominância econômica dos EUA”. 5.4 O fim do Acordo de Bretton Woods e o processo inflacionário Simultaneamente à Guerra Fria, outro processo se desenrolava. Afinal, para alcançar o principal objetivo das negociações econômicas de Bretton Woods – a retomada do comércio internacional após as grandes guerras mundiais –, dois pilares importantes haviam sido instituídos: o padrão ouro-dólar e a criação de duas instituições, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird). O sistema ouro-dólar trazia a garantia da estabilidade monetária; as taxas de câmbio entre as moedas eram fixas e somente podiam sofrer alterações de valor se houvesse aprovação do FMI. Com a equivalência dos estoques de ouro e dólar, era possível a troca de dólares por ouro nos EUA. Já o FMI e o Bird tinham como propósito coordenar as políticas macroeconômicas entre os países e fornecer a ajuda financeira necessária para a reconstrução da Europa do pós-guerra. E assim, o mundo permaneceu em relativa estabilidade até meados da década de 1970. Como já vimos, as despesas dos EUA aumentaram. Embora não fosse possível aumentar as reservas de ouro, era possível ampliar a oferta de moeda quando necessário, tendo sido esse recurso largamente utilizado por dois diferentes motivos: continuar financiando os programas de ajuda aos países com o intuito de expandir o comércio mundial e sustentar o inesperado prolongamento da Guerra do Vietnã, cujos gastos superaram em muito o previsto. 91 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO E a maior potência ocidental, abalada por assassinatos e conflitos raciais, embarcava numa guerra total contra o Vietnã. Até meados da década, os gastos dos EUA com defesa galoparam, atingindo o máximo em 1968. Para a Europa, a Guerra do Vietnã não era questão controversa – era desaprovada por todo o espectro político –, mas o conflito serviu de catalisador para mobilização popular, em todo o continente, mesmo na Grã-Bretanha, onde foram organizados os maiores protestos da época, em oposição à política norte-americana (JUDT, 2008, p. 412). Com a falta de apoio interno, o governo dos EUA não podia sustentar os gastos da guerra a partir de maior tributação, restando a ele apenas continuar aumentando artificialmente a oferta de moeda para além do seu equivalente em ouro. Observação O descontentamento com a Guerra do Vietnã era imenso, inclusive dentro das próprias fronteiras americanas: praticamente toda família já havia perdido algum ente no confronto. Saiba mais A música a seguir foi composta como forma de protesto contra a Guerra do Vietnã. LENNON, J.; ONO, Y. Happy Xmas (War is Over). Intérpretes: John Lennon e Yoko Ono. In: Happy Xmas (War is Over). Londres: Apple, 1971. Single. Faixa 1. Os custos dessa política foram se avolumando e a economia americana passou a experimentar recorrentes déficits no balanço de pagamentos. Além disso, os Estados Unidos começaram a ter problemas com os índices de inflação, com o aumento da taxa de juros e do desemprego e, por fim, com a falta de credibilidade na manutenção do lastro em ouro. De fato, a queda do sistema de Bretton Woods originou-se de um paradoxo: os Estados Unidos tinham de incorrer em déficits no balanço de pagamentos para prover a liquidez internacional, porém, quanto maiores e mais longos eram esses déficits, menor era a confiança de que os Estados Unidos pudessem, a uma taxa fixa, converter dólar em ouro (KILSZTAJN, 1989). No entanto, a partir de 1958, o problema não era mais a necessidade de liquidez internacional e nem os déficits norte-americanos. Ao contrário, as altas taxas de crescimento dos países desenvolvidos estavam sendo responsáveis por indesejáveis déficits no balanço de pagamentos americanos e 92 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II indesejáveis reservas em dólares pelos bancos centrais estrangeiros. Quando as autoridades monetárias dos países desenvolvidos começaram a converter a moeda norte-americana em ouro a um preço fixo, de US$ 35 a onça, o acordo de Bretton Woods começou a balançar (KILSZTAJN, 1989). Durante toda a década de 1960, os Estados Unidos apresentaram superávits na balança comercial e em conta-correntes. Para que você possa entender: conta-corrente ou transações correntes é a somatória de três contas do balanço de pagamento (onde se registram todas as transações comerciais e financeiras entre não residentes e residentes de um país) de um país, sendo elas a balança comercial, a balança de serviços e as transações unilaterais. A balança comercial é a diferença entre as exportações e importações que um país faz. A balança de serviços é dividida em dois tipos de verbas: serviços de fatores e não serviço de fatores. Os recursos oriundos do serviço de fatores são: lucros, dividendos, salários, juros (essas verbas são chamadas de serviço de fatores, visto que são derivadas dos fatores de produção). Já as verbas do não serviço de fatores são: seguros dos produtos importados, fretes, gastos com viagens internacionais, royalties e direitos autorais. O resultado do balanço de serviços é o somatório de todas essas verbas. As transações unilaterais são transações sem contrapartida, como doações e depósito feito entre familiares. Entretanto, de 1961 a 1967 a saída de capitais norte-americanos foi maior que o seu superávit em conta-corrente, levando sempre as autoridades monetárias dos Estados Unidos e dos demais países desenvolvidos a realizarem transações compensatórias. Os passivos externos norte-americanosem poder das autoridades monetárias dos países desenvolvidos passaram de US$ 3 bilhões no final de 1949 e US$ 11 bilhões em 1960 para US$ 18 bilhões em 1967. Por sua vez, as reservas em ouro dos EUA, que já haviam perdido 144 milhões de onças entre fins de 1957 e 1960, reduziram-se de 509 milhões de onças em 1960 para 345 milhões em 1967 (KILSZTAJN, 1989). Segundo Kilsztajn (1989), entre o final de 1957 e 1960, os EUA perderam US$ 8 bilhões em reservas (US$ 5 bilhões em ouro e US$ 3 bilhões em passivos para autoridades monetárias externas) e tiveram mais uma perda de US$ 12 bilhões (US$ 6 bilhões em ouro e US$ 7 bilhões em passivos, menos US$ 1 bilhão em outros ativos). Pior que a perda de reservas em ouro e o tamanho do passivo externo dos EUA – do ponto de vista do sistema monetário e financeiro internacional – foi a criação do mercado de eurodólares. Com a grande acumulação de dólares por parte dos bancos centrais estrangeiros, eles começaram a depositar os dólares nos bancos comerciais, que, por sua vez, depositavam os valores em bancos nos EUA. Os bancos estrangeiros recebiam um certificado por parte dos bancos estadunidenses, que lhes davam o direito a esses dólares. A liquidez internacional expandiu-se e muitos países do Terceiro Mundo (inclusive o Brasil) ganharam empréstimos e reservas (KILSZTAJN, 1989). Uma vez desenvolvido, o mercado de euromoedas ganhou poder e autonomia, minando a política monetária dos EUA e dos demais países industrializados. Fluxos financeiros especulativos, somados à perda do controle do sistema monetário internacional, pré-anunciavam uma crise do sistema monetário internacional estabelecido em Bretton Woods já no início da década de 1960. Com o anúncio de Nixon, em 15 de agosto de 1971, cancelando a convertibilidade do dólar em ouro a uma taxa fixa de US$ 35 a onça, oficializou-se a crise da moeda norte-americana. Em 1973, entrou em vigor definitivamente o sistema de taxas de câmbio flutuante (KILSZTAJN, 1989). 93 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Observação Ao contrário do câmbio fixo, em que o Estado determina o preço da moeda em relação a outra, independentemente das condições de mercado, o câmbio flutuante faz com que os preços relativos, ou seja, o preço de uma moeda em relação a outra, seja determinado pelo mercado. Pontuamos que a desordem do sistema financeiro internacional em muito explica a crise do petróleo, pois o mercado de euromoedas por meio dos petrodólares (dólares que vêm da exportação de petróleo) financiava países para importação de petróleo. As reservas internacionais, que somavam US$ 29 bilhões em 1967 e US$ 45 bilhões em 1970, cresceram para US$ 292 bilhões em 1978. Já o mercado de euromoedas subiu de US$ 110 bilhões no final da década de 1970 para US$ 946 bilhões em 1978. Para Kilsztajn (1989), o grande aumento de preço do petróleo foi resultado de uma inflação já em curso, e não a causa da inflação. Grosso modo, quando em 1958 os Estados Unidos começaram a ter déficit na conta-corrente de pagamentos internacionais, os países que registravam excedentes não o gastaram, como os EUA haviam feito desde 1947 com o Plano Marshall. Em vez disso, gastaram parte desse excedente na compra de ativos líquidos internacionais, na forma de ouro das reservas dos EUA. O sistema de Bretton Woods não tinha como forçar automaticamente os países excedentários a pararem de acumular dólares. À medida que as nações excedentárias foram esgotando as reservas de ouro norte-americanas, semeou-se a destruição do sistema de Bretton Woods (DAVIDSON, 2011). A solução encontrada pelo presidente Richard Nixon foi romper unilateralmente o padrão ouro-dólar, ou seja, bloquear as trocas de dólar por ouro americano pelos governos estrangeiros. O lastro não existia mais e, como a economia da maioria dos países estava atrelada ao dólar, o sistema monetário mundial sofreu profundas mudanças. Na segunda metade dos anos 70, começam a aflorar alguns elementos indicativos das dificuldades da economia capitalista em manter o ritmo de crescimento dos anos anteriores; queda da produção dos investimentos e da produtividade, inflação e desemprego crescentes e desequilíbrios internacionais. Os sinais mais significativos da emergência da crise foram a quebra definitiva do sistema monetário internacional de Bretton Woods em agosto de 1971 e o acelerado aumento dos preços do petróleo desde outubro de 1973 (MANZALLI; GOMES, 2006, p. 87). A crise que àquele momento se anunciava parecia ser o resultado do esgotamento das políticas que combinavam liberalismo econômico e bem-estar social (que, na Europa, significou a eleição de vários governos socialdemocratas) e com o esquecimento das lições do período entreguerras e da Depressão. O frágil equilíbrio entre o crescimento da produção e a capacidade de consumir a riqueza estava por implodir (HOBSBAWM, 2008). Os anos dourados do capitalismo no século XX, e 94 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II que tiveram como pilar de sustentação a aliança entre o livre mercado e os mecanismos de controle do Estado (desde que não socialista ou comunista), chegavam ao fim. Agora as teorias econômicas keynesianas eram questionadas, pois não conseguiam mais salvar as economias à beira de processos inflacionários, desemprego e queda de produção. Que processo inflacionário foi esse? Fosse em função do aumento do petróleo, devido à Guerra do Vietnã ou por causa da quebra mundial de safras em 1973, os preços apresentaram violenta variação naquele período, elevando-se de forma generalizada. Embora a história já houvesse contabilizado outros momentos de inflação, eram apenas passageiros e transitórios, diferentes daqueles que penalizavam todas as economias do mundo, independentemente do grau de desenvolvimento. A inflação tornara-se o centro da crise, uma crise monetária de excesso de moeda em circulação. Aquela inflação de meados da década de 1970 parecia ter se transformado em problema crônico: em vez da vulnerabilidade à depressão, parecia agora que o capitalismo estava diante de outra vulnerabilidade, a da inflação. Tudo foi tentado para secar a água que transbordava sem parar dos diques financeiros. O que se seguiu é do conhecimento de todos: ativos monetários sofrendo erosão, falências, tentativas de conter o processo via tributação ou via recessão, adoção de estratégias ortodoxas e heterodoxas. Entre 1960 e 1966, a inflação americana apresentou basicamente o mesmo patamar; entre 1968 e 1970, houve ligeira elevação, e no período que se seguiu até meados de 1973, uma posterior queda. Com a eclosão da crise do petróleo, os índices de inflação subiram expressivamente e, apesar do arrefecimento entre 1975-76, mostraram nova tendência de subida na década seguinte. Possivelmente, a explicação para tal fato envolve a expansão de gastos públicos para financiar a produção, expansão essa que vinha se acumulando desde o período do New Deal e desde a ação deliberada do Estado em recuperar a economia. Tais políticas expansionistas, combinadas com novas emissões de moeda para pagamentos mais vultosos em barris de petróleo, contribuíram para o excesso de moeda em circulação e, dessa forma, para o crescimento dos preços das mercadorias. Lembrete New Deal (1933-1937): conjunto de programas implementados nos EUA para recuperação dos prejuízos causados pela Grande Depressão de 1930. Com efeito, até o início da década de 1970, a economia americana apresentava superávits em conta corrente, saldos modestos, mas positivos. Entretanto, desse período em diante, é possível identificar grandeoscilação de déficits e superávits. Em função desse novo contexto, as ideias keynesianas cederam espaço ao monetarismo, conjunto de teorias (cujo maior expoente foi Milton Friedman) que procurou entender a inflação e que buscou estratégias para combatê-la. 95 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO 5.5 A crise do petróleo e os efeitos na economia mundial Se, desde a Segunda Guerra Mundial, os países da Europa Ocidental estavam imersos em uma inesperada era de prosperidade, a partir da década de 1970 surgiram mudanças significativas na economia mundial. Essas mudanças não foram percebidas de imediato, mas o contexto era o pior possível: Bretton Woods havia sido abandonado; a Guerra do Vietnã, que se estendeu de 1965 a 1975, parecia infindável; e finalmente, em 1973, a Guerra do Yom Kippur entre Israel e as forças do Egito e da Síria eclodiu, acentuando ainda mais o enfraquecimento da potência capitalista. Após longo período de crescimento econômico, a maioria dos países começou a apresentar altas taxas inflacionárias associadas à diminuição no ritmo da atividade econômica, o que gerou elevados índices de desemprego. Observação Chamamos de estagflação o processo de inflação associado à diminuição do crescimento econômico. Ainda, com a quebra do sistema monetário internacional, os países devedores do FMI perceberam que sua dívida externa aumentava cada vez mais em função das altas taxas de juros. Como se tudo isso não bastasse, a situação econômica ficou pior com os choques do petróleo (o primeiro em 1973 e o segundo em 1979). Embora ninguém duvidasse da importância do petróleo para a economia mundial, até aquele momento o acesso a essa fonte energética jamais havia sido problemática; bastou a ação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) para que o fornecimento de petróleo se tornasse uma questão vital para o mundo capitalista. O que esse cartel, formado em sua maioria por países árabes, fez? Em represália ao apoio americano a Israel durante a Guerra de Yom Kippur, os países exportadores de petróleo resolveram surpreender o mundo estrangulando o abastecimento do produto. Através da Opep, os Estados árabes do Oriente Médio tinham feito o possível para impedir o apoio a Israel, cortando fornecimentos de petróleo e ameaçando com embargos. Ao fazer isso, descobriram sua capacidade de multiplicar o preço do petróleo no mundo. E os ministérios das Relações Exteriores do mundo todo não podiam deixar de observar que os todo- poderosos EUA não faziam nem podiam fazer nada imediatamente a respeito (HOBSBAWM, 2008, p. 242). 96 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Oleoduto Porto de embarque Refinaria de petróleo Jazidas de petróleo Jazidas de gás natural Circulação de petróleo Gasoduto Figura 22 – Oriente Médio, palco de conflitos em função das reservas de petróleo Com menos petróleo sendo oferecido, seu preço disparou e, com ele, os custos das empresas, situação que teve desdobramentos indesejáveis para a economia. Ao mesmo tempo em que os custos foram repassados aos produtos (resultando em altíssimas taxas de inflação), ocorreu considerável diminuição nos lucros. Como em outros momentos históricos, as empresas resolveram seu problema de caixa com a dispensa de grandes contingentes de trabalhadores. 97 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Figura 23 – Plataforma de perfuração de petróleo O mundo capitalista não estava preparado para lidar com essa situação. Na tentativa de achar uma saída através da qual fosse possível recuperar as relações econômicas mundiais, muitos esforços foram concentrados. As medidas econômicas encontradas para evitar o aprofundamento da depressão após a Segunda Guerra certamente não eram as que resolveriam o quadro de inflação associado ao desemprego. Apesar de as crises do petróleo terem afetado a maior parte dos países do mundo, tanto a intensidade como as possibilidades de resolução do problema eram essencialmente diferentes. Se não bastassem os bens industrializados dos chamados países centrais possuírem valor agregado superior ao dos bens primários comercializados pelos países periféricos, os preços do petróleo e dos produtos industriais também foram reajustados proporcionalmente mais do que os outros. As balanças comerciais dos países subdesenvolvidos e partidários da URSS começaram a apresentar saldos negativos recorrentes, e a solução foi solicitar empréstimos para bancos ou órgãos vinculados aos países desenvolvidos. Empréstimos, em geral, vêm acompanhados de juros; como a situação econômica dos países centrais também não era das melhores, as taxas concedidas foram muito elevadas, o que ajudou a recuperação dos países que cediam os empréstimos e, em contrapartida, acentuou a dívida externa dos países devedores. De acordo com Hobsbawm (2008, p. 459), “a crise do petróleo teve duas consequências aparentemente felizes. Para os produtores de petróleo, dos quais a URSS, por acaso, era um dos mais importantes, transformou o líquido negro em ouro”. Ainda, a inundação de dólares provenientes dos países-membros da Opep abastecia o mercado de empréstimos. Os países subdesenvolvidos aproveitaram a facilidade dos empréstimos para mudar o padrão de vida das suas populações, endividando-se cada vez mais. Enquanto a Europa Ocidental diminuía significativamente o consumo de petróleo em função da forte inflação, a Europa Oriental e a URSS gastaram proporcionalmente mais e, no início da 98 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II década de 1980, estavam em acentuada crise de energia. Como desdobramento dessa crise, houve escassez de alimentos e bens manufaturados, aceleração inflacionária e diminuição de salários. As repúblicas soviéticas entraram em crise no final da década de 1980, precipitando assim a crise no mundo socialista. O então presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev (1985-1991), anunciou uma era de reformas por meio de dois mecanismos: a Perestroika (reestruturação econômica) e a Glasnost (transparência na organização política). Mais que a larga utilização dos termos, Glasnost e Perestroika tornaram-se símbolos de profundas mudanças políticas, sociais, culturais e econômicas que seriam adotadas no país com o sentido de modernizá-lo. Posteriormente, as mudanças iniciadas por Gorbachev na URSS refletiram também na Alemanha Oriental, ou por conta da escassez de recursos para mantê-la, ou em função do novo discurso de democratização do sistema socialista. Os desdobramentos dessa nova realidade culminaram na queda do Muro de Berlim em 1989. Uma das medidas tomadas pelo governo russo foi, por exemplo, o pedido de admissão no Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), órgão criado em 1947 e que, posteriormente, deu origem à OMC (Organização Mundial de Comércio). Ou seja, o conjunto de reformas para a reestruturação da economia soviética previa, de certa forma, maior aproximação com o mundo capitalista e uma nova inserção na economia mundial. A ideia era “tornar as economias de comando centralmente planejadas mais racionais e flexíveis, com a introdução do sistema de preços de mercado e cálculos de lucro e perda nas empresas” – em suma, realizar reformas econômicas que trouxessem maior competitividade (HOBSBAWM, 2008). Observação O movimento de aberturapolítica na URSS foi idealizado por setores da elite soviética – alguns poucos dirigentes do Partido Comunista e uma classe média com acesso à educação e formação técnica –, dado que a maior parte da população não havia conhecido nenhum outro regime. De acordo com Hobsbawm (2008, p. 246), a importância de Gorbachev para o desfecho da Guerra Fria foi singular. Provavelmente era mais fácil para um líder soviético do que para um americano tomar essa iniciativa [de por um fim à Guerra Fria], porque, ao contrário de Washington, Moscou jamais encarara a Guerra Fria como uma cruzada, talvez porque não precisasse levar em conta uma excitada opinião pública. Por outro lado, exatamente por isso, seria mais difícil para um líder soviético convencer o Ocidente de que falava sério. Desse modo, o mundo tem uma dívida enorme com Mikhail Gorbachev, que não apenas tomou essa iniciativa como conseguiu, sozinho, convencer o governo americano e outros no Ocidente de que falava a verdade. 99 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Figura 24 – Gorbachev e sua esposa, Raísa. Paris, julho de 1989 O sistema socialista aos poucos foi enfraquecendo tanto na URSS quanto nos países aliados a partir do fim da Guerra Fria: as nações do leste europeu adotaram regimes democráticos e os russos se retiraram do Afeganistão. Uma a uma, as repúblicas declararam-se independentes do poder central soviético e conquistaram a soberania. E, o que acontecia com a China? Uma das civilizações mais antigas do mundo, a China, diferente da maioria dos países sob a égide do regime comunista, não possuía nenhum sentimento de inferioridade em relação ao Ocidente; ao contrário, “via sua civilização, arte, escrita e sistema de valores sociais clássicos como a reconhecida inspiração e modelo para outros” e provavelmente “a maioria de seus habitantes que tinham opinião sobre essas questões havia considerado a China o centro e modelo da civilização mundial” (HOBSBAWM, 2008, p. 448). Observação De forma distinta ao que havia acontecido na União Soviética, na China não se acreditava no postulado de que o proletariado urbano deveria ser a classe revolucionária de apoio. A morte de Mao foi decisiva para o projeto de industrialização da China. Deng Xiaoping ocupou posição de destaque no Partido em 1976, permanecendo no poder até 1989, quando saiu enfraquecido com a repressão violenta ocorrida em manifestações na Praça da Paz Celestial. Deng conseguiu o apoio de forças progressistas do partido e modificou a política de Mao, caminhando para uma economia de mercado. A implantação do programa de modernização acelerada incluía quatro setores estratégicos: agricultura; indústria e comércio; ciência e tecnologia e defesa nacional. Importante também foi a criação das ZEEs (Zonas Econômicas Especiais), com o intuito de atrair o capital estrangeiro. Essa é uma das grandes responsáveis pela potência que se tornou a China. 100 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Observação A Praça da Paz Celestial, local de manifestações favoráveis à democracia, situa-se em Pequim. A brutal violência contra manifestantes provocou repercussões indignadas e Deng Xiaoping acabou por renunciar alguns meses depois. Figura 25 – Jovem em frente a tanques em Pequim Ao final da década de 1980, já não havia mais dois mundos, o capitalista e o socialista, brigando entre si. O mundo havia se tornado um grande e único bloco capitalista. No entanto, como resolver as crises que haviam se disseminado em todos os quadrantes? A resposta encontrada foi a de se retornar aos tempos de liberalização econômica, com reduzida participação do Estado e aumento da liberdade de mercado. Os tempos de Welfare State haviam chegado ao fim, e o capitalismo, finalmente, era o sistema hegemônico em praticamente todo o planeta. 6 DO KEYNESIANISMO AO NEOLIBERALISMO Desde seu início, o capitalismo nunca foi considerado um sistema econômico estável, a julgar pelas suas alternadas etapas de transformação. A primeira e mais óbvia mudança foi o movimento que levou à concentração industrial e à constituição de corporações gigantescas, com trustes e cartéis em escala mundial. A segunda mudança foi o frenesi imperialista dos principais países capitalistas. A terceira mudança foi meramente uma questão de intensidade: embora o capitalismo tivesse sido sempre um sistema econômico instável, passando constantemente por períodos de prosperidade e de depressão que se alternavam, a duração e a gravidade 101 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO dessas depressões aumentaram, culminando com a Grande Depressão Mundial dos anos 1930 (HUNT, 1989). No ciclo de prosperidade, a América, no final da década de 1920, registrava 45 milhões de pessoas empregadas sendo remuneradas por cerca de US$ 77 bilhões em salários, rendas, lucros e juros. De acordo com Heilbroner (1996), a expectativa norte-americana naquele momento era de que a pobreza fosse erradicada de vez na nação. A nação estava possuída por uma nova visão, muito mais otimista do que os ideais de bucaneiros próprios dos barões ladrões. John J. Raskob, líder do Partido Democrático, expressou-se com clareza no título de um artigo que escreveu para o Ladies’ Home Journal: “Todos Devem Ser Ricos”. “Se um homem economizar US$ 15 por semana”, escreveu Raskob, “e investir em boas ações comuns, ao final de vinte anos ele terá pelo menos US$ 80.000 e um rendimento dos investimentos de cerca de US$ 400 ao mês. Ele estará rico.” (HEILBRONER, 1996, p. 230). Figura 26 – A América de prosperidade e consumo A sugestão era que o norte-americano investisse US$ 780 acumulados ao longo do período de um ano, caso juntasse US$ 15 por semana. Se comprasse ações em 1921 com os US$ 780, em 1922 teria US$ 1.092. Se ele, então, acrescentasse mais US$ 780 por ano, em 1925 teria de rendimentos US$ 4.800, e assim, ao longo de alguns anos, se tornaria muito rico (HEILBRONER, 1996, p. 232). A receita do sucesso era muito simples e parecia que ninguém jamais havia pensado em ingredientes e modo de preparo tão eficientes. Não contavam com a instabilidade do sistema capitalista que se apresentou no final da década de 1920. Na terrível última semana de outubro de 1929, o mercado entrou em colapso. Para os corretores na Bolsa deve ter sido como se as cataratas do Niágara houvessem subitamente entrado pelas janelas, pois uma imensidão 102 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II de ordem de venda de ações convergiu para o mercado. À beira da exaustão, os corretores choravam e arrancavam os colarinhos das camisas; ficavam olhando estupefatos enquanto imensas fortunas se dissolviam como açúcar na água; gritavam até ficar roucos, tentando atrair a atenção de pelo menos um comprador. As tristes piadas do período falam por si mesmas: diziam que com cada pacote de ações do Goldman Sachs o investidor recebia um revólver, e que, quando alguém pedia um quarto em um hotel, o recepcionista perguntava: “Para dormir ou pular?” (HEILBRONER, 1996, p. 232-3). Figura 27 – Multidão se reúne em frente ao prédio da Bolsa de Valores de Nova York após o Crash de 1929 O aspecto mais desolador da Grande Depressão era a impressão nítida de que ela não iria ter fim (HEILBRONER, 1996). O produto nacional passou de US$ 87 bilhões em 1929para US$ 42 bilhões em menos de três anos. Nos Estados Unidos se registraram mais de 85 mil falências de empresas entre 1929 e 1932, quando a economia americana mergulhou numa devastadora depressão. Nesses três anos, mais de cinco mil bancos suspenderam suas operações; o valor das ações negociadas na Bolsa de Nova York caiu de US$ 87 bilhões para US$ 19 bilhões; 12 milhões de trabalhadores perderam o emprego e um quarto da população americana ficou sem meios de sustento; a renda agrícola caiu mais da metade e a produção da indústria de transformação caiu quase 50%. A depressão atingiu primeiramente os Estados Unidos mas se espalhou rapidamente pelo mundo capitalista. A renda real caiu de um índice 100, nos Estados Unidos em 1929, para 68 em 1931. Os países capitalistas da Europa Ocidental registraram quedas semelhantes. Lá o desemprego aumentou de pouco mais de 3 milhões para um número recorde de 15 milhões de desempregados em 1932. Na Alemanha, 43% da força de trabalho estava sem emprego em 1932. O comércio mundial desabou e todo o mundo capitalista mergulhou numa crise de pobreza, fome e desespero econômico generalizado (HUNT, 1989). 103 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Com o pior sofrimento econômico observado, superando até mesmo o período entreguerras, a fé na automaticidade do livre-mercado e na economia capitalista havia se perdido. Enquanto fábricas, oficinas e outras instalações produtivas estavam disponíveis para serem usadas, as necessidades e desejo de consumo não diminuíam. Entretanto, recursos, manufaturas, ferramentas e máquinas permaneciam ociosos, ao mesmo tempo em que os trabalhadores perdiam suas moradias e não tinham condições de alimentar nem a si e muito menos suas famílias. Sem apoio, o laissez-faire foi substituído pela ampla intervenção governamental no mercado, preconizada pelo livro Teoria Geral da Moeda, do Juro e do Emprego, do economista John Maynard Keynes (1883-1946), publicado em 1936. Ajudaram a resgatar a fé na atividade econômica não apenas as ideias de Keynes, mas também o surgimento de uma Segunda Grande Guerra. Contudo, a economia capitalista foi resgatada desta situação precária pela Segunda Guerra Mundial. Quase todas as principais economias capitalistas registraram maciça intervenção governamental no sistema de mercado à medida que a produção de armas, munições e materiais de guerra aumentou significativa e continuamente durante vários anos. Nos Estados Unidos, por exemplo, as despesas militares alcançaram US$ 3,2 bilhões, ou 3,2% do PIB em 1940. Em 1943, no auge da Segunda Guerra Mundial, os gastos militares foram de quase 40% de um PIB bem maior. Os lucros atingiram alturas sem precedentes e os capitalistas perceberam que gastos militares maciços poderiam pôr fim às depressões e assegurar altos retornos para seu capital (HUNT, 1989). Após a Segunda Grande Guerra, o mundo teve um período de crescimento econômico que persistiu até o início da década de 1970. O liberalismo clássico deu lugar às medidas keynesianas transfiguradas no chamado Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), que preconizou a forte presença estatal na economia. O Estado social teve como novidade em comparação ao anterior Estado liberal: 1) a redefinição das relações clássicas entre sociedade civil e política, a politização das relações civis por meio da intervenção do Estado na economia e das corporações na política econômica, e um processo de “civilização” das relações políticas (pela importância da planificação nas decisões políticas); 2) a legalização da classe operária e de suas organizações, institucionalizando uma parte do conflito interclasses. A sociedade deixa de ser pensada como somatório de indivíduos e implicitamente reconhece-se conformada por classes sociais; as organizações, representantes de interesses setoriais (não simplesmente de cidadãos), além de serem legitimadas, podem participar de pactos e relações que transcendem a democracia parlamentar. Os pactos corporativos assumem papel central nas grandes decisões das políticas do Estado. Finalmente, assume-se que o conflito interclasses, em vez de ser abolido em nome de supostas homogeneidades liberais da natureza 104 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II humana, deve ser canalizado através de instituições e regulado com normas especiais a serem constituídas; 3) em síntese, o Estado social é, em parte, investidor econômico, em parte regulador da economia e dos conflitos, mas também Estado benfeitor que procura conciliar crescimento econômico com legitimidade da ordem social (GARZA TOLEDO, 1995, p. 75). Figura 28 – Trabalhadores na linha de montagem de uma fábrica Criado para recuperar o vigor e a capacidade de expansão dos países capitalistas, o Estado de Bem-Estar Social se estabeleceu após a tensão social, econômica e política do período entreguerras. Pamplona (2001) explica a que se imputa o êxito da era dourada do capitalismo: O sucesso dos “anos dourados” do pós-guerra pode ser atribuído, do ponto de vista macroeconômico, ao êxito das políticas de sustentação da demanda efetiva, que foram inspiradas na Teoria Econômica Keynesiana. As instabilidades cíclicas da economia capitalista foram equacionadas sobretudo com instrumentos de política fiscal, gerando crescimento com pleno emprego, salários reais em elevação e ausência de inflação. Associado às políticas macroeconômicas keynesianas, consolidou-se do ponto de vista microeconômico o paradigma industrial, nascido com a segunda revolução tecnológica, de produção e consumo em massa de produtos padronizados. Este paradigma taylorista- fordista, ou simplesmente chamado de fordismo, baseava-se na produção fabril em série e de grande escala (PAMPLONA, 2001, p. 33). Figura 29 – Nos Estados Unidos, criança é examinada no sistema público de saúde 105 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO Com a predominância de políticas keynesianas, o Estado admitiu a alçada de possuir uma relação diferenciada com o setor produtivo, rompendo parcialmente com os princípios liberalistas. Denominado de populista na América Latina, o Estado de Bem-Estar Social adotou posteriormente como padrão de acumulação a industrialização baseada na substituição das importações (RAMPINELLI, 2001, p. 15). Os países capitalistas avançados, por sua vez, adotaram uma postura diferenciada: Nos países desenvolvidos, criou-se uma ampla rede de proteção social – sistemas previdenciários, assistência social, seguro-desemprego, sistemas públicos de saúde etc. – que permitiam a manutenção da renda e a demanda dos indivíduos, mesmo quando estes não estivessem gerando renda, o chamado Estado do Bem-Estar. Além disso, os gastos públicos foram de extrema importância para o desenvolvimento tecnológico e o aumento da produtividade (GREMAUD; VASCONCELLOS; TONETO JÚNIOR, 2011, p. 511). Nessa fase “dourada” do capital, a dinâmica da economia era direcionada para o mercado interno e para o crescimento dos núcleos urbanos (como componente nacional). Todavia, apesar da prevalência de barreiras protecionistas nacionais significativas, não havia entraves, por exemplo, à expansão de empresas multinacionais (GREMAUD; VASCONCELLOS; TONETO JÚNIOR, 2011): Um fato marcante do período foi a expansão das empresas multinacionais, isto é, empresas que possuíam filiais (plantas) em diversos países para poder atender aos respectivos mercados, além de poder beneficiar-se demenores custos trabalhistas, vantagens tributárias etc. Essa expansão das multinacionais possibilitou a industrialização de vários países que não possuíam capital e tecnologia para desenvolver determinados setores. Apesar desta estratégia permitir a queima de etapas no processo de industrialização, colocava alguns problemas: o comprometimento de recursos com a remessa de lucros, a dependência tecnológica etc. (GREMAUD; VASCONCELLOS; TONETO JÚNIOR, 2011, p. 512). Em consonância ao aumento do número de empresas multinacionais, o fluxo financeiro entre países também aumentou, culminando na internacionalização do capital. Com avanço da tecnologia, novas condições de existência social entre indivíduos e coletividade foram se estabelecendo. Os sistemas de comunicação por satélite e por cabo, aliados às novas tecnologias de informação e à microeletrônica, foram possibilitando conexões em tempo real, das finanças, dos mercados e da produção (VITULE, 1998). A centralização do capital aliada à descentralização das operações produtivas, comerciais e financeiras reorganiza a economia e a geopolítica do mundo. Neste contexto, os grupos industriais multinacionais ganham força, introduzindo novas formas de gestão e de controle do trabalho, da produção e dos mercados (VITULE, 1998, p. 196). 106 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II A partir do momento em que a mundialização do capital não pôde ser adaptada ao Sistema Monetário Internacional (Bretton Woods), adotado após a Segunda Guerra Mundial, o Estado de Bem-Estar Social começou a sofrer os primeiros sinais de esgotamento. Em outras palavras, enquanto não havia consequências que afetassem os resultados econômicos, o Estado de Bem-Estar Social se acomodou, a ponderar sobre a nova reurbanização e sobre o aumento do uso de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural). Contudo, assim que os ganhos de produtividade começaram a diminuir, o modelo de políticas keynesianas demostrou enfraquecimento. A partir de meados da década de 1970, a economia keynesiana e o modelo de Welfare State começam a dar sinais de esgotamento. É a crise. Suas primeiras manifestações vieram com a rápida elevação do déficit público nos países industrializados, que foi acompanhada do aumento das taxas de juros e da dívida pública. Além destas manifestações, a crise também se expressou através da queda da produtividade da mão de obra, da queda de eficiência dos investimentos públicos, da perda de capacidade da poupança da economia. Os países industrializados passam a conviver com o fenômeno da estagflação (PAMPLONA, 2001, p. 36). Como já mencionado, a década de 1970 foi marcada por uma série de transformações no âmbito internacional e nacional. Houve sucessão de choques e retração econômica dos países desenvolvidos, o que possibilitou um amplo processo de endividamento externo dos países periféricos. A tese de que a crise econômica nos países centrais decorria de profundas ineficiências associadas às imperfeições no funcionamento do mercado começou a ganhar força: excesso de intervenção do setor público, excesso de regulamentações, sindicatos etc. O início da década de 1980 foi marcado pela passagem do processo de desmantelamento do Estado de Bem-Estar para a implantação de uma série de reformas em defesa de maior atuação do mercado (GREMAUD; VASCONCELLOS; TONETO JÚNIOR, 2011, p. 512-3). Em suma, a competitividade torna-se uma questão de análise central. Para que as empresas se tornem mais competitivas, o Estado teria que dinamizar a economia, eliminando as distorções e ineficiências existentes. Para tanto, a concorrência em todos os mercados deveria ser ampliada, o que justificaria ações como a retirada do Estado de diversos setores, a ampliação da abertura comercial, a desregulamentação de vários mercados e a diminuição do poder dos sindicatos, por exemplo (GREMAUD; VASCONCELLOS; TONETO JÚNIOR, 2011, p. 513). Quando nem o keynesianismo com sua política fiscal expansionista nem o monetarismo com sua política monetária expansionista conseguem mais explicar as flutuações do mundo capitalista, novas visões acerca das flutuações serão necessárias e, nesse aspecto, vê-se o desenvolver da aplicabilidade das teorias defendidas por economistas austríacos cuja vertente central está na não interferência do Estado na economia. A tese do Estado mínimo, da liberdade do mercado e das ações individuais que promovem o bem coletivo são resgatadas, agora, diante as imperfeições que as teorias intervencionistas vêm apresentando. 107 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO 6.1 Mises e Hayek Dois importantes expoentes da escola austríaca desenvolvem suas teorias como reação à tradição historicista do conhecimento social. Influenciados por Weber, os principais pontos de ataque tanto de Mises quanto de Hayek serão a crença de que os fenômenos econômicos não estão dissociados dos demais aspectos sociais que condicionam a conduta humana, bem como a noção de que fatos históricos podem se reproduzir ao longo da história. Defensores da democracia acreditam na existência de dois tipos de instituições: 1. As que são criadas deliberadamente pelos indivíduos que em suas mentes particulares concebem todos os elementos de um arcabouço institucional, tal como um jurista que prescreve um código de leis. São as chamadas “instituições designadas ou planejadas”. 2. Instituições criadas espontaneamente como uma consequência não intencional da ação humana. Os indivíduos agem com vistas a propósitos específicos e o efeito combinado dessas ações é a emergência de instituições que não haviam sido pré-idealizadas na mente de ninguém. A linguagem é o exemplo mais citado. Denominamos de “instituições espontâneas ou orgânicas” (FEIJÓ, 2000a, p. 24). Mises tornou-se conhecido por sua Teoria Monetária na explicação do ciclo econômico e também se destacou como defensor da economia de mercado, apoiando suas teses liberais na construção de uma nova epistemologia econômica. Hayek, por sua vez, tornou-se de início um nome conhecido por suas contribuições acerca de aspectos monetários do ciclo de investimento. As controvérsias teóricas em torno das questões de ciclo econômico, capital, investimento e poupança tornaram-se célebres na história do pensamento econômico. Hayek propunha uma explicação dos ciclos econômicos em que a crise era ocasionada por oferta desproporcional de capitais. A expansão da oferta monetária, ao reduzir as taxas de juros, induz os agentes a investirem em excesso na obtenção de bens de produção. A crise é provocada pela desproporção entre bens de consumo e bens de produção. Isso levaria ao declínio dos investimentos e a uma perda de parte do capital produtivo; capital este que havia sido superdimensionado em função de taxas de investimento excessivamente altas (FEIJÓ, 2001). O interesse de Hayek por questões técnicas em economia deu lugar à psicologia e epistemologia social. Os argumentos de Hayek e Mises contra a possibilidade do cálculo racional no socialismo talvez representem a principal contribuição desses autores. 6.1.1 Mises e sua praxeologia Ludwig Von Mises, um dos expoentes da escola austríaca, dedica sua obra à investigação de questões metodológicas. Em seu livro de 1922, Socialismo: uma Análise Econômica e Sociológica, critica os socialistas e a intervenção governamental. Analisa o capitalismo dentro de sua própria dinâmica em que os mercados estão em desequilíbrio e os agentes econômicos não conseguem enxergar o futuro 108 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr
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