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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Centro de Filosofia e Ciências Sociais - CFCH Escola de Serviço Social - ESS ERIKA RODRIGUES SILVA RACISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: expressões a partir da participação das mulheres negras nas eleições legislativas 2014 e 2018 Rio de Janeiro 2020 ERIKA RODRIGUES SILVA RACISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: expressões a partir da participação das mulheres negras nas eleições legislativas 2014 e 2018 Trabalho de conclusão apresentado ao curso de Graduação de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do grau de bacharel em Serviço Social. Orientadora: Prof. Dra. Mirella Farias Rocha. Rio de Janeiro 2020 Silva, Erika Rodrigues Racismo e democracia no brasil: expressões a partir da participação das mulheres negras nas eleições legislativas 2014 e 2018/ Erika Rodrigues Silva. Rio de Janeiro, 2020. 63 f.: Orientadora: Prof Dra Mirella Farias Rocha Monografia (Bacharelado em Serviço social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – (UFRJ) 1. Racismo. 2. Democracia 3. Formação social brasileira. I. Rocha, M. F., orient. II. Título. ERIKA RODRIGUES SILVA RACISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: expressões a partir da participação das mulheres negras nas eleições legislativas 2014 e 2018 Trabalho de conclusão apresentado ao curso de Graduação de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do grau de bacharel em Serviço Social. Rio de Janeiro, 17, de julho de 2020. __________________________________________________ Profª. Drª. Mirella Farias Rocha (Orientadora) Escola de Serviço Social - Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ __________________________________________________ Profª. Me. Carmen Ferreira Corato Costa (Examinadora) Escola de Serviço Social - Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ __________________________________________________ Profª. Drª Gracyelle Costa Ferreira (Examinadora) Escola de Serviço Social - Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Dedico este trabalho à minha mãe Iraci Rodrigues, à minha irmã Francini Rodrigues e à memória do meu pai Raimundo Amaral e dos meus padrinhos queridos Edna Maria e Edésio da Costa, e a todas as mulheres negras que sustentam essa nação. AGRADECIMENTOS Isso é mais que um agradecimento, é uma carta de amor e gratidão! São 28 anos contrariando as estatísticas, e ninguém chega tão longe nadando contra o sistema sozinho. Agradeço a Deus e os orixás que me mantiveram firme, mesmo quando eu já tinha esquecido o que era ter força. Agradeço aos meus ancestrais que derramaram sangue e suor para que aqui eu estivesse. Agradeço a minha mãe, que mesmo com todas as limitações que a vida lhe impôs deu o máximo que podia, muitas das vezes abrindo mão de si. Eu te amo muito e essa conquista é sua também. Agradeço a minha irmã Francini, pois muito do que eu sou é graças a ter tido ela na minha vida. Obrigada por ter cuidado de mim por toda a minha vida, pelos puxões de orelha, pelos conselhos, por acreditar em mim e me apoiar. Obrigada pelos trabalhos revisados, pelos almoços e jantas, as tortas de limão e tabules. Obrigada por se preocupar comigo e por me ajudar nesse momento, mesmo que de longe. Agradeço a minha noiva, Amanda, por me apoiar nos sorrisos, nas lágrimas, nas crises. Obrigada por me incentivar durante todo esse tempo! Agradeço a minha orientadora, confidente, grande inspiração Mirella, você sem dúvida foi a melhor escolha que eu poderia ter feito. Obrigada por seu carinho, afeto, paciência, cuidado, por acreditar em mim e me fazer crer que era possível, nos meus momentos de desistência. Não foi fácil chegar até aqui, mas ter você como orientadora fez ser mais leve. Agradeço as minhas amigas e amigos queridos por ter tornado todos esses anos mais leves, mesmo nos momentos de desespero e fim de semestre. Obrigada pelas risadas, pelos conselhos, abraços, pelas moedas pra comer na bandejão ou tomarmos uma cerveja no sujinho ou Ximeninho.Sou eternamente grata por compartilhar esse tempo com pessoas tão maravilhosas e gentis. Agradeço aos amigos e companheiros do Coletivo de Negros e Negras do Serviço Social da UFRJ Dona Ivone Lara por me manter firme na caminhada. Agradeço as professoras e professores que participaram direta e indiretamente da minha formação, obrigada por todo conhecimento passado. Agradeço as minhas supervisoras de estágio Erida, Marilza e Wanilsa por tudo o que me ensinaram e por me fazer reconhecer a profissional que eu vou ser. Obrigada por tudo, pelos abraços, carinho, ensinamentos, paciência e principalmente por serem um exemplo que guardo no meu coração. Gostaria também de agradecer algumas pessoas em especial, a Deanna por ter me incentivado durante todo o período da faculdade, a Angelina pelas centenas de horas ao telefone, por me ajudar nos momentos de crise, pelas risadas ao telefone, pelas mini festas por chamada de vídeo. Obrigada amiga, por ser tão gentil e carinhosa. Agradecer a Andressa por ter me aguentado surtando durante essa semana, Isabel por simplesmente ter salvado a minha vida com todo amor e carinho do mundo e por fim, mas não menos amado, Ilson. Obrigada pelo afeto, apoio e indicações bibliográficas. Chegar para agradecer e louvar. Louvar o ventre que me gerou. O orixá que me tomou e a mão da doçura de Oxum que consagrou. Louvar a água de minha terra, o chão que me sustenta, o palco, o massapê, a beira do abismo, o punhal do susto de cada dia. Agradecer as nuvens que logo são chuva, sereniza os sentidos e ensina a vida a reviver. Agradecer os amigos que fiz e que mantém a coragem de gostar de mim, apesar de mim. Agradecer a alegria das crianças, as borboletas que brincam em meus quintais, reais ou não. Agradecer a cada folha, a toda raiz, as pedras majestosas e as pequeninas como eu, em Aruanda. Agradecer o sol que raia o dia, a lua que como o menino Deus espraia luz e vira os meus sonhos de pernas pro ar. (Maria Bethânia, 2016). [...] Quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada. Somente da minha própria experiência e situação no grupo étnico-cultural que pertenço, interagindo no contexto global da sociedade brasileira, e que posso surpreender a realidade que condiciona o meu ser e o define. Situação que me envolve qual um cinturão histórico de onde não posso escapar conscientemente sem praticar a mentira, a traição, ou a distorção da minha personalidade. (Abdias Nascimento, 1978). RESUMO A pesquisa aborda questões sobre as estruturas sociais que afastam mulheres negras da esfera legislativa do poder. A escolha por este tema surge por entender que em um país de formação social escravocrata, onde o racismo é velado atrás de um discurso de miscigenação e democracia racial, a composição das casas legislativas evidencia que mesmo após 132 anos da formalização da abolição da escravidão, os resultados da discriminação racial ainda podem ser percebidos na sociedade, além do interesse profissional e pessoal da autora. O objetivo deste estudo é fomentar o debate crítico acerca da democracia no Brasil, a partir de um recorte histórico racializado da análise, tendo como referencial a participação das mulheres negras nas eleições para a Câmara Federal nos anos de 2010, 2014 e 2018. Desenvolvemos a análise a partir das seguintes categorias: Racismo, democracia e formação social brasileira além de contextualizar brevemente a história dos movimentos negros. Trata-se de um estudo bibliográfico com natureza descritiva.O campo empírico da pesquisa foi composto a partir das estatísticas dos processos eleitorais do poder legislativo disponibilizados no site do Tribunal Superior Eleitoral - TSE, nos períodos de 2010, 2014 e 2018. Como resultado foi possível verificar que a as eleições legislativas e a composição da Câmara Federal da última década (2010, 2014 e 2018) não refletem a composição da população brasileira, formada majoritariamente por negros e negras. Ao longo deste estudo foi possível observar que o padrão colonial e racista de poder, entranhado em todas as esferas da sociedade brasileira, exclui a população negra, principalmente as mulheres das esferas de poder e decisão. Palavras-chaves: Racismo. Democracia. Formação social brasileira. ABSTRACT This study addresses issues related to the social structures that drive black women out of the legislative sphere of power. Choosing this subject came from the understanding that in a country socially formed by slavery, where racism is hidden behind the speech of miscegenation and racial democracy, the legislative houses' composition shows that even after 132 years of the enslavement of black men and women, the results of racial discrimination can still be perceived in society, in addition to the professional and personal interest of the author. This study aims to foster critical debate about democracy in Brazil, based on a racialized historical approach of this analysis, having as framework the participation of black women in the elections for the Federal Chamber in the years 2010, 2014 and 2018. The main concepts covered are: Racism, Democracy, Brazilian social formation, besides the history of Black movements. It is a bibliographic study with a descriptive nature. The empirical field of research was composed by the statistics of the election processes of the legislature available on the Superior Electoral Court website (Tribunal Superior Eleitoral - TSE), in the period 2010, 2014 and 2018. As a result, it was possible to verify that the legislative elections and the composition of the Federal Chamber of the last decade (2010, 2014 and 2018) do not reflect the Brazilian population's composition, formed mainly by black men and women. Throughout this study we observed that the colonial and racist pattern of power ingrained in all spheres of Brazilian society excludes black population, especially women, from the spheres of power and decision. Keywords: Racism. Democracy. Brazilian social formation. RÉSUMÉ Cette recherche aborde des questions sur les structures sociales qui chassent les femmes noires de la sphère législative du pouvoir. Le choix de ce thème se pose en estimant que dans un pays de formation socialement esclavocrate où le racisme est voilé par un discours de métissage et de démocratie raciale, la composition des législatures montre que même après 132 ans de formalisation de l’abolition de l’esclavage, les résultats de la discrimination raciale sont encore visibles dans la société, outre l’intérêt professionnel et personnel de l’auteure. L’objectif de cette étude est d’encourager le débat critique sur la démocratie au Brésil, à partir d ’une analyse historique racialisée, compte tenue la participation des femmes noires aux élections de la Chambre fédérale dans les années 2010, 2014 et 2018. Nous avons développé l’analyse depuis les catégories suivantes : Racisme, démocratie et formation sociale brésilienne, en plus de contextualiser brièvement l’histoire des mouvements noirs. Il s’agit d’une étude bibliographique à caractère descriptif. Le champ empirique de la recherche a été composé à partir des statistiques des processus électoraux du pouvoir législatif mis à disposition sur le site Internet du Tribunal Electoral Supérieur (Tribunal Superior Eleitoral - TSE), sur les périodes 2010, 2014 et 2018. Il a ainsi été possible de vérifier que les élections législatives et la composition de la Chambre fédérale de la dernière décennie (2010, 2014 et 2018) ne reflète pas la composition de la population brésilienne, formée principalement d ’hommes et de femmes noirs. Tout au long de cette étude, il a été possible d’observer que le modèle de pouvoir colonial et raciste, enraciné dans toutes les sphères de la société brésilienne, exclut la population noire, en particulier les femmes, des sphères de pouvoir et de décision. Motsclés : Racisme. Démocratie. Formation sociale brésilienne. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Eleições 2010 - Distribuição por sexo das candidaturas a deputado/a federal aptas ................................................................................................................................................. 52 Gráfico 2- Eleições 2014 – Distribuição por sexo e raça/cor das candidaturas totais, considerando as categorias branco (a) e negro (a) .................................................................. 53 Gráfico 3 - Eleições 2014 – Distribuição por raça/cor das candidaturas a deputado/a federal aptas ........................................................................................................................................ 54 Gráfico 04: Eleições 2018 – Distribuição por raça/cor das candidaturas a deputado/a federal aptas ........................................................................................................................................ 55 SUMÁRIO PRIMEIRA SEÇÃO 13 1.1 INTRODUÇÃO 13 1.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 16 SEGUNDA SEÇÃO 19 2.1 DOMÍNIO COLONIAL, RACISMO E FORMAÇÃO DO ESTADO 19 2.2 RACISMO, CORONELISMO E DEMOCRACIA NA FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 25 TERCEIRA SEÇÃO 37 3.1 O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E A HISTÓRIA (NEGRA) NEGADA DO BRASIL 37 3.2 QUILOMBOS, INSURREIÇÕES, GUERRILHAS E MOVIMENTOS: APONTAMENTOS SOBRE O MOVIMENTOS NEGROS 44 3.3 ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO DE MULHERES NEGRAS NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS 2010,2014 e 2018 51 CONSIDERAÇÕES FINAIS 58 REFERÊNCIAS 60 13 PRIMEIRA SEÇÃO 1.1 INTRODUÇÃO [...]Mulher negra [...]Poderiam estar nos terreiros Em quilombos Nas universidades Mas indago Me pergunto, onde estão As outras? Aquelas vozes que não foram habilitadas. (Mulher Negra - Cristiane Mare) Democracia em seu conceito mais difundido representa o governo exercido pelo povo ou pela maioria, sendo este vinculado à experiência grega desenvolvida no século V em Atenas. Sua realização é diretamente associada à ampla participação de diferentes sujeitos nos espaços de poder, como nos aponta Bobbio (2004). No entanto, ao analisarmos a democracia brasileira percebemos um modelo político marcado pelas relações oligárquicas e coronelistas de poder (LEAL, 2012), oriundas do escravismo tardio (MOURA, 2014), de caráter autocrático-burguês (FERNANDES, 2005), organizado sob valores racistas, patriarcais e voltados a atender os interesses da burguesia interna e estrangeira, quando da consolidação do capitalismo dependente. Esse modelo expresso na formação das instituições de poder, se reflete na composição das casas legislativas. De acordo com os dados do Tribunal Superior Eleitoral – TSE relacionados as eleições legislativas federais dos anos de 2010, 2014 e 2018, com uma média de aproximadamente 18 mil candidaturas, 73,32% são homens e 26,68% são mulheres1. Quando analisamos as candidaturas com recorte de gênero e raça, vemos que mulheres negras2 ainda representam o pior índice no que se refere as candidaturas e as posições quando eleitas. Se considerarmos somente as candidatas que se autodeclararam pretas, a disparidade fica mais evidente. 1 Dados referente a média de candidatos a deputadas/os federais aptos nas eleições de 2010,2014 e 2018. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral – TSE (2020) das 4904 candidaturas a deputada federal em 2010, 19,06% eram mulheres, em 2014 há um pequeno aumento, das 5876 candidaturasaptas 29,34% eram mulheres, e em 2018 das 7658, 31,64% eram mulheres 2 Seguindo os padrões do IBGE (2020), considera -se negra a somatória das variáveis pretas e pardas. 14 Apesar dos dados eleitorais apresentarem um crescimento na participação das mulheres negras nas últimas eleições, os dados não expõem a realidade desses sujeitos, impedindo uma reflexão aprofundada sobre os limites da democracia representativa no Brasil frente às estruturas sociais que constroem a nossa sociedade. O racismo, instrumento político-ideológico de dominação enraizado em todas as esferas da vida social, é negado sob o discurso falacioso da democracia racial (MUNANGA, 2007), a dominação patriarcal que se reproduz nas esferas das relações sociais (trabalhistas, midiáticas, políticas, etc.) e as desigualdades de classe. No caso das mulheres negras, as opressões atuam de maneira combinada, intensificando sua condição de subalternidade. Este trabalho de conclusão de curso surge a partir das inquietações e reflexões trazidas durante a militância partidária. Mesmo inserida num partido de esquerda e militando ativamente, muitas vezes olhava ao redor e via poucas ou nenhuma mulher negra em espaço de protagonismo político, estas sempre foram colocadas em segundo plano e na maioria das vezes silenciadas. Não vivemos nós numa democracia? O que impede esses sujeitos de estarem nesses espaços como sujeitos políticos? Buscando responder tais questões e aprofundar o entendimento sobre as estruturas sociais que afastam mulheres negras da esfera legislativa do poder, esse trabalho tem como objetivo fomentar o debate crítico acerca da democracia no Brasil a partir de uma análise racializada, tendo como referencial a participação das mulheres negras nas eleições legislativas para Câmara Federal nos anos de 2010, 2014 e 2018. E porque esse tema é importante? De partida cabe referenciar alguns apontamentos fundamentais, a começar pela formação social escravocrata que se esconde atrás de um discurso de miscigenação e democracia racial. O Brasil nega o racismo entranhado em todas as esferas, principalmente nas instituições de poder. Após 131 anos de escravização, ainda hoje, vemos o resultado desse processo. Basta observarmos a composição das casas legislativas, formadas por uma grande massa de homens brancos. Os dados apresentados acima demonstram que apesar de representarem grande parte da população3, esses sujeitos ainda não acessam os espaços de poder e visibilidade. Essa 3 Segundo dados do IBGE (2010), 49,7% das mulheres se autodeclararam pretos ou pardas. 15 contradição é fruto de um país que, ao propor a construção de uma democracia representativa, não construiu mudanças estruturais para que de fato houvesse alguma transformação. Ao contrário das esferas e espaços de poder, a população negra é a que mais aparece nos dados de violência. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no período de 2007 a 2017, a taxa de negros vítimas de homicídio cresceu 33,1% enquanto a de não negros apresentou um aumento de 3,3%. No ano de 2017, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil eram pretas ou pardas, e segundo o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN (2017), a população carcerária do Brasil é de aproximadamente 700 mil pessoas, destas 61,7% são negros (pretos e pardos). Ao compararmos os dados populacionais com a realidade, percebemos o lugar social destinado às mulheres negras na sociedade brasileira. Segundo dados do IPEA (2016), as mulheres negras têm uma renda média de R$ 946,00 enquanto homens brancos ganham aproximadamente R$ 2.393,00. Num país onde as profissões têm cor, as mulheres negras ocupam a maioria dos cargos mal remunerados. A lógica patriarcal e racista que permeia as relações sociais no Brasil impõe às mulheres negras uma realidade precária, de subalternidade, marcada pela pobreza, e distante dos espaços públicos e de poder. As desigualdades expostas, nos trazem o questionamento sobre a construção da representação política no Brasil. Sem acesso aos espaços de poder, esses sujeitos dificilmente possuem voz para expor suas demandas, e as raras exceções conseguem ser eleitas, enfrentam desafios cotidianos. Não sendo vistas como sujeitos políticos, são a todo instante reconhecidas como a “tia do café”4, a auxiliar de serviços gerais, a empregada doméstica5, nunca como deputadas e/ou vereadoras. Pensar a democracia sob a perspectiva da participação das mulheres negras nas eleições, é questionar se de fato vivemos num modelo democrático representativo. É questionar se as estruturas e instituições de poder são abertas a todas e todos os sujeitos. Além disso, é problematizar como os valores de uma sociedade capitalista, patriarcal e racista como a nossa, interferem nos limites e lugares sociopolíticos destinados aos sujeitos. 4 No ano de 2016 durante o discurso da senadora Regina de Sousa (PT- PI) no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff no senado, Danilo Gentili refere-se, por meio das suas redes sociais, a senadora Regina como “tia do café”. 5 Posições reconhecidas socialmente e financeiramente como subalternas, onde a mulher n egra desempenha o papel de servir 16 Objetivando uma maior compreensão do tema, este trabalho está dividido em 3 partes, sendo a primeira uma análise e contextualização da democracia no Brasil, trazendo referências do coronelismo e das relações eleitorais, além de apresentar as algumas determinações do colonialismo baseado na escravização, primeiramente plena e depois tardia (MOURA, 2014) no que se apresenta hoje como democracia. O segundo capítulo percorrerá a construção do mito da democracia racial , e história das revoltas e lutas populares que contribuíram para uma maior participação dos sujeitos nas esferas de poder. Além disso será apresentado um diagnóstico da população negra no Brasil, buscando evidenciar as marcas do racismo e sexismo legadas de nossa particular formação social. Por fim, traremos os dados eleitorais das últimas eleições legislativas federais, como amostra desse processo estudado. 1.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e de natureza descritiva As pesquisas deste tipo têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis. São inúmeros os estudos que podem ser classificados sob este título e uma de suas características mais significativas está na utilização de técnicas padronizadas de coleta de dados (GIL, 2008, p. 28). De cunho qualitativo, tem por objetivo analisar os dados que refletem os impactos do racismo na formação social brasileira e na realidade de representação de mulheres negras nas casas legislativas. A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 2007, p. 22). Cabe ressaltar que o campo empírico da pesquisa inicialmente é formado a partir das estatísticas dos processos eleitorais para o legislativo disponibilizados no site do Tribunal Superior Eleitoral - TSE, especificamente os períodos de 2010; 2014 e 2018, considerando apenas as candidatas e candidatos aptos. Assim, a análise de cada processo eleitoral será realizada a partir do cruzamento de dados das candidaturas de cada ano, referentes aos cargos, gênero e raça. Após esse 17 levantamento, busquei junto aos dados do TSE o número de eleitos e a composição da casa legislativa, objetivando assim, o mapeamento das candidaturas de mulheres negras para o congressofederal. No entanto, é importante destacar que o critério raça/cor foi incluído nos dados apenas no ano de 2014, sendo resultado de uma luta histórica dos movimentos negros brasileiros. Segundo o TSE, a inclusão foi feita a partir da demanda da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República – SEPPIR/PR que, visando a construção de ações de promoção de igualdade racial, põe como central a construção democrática dos indicadores. Segundo a Resolução nº 23.405, no artigo 26, inciso IV, o formulário de Requerimento de Registro de Candidatura (RRC) deverá conter: [...] dados pessoais: título de eleitor, nome completo, data de nascimento, Unidade da Federação e Município de nascimento, nacionalidade, sexo, cor ou raça, estado civil, ocupação, número da carteira de identidade com o órgão expedidor e a Unidade da Federação, número de registro no Cadastro de Pessoa Física (CPF), endereço completo e números de telefone (BRASIL, 2010, [s.n.]). Desse modo, durante o processo de cruzamento dos dados, foram encontradas dificuldades em construir os indicadores eleitorais devido à falta de informações raciais nas bases de dados do Tribunal Superior Eleitoral - TSE e na biblioteca da Câmara Federal. Esse processo nos colocou a necessidade de reconfiguração do processo metodológico planejado. Não sendo possível mapear as candidaturas de mulheres autodeclaradas negras (somatória pretas e pardas) ao legislativo federal devido à ausência de dados que fizessem o cruzamento de cruzando raça e gênero, limitamos a pesquisa quantificando apenas as mulheres autodeclaradas negras eleitas. Concluído o processo de construção desses indicadores foi realizado um levantamento bibliográfico e de coleta documental (em meio digital) de dados e estatísticas disponibilizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral -TSE, ONU Mulheres, Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), traçando um estudo dos dados populacionais disponibilizados para traçar um comparativo com os dados de representação legislativa na Câmara Federal. 18 Ao fim deste levantamento, por meio da revisão das bibliografias apresentadas, pretende-se entender os diferentes fatores históricos sociais que sustentam as relações de desigualdade e contribuem para a baixa participação das mulheres negras na Câmara Federal. O presente trabalho é estruturado a partir de dois capítulos, no primeiro (segunda seção) - Domínio colonial, racismo e formação do Estado é apresentado as origens do padrão colonial de poder (QUIJANO,2005) que se estrutura a partir da divisão e hierarquização racial do mundo. Faremos também um breve debate sobre as contradições do Estado moderno (OSORIO,2014), e por fim analisaremos a transição da escravização para o capitalismo dependente (MOURA, 2014) e a influência do coronelismo e das relações oligárquicas na construção política do Brasil (LEAL,2012). Já o segundo (terceira seção) - O mito da democracia racial e a história (negra) negada do Brasil - será dedicado à compreensão histórica das relações raciais no Brasil e a influência do mito da democracia racial na construção da imagem do negro. Também abordaremos o apagamento da história contra hegemônica dos movimentos negros existentes deste o período escravocrata, passando pela sua inserção e organização na arena política. Por fim, concluiremos com uma análise da participação eleitoral das mulheres negras no Congresso Nacional nos processos eleitorais de 2010,2014 e 2018, buscando analisar o impacto do racismo e sexismo na composição das estruturas de decisão do Brasil. 19 SEGUNDA SEÇÃO 2.1 DOMÍNIO COLONIAL, RACISMO E FORMAÇÃO DO ESTADO - ANTESALA DA ACUMULAÇAO CAPITALISTA Para pensarmos a ampliação da democracia e da participação dos sujeitos é necessário debater as origens do padrão de poder que ainda atua nos dias de hoje, onde este, mesmo assumindo novas faces, mantém as características centrais (divisão racial e controle do trabalho). O poder constituído como instrumento de dominação e determinação de lugares dos sujeitos segue um padrão eurocêntrico, que a partir da racialização das relações, designou espaços que podem ou não ser ocupados por sujeitos a partir da sua cor e fenótipo. Percebemos as reverberações deste até os dias atuais, seja através das negações e violências que a população negra sofre, seja nas afirmações de igualdade centradas na manutenção de uma hegemonia branca e masculina. Esse padrão não é algo particular do Brasil, ele é vivenciado em todo o globo, e a partir da invasão das Américas constitui-se num sistema de mundo centrado na divisão racial e no controle das relações de trabalho e seu processo de produção. Para iniciarmos o debate sobre a democracia brasileira tal qual conhecemos hoje, é necessário que nos debrucemos sobre a origem desta e sobre as relações e instituições que a mantém, faremos isso sob luz do pensamento de Quijano (2005) e Osório (2014), onde analisaremos o caráter colonial das relações de poder e a reprodução destes traços em nossa estrutura política por meio do Estado moderno. A perspectiva de pensamento colonial, têm o surgimento marcado na Europa do século XV, sua universalização desenvolveu-se a partir dos processos de acumulação primitiva de capital, os quais demandaram a racialização e a distribuição de lugares na estrutura de poder, sendo assim o mais antigo e eficaz instrumento de acumulação de capital e dominação política. Além desta, o padrão colonial de organização do poder tinha como característica fundante o controle e exploração do trabalho e suas relações de produção no período. As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois era necessariamente dependente do outro para existir ou para transformar-se (QUIJANO, 2005, p. 118). 20 A divisão racial, eixo fundante da colonialidade, se sustenta a partir de uma concepção moderna de raça que surge com a necessidade de classificação dos sujeitos. Raça em seu conceito etimológico significa “sorte, categoria, espécie”. Segundo Munanga (2004), o termo surge como método de classificação da diversidade humana. Com o advento da modernidade e a necessidade da racionalização das relações, este passa a ser utilizado como instrumento de hierarquização entre os sujeitos e classes, centrados na sua cor de pele e diferenças fenotípicas, assumindo assim, a conotação que funda esse novo padrão de poder – o qual obedece a uma necessidade da acumulação capitalista em escala global. [...] Assim, os indivíduos da raça “branca”, foram decretados coletivamente superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e consequentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e consequentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação. (MUNANGA, 2004, s/n) A expansão mundial da dominação colonial por parte da raça socialmente construída como dominante - brancos (europeus) - impôs o critério racial de classificação social em escala global, criando assim novas identidades. Assim como na América, a distribuição racista da população combinada as maneiras de exploraçãodo capitalismo colonial (QUIJANO,2005), foi exitosa e se expressou na organização da branquitude social e na organização do trabalho. Nas regiões europeias e não europeias o trabalho assalariado concentrava-se majoritariamente na mão de brancos, enquanto que o trabalho não assalariado era destinado a raças dominadas (negros e indígenas), sob a justificativa de serem inferiores. Quijano (2005) nos descreve os primeiros séculos da colonização ibérica: A reorganização política do colonialismo ibérico que se seguiu implicou uma nova política de reorganização populacional dos índios e de suas relações com os colonizadores. Mas nem por isso os índios foram daí em diante trabalhadores livres e assalariados. Daí em diante foram adscritos à servidão não remunerada. A servidão dos índios na América não pode ser, por outro lado, simplesmente equiparada à servidão no feudalismo europeu, já que não incluía a suposta proteção de nenhum senhor feudal, nem sempre, nem necessariamente, a posse de uma porção de terra para cultivar, no lugar de salário. Sobretudo antes da Independência, a reprodução da força de trabalho do servo índio se fazia nas comunidades. Mas mesmo mais de cem anos depois da Independência, uma parte ampla da servidão indígena era obrigada a reproduzir sua força de trabalho por sua própria conta. E a outra forma de trabalho não-assalariado, o não pago simplesmente, o trabalho escravo, foi restrita, exclusivamente, à população trazida da futura África e chamada de negra (QUIJANO, 2005, p. 120). 21 Os colonizadores estabeleceram instrumentos de classificação da população e criação de novas identidades, e através destes, desenvolveram uma lógica onde apenas o trabalho do branco é pago, aos outros (tomados desde essa construção social de raças inferiores), o trabalho não é digno de ser remunerado. Esse pensamento perdura até hoje, basta analisarmos a divisão salarial da população, no mundo e no Brasil. Ainda hoje a força de trabalho de negras, negros é menos remunerada que de homens brancos. Segundo os dados do IBGE (2010) mesmo sendo a maioria da população brasileira composta por pretos e pardas, estes ainda recebem menos que homens brancos, independentemente do nível de escolaridade6 e representam 75,2% da camada mais pobre. Quando observamos os dados sobre realidade das mulheres negras, percebemos que as opressões de raça, gênero e classe agravam a desigualdade, estas permanecem na base da desigualdade de renda, recebendo menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%). A universalização do controle do trabalho e das relações de assalariamento e não assalariamento baseadas na colonialidade do poder, onde o padrão de exploração perpassa a divisão racial dos sujeitos constituiu um novo padrão de poder mundial, determinando não só a condição de assalariamento dos sujeitos, mas também a divisão geográfica, econômica e criando outras identidades para maior classificação dos sujeitos na Europa e fora dela. Essa colonialidade do controle do trabalho determinou a distribuição geográfica de cada uma das formas integradas no capitalismo mundial. Em outras palavras, determinou a geografia social do capitalismo: o capital, na relação social de controle do trabalho assalariado, era o eixo em torno do qual se articulavam todas as demais formas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Isso o tornava dominante sobre todas elas e dava caráter capitalista ao conjunto de tal estrutura de controle do trabalho. Mas ao mesmo tempo, essa relação social específica foi geograficamente concentrada na Europa, sobretudo, e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismo. E nessa medida e dessa maneira, a Europa e o europeu se constituíram no centro do mundo capitalista (QUIJANO, 2005, p. 120). O capitalismo surge com traços tangentes a este padrão moderno, colonial e eurocêntrico, por meio do estabelecimento do sistema mundo, sistema de poder criado alicerçado sob o padrão europeu, a partir deste, a Europa não só se estabeleceu como hegemonia mundial, mas impôs o domínio colonial sobre todos os países do globo, implicando assim, na redefinição histórica da identidade dos sujeitos. 6 No ano de 2018, o rendimento médio mensal das pessoas ocupadas brancas (2.796 reais) foi 73,9% superior ao das pretas ou pardas (1.608 reais). Os brancos com nível superior completo ganhavam por hora 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesmo nível de instrução. 22 A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um único mundo dominado pela Europa, significou para esse mundo uma configuração cultural, intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente à articulação de todas as formas de controle do trabalho em torno do capital, para estabelecer o capitalismo mundial. Com efeito, todas as experiências, históricas, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento (QUIJANO, 2005, p. 121). As condições em que a Europa se instituiu como hegemônica são marcadas por violências e pela repressão dos sujeitos, de seus padrões de conhecimento nativo, da cultura nativa, etc. Os colonizadores forçaram estes a apreender e aderir ao conhecimento de bases europeias, além do modo de produzir e de organização em sociedade. Por meio deste processo e disseminação desta concepção etnocentrista de mundo, os europeus redefiniram o tempo histórico deste, colocando-se naturalmente como superiores e mais evoluídos, enquanto que os povos colonizados eram tidos como inferiores e anteriores aos europeus. Um dos diálogos que embasaram esse pensamento era o discurso moderno centrado na racionalidade, onde o padrão Europeu era o detentor da racionalidade, enquanto que os povos colonizados eram primitivos, irracionais e sem conhecimento. Como consequência disso, a Europa define o outro a partir da negação de si, ou seja, tudo aquilo que não segue um padrão europeu, criando assim uma dicotomia Europa - não Europa, a exemplo do Oriente. Partindo do princípio que o conceito de modernidade refere-se ao novo, racional científico e secular, percebemos que apesar de passível em diferentes momentos históricos e territórios, o modelo eurocêntrico determina o surgimento e difusão da modernidade como algo europeu, sendo as características desta ligados a seu padrão de organização social. A pretensão eurocêntrica de ser a exclusiva produtora e protagonista da modernidade, e de que toda modernização de populações não-europeias é, portanto, uma europeização, é uma pretensão etnocentrista e além de tudo provinciana. (QUIJANO, 2005, p. 123) Essa presunção é baseada em diferentes eixos, que juntos compõem o ethos da colonialidade europeia Um, é o primeiro em que cada um dos âmbitos da existência social estão articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relações sociais correspondentes, configurando em cada área um única estrutura com relações sistemáticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto. Dois, é o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada âmbito 23 de existência social, está sob a hegemonia de uma instituição produzida dentro do processo de formação e desenvolvimento deste mesmo padrão de poder. Assim, no controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, está a empresa capitalista; no controle do sexo, de seus recursos e produtos, a família burguesa; no controle da autoridade, seus recursos e produtos, o Estado-nação; no controle da intersubjetividade, o eurocentrismo. Três, cada uma dessas instituições existe em relações de interdependência com cada uma dasoutras. Por isso o padrão de poder está configurado como um sistema. Quatro, finalmente, este padrão de poder mundial é o primeiro que cobre a totalidade da população do planeta. (QUIJANO, 2005, p. 123) O conjunto estabelecido a partir deste modelo de organização atravessa a vida social, construindo uma subjetividade coletiva e instituições que instauram novas relações sociais. Esse padrão de modernidade eurocêntrico se estabeleceu como hegemônico, articulando todas as esferas da vida social, atravessando a fundação do Estado moderno. Quijano (2005) destaca que, apesar da constituição de nações e/ou Estados não serem algo exclusivo deste padrão de poder, é a partir deste período que se dá início a organização nacionalizada da sociedade, a criação de instituições modernas e a democracia política. Segundo o autor, “o Estado-nação é uma estrutura de poder, do mesmo modo que é produto do poder.” (QUIJANO, 2005, p. 130) que tem como expressão o poder político concentrado e centralizado em sua figura. [...] Geralmente, a conformação dos Estados - nação pressupôs na verdade, o predomínio de alguma nacionalidade sobre outras que foram submetidas, enquanto vencedores tratavam de estabelecer um imaginário de homogeneidade (normalmente através de uma ideologia “nacionalista") sobre uma base real heterogênea, gerando uma identidade comum e uma consciência coletiva que favorece a coesão interna. (OSÓRIO, 2014, p. 31) Para Osório (2014) a sociedade capitalista tem como característica central a fragmentação dos aspectos econômicos e políticos da vida social, negando a totalidade das relações de domínio e poder. Fazendo com que: [...] A compra e venda da força de trabalho, sua utilização e exploração apareçam como processos regidos por uma lógica alheia a coerções extraeconomicas, isto é, ao Estado. Uma vez estabelecida historicamente a separação entre os trabalhadores e seus meios de subsistência - processo realizado de forma massiva por mecanismos políticos violentos -, esta separação parece se reproduzir regida por sua própria lógica sem a ingerência dos fatores políticos. Os operários se apresentam nas fábricas sem a necessidade de uma coerção política. A necessidade de subsistência os leva a isso, na medida em que não contam com nada mais do que com sua força de trabalho para subsistir. (OSÓRIO, 2014, p. 22) Assim, cada uma destas esferas é exposta como se fosse independente da outra, negando as relações entre a exploração e o exercício do poder e seu papel na organização da vida em 24 comum. Sendo assim, o Estado capitalista fragmenta os aspectos da exploração e reprodução das classes. Desse modo, Osório (2014) analisa que o moderno Estado capitalista é algo complexo e contraditório, tendo em vista que se trata de um Estado de classe, o qual na periferia do sistema de acumulação em escala global incorpora de forma contraditória as condições sócio-históricas estruturais de sua emergência no período colonial. Ao ocultar as relações capitalistas de poder e dominação de classe7 que o permeia e constitui, o Estado se manifesta como se fosse voltado aos interesses coletivos. Para o autor, as sociedades latino-americanas (incluindo aí o Brasil) com seu particular processo de transição da escravização para o capitalismo dependente, tendem a somar contradições típicas do colonianismo - assentadas sobre esse padrão de poder (eurocêntrico e colonial) – às novas contradições, tendo em vista um rearranjo no sentido de se alinhar com as classes dominantes locais e estrangeiras. Assim, o Estado moderno aparece como ocupante dessa posição de instrumento regulador da vida comum por meio das instituições que o compõem, fazendo com que os sujeitos executem suas funções em seus lugares estabelecidos dentro desse modelo de sociedade. Isto se dá de diversas maneiras, seja por meio da força coercitiva que opera a violência concentrada, seja através do discurso imaginário de igualdade entre os sujeitos, estabelecendo a crença da cidadania e da democracia. De acordo com Osório (2017), podemos afirmar que a fetichização do Estado fortalece a noção de comunidade ilusória, onde o mesmo se manifesta como um espaço político democrático a cidadania se expressa como “cada cabeça um voto, igualdade política, tomada de decisões sobre a vida comum” (OSÓRIO, 2017, p. 30), desvencilhando-se das relações de classe, onde perdura as condições de desigualdade. [...] para o capital é fundamental romper com a unidade entre economia e política, para que qualquer coisa que se dê na economia (como a desigualdade social, a concentração dos meios de produção, etc.) apareça como um assunto não político e qualquer coisa que se dê na política (quem manda, quem obedece, os projetos de quem organiza a vida comum) apareça como não econômico (mas como assuntos de cidadãos, indivíduos iguais em termos políticos e não como assuntos de grupos econômicos ou de classes que dominam).O Estado e a política não são epifenômenos da economia. Mas tampouco constituem esferas independentes e autônomas, tal como prefere 7 Osório (2014) diferencia poder e dominação, entendendo que o primeiro é um aspecto genérico em que se incorpora a segunda, que tem como particularidade o consentimento dos sujeitos dominados. 25 afirmar o pensamento dominante. São dimensões de uma unidade diferenciada. (OSÓRIO, 2014, p. 25) 2.2 RACISMO, CORONELISMO E DEMOCRACIA NA FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA Tendo abrangência mundial, o modelo colonial de poder se instaura no Brasil como hegemônico, influenciando diretamente o processo de transição da escravização para o capitalismo dependente no Brasil. Sendo uma sociedade constituída a partir da escravização e da acumulação de riquezas promovida pela exploração de africanas/os escravizados, sendo todos os níveis de organização societária, particularizando também as revoluções burguesas, que ocorrerão no período seguinte no Brasil formados a partir destas contradições De acordo com Moura (2014) a transição para o escravismo tardio, sucedeu um longo período a partir de 1850, esta aconteceu de maneira lenta e gradual, sendo impulsionada por medidas importantes, dentre as quais destacamos: a impetração do capital estrangeiro inglês, a Guerra do Paraguai, a Lei de Terras e a Lei Eusébio de Queirós (1850), que proibiu o tráfico internacional de escravizadas/os, contribuindo para a ruína do sistema escravista e ascensão do trabalho livre8. Segundo Moura (2014) o modo de produção escravista, pode ser dividido em duas fases: o escravismo pleno que tem seu início em 1550 e fim na ascensão do escravismo tardio (1850), que construiu a base para o capitalismo brasileiro. Faremos uma breve análise desses momentos históricos e seus reflexos a fim de compreendermos a configuração das relações sociais que permeiam a sociedade brasileira até os dias atuais. Para se compreender a racionalidade que se desenvolve através da dominação econômica e extra econômica no modo de produção escravista temos de dirigir a nossa ótica não para o comportamento bom ou mau dos seus agentes principais - senhores e escravos - mas para a totalidade do comportamento dos componentes da sua estrutura [...]. (MOURA, 2014, p. 46) Seguindo o pensamento do autor, entende-se o escravismo pleno como um momento histórico que teve início no século XVI e seu gradativo fim no século. XIX, abrangendo assim, todo o período colonial. Esses trezentos anos configuraram e definiram modo de produção que 8 Além das medidas oficiais feitas a partir das leis, os sujeitos escravizados contribuíram diretamente para o fim deste sistema, através das lutas assíduas e das fugas, que se tornaram constantes. 26 tinha como características basilares o trabalho escravo e o latifúndio, além das classes centrais: senhores e escravizados. Com relações econômicas fundamentadas sob o sistema colonial, o modo de produção nesseperíodo era voltado à exportação e sustentado pelo trabalho escravo. [...] somente a escravidão era a forma de trabalho adequada ao sistema colonial porque somente ela, através da exploração econômica e extraeconômica do trabalhador, com um nível de coerção despótico e constante, poderia extrair o volume da produção que fizesse com que o empreendimento fosse compensador. O montante de investimentos e a sustentação de uma camada improdutiva (inclusive escravos) levaram a que somente com o trabalho escravo existe a possibilidade de lucros compensatórios para o vendedor e comprador [...] (MOURA, 2014, p. 67-68). Sob a luz do pensamento de Moura (2014) podemos afirmar que esse modelo de relação tem seu desenvolvimento diretamente vinculado ao tráfico internacional de africanas/os escravizadas/os, pois este era força de trabalho imprescindível para a dinâmica de acumulação que se instaurava no país. Por outro lado, o controle da comercialização e preço não era realizada pelos senhores de escravos, e sim pela metrópole, reforçando a subordinação à metrópole. As relações de trabalho eram regidas através de leis que promoviam a exploração de todo o sobretrabalho através da coerção do trabalhador, esta que se utilizava da mais brutal violência para sustentar o equilíbrio desse sistema. “O tronco, a gargalheira, o anjinho, o açoite, a prostituição forçada, a desarticulação familiar, a homossexualidade impostam, a tortura nas suas diversas modalidades [...]” (MOURA, 2014, p. 46). Quando pensamos nas mulheres negras, a coerção ultrapassa os níveis destes instrumentos de tortura, sendo muitas vezes estendidas aos estupros e outras maneiras de violência sexual. A escravização atravessava todas as dimensões da vida social, inclusive as práticas simbólicas e o Estado. A este cabia como função central a manutenção dos interesses e privilégios dos senhores de escravos, e o controle das revoltas e resistências promovidas pelos negros escravizados. Apesar da chegada da família real portuguesa no Brasil(1808) e a promulgação da independência (1822), as relações culturais políticas e econômicas sustentadas no escravismo patriarcal pouco se alteraram. A modernização promovida nesse padrão aconteceu de forma a preservar as estruturas, uma modernização conservadora (MOURA, 2014). [...] Cria-se uma contradição na estrutura que começa a produzir choques, assimetrias, conflitos como reflexos e reduções dessa diferença. Essas 27 contradições e/ou desestruturação manifestam-se [...] quer na área do trabalho, onde são mais agudas, quer no nível ideológico, gerando ideias em grupos e organizações que passam a reproduzir o que tem de moderno, isto é, ciência e tecnologia avançadas. Mas, por outro lado, ao serem aplicados eles irão servir aos detentores do poder, às suas instituições [...] o moderno passa a servir o arcaico [...] (MOURA, 2014, p. 85-86). Essa modernização conservadora, como nos salienta o autor, gerou o desenvolvimento de novas tecnologias e refletiu nas esferas política, econômica e cultural, no entanto isso pouco alterou suas relações de produção, mantendo assim o regime escravista como base de acumulação, ou seja, apesar das transformações e avanços produzidos pelo “progresso”, estes ainda eram utilizados como instrumentos de manutenção do poder pelas classes dominantes e suas instituições. O autor (MOURA, 2014) caracteriza esse período como escravismo tardio. O escravismo tardio acentua o processo de dependência política econômica brasileira, evidenciando o capital estrangeiro como regente das relações capitalistas, padrão que se refletiu nas diferentes esferas da vida social. Esse processo gerou a impossibilidade de existência de uma classe burguesa vinculada aos interesses nacionais. [...] não houve a possibilidade de formar uma classe burguesa nacional nas condições de assumir o comando desse desenvolvimento, mas as suas capas médias - inclusive políticas - foram prestar serviços auxiliares aos grandes incorporadores estrangeiros, investidores e filiais de bancos ou empresas que se instalaram aqui transformando-nos em um simples entreposto mercantil e bancário dos seus negócios. (MOURA, 2014, p. 87) Para Moura (2014), as classes dominantes prevendo a anunciada decomposição do escravismo e a surgimento do trabalho livre, estabeleceram alguns marcos, sendo a Lei Eusébio de Queirós (1850) o de maior impacto na deterioração dessa estrutura; a Tarifa Alves Branco (1844) que foi construída no intuito de aumentar a receita do país protegendo a indústria nascente, e conservando as forças internas que apresentavam como necessidade o trabalhador livre. É importante destacarmos que os postos de trabalho remunerados foram ocupados majoritariamente por imigrantes europeus, excluindo assim, negros e negras, que ao saírem das senzalas não seriam incorporados nesses postos da nascente ordem econômica. Era como se estivéssemos em uma sociedade de economia livre. Não se computava a realidade de sermos uma sociedade escravista, e por isto mesmo, para conseguirmos ser uma sociedade industrial teríamos de abolir o trabalho escravo. Nisto a tarefa é omissa. O aceno à industrialização não levava em consideração nem o fato de termos uma grande massa de trabalhadores ainda considerada coisa e por isto, incapaz de poder participar desse modelo de modernização, nem uma superestrutura jurídica e política que legaliza esse status quo, brecando qualquer possibilidade de mudança social nesse sentido [...] O modelo de industrialização nos quadros do escravismo era mais um 28 proposta ideológica de se modernizar o Brasil sem se considerar nossa realidade estrutural [...]. (MOURA, 2014, p. 107) Seguindo a mesma premissa, em 1850 foi aprovada a Lei da Terra que, com a possibilidade iminente do fim da escravização, tinha como objetivo impedir o acesso à terra pelo negro escravizado. Esta estabelece a terra como mercadoria comercializada pelo Estado, impossibilitando assim, a indenização aos egressos das senzalas e a possibilidade de se tornarem pequenos proprietários. Outra também promulgada em 1850 foi a Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico internacional de africanos, que visava impedir a dinâmica demográfica que mantinha a escravidão. Porém alguns estudos apontam que a partir da proibição do tráfico internacional de escravizados, a partir de 1850, o tráfico interno foi uma alternativa utilizada pelo Estado brasileiro em conjunto com os comerciantes dos chamados “mercados de carne humana” (MOURA,2014). Segundo Moura (2014) outro marco desse período foi a Guerra do Paraguai (1865- 1870), onde o exército era formado em sua maioria por homens negros, que foram mandados por seus senhores ou vendidos ao governo para permanecerem compulsoriamente na linha de frente do combate. A guerra resultou um grande endividamento do Brasil, o que intensificou a deterioração do sistema escravista. Além de produzir uma nova socialização aos sujeitos escravizados. O escravo negro mobilizado compulsoriamente, que irá participar das operações militares, não terá mais a área de interação (restrita) que teria se continuasse no eito, no campo, ou como escravo de ganho nas cidades. O seu relacionamento será outro, a sua individualidade será diferente daquela que seria se ele fizesse parte dos escravos produtivos das fazendas [...]. (MOURA, 2014, p. 144) Além destas medidas, o Brasil aderiu uma política imigrantista como medida para suprir a suposta necessidade de trabalhadores que surgia, incentivando a importação de imigrantes e reforçando a divisão racial do trabalho (QUIJANO, 2005) e a marginalização dos negros e negras na sociedade. Com o avanço do trabalho livre em detrimento do escravismo e, avaliando a possível abolição, a classe hegemônica colonial - governo imperial, políticos, intelectuais orgânicos e religiosos (MOURA, 2014) constrói diversas medidas no intuitode frear a ascensão da população negra na sociedade, distanciando-os do mercado de trabalho remunerado e conservando nas mãos da elite latifundiária os privilégios sob a terra e na sociedade. Além disso, estabelece o branqueamento da população, que era composta majoritariamente por negros e negras (NASCIMENTO, 1978) através da importação da força de trabalho de imigrantes 29 brancos, sob a justificativa da inaptidão dos trabalhadores negros/as para essa nova indústria que surgia. Juntamente a essas medidas, essa classe se apropria do discurso racista como justificativa da marginalização dos negros e negras na sociedade brasileira em sua nova fase do trabalho. Partindo do pensamento do autor, podemos afirmar que a conjuntura das relações de poder da sociedade brasileira pouco se alterou, mesmo após a promulgação da abolição. Os espaços que antes eram dos senhores de escravos passam a ser dos barões e fazendeiros do café, que mantiveram o monopólio da terra através das oligarquias regionais, enquanto que negras e negros escravizados saíram das senzalas sem a liberdade de fato, pois ainda eram tidos como cidadãos de segunda classe. Além disso, sofreram e ainda sofrem com as barreiras construídas pela elite branca, que no intuito de manter seus privilégios, estabelecem instrumentos que impedem a mobilidade social de negras e negros na sociedade. Sendo assim, podemos afirmar que a formalização da abolição não trouxe e nem produziu condições para uma liberdade efetiva, está, sob o discurso de igualdade jurídica, cria uma falsa realidade de igualdade entre os sujeitos na tentativa de silenciar as lutas e feridas do período escravista, impedindo socialmente a sua superação e o debate responsável das suas consequências. O mito da democracia racial9, peça central para analisarmos as relações raciais no Brasil, se constitui através de uma narrativa de harmonia social e igualdade, que objetiva a negação da divisão racial da população enquanto que estabelece os padrões e lugares sociais dos sujeitos tendo base sua cor da pele e diferenças fenotípicas. “O ideal tipo das elites brasileiras, como a ideologia de prolongamento do colonizador, continuou e continua simbolicamente sendo o branco. O antimodelo étnico e estético, como símbolo nacional continua sendo o negro.” (MOURA, 2014, p. 206) Gonzalez (1983) expõe esse padrão de divisão colonial e evidencia a naturalização engendrada no ethos racista e sexista da sociedade brasileira. Enquanto que aos brancos é natural seu lugar de privilégio e dominação na sociedade, aos sujeitos negros é naturalizada a posição de subalternidade, a infantilização. Se inserirmos o recorte de gênero, percebemos que mulheres negras, além da posição naturalizada de subalternidade, foram e ainda são coisificadas 9Segundo Guimarães (2002), a expressão democracia racial surge no Brasil nos anos 1950 como uma metáfora política das relações raciais. Antes havia termos como “sociedade multirrac ial de classes” e “relações raciais harmoniosas”. Já “democracia racial”, foi usada pela primeira vez por Roger Bastide, em um artigo publicado no Diário de São Paulo, em 31 de março de 1944, reportando-se a uma visita que fizera a Gilberto Freyre, que já havia usado o termo “democracia étnica”, no mesmo ano . 30 e hipersexualizadas. Mesmo as poucas exceções que conseguem romper com o ciclo de pobreza e alcançam algum lugar de destaque na sociedade ainda são assimiladas a espaços inferiores. Os espaços de poder sempre foram majoritariamente representados por sujeitos de uma classe, raça e gênero, mesmo com o fim da escravização e após a instituição do sufrágio temos uma democracia de homens brancos, que mantém como padrão dos espaços de poder os herdeiros das oligarquias e coronéis que se mantiveram hegemônicos, mesmo após o fim da escravização. Retrato desta configuração é a posse da terra, sinônimo de poder e prestígio, na mão de uma elite oligárquica. Desse modo, podemos afirmar que com o fim da escravismo aqueles que foram escravizados durante mais de 300 anos, ao saírem das senzalas, encontraram a ausência de posses e direitos, além do racismo que os bestializava. Sem medidas que promovessem melhores condições econômicas e sociais, negros e negras recém libertos migraram para as nascentes cidades e/ou voltavam para as fazendas em busca de trabalho. Já os senhores de escravos, beneficiados pelas indenizações e posse da terra - sinônimo de poder e prestígio da época - converteram-se em grandes latifundiários, podendo explorar o trabalho dos ex- escravizados e dos recentes imigrantes que eram cada vez mais abundantes no país devido a política de embranquecimento. Essa base estrutural colonial e a peculiar transição da força de trabalho – da escravização para o capitalismo dependente – também determinou a forma política da república. Segundo Leal (2012) a estrutura agrária do país construiu bases para o surgimento dos coronéis, figuras de poder centrais nessa sociedade. Em seu livro o autor afirma que coronéis são agentes políticos e econômicos que após enfraquecimento do seu poder político com a decadência da sociedade colonial, procuram manter sua posição como classe dominante, recorrendo às relações com o Estado, expandindo a sua influência. Essa relação pode ser caracterizada como “um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”. (LEAL, 2012, p. [23]). Essa relação promíscua ultrapassa os aspectos financeiros e jurídicos, alcançando a organização da vida política e as relações de poder do Brasil na Primeira República. A partir disso, podemos entender o “coronelismo” como sistema político nacional baseado na troca entre governo e coronéis, onde, o Estado apoia e preserva o comando das instituições locais na mão 31 do coronel, e em troca este oferece os votos que controla. Isto posto, afirmamos o coronelismo como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa. (LEAL, 2012, p.[23]) O voto de cabresto10 é reflexo de uma realidade extremamente desigual do período. Mesmo após a promulgação da isonomia, onde todos somos iguais e possuímos os mesmos direitos, e do sufrágio, a cidadania no Brasil ainda é um sonho decadente para a maior parte da população daquele período. Analfabetos, explorados e com pouco ou nenhum conhecimento sobre os seus direitos, homens e mulheres foram coagidos a seguir o direcionamento de voto do coronel/patrão, representante da autoridade. Vale destacar que a posição de “coronel” não se limita apenas a donos da terra, fazendeiros. Os chefes políticos municipais nem sempre são autênticos “coronéis”. A maior difusão do ensino superior no Brasil espalhou por toda parte médicos e advogados, cuja ilustração relativa, se reunida a qualidades de comando e dedicação, os habilita à chefia. Mas esses mesmos doutores, ou são parentes, ou afins, ou aliados políticos dos “coronéis”. (LEAL ,2012, p[.23]) Apesar do autor (LEAL, 2012) datar a decadência do coronelismo a partir do início da década de 30, observamos que as características dessa relação de poder se mantêm vivas nos dias atuais. Mesmo utilizando uma nova roupagem, os herdeiros dessa classe perpetuam-se como como representantes de uma maioria nas instituições “democráticas”, enquanto uma parcela considerável da população - composta por negros e negras - são empurradas pra“margem” da sociedade, que, sob o ideário racista, estabelece uma representação estereotipada desses sujeitos como sujeitos infantilizados, hiperssexualizados, bestializados, objetificados que devem manter uma postura dócil, servil e submissa. A construção da representação do negro no Brasil foi referenciada a partir do padrão escravocrata e pensamento da classe dominante, que elabora um arcabouço teórico legitimando as práticas e comportamentos que organizavam a sociedade. Este pensamento tem no branco o padrão ideal, enquanto o negro é posto como anomalia social, que precisaria ser superada 10 Sob ameaças e/ou relações paternalistas, os coronéis coagiam os sujeitos da região de sua influência (curral eleitoral) a votarem em seus candidatos indicados, utilizando-se do regime de voto aberto para controle e averiguação. 32 através do branqueamento da nação. Com o objetivo de entender essa estrutura racial e construir uma identidade nacional e partindo de diversas linhas teóricas, sociólogos e antropólogos centraram sua pesquisa na temática, sendo estes estudos, muitas das vezes, feito a partir de valores europeus e americanos, e construídos alienados dos fatores históricos, sociais, políticos e econômicos que atravessam a vida social destes sujeitos, a análise dificilmente possuía a possibilidade de compreensão da totalidade. as categorias de nossa antropologia têm sido literalmente transplantadas de países europeus e dos Estados Unidos. Ora, de todas as chamadas ciências sociais, a antropologia, naqueles centros, é a que se tem menos depurado de ingredientes ideológicos. De modo geral, a antropologia europeia e norte- americana tem sido, em larga margem, uma racionalização ou despistamento da espoliação colonial. Este fato marca nitidamente o seu início, pois ela começou fazendo dos povos "primitivos" o seu material de estudo. Entre outras, a noção de raça assinalou, durante muito tempo, as implicações imperialistas da antropologia. (RAMOS, 1981, p.191) Sendo a maioria dos estudiosos influenciada pela teoria do determinismo biológico do séc. XIX, estes buscavam compreender e transformar a vasta pluralidade de raças que aqui habitavam, suas culturas, valores e identidades tão distintas em uma nação. Conforme Munanga (1999) nos aponta, um dos pioneiros nessa temática foi o sociólogo Sylvio Romero (1851-1914), que através de uma teoria crítico-assimilativa estrangeira centrou seus estudos em compreender a construção da imagem e características do povo brasileiro a partir da miscigenação. Para o autor, o processo deveria ocorrer a modo que garantisse a decomposição da diversidade racial e cultural, eliminando aquilo que se enquadra como não branco e mantendo elementos culturais e biológicos brancos. Em seus estudos aponta a mestiçagem como um processo de transição que lentamente produziria uma nação branca., eliminando assim, as características e cultura de negros e índios. Discordando deste pensamento e partindo de uma outra linha teórica, Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) aponta a mistura das raças como algo degradante que produziria um problema moral e penal, tendo em vista que o mestiço tende a reproduzir o mesmo comportamento das raças originais, além de ser mais suscetível a problemas morais e com grande tendência a criminalidade. A partir disso aponta como solução a construção de diferentes leis para brancos e não brancos, aumentando assim, a responsabilidade penal de negros e índios 33 e aos mestiços, este último era avaliado a partir dos aspectos que apresentava podendo ser mais próximo ou distante do padrão11. Retomando o tema da construção de uma identidade nacional e a mestiçagem, os resultados dos estudos de Euclides da Cunha (1866-1909) apontavam esta última como um desequilíbrio, e o "mestiço — mulato, mameluco ou cafuz - menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais", ou ainda, é "um desequilibrado" ou um "histérico". (RAMOS, 1981, p.197). No entanto entendia que a superação da sua condição se daria a partir do processo civilizatório a depender da região do país que este se encontra. Além do debate sobre a mistura das raças, a “arianização” da nação gerava um grande debate entre os estudiosos, sendo Oliveira Vianna (1883-1951) um dos porta voz dessa teoria. De acordo com seu pensamento os mestiços são produtos históricos dos latifúndios e, portanto, uma força nova na história colonial. Neles nota-se a tendência a expungir de si, por todos os meios, os sinais da sua bastardia originária. Mameluco se faz inimigo do índio e o mulato desdenha e evita o negro. Ambos foram utilizados para combater e destruir os quilombos. Mameluco, capitão sanguinário e truculento a serviço dos bandeirantes e o mulato, capitão-do-mato e terrível perseguidor dos escravos foragidos. Essa tentativa do mestiço em ter uma posição específica na sociedade é provisória e ilusória, porque o branco superior, de classe alta, o repele. E como por sua vez ele foge dos negros e índios das classes inferiores, acaba numa situação social indefinida e torna-se um desclassificado permanente na sociedade colonial (MUNANGA, 1999, p. 65) Tendo negros como a raiz da inferioridade da nação, Viana apresenta como solução dos problemas raciais do país um processo de branqueamento em massa da população, e com isso o surgimento de um modelo nacional caracterizado a partir do fenótipo. Fazendo assim, com que a situação de inferioridade estivesse diretamente vinculada a suas capacidades individuais, já que vivemos numa “democracia racial”, onde todos possuem as mesmas condições políticas e econômicas (MUNANGA,1999). todos os mestiços "superiores" e "inferiores", de acordo com sua classificação, são definidos a partir de características físicas aparentes (o f enótipo) do que pelo genótipo. Ou seja, as qualidades morais e intelectuais dos mestiços são definidas por sua aparência física mais ou menos negróide, mais ou menos 11 De acordo com Munanga (1999), Raimundo Nina Rodrigues baseou sua análise a partir da classificação dos mestiços, construída, segundo ele, para avaliar a responsabilidade penal e dividir os mestiços em três categorias: o mestiço tipo superior, inteiramente responsável; o mestiço degenerado, parcial e totalmente irresponsável; o mestiço instável, igual ao negro e ao índio, a quem se poderia atribuir apenas responsabilidade atenuada. 34 caucasóide, isto é, a partir de seu grau de arianização. (MUNANGA, 1999, p.70) Com a intenção de suprir uma demanda nacional que vinha sendo colocada na década de 1930, Gilberto Freyre apresenta em sua tese um estudo sobre a identidade nacional a representação cultural das raças, que segundo ele viviam em harmonia e numa grande democracia racial, tendo a família patriarcal como símbolo de autoridade. Segundo Freyre (2003) a mistura entre as raças se deu a partir das relações sexuais entre senhores brancos e escravizadas (negras e índias). Foi assim que surgiram as misturas. As três raças trouxeram também suas heranças culturais paralelamente aos cruzamentos raciais, o que deu origem a uma outra mestiçagem no campo cultural. Da ideia dessa dupla mistura, brotou lentamente o mito de democracia racial; "somos uma democracia porque a mistura gerou um povo sem barreira, sem preconceito". (MUNANGA 1999, p. 79) A objetificação do negro e os comportamentos eugenistas12 construídos a partir destas teorias, serviram de base teórica para reforçar o racismo estrutural e as políticas de branqueamento existentes no Brasil. As diferentes violências e anulações de identidade que o corpo negro sofreu e sofre, contribuíram diretamente para que este sujeito não fosse associado aos espaços de destaque, e muitas das vezes internalizassem o ego branco (SOUZA, 1983). [...] Abolição da escravatura quer dizer libertação.Mas será que acabamos mesmo com a injustiça, com a humilhação e com o desrespeito com que o conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Será que acabamos com a falta de amor-próprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Será que já nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadãos de segunda categoria? Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que nesses 120 de abolição conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros? [...]. (SOUZA, 2008, [p.2]) Sendo o processo de construção da identidade negado a este sujeito, e os padrões sociais, conceitos de cidadania e espaços de destaque brancos, buscando sair da marginalidade, o 12 No Brasil, a partir da década de 30, esse projeto atuou como política de Estado visando a exclusão de negros e negras através do branqueamento, da esterilização compulsória de mulheres negras, dentre outras violências. Esse projeto é baseado no trabalho do inglês Francis Galton, que a partir da teoria darwinista de seleção natural, utilizada também para seres humanos, elabora uma justificativa biológica para a discriminação de negros, imigrantes, deficientes e asiáticos, propagava a ideia de que não só t raços físicos, mas como também os intelectuais, eram provenientes de carga genética. 35 racismo faz com que negros e negras neguem sua história étnica e pessoal, e desejem - mesmo conhecendo todas as falhas do sujeito branco - a brancura. O processo de europeização do mundo tem abalado os alicerces das culturas que alcança. A superioridade prática e material da cultura ocidental face as culturas não europeias promove, nestas últimas, manifestações patológicas. Existe uma patologia cultural que consiste, precisamente, sobretudo no campo da estética social, na adoção pelos indivíduos de determinada sociedade, de padrão estético exógeno, não induzido diretamente da circunstância natural e historicamente vivida. É, por exemplo, este fenômeno patológico o responsável pela ambivalência de certos nativos na avaliação estética. O desejo de ser branco afeta, fortemente os nativos governados por europeus. Entre negros, R. R. Moton registrou o emprego do termo “branco” como designativo de excelência e o hábito de dizer-se de um homem bom que tem um coração “branco”. Este “desvio existencial” tem sido observado tecnicamente nos EUA, no Brasil e em toda a parte em que populações negras estão sendo europeizadas. O negro europeizado, via de regra, detesta mesmo referências a sua condição racial. Ele tende a negar-se como negro… (RAMOS, 1955, p. 194-195) O mecanismo de vinculação da imagem do negro e a sua cultura a algo degradante foi executado pelos colonizadores sobre os sujeitos não brancos com objetivo de implantar seus valores linguísticos, religiosos, estéticos e culturais e assim perpetuar o domínio de classe, o domínio sobre os corpos e o trabalho do povo preto. Almejando romper com esse pensamento introjetado e com a alienação da identidade do negro no Brasil, Abdias Nascimento constrói o Teatro Experimental do Negro -T. E.N13, objetivando a construção de uma outra identidade e representação dos homens e mulheres de cor brasileiros. A partir da formulação e prática de atividades criativas, que tinham como base as vivências desses sujeitos, esse espaço tinha a intenção de compreender e observar a partir de uma ótica que tivesse negras e negros como sujeitos da ação, que fossem entendidos como “negro vida” (RAMOS, 1955) Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro tem sido, entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados “antropólogos” e “sociólogos”. Como vida ou realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe tem permitido às condições particulares da sociedade brasileira. Mas uma coisa é negro tema; outra coisa é negro-vida. O negro tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção. O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistador, protéico, multiforme, do qual na verdade, não se pode dar versão definitiva, 13O Teatro Experimental do Negro foi criado em 1944 no Rio de Janeiro, como iniciativa do ator e militante Abdias Nascimento. A proposta surge a partir da necessidade de construção de um espaço onde negros e negras fossem protagonistas de suas histórias, sendo um espaço de valorização social do negro e da cultura afro-brasileira por meio da educação e arte, além da possibilidade de construir um novo estilo dramatúrgico 36 pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje. (RAMOS, 1955, p. 171). A experiência do T.E.N, apesar de datada em 1944 tem como antecedente movimentos e ideias construídas por negros e negras, como por exemplo as confrarias, os fundos de emancipação, as caixas de empréstimo, irmandades e juntas, instituições que recolhiam contribuições de homens de cor destinadas à compra de cartas de alforrias, as, insurreições de negros muçulmanos no Estado da Bahia; os chamados quilombos, aldeamentos de negros fugidos, como a famosa República dos Palmares, em Alagoas, verdadeiro Estado de negros; o movimento abolicionista em que sobressaíram Luiz da Gama e José do Patrocínio, intelectuais negros, e outras iniciativas e associações como o Clube do Cupim em Recife, as Frentes Negras de São Paulo e da Bahia. (RAMOS, 1981, p.212) Além dos pensadores e intelectuais Joaquim Nabuco e Álvaro Bomilcar, que já anunciavam a necessidade do protagonismo negro frente a suas histórias, denunciando a branquitude enraizada na sociedade brasileira. 37 TERCEIRA SEÇÃO 3.1 O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E A HISTÓRIA (NEGRA) NEGADA DO BRASIL Brasil, meu dengo/A Mangueira chegou/Com versos que o livro apagou/Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento/Tem sangue retinto pisado/Atrás do herói emoldurado/Mulheres, tamoios, mulatos/Eu quero um país que não está no retrato (G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, 2019) Compreendendo as diferentes perspectivas históricas sobre a formação social brasileira, este capítulo tem o objetivo de trazer a reflexão sobre os aspectos que consolidam as relações raciais no Brasil. Iniciando com uma reflexão sobre a democracia racial em suas diferentes concepções, perpassando a construção da identidade nacional como “homem cordial”14 (HOLANDA, 1995) e por fim, na intenção de ilustrar as consequências desse processo e as desigualdades e violências ainda existentes na nossa sociedade, apresentaremos os dados da realidade dos negros e negras no Brasil. A ideia de democracia racial tem como marco de difusão a publicação da obra de Gilberto Freyre, Casa-Grande e Senzala, foi publicado na década de 1930 na intenção de pensar a formação social brasileira a partir da família patriarcal e das relações estabelecidas entre o microcosmo existente entre a casa grande, lugar do senhor de engenho, homem, branco europeu e as senzalas onde viviam negros e negras. O autor trabalha a construção da identidade nacional a partir da ideia de harmonização dos conflitos sociais entre essas classes antagônicas, tendo por base a relação sexualizada entre os homens dessa elite branca e as mulheres negras. Essa relação dá origem a miscigenação, defendida por Freyre (2003) como patrimônio cultural, e como imagem deste apaziguamento de discrepâncias sociais e étnicas do Brasil em seu período colonial. O mito de democracia racial e a valorização da miscigenação contrapõe a ideia e existência do racismo na sociedade brasileira, sob o argumento de que aqui, diferentemente de outros
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