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RECREAÇÃO E LAZER Patrick Gonçalves Ludicidade: o jogo e a brincadeira Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir as principais características e os conceitos de ludicidade. � Identificar as atividades lúdicas como forma de trabalho nos âmbitos educacional e social. � Analisar as possibilidades de intervenções lúdicas para desenvolvi- mento social em idosos. Introdução A palavra lúdico se origina no latim e está presente durante toda a história da humanidade. Muitos estudos têm se dedicado a abordar as contribui- ções das atividades lúdicas ao desenvolvimento humano, fazendo surgir, assim, vários entendimentos a respeito da ludicidade. De modo geral, podemos perceber que as atividades lúdicas, os jogos, as brincadeiras e elementos que compõem o conceito de ludicidade apresentam benefícios relacionados a cada fase da vida. Durante a infância, as atividades lúdicas são promotoras da construção da inteligência, da linguagem e das interações sociais. Na fase adulta e com o envelhecimento, possibilitam o combate às patologias associadas ao avanço da idade, atividades físicas prazerosas e uma série de outros elementos fundamentais ao bem-estar geral. Neste capítulo, você vai aprender como o conceito de ludicidade surgiu e se desenvolveu ao longo da história, quais são os principais teóricos que baseiam as atividades lúdicas no âmbito educacional e social e, ainda, compreender como as atividades e os jogos lúdicos podem promover o bem-estar geral da população idosa. Características e conceitos de ludicidade Muito tem se debatido e produzido sobre a importância da ludicidade na aprendizagem e no desenvolvimento humano. Entretanto, algumas pessoas ainda têm dificuldade em compreender a complexidade que envolve esse conceito. Uma das causas dessa dificuldade ganha forma à medida que tal palavra não é encontrada nos dicionários de língua portuguesa ou de outras línguas modernas. A construção histórica da palavra “lúdico” vem de uma variação da palavra ludus, que, no latim, significa jogo, exercício ou imitação. Assim, o que tem se percebido nas pesquisas recorrentes acerca do tema é que, em muitas vezes, o conceito de ludicidade está diretamente relacionado ao jogo, no seu sentido amplo, ou seja, uma atividade dotada de participação voluntária e em que ocorrem diversas expressões de sentimentos. Os jogos podem ter surgido antes do homem, tendo em vista que são encontrados em alguns mamíferos e permaneceram presentes durante toda a história da humanidade (HUIZINGA, 2008). Entretanto, somente com o passar dos anos que intelectuais foram tentando compreender as expressões do lúdico e suas contribuições para a formação humana e social. Dessa forma, é necessário que possamos abordar, primeiramente, um pouco dos aspectos históricos de como o lúdico, os jogos e as brincadeiras foram se constituindo ao longo da história. Embora a história aponte os principais avanços das atividades lúdicas nas sociedades ocidentais, os jogos e as brincadeiras estiveram presentes durante toda a história da humanidade, nas mais diversas culturas. Na Idade Média, as danças, os teatros e as poesias eram as principais formas de divertimento. Entretanto, nesse período, a infância era ignorada. Breve histórico do lúdico Embora as atividades lúdicas estejam presentes durante toda a história da civili- zação como formas de criatividade e expressões culturais, elas foram ganhando um caráter educacional, dotado de uma intencionalidade e objetividade ao fim da Antiguidade. Para Platão (século IV a.C.), o jogo era muito importante para Ludicidade: o jogo e a brincadeira2 o desenvolvimento das crianças, tendo em vista que seriam elas as futuras governantes. Assim, na sua visão, os jogos e as brincadeiras deveriam ser um modo de formar futuros líderes. Ele ainda defendia que, ao participarem de um jogo, as crianças aprenderiam a seguir a rigidez do cumprimento às regras, sendo essa a melhor forma de educar os cidadãos livres para uma sociedade mais justa (KISHIMOTO, 1996). Dados os contextos históricos da época, o jogo era visto como uma possibilidade de aperfeiçoar as habilidades de comunicação e oratória, elementares para a formação intelectual, sem que estas fossem introduzidas na criança de maneira forçada. Assim, Platão abordava o jogo a partir de dois conceitos: como um passatempo, servindo apenas para divertimento, e como objetivos pedagógicos, com o objetivo de desenvolvimento da sociedade. Entretanto, o jogo como objetivo pedagógico só foi efetivamente observado anos mais tarde. A visão de Platão e de Aristóteles, seu discípulo que continuou o desenvolvimento de suas ideias, era no sentido de que o jogo se apresentava apenas como uma possibilidade de inserção prévia das crianças ao mundo experimentado pelos adultos. As ideias de promover jogos e brincadeiras como possibilidade educativa foram iniciadas pelos pensadores romanos Horácio e Quintiliano (século I d.C.), que buscavam entender como estes poderiam ser importantes na construção da aprendizagem de letras e números (KISHIMOTO, 1996). Nesse período, surgem jogos educativos que se desenvolveram por meio da diversão com o uso de letras e números feitos a parir de guloseimas. Uma das primeiras formas de transformar as brincadeiras e os jogos em formas de promover algum objetivo foram desenvolvidas por Horácio e Quintiliano. Essas ati- vidades eram muito parecidas com o que conhecemos hoje por alfabeto móvel. A queda do Império Romano, que deu origem à Idade Média, no século V, proporcionou uma ruptura na construção que vinha ocorrendo a partir dos pensadores gregos e romanos. Inicialmente, a influência judaico-cristã negava as atividades prazerosas, incutindo-as um sentido avesso à elevação espiritual da sociedade. Assim, as crianças eram vistas como adultos em miniatura (ARIÈS, 2006), precisando se dedicar desde cedo às tarefas árduas 3Ludicidade: o jogo e a brincadeira do trabalho. O tempo e os espaços para as atividades lúdicas, então, foram sendo deixados de lado. Somente ao final do século XV houve novamente uma preocupação com o aprendizado, por meio da criação de escolas populares, internatos e externatos. Os jogos educativos e as atividades lúdicas, então, voltavam à tona como sendo algo essencial à infância e ao aprendizado. O século XVII trouxe consigo mudanças significativas no campo do traba- lho. O avanço da industrialização aumentou a carga horária dedicada ao ofício de adultos e também de crianças que já tinham o vigor físico necessário para produzir em fábricas. Assim, os jogos, as brincadeiras e as outras atividades de lazer se tornaram objeto de luxo das classes economicamente superiores. O tempo ao lazer era quase nulo. A falta de leis trabalhistas e a necessidade de trabalhar para manter a subsistência fazia com que a maioria da população das civilizações industrializadas dedicasse o tempo em que não estavam trabalhando somente ao descanso. No entanto, nesse período, as atividades lúdicas, como cantar, faziam parte da jornada de trabalho das crianças que estavam na indústria, como forma de mantê-las motivadas durante todo o período de seu ofício. Após as reivindicações populares culminarem em menor jornada de traba- lho, os estudos acerca dos momentos de lazer como espaço para divertimento e entretenimento e como sendo essenciais ao bem-estar geral do ser humano, extrapolando o entendimento de ser fundamental à infância, ganham força. Os jogos e as brincadeiras passam a ser tomados como objeto de discussão em diversos contextos, para diversos públicos, fazendo surgir conceitos e abordagens diferenciadas de acordo com o olhar de cada contexto a partir de cada autor. A definição de jogar encontra dificuldade nos aspectos linguísticos, uma vez que, em algumas línguas, como no inglês (to play) e no espanhol (jugar), podem significar diversas outras possibilidades do que aquelasque comumente utilizamos no português. Por exemplo, no caso do inglês, sua tradução para o português pode significar tocar, jogar, brincar, peça (teatral), entre outros. Dessa forma, as traduções de obras literárias e de estudos podem apresentar distorções acerca do que os autores realmente quiseram enunciar. Ludicidade: o jogo e a brincadeira4 Conceitos de ludicidade As transformações ocorridas na sociedade ao longo de sua história trataram, em cada momento, de definições diferentes acerca do jogo. Assim, várias são as influências com que ele se mostra na atualidade, possibilitando conceitua- ções diversas, ao passo que uma delas se sobrepõe às outras. Como vimos, a ludicidade tem sua etimologia a partir da variação de uma palavra de origem no latim. Assim, Huizinga (2008) define o conceito de ludus como as atividades típicas da infância, a recreação, os jogos teatrais, as competições esportivas, as apresentações dramatúrgicas e, ainda, os jogos de azar. Importante res- saltar que o conceito desse autor traz uma abordagem que extrapola a fase da infância, sendo possível também entendê-lo a partir de atividades que são desenvolvidas por indivíduos adultos, sendo apresentado pelo autor como o conceito de homo ludens. Nesse mesmo sentido, Brougère (2003) aponta que o oposto a ludus, em latim, era a palavra serius. Nesse conceito, o jogo é entendido como aque- las atividades que são opostas ao trabalho, ou seja, uma forma de utilizar o tempo de descanso em momentos que o indivíduo possa se revigorar, antes de retomar as atividades laborais. Nessa perspectiva, o jogo não está direta- mente associado ao prazer e ao lazer, mas como uma função compensatória ao estado de trabalho. Ainda na perspectiva de buscar os conceitos de ludicidade a partir da etimologia das palavras, Lopes (2004) aborda os elementos que corriquei- ramente são apontados como constituintes de atividades lúdicas, os quais podem ocorrer concomitantemente. Dessa forma, a autora busca expor uma breve conceituação acerca do brincar, do jogar, do brinquedo, do recrear e do lazer (Quadro 1). 5Ludicidade: o jogo e a brincadeira Fonte: Adaptado de Lopes (2004). Elemento Etimologia (latim) Significados atribuídos Brincar Brinco Divertir-se, entreter-se, jogar a partir de e relativo ao contexto abordado. Jogar Jocare Relacionada aos momentos de recreação e distração, práticas de esportes e lutas. Brinquedo Brinco Objetos feitos para divertimento, entretenimento ou jogos, em especial, para a infância. Recrear Recreare Utilização do tempo como forma de revigorar, trazer alegria, aliviar as tarefas árduas do trabalho e proporcionar momentos de criatividade. Lazer Licere Tempo livre, associado ao ócio e ao descanso. Quadro 1. Elementos que expressam a ludicidade Atualmente, os avanços científicos acerca da concepção de infância, da aprendizagem e do seu desenvolvimento permitem um entendimento de lúdico e de jogo a partir da área em que estão sendo abordados, como a psicopedagogia, a sociologia, a antropologia e a psicologia. Importante destacar que, mesmo que os conceitos se diferenciem uns dos outros, muitos elementos que foram se construindo na Antiguidade e na Idade Moderna ainda se fazem presentes nas abordagens atuais. Dessa forma, Massa (2015) aborda as compreensões de lúdico a partir dos principais intelectuais de cada área da ciência (Quadro 2). Ludicidade: o jogo e a brincadeira6 Fonte: Adaptado de Massa (2015). Enfoque científico Autor Visão sobre jogo e/ou lúdico Antropologia Johan Huizinga Uma atividade de livre escolha e de regras dinâmicas, que acontece em determinado tempo e espaço, acompanhando tensões e alegrias. Ciências Sociais Johan Huizinga Uma atividade cultural que possibilita o encurtamento de laços e o aumento de pertencimento aos grupos sociais. Pedagogia Erasmo de Roterdã O jogo é constituído por atividades que atuam como facilitadoras da aprendizagem. Johann Basedow Os jogos são atividades que permitem que a criança aprenda como se estivesse brincando. Psicologia Sigmund Freud Reconstrução da experiência e da cura emocional que ocorrem por meio de atividades ligadas ao jogo. Donald Winnicott O jogo é o intermediário entre a realidade concreta e o mundo psíquico de cada sujeito. Jean Piaget O jogo é uma atividade de construção da inteligência, do afeto e da linguagem. Lev Vygotsky Os jogos são os momentos em que se consolidam valores e ideias que se encontram entre o real e o potencial. Abordagens subjetivas Cipriano Luckesi A ludicidade está associada não somente à prática de uma atividade que possa ser vista (brincar), mas a um estado interno de vivência lúdica de prazer e plenitude. Conceição Lopes Processos dinâmicos inter-relacionais e interacionais desenvolvidos pelos sujeitos e observáveis por meio de elementos que expressam a ludicidade. Quadro 2. Abordagens sobre o jogo e a ludicidade 7Ludicidade: o jogo e a brincadeira Dessa forma, há uma variação de conceitos que tratam acerca da ludicidade. Esses conceitos partem da ótica da área do conhecimento que os abordam. Em uma cultura corporal do movimento, as possibilidades de trabalhar com aspetos lúdicos são muitas. Quer dizer, o jogo pode estar presente nos diver- sos espaços, como escolas, instituições de educação não formal e empresas; com diversos sujeitos, como crianças, adolescentes, adultos trabalhadores e idosos; e ser abordado a partir de muitos objetivos, como de instruir, entreter, socializar ou movimentar, buscando um estilo de vida mais saudável. Assim, a ludicidade assume não apenas uma possibilidade, compreendendo a diversas facetas em que ela se apresenta, de tal modo que muitos elementos podem se encontrar em um único jogo, em uma única atividade, comparando-se a um caleidoscópio, em que as possibilidades e os elementos, unidos, se arranjam de forma única e originam um aspecto singular da ludicidade. Atividades lúdicas como forma de trabalho educacional e social Dentre as possibilidades de realização de atividades lúdicas, encontramos com maior incidência aquelas que são realizadas com fins educacionais e sociais. Dessa forma, é comum que tais atividades se apresentem em insti- tuições educacionais, uma vez que os objetivos primordiais da educação são justamente a instrução e a socialização, preparando os indivíduos para a vida cidadã. Assim, as unidades escolares se mostram promotoras de atividades lúdicas que promovem esses aspectos. Como vimos anteriormente, a visão pedagógica que parte de Basedow e de Erasmo, acerca do jogo e do brincar, se dá no sentido de que estes podem proporcionar um auxílio na aprendizagem, fazendo com que a criança seja ensinada sem perceber que o está, e ainda desfrutando de momentos de prazer e entretenimento. Entretanto, o brincar no contexto escolar não se basta apenas pela pos- sibilidade de proporcionar um “fingimento”. Nessa perspectiva, o jogo é fundamental para a criação de situações imaginárias, em que o sujeito se coloca em posições que ensaiam aquelas vividas por eles na realidade concreta e na compreensão dessas ações. Assim, no contexto escolar e educacional, as contribuições teóricas partem com maior relevância dos referenciais propostos por Lev Vygotsky e Jean Piaget, uma vez que dedicaram seus estudos a partir dos processos psicológicos da aprendizagem. Ludicidade: o jogo e a brincadeira8 O jogo na perspectiva de Vygotsky Para Vygotsky, cada indivíduo interage no processo educacional desempe- nhando um papel de igual importância e não sendo caracterizado apenas como sujeito ativo ou sujeito passivo. O brincar ganha espaço nessa dimensão, atuando como uma forma de promover a interação entre os sujeitos e entre o objeto de saber. Dessa forma, Vygotsky (1989, p. 109) assevera que: [...] é no brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, dependendo das motivações e tendências internas,e não por incentivos fornecidos por objetos externos. A partir dessa compreensão, o brincar ganha uma possibilidade de aprendi- zado que parte da dimensão social para a dimensão subjetiva e, com isso, sendo algo que é formado e formador da cultura compartilhada por cada indivíduo. Para Vygotsky, o brincar é uma atividade típica da infância e ganha maior potência quando as crianças já conseguem elaborar situações imaginárias, em que conseguem criar uma realidade que ainda não participaram. O autor cita que nas brincadeiras características de faz de conta, a criança sempre se coloca como protagonista de uma situação que está à frente de seu tempo, de modo que, durante o jogo, demonstram um estágio de amadurecimento que ainda não demonstram em outras atividades. Tal amadurecimento acontece porque o ato de brincar, no qual se encontram as atividades lúdicas, se mostra como um ensaio da vida real, de papéis, de realidades e de comportamentos que prepararão a criança para a vida adulta. Vygotsky (1991) baseou seus estudos a partir dos conceitos de zonas (ou níveis) de desenvolvimento. Para o autor, o aprendizado pode ser encontrado em três estágios: zona de desenvolvimento real, proximal ou potencial. A zona de desenvolvimento real diz respeito a experiências, saberes, vivên- cias e habilidades já consolidadas pelo sujeito. A zona de desenvolvimento potencial faz referência a possibilidades de desenvolvimento de cada sujeito ou saberes que precisam, mas ainda não foram consolidados. Por fim, a zona de desenvolvimento proximal é o nível em que ocorre a passagem do real para o potencial. Dessa forma, a zona de desenvolvimento proximal é sem- pre dinâmica, haja vista que, após a consolidação dos saberes, há um novo potencial a ser alcançado. 9Ludicidade: o jogo e a brincadeira As zonas de desenvolvimento propostas por Vygotsky, em uma analogia, podem ser comparadas com uma ponte. Em uma das extremidades, encontramos o saber já consolidado; na outra extremidade, encontramos o saber que deve ser alcançado. A ponte, a zona de desenvolvimento proximal, é o caminho a ser percorrido entre o que o sujeito já sabe e o que ainda precisa saber. Dentro da perspectiva sociointeracionista de Vygotsky, o brincar, no âmbito educacional, é um dos meios em que o educador deve conduzir os estudantes na zona de desenvolvimento proximal, que parte do aspecto social para o individual. Importante salientar que Vygotsky preconiza que o vínculo entre o educador, o estudante e o objeto de saber deve ser estabelecido a partir de interações que gerem laços afetuosos. Assim, as atividades devem surgir a partir de um caráter lúdico e de um ambiente em que o estudante tenha total liberdade para interagir com os objetos e sujeitos, de forma a concretizar as possibilidades de aprendizagem objetivadas. O jogo na perspectiva de Piaget Para Piaget, a aprendizagem ocorre à medida que a criança, ao se desenvolver biologicamente, vai construindo a capacidade de interagir com os objetos. Assim, a criança, ainda que dependa da interação com outros seres e objetos, tem papel ativo na aprendizagem (PIAGET, 2010). Para o teórico, o jogo é essencial na aprendizagem, sendo uma das condições ao desenvolvimento infantil, uma vez que, ao brincar, o indivíduo assimila a realidade, qualidade fundamental para poder transformá-la. Assim, os jogos exercem papel fundamental nos conceitos que Piaget aborda sobre assimilação e acomodação (PIAGET, 2010). A assimilação consiste no processo em que a criança, ao passo que vai se desenvolvendo, vai compreendendo e incorporando elementos do mundo externo e subjetivando- -os. Já a acomodação é o processo em que a criança modifica o seu estágio mental a partir das respostas que ocorrem à assimilação. A partir desses dois conceitos, desenvolve seis características que fundamentam os jogos e que estimulam as capacidades cognitivas: Ludicidade: o jogo e a brincadeira10 O jogo encontra sua finalidade em si mesmo; o jogo é considerado uma ativi- dade espontânea; o jogo é uma atividade que dá prazer; ele tem uma relativa falta de organização; o jogo caracteriza-se por um comportamento livre de conflito, uma vez que ignora o conflito; é uma atividade que envolve uma supramotivação ou motivação intensa (PIAGET, 2010, p. 209). Outra importante contribuição de Piaget surge a partir de seu entendimento de que, para cada fase da vida, existe um formato de jogo diferente. Do nas- cimento ao aparecimento da linguagem, os bebês experimentam os jogos de exercício sensório-motor, que consistem em atividades utilitárias básicas, como trazer algo próximo ao corpo ou rolar uma bola. Após essa fase e até os seis anos de idade, aproximadamente, surgem os jogos simbólicos, que, além das atividades dos jogos de exercício, contemplam as atividades simbólicas que permitem a criação e a representação a partir de situações que experimenta no seu contexto social. A partir dos sete anos, aproximadamente, surgem os jogos de regras, que consistem em seguir ordens e valores estabelecidos e a manipulação de regras, essenciais ao convívio social e que se estenderá por toda a vida adulta. Assim, a visão de Piaget se aproxima à de Vygotsky em relação ao jogo quando ambos compreendem que o brincar e os jogos são fundamentais aos desenvolvimentos cognitivo e social. Entretanto, há o entendimento de que suas visões se afastam quando abordam as formas como as interações acontecem para desencadear o processo de desenvolvimento da inteligência. As brincadeiras tradicionais como o pique-esconde e a amarelinha, assim como aquelas que, à primeira vista, não são dotadas de uma intencionalidade, como chutar uma bola ou fazer rolar um carro de brinquedo, constituem uma fase essencial à infância, pois é a partir dessas atividades que os indivíduos desenvolvem os processos cognitivos, linguísticos e sociais. As contribuições acerca do jogo e do brincar, nas concepções de Piaget e Vygotsky, tornam essas atividades mais do que meros entretenimentos, sendo potentes formas de desenvolvimento, essenciais ao aprendizado. Como vimos na primeira seção deste capítulo, por muitos anos o jogo e o divertimento foram compreendidos como distrações que afastam os indivíduos de suas tarefas consideradas essenciais, como o trabalho. Essa visão, de certa forma, 11Ludicidade: o jogo e a brincadeira ainda pode ser encontrada em alguns ambientes sociais, como a escola. Nessa perspectiva, Kishimoto (2001, p. 54) afirma que: [...] é preciso resgatar o direito da criança a uma educação que respeite seu processo de construção do pensamento, que lhe permita desenvolver-se nas linguagens expressivas do jogo, do desenho e da música. Estes, como ins- trumentos simbólicos de leitura e escrita de mundo, articulam-se ao sistema de representação da linguagem escrita, cuja elaboração mais complexa exige formas de pensamento mais sofisticadas para sua plena utilização. Entretanto, os estudos acerca de como o jogo pode ser essencial à cons- trução do intelecto mostra que este, também, deve ser parte integrante das atividades diárias de qualquer unidade de educação formal ou não formal. Além das contribuições do jogo que se aproximam do aprendizado aos conteúdos que são propostos pela escola, as brincadeiras possibilitam que as crianças aprendam as noções de esforço, participação, criação, reflexão e socialização. Desse modo, o brincar, como atividade individual ou coletiva, é uma possibi- lidade de reflexão acerca da sociedade. Desde pequenos, os seres humanos, ao participarem de brincadeiras, têm a possibilidade de compreender todos os fenômenos que experimentam e recriá-los, de tal forma que se utilizem dessas atividades como ensaio para que, mais tarde, possam contribuir com ações que visem à transformação da sociedade. Assim, os educadores, em geral, devem estar atentos às possibilidades que o lúdico pode oferecer ao aprendizado e à socialização, promovendo e mediando momentos para queas atividades expressem o máximo de suas potencialidades. Intervenções lúdicas e desenvolvimento social em idosos Por muito tempo, o envelhecimento, que é um processo natural do organismo, era considerado um privilégio, pois nem todos conseguiam o atingir. Entretanto, os avanços medicinais e a melhora da qualidade de vida fizeram com que, na última década, o número de idosos no Brasil aumentasse consideravelmente. Em 2010, aproximadamente 8,6% da população brasileira era composta por idosos. Atualmente, essa taxa se encontra em crescimento e as estimativas para o ano de 2050 apontam que esse índice passará dos 20% do total de habitantes em solo brasileiro (BRASIL, 2010). Assim, o Brasil vive uma espécie de crescimento exponencial da população idosa, que é caracterizada por indivíduos com mais de 60 anos de idade. Ludicidade: o jogo e a brincadeira12 Em determinado período da história, os idosos desempenharam um papel central no núcleo familiar, sendo delegados a eles a atenção, o cuidado e o respeito. Entretanto, com a dinâmica das relações familiares e de trabalho atuais, muitas vezes as famílias não dispõem de tempo e recursos suficientes para sustentar o cuidado tal como era. Nesse sentido, em grande parte das vezes, os idosos são destinados às casas geriátricas ou, naqueles casos em que não dispõem de recursos financeiros ou amparo governamental, são isolados em suas residências. O isolamento e o sentimento de abandono que acometem os idosos podem refletir em quadros depressivos. Considerando todas as formas de gravidade que a depressão pode tomar, as estimativas apontam que 35% dos idosos sofrem dessa doença psiquiátrica (VERAS, 1994). Soma-se a esses fatos os processos de perda gradual da funcionalidade do organismo, que se verifica por meio de alguns fenômenos que são apresentados no Quadro 3. Fonte: Adaptado de Matsudo, Matsudo e Barros Neto (2001). Nível antropométrico Nível Muscular Outras Aumento do peso corporal/gordura Diminuição da estatura Diminuição da massa muscular Diminuição da densidade óssea Perda na força muscular Maior índice de fadiga muscular Diminuição da coordenação Diminuição do equilíbrio Diminuição da flexibilidade Diminuição da mobilidade articular Aumento da rigidez da cartilagem, dos tendões e dos ligamentos Quadro 3. Eventos deletérios do envelhecimento Assim, esses fatores que se apresentam com o envelhecimento podem comprometer a qualidade de vida dos idosos. Como forma de conter os avanços degenerativos, o sedentarismo e as patologias associadas a essa etapa da vida, as atividades lúdicas podem oferecer uma alternativa às pessoas idosas e para os profissionais que buscam desenvolver o cuidado com a saúde dessa população. 13Ludicidade: o jogo e a brincadeira Ainda que os conceitos de ludicidade geralmente encontrem na infância uma maior aplicabilidade, ele pode ser extrapolado para todas as fases da vida, haja vista suas potencialidades. Em uma perspectiva para a população idosa, as atividades lúdicas são uma forma descontraída de promover o movimento, reduzindo os riscos causados pelo avanço da idade. A atividade física na terceira idade promove uma série de fatores que contribuem para a qualidade de vida. Para Felix (2015), a atividade física é muito importante na terceira idade, pois permite criar, por meio das atividades que proporcionam o bem-estar físico, um bem-estar mental. O mesmo autor cita que alguns benefícios da atividade física para o idoso se dão a partir de: � maior autoconfiança; � segurança no dia a dia por meio do domínio do corpo; � bem-estar físico; � maior predisposição para atividades; � maior mobilidade das articulações, maior elasticidade e reforço muscular; � melhoria da respiração, principalmente nos aspetos da forte expiração; � melhoria da resistência; � estimulação de todo o sistema cardiocirculatório. Assim, as atividades lúdicas podem proporcionar momentos de atividades físicas que contribuam à saúde dos idosos, combatendo o sedentarismo e as patologias que comumente estão associadas com o avanço da idade. As atividades lúdicas possibilitam que os idosos pratiquem atividades físicas de forma prazerosa e divertida. Além disso, é uma possibilidade para que fujam do isolamento que acomete muitas pessoas com a chegada do envelhecimento, participando de atividades em grupo, que melhoram a socialização e a afetividade. Ludicidade: o jogo e a brincadeira14 Além da possibilidade de movimentos corporais que buscam a saúde física, Kishimoto (1996) traz alguns benefícios que a atividade lúdica pode fornecer para qualquer indivíduo, mas que ganham maior relevância com a população idosa: � Autonomia — O jogo potencializa a interação entre o idoso e outros sujeitos e objetos, possibilitando os desafios da curiosidade e da tomada de decisão. � Exercício da cidadania — As atividades lúdicas permitem formar convicções, exercer lideranças e basear suas escolhas individuais por meio do bem comum. � Inserção ao mundo digital — Muitos idosos não utilizam os recursos tecnológicos que utilizamos corriqueiramente na atualidade. Os recursos digitais podem servir para o combate ao isolamento característico da terceira idade. Nesse aspecto, as atividades lúdicas podem promover momentos e jogos digitais que auxiliem e encoraje os idosos a utilizar de tais recursos. � Melhora de relações interpessoais — A possibilidade de participar de momentos agradáveis e que exijam a confiança do próximo permite conhecer uns aos outros, melhorando as compreensões de tratamento. � Afetividade — Os ambientes descontraídos e prazerosos criam as possi- bilidades de fortalecer vínculos afetuosos e sentimento de amorosidade. � Ética — A ética é o conjunto de regras e comportamentos universal- mente compartilhados para a realização social e individual. Os valores são abstratos, sendo difícil a sua abordagem. Nesse sentido, os jogos criam situações imaginárias em que podem ser abordados valores, comportamentos e regras para que sejam refletidos e internalizados. � Cooperação — Os jogos lúdicos apresentam grande possibilidade de serem desenvolvidos em grupo, em que todos partilham de um objetivo comum e comungam de situações agradáveis e prazerosas. Nos dias atuais, as relações tendem a tomar rumos individualistas. Nesse sentido, os jogos lúdicos podem ser abordados a partir de uma proposta em que todos participam de um objetivo comum, sendo que cada um contribui a partir da sua possibilidade. 15Ludicidade: o jogo e a brincadeira As atividades lúdicas trazem a possibilidade da construção de momentos intergera- cionais, em que indivíduos de todas as idades partilham de suas culturas por meio de atividades específicas. Para entender melhor, faça a leitura do artigo Programas intergeracionais: quão relevantes eles podem ser para a sociedade brasileira?, de Lucia Helena de Freitas Pinho França, Alcina Maria Testa Braz da Silva e Márcia Simão Linhares Barreto (2010). As possibilidades de promover a ludicidade são muitas, uma vez que requer poucos recursos de espaço e os materiais, quando necessários, são acessíveis. Dentre essas possibilidades, podemos executar tais atividades em parques, pra- ças, praias, associações de bairros, instituições religiosas, clínicas geriátricas, hospitais, hotéis, cruzeiros e até mesmo residência dos idosos, de forma que, mesmo aqueles que têm dificuldades em sua mobilidade, possam desfrutar dos benefícios que uma atividade lúdica pode proporcionar. Dessa forma, percebemos que o lúdico está presente na sociedade ao longo da história da humanidade. Muitos estudos têm se dedicado a investigar a sua contribuição nos mais diferentes aspectos. De modo geral, podemos perceber que as atividades lúdicas, os jogos, as brincadeiras e outros elementos que compõem o conceito de ludicidade apresentam benefícios relacionados a cada fase da vida. Durante a infância, são promotores da construção da inteligência, da linguageme das interações sociais. Na fase adulta e com o envelhecimento, possibilitam o combate às patologias, as atividades físicas prazerosas e uma série de outros elementos fundamentais ao bem-estar geral. ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006. BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). PNAD 2009 – primeiras análises: tendências demográficas. Brasília: IPEA, 2010. BROUGÈRE, G. Jogo e educação. Porto Alegre: Artmed, 2003. Ludicidade: o jogo e a brincadeira16 FELIX, P. R. Atividade física na terceira idade: estudo comparativo entre praticantes de atividade física e sedentários. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação - Educação Sénior)- Universidade de Madeira, Portugal, 2015. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008. KISHIMOTO, T. M (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 1996. KISHIMOTO, T. M (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 2001. LOPES, C. O. Ludicidade humana: contributos para a busca dos sentidos do humano. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2004. v. 1. MATSUDO, S. M.; MATSUDO, V. K. R.; BARROS NETO, T. L. Atividade física e envelhecimento: aspectos epidemiológicos. Revista Brasileira de Medicina do Esporte. v.7, n.1, jan./fev. 2001 PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. 4 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2010. VERAS, R. País jovem com cabelos brancos: a saúde do idoso no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1994. VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989. VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Leituras recomendadas FRANÇA, L. H. F. P.; SILVA, A. M. T. B.; BARRETO, M. S. L. Programas intergeracionais: quão relevantes eles podem ser para a sociedade brasileira? Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 519-531. Disponível em: <http://www.scielo. br/pdf/rbgg/v13n3/a17v13n3.pdf>. Acesso em: 26 jul. 2018. GALBRAITH, J.; DOWNEY, D.; KATES, A. Projetos de organização de dinâmicas. Porto Alegre: Bookman, 2011. MACEDO, L; PETTY, A. L.; PASSOS, N. Os jogos e o lúdico na aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artmed, 2005. WATT, D. Gestão de eventos em lazer e turismo. Porto Alegre: Bookman, 2007. 17Ludicidade: o jogo e a brincadeira http://www.scielo/ Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo:
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