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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA DISCIPLINA – TEORIA DE TEXTO: SEMIÓTICA NARRATIVA PROF. DR. ANTONIO VICENTE SERAPHIM PIETROFORTE Juliet da Silva Rodrigues A MÚSICA SPOKEN WORD E A PREGAÇÃO DO MUNDO MATERIAL DE VITOR BRAUER: ANÁLISE DE “MINHA BANDA PT.2 (LUPE DE LUPE) São Paulo 2017 Vitor Brauer é músico, escritor e produtor independente mineiro, integra o selo e coletivo Geração Perdida de Minas Gerais e é considerado por alguns o inaugurador do spoken word no Brasil. Não se pode afirmar isso com certeza, mas Brauer acabou influenciando outros artistas lo-fi a gravarem músicas e álbuns de spoken word prosaico. Prolixo, é na sua carreira solo que se encontra a trilogia de álbuns spoken word, o último, lançado em novembro de 2017 na internet (Bandcamp e plataformas de streaming), onde se encontra a música “Minha Banda Pt. 2 (Lupe de Lupe)” que será analisada. O spoken word surge com a Geração Beat nos E.U.A e privilegia o conteúdo falado ao acompanhamento musical. Não entrarei neste trabalho na discussão se letra de música é poesia, se spoken é música. Sabe-se que não é canção, e sabe-se que sendo poesia ou não, Vitor segue certos princípios poéticos, mas com retórica, sintaxe e - o que levo mais em consideração para distinguir os gêneros - a aproximação com a fala. Para tal, usarei as categorias formais estabelecidas por Antônio Vicente Seraphim Pietroforte em seu livro O Discurso da Poesia Concreta, por julgar apropriado, mesmo que Brauer não se considere poeta. Em linhas gerais as categorias poéticas são: “o lingüista afirma a descontinuidade desmontando o sistema verbal; o conversador nega a descontinuidade ao respeitar o comportamento lexical sem desmontá-lo; o pregador afirma a continuidade em suas frases livres; e o arquiteto nega a continuidade do discurso ao impor sistemas de escansão para organizar o fluxo entoativo. Do lingüista ao pregador, passando pelo conversador, há deriva da poesia para a prosa; e do pregador ao lingüista, passando pelo arquiteto, há deriva da poesia falada para a poesia visual. O percurso orientado na afirmação da continuidade está dirigido para a prosa poética, mais afeita à continuidade da palavra e do discurso; já o percurso contrário, orientado na afirmação da descontinuidade, necessita de recursos visuais para marcar a segmentação imposta pela versificação ou pela desmontagem do léxico.“ (PIETROFORTE, p. 30) descontinuidade / lingüísta continuidade / pregador não-continuidade / arquiteto não-descontinuidade / conversador Destaco o percurso prosaico da poesia, ou seja, as categorias do conversador e pregador, pois veremos como Vitor Brauer articula a prosa na letra a ser analisada. Mas antes, é importante salientar que o spoken word no Brasil tem uma outra vertente: as dos artistas de performance, feito muitas vezes por coletivos de arte em parcerias com músicos compositores e/ou poetas. Esses artistas seguem a linha rítmica, conteúdo imagético, e a concisão próprios da poesia “entoada”, se aproximando mais do slam poetry. O que Brauer e seus colegas da Geração Perdida privilegiam é justamente a fala, e para isso se utilizam de letras espontâneas ou que emulam a fala cotidiana, áudios de whatsap, gravações de conversas, além de todos eles serem essencialmente músicos e não poetas. Brauer mesmo não se considera poeta e escreveu um livro de contos que ainda será lançado. Deixo claro que um movimento não vai de encontro ao outro, o que acaba separado-os são os espaços midiáticos e de circulação, uma vez que os artistas de spoken word são mais performáticos e têm um público mais interessado em artes. A Geração Perdida é feita por músicos que não possuem aparato profissional de gravação (daí o termo lo-fi). Muitas das gravações são feitas em estúdios caseiros, assim como as mixagens, captação de áudio pelo celular, e arranjos instrumentais comumente feitos com programas de computador. Esse modo de produção se reflete na estética e no conteúdo das músicas (spoken ou não), e portanto, a circulação do material se faz por blogs de música alternativa, que por sua vez tem um público consumidor que espera certa “qualidade musical”. Destaco isso pois na música spoken word “Créditos” - e sim, são os créditos do álbum - do projeto Xóõ, Brauer diz que “De um lado está minha banda de rock, que possui pouco público e é louvada pela crítica, do outro está minha carreira solo, que nenhum crítico ouve e que possui menos público ainda.” (Xóõ, 2016). A banda em questão é a Lupe de Lupe, assunto da letra a ser analisada. “Minha Banda Pt.2 (Lupe de Lupe)” é, como diz o título, sobre a relação que o autor tem com banda referida. É a segunda de três músicas que falam sobre três momentos importantes de sua trajetória musical: o impulso que culminou na primeira banda e a vontade de fazer música na adolescência (“Isadora” como uma musa); a banda que alcançou notoriedade na mídia especializada em música independente (“Lupe de Lupe”); e um balanço de sua carreira solo, focando muito na recepção da cena musical (“Vitor Brauer”). Ao iniciar “Cícero, Gustavo, Renan e Eu”, são apresentados como personagens, mesmo que já saibamos que o Eu é de fato o autor e que Cícero, Gustavo e Renan são integrantes da Lupe de Lupe. Se pensarmos que a escrita de si supõe um desdobramento de um outro, criando um ser ficcional, podemos chamar essa letra de autoficcional. Philippe Gasparini define autoficção como um: Texto autobiográfico e literário que apresenta numerosos traços de oralidade, de inovação formal, de complexidade narrativa, de fragmentação, de alteridade, de disparatado e de auto-comentário, os quais tendem a problematizar a relação entre a escrita e a experiência (GASPARINI, 2008, p. 311, apud FIGUEIREDO, 2010, p. 93). Ao usar “Eu” com letra maiúscula, personifica-se o “eu” da enunciação tornando-o “Eu” personagem. Assim adoto essa diferenciação no trabalho. A letra prossegue e o Eu apresenta as motivações por trás da criação da banda. Acorda, desgraçado, acorda A vida tá acontecendo e você aí Apesar de não estarem entre aspas, esses versos imperativos são provavelmente a voz interior do Eu (a voz da vontade) falando para o Eu daquela época, que aqui se confunde com o eu da enunciação falando no presente da enunciação para um tu. Essa hipótese corrobora com o discurso de Brauer em outras músicas e até mesmo nesta, quando o monólogo reflexivo e rememorativo toma elementos da pregação. A frase é tão imperativa que espalha isso na sequência, em frases sem sujeito, no infinitivo. Fazer música Fazer rock Sem ser chato Sem ficar criando só música lenta Ou só música dançante Ou só música pesada Ou só música leve Ou só música com riffs Sem seguir as regras do alternativo Sem seguir as regras de um disco de qualquer coisa Brauer apresenta seu projeto musical, não apenas para a sua banda, mas passando adiante o projeto sem regras para o rock alternativo. Aqui ele se contrapõe à categoria semiótica do poeta arquiteto em seu fazer poético, como projeto artístico; Brauer nega os limites dos gêneros musicais. Ao dizer “Uma banda que fizesse discos que provassem que a música independente lo-fi dos pé rapado sem dinheiro podia ser o que quisesse”, ele não usa vírgula, ele não faz pausas para respirar, e ao tomar fôlego, Brauer eleva a região tonal da sua fala e a partir daí segue nesse registro mais efusivo, se aproximando da categoria pregador. Ao repetir “Sem nada a ganhar e com nada a perder”, o verso vai se tornando um mantra da possibilidade que a negação da perda e do ganho têm, gerando liberdade de ação. E sem perceber realizando esse sonho a gente ajudou o mundo a andar um pouquinho pra frente E ver ele sendo realizado foi majestoso Hoje estamos distantes um do outro Mas a Lupe de Lupe continuará pra sempre Aqui há a realização do processo no qual a banda passou, o balanço do presente e a projeção do futuro. Brauer faz três tipos de projeções:a positiva, a positiva-negativa e a negativa. A projeção positiva se mistura com a pregação e tem em “a Lupe de Lupe continuará pra sempre” seu mote. Ter banda é um ato generoso de amizade Todos trilhamos esse sonho com nossos próprios pés Mas saibam que nunca estamos sozinhos Abram os olhos e vejam todos que confiaram os seus sonhos em vocês Eu carrego a semente dos sonhos de inúmeras crianças e adolescentes e adultos e velhos Mortos e vivos Pobres e ricos Fortes e fracos Minha luta também é a luta de todos que não puderam continuar lutando (...) A luta dura pra sempre E pra ter uma banda é preciso ser generoso É fácil deixar a banda pra lá É fácil falar "vamos acabar com isso" (...) Difícil é continuar Aqui o registro se aproxima muito da categoria pregador, mas sempre mantendo as metáforas materiais. A auto-referencialidade faz parte da explicitação do ethos do autor conversador. Segundo Pietroforte, “tanto no texto quanto na construção do éthos dos poetas, esse regime é utilizado com freqüência, uma vez que permite a ênfase nos conteúdos em ação afirmativa” (PIETROFORTE p. 228) Era bem mais fácil mandar um abraço e focar em mim mesmo Era bem melhor pra mim Era melhor ser egoísta e fazer o nome Vitor Brauer (...) Ter aquela conversa que eu nunca quis ter com os amigos produtores de São Paulo E ser dono da minha própria empresa que teria o meu nome Mas esse nunca foi meu sonho Gravar bem, cantar bem Fazer igual um paulistano ou um carioca É só arrumar um emprego no meio da semana E gastar dinheiro adaptando minha música pra todo mundo ouvir e gostar Minha banda, não a nossa banda Com baixo, guitarra e bateria Me adaptando para ser ouvido E não mudando nada no mundo Mas nada disso nunca foi meu sonho Aqui, o autor faz a projeção positiva-negativa, caso ele priorizasse sua carreira solo, aos moldes convencionais. Interessante comparar a letra de “Minha Banda Pt.3 (Vitor Brauer)” em que, numa conversa gravada, Brauer fala sobre a difícil recepção de seus trabalhos solos, justamente por não ter se adaptado para ser ouvido. Há uma outra projeção mais adiante, negativa, caso a banda não existisse. É difícil ter uma banda Uma banda que a gente considere nossa E eu preciso de manter viva essa banda Porque se não fosse por mim Estariam todos Cícero em Maceió com sua namorada Gustavo na Austrália com sua filhinha Renan em Pelotas com seu diploma Todos sem fazer música Todos sem uma banda E isso seria de uma perda tão grande para o mundo Uma perda tão grande, mas tão grande Que eu fico até sem palavras Eu tenho tempo livre e eu tenho disposição Então eu posso ser generoso (...) Faço o que faço E ajudo a empurrar o mundo pra frente A música termina com o pequeno legado que Brauer enxerga de sua banda, novamente misturando o registro da projeção positiva com a pregação. Ao terminar, repete “Sem nada a ganhar e com nada a perder”, mote de um fazer artístico que vê o ganho positivo na negação. Musicalmente, a faixa foi produzida por Daniel Nunes do projeto de música eletrônica Lise, que dialoga com o minimalismo e dá o carácter ora exultante, ora reflexivo, principalmente ao final, quando o carácter da fala de Brauer também se torna mais reflexiva ao fazer o balanço da trajetória de sua banda. Bibliografia: BRAUER, Vitor. “Minha Banda Pt.2 (Lupe de Lupe)”. O Anjo Azul. Belo Horizonte. Geração Perdida de Minas Gerais, 2017. Disponível em <https://vitorbrauer.bandcamp.com/track/minha-banda-pt-2-lupe-de-lupe>. Acesso em 5 de dezembro de 2017 FIGUEIREDO, Eurídice. Revista Criação & Crítica n.4, abril de 2010 MARCONDES, Paulo. “Vitor Brauer lança 'Minha Banda Pt.1 (Isadora)'”. Altnewpaper. Disponível em <http://www.altnewspaper.com/2017/11/vitor-brauer-minha-banda-pt-1-isadora.html>. Acesso em 5 de dezembro de 2017 PIETROFORTE, Antônio Vicente. O Discurso da Poesia Concreta: uma abordagem semiótica. São Paulo, Annablume, 2011. Ebook. https://vitorbrauer.bandcamp.com/track/minha-banda-pt-2-lupe-de-lupe http://www.altnewspaper.com/2017/11/vitor-brauer-minha-banda-pt-1-isadora.html XÓÕ. “Créditos”. 2k16. Rio de Janeiro. Independente, 2016. Disponível em <https://projetoxoo.bandcamp.com/track/cr-ditos>. Acesso em 5 de dezembro de 2017 https://projetoxoo.bandcamp.com/track/cr-ditos
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