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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Carla Cristina Poppa O SUPORTE PARA O CONTATO: UMA PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO PARA A CLÍNICA GESTÁLTICA DE CRIANÇAS DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA SÃO PAULO 2016 Carla Cristina Poppa O SUPORTE PARA O CONTATO: UMA PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO PARA A CLÍNICA GESTÁLTICA DE CRIANÇAS DOUTORADO EM 2016 Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Clínica, sob a orientação da Profa. Dra. Edna Petes Kahhale. Banca Examinadora Dedico este trabalho à Elza Lydia Nicolino, com quem vivi o que hoje posso oferecer. AGRADECIMENTOS À Profa. Dra. Edna Maria Severino Peters Kahhale, pela imensa generosidade e disponibilidade em me acompanhar nesse percurso. Sou muito grata pela confiança, pelos diversos questionamentos, contribuições e discussões, que possibilitaram uma constante ampliação da qualidade do meu trabalho e, principalmente, sou profundamente grata pelas palavras carinhosas de reconhecimento, que me transformaram e que guardarei sempre comigo ao final dessa nossa experiência. Aos professores que participaram da Banca de Qualificação: Profa. Dra. Luciana Szymanski, Profa. Dra. Fabiola Freire Saraiva de Melo, Prof. Dr. Nilton Júlio de Faria, Prof. Dr Luiz Alfredo Lilienthal, por suas valiosas contribuições que foram fundamentais para que eu pudesse definir o caminho a ser seguido nesse trabalho. Às professoras do núcleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar, Profa. Dra. Mathilde Neder, Profa. Dra. Denise Gimenez Ramos e Profa. Dra. Ceres Araujo, por compartilharem seu conhecimento e sabedoria durante esses anos de mestrado e doutorado. À Beatriz Cardella, minha supervisora, que me acompanha e me oferece interlocução desde a minha dissertação de mestrado, minha eterna gratidão pela disponibilidade, pelo carinho e atenção dedicados. A sua companhia me ajudou a aprofundar e me apropriar das reflexões apresentadas nesse trabalho. A Elza Lydia Nicolino que, ao longo dos últimos 15 anos, foi mais do que uma psicóloga para mim. Com ela, usufrui todos os cuidados que tentei descrever nesse trabalho e a ela sou eternamente grata pela pessoa que me tornei e pelas conquistas que alcancei. Sinto muita falta do seu apoio, mas ao mesmo tempo, sinto que está mais presente do que nunca dentro de mim. Ao meu querido marido Davide, na sua companhia, sinto que todos os desafios podem ser alcançados e que os nossos sonhos podem se tornar realidade. Muito obrigada pela sua paciência, presença e compreensão com a minha dedicação a esse trabalho. A minha linda e amada Isabella. A sua companhia me encanta, surpreende, ensina e, principalmente, me diverte. Com você, aprendi a brincar e encontrei a beleza e o sentido da vida no contato. Aos meus queridos pais, Tania e José, e ao meu irmão, Bruno, que sempre me incentivaram e torceram pelo meu trabalho! Aos meus queridos clientes, agradeço a confiança e a possibilidade de aprender com vocês a cada encontro. Aos meus alunos, o interesse, as discussões, os questionamentos contribuíram muito para que as reflexões apresentadas nesse trabalho pudessem amadurecer. À Capes, pela bolsa concedida. O contato é que é a realidade mais simples e primeira (Perls, Goodman e Hefferline, 1997, [1951], p. 41). RESUMO Poppa, Carla. O suporte para o contato: Uma proposta de ampliação para a clínica gestáltica de crianças. Tese de doutorado. Programa de Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2016. Esse trabalho descreve os cuidados que proporcionam experiências constitutivas, que permitem à criança constituir seu autossuporte para vivenciar sua experiência com autonomia e, assim, poder vir a usufruir das intervenções tradicionalmente propostas dentro da abordagem, orientadas pelo método da ampliação da awareness. Para tanto, três processos terapêuticos foram apresentados e analisados, o que permitiu identificar os cuidados que representam o heterossuporte para as necessidades da criança: atenção aos movimentos interrompidos, empatia, ação afetiva e narrativa. As experiências constitutivas comunicavam o ajustamento criativo que a criança havia realizado, e o sofrimento singular que vivenciava diante do impasse que enfrentava em seu desenvolvimento. Esta comunicação e as informações do campo, com apoio da teoria e do autossuporte da psicoterapeuta, permitiram a construção do raciocínio clínico e a definição do manejo terapêutico. Além disso, foi possível identificar que o processo de psicoterapia de crianças inclui também os cuidados nas sessões com os pais para que eles possam constituir, ou ampliar o seu autossuporte e exercer a função de heterossuporte para as necessidades da criança. Os cuidados que foram oferecidos nas sessões com os pais foram nomeados de: heterossuporte para as necessidades, interlocução para as experiências e descrição da experiência da criança. Os cuidados descritos nesse trabalho se concretizaram na relação com as crianças e seus pais, pois estavam sustentados no autossuporte da psicoterapeuta, o que tornou possível reconhecer as sensações despertadas no contato com a criança e com o seu cuidador, e refletir sobre a experiência para identificar a necessidade que era expressa pelo Outro. Assim, esse trabalho propõe uma ampliação do manejo da clínica com crianças, quando elas ainda não assimilaram o autossuporte necessário para usufruir do método da ampliação da awareness, proporcionando, na relação terapêutica, experiências constitutivas, que constituam o autossuporte da criança. Palavras-chave: Gestalt-terapia, clínica gestáltica de crianças, suporte, autossuporte, heterossuporte, contato, ciclo de contato. ABSTRACT This work describes the care that provide constitutive experiences, which allow children to constitute their selfsupport to live their experience with autonomy, and thus, to become able to enjoy the traditionally interventions proposed in the Gestalt-therapy approach, guided by the method of expansion of awareness. Therefore, three therapeutic processes were presented and analyzed, which allowed to identified the care that represent the environmental support to the child's needs, which were named as: attention to interrupted movements, empathy, affective action and narrative. The constitutive experiences communicated the creative adjustment that children had done and the singular suffering they experience facing the impasse at their development. This communication, along with field information, with the support from the theory and the psychotherapist selfsupport allowed the construction of clinical reasoning and definition of therapeutic management. Besides, it was possible to identify that children psychotherapy process also includes care at the parents’s sessions so they can constitute or expand their selfsupport and offer environmental support to the child's needs. The care that were offered at the parents’s sessions were named as: environmental support to their needs, interlocution to their experiences and description of the child's experience. The care described at this work were concretized in the relationship with the children and their parents, as they were sustained by the psychotherapist selfsupport, which made it possible to recognize the sensations aroused in contact with the child and their caregiver, reflect on the experienceto identify the need that was expressed by them. Thus, this work proposes an extension of the therapeutic management at the clinic with children, when the child has not yet assimilated his or hers selfsupport, which is necessary to use the method of awareness expansion, providing, in the therapeutic relationship, constitutive experiences that constitute the child's selfsupport. Keywords: Gestalt therapy, gestalt clinic with children, support, environmental support, selfsupport, contact, contact cycle. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................11 METODOLOGIA................................................................................................17 1 - GESTALT-TERAPIA....................................................................................21 1.1 - Uma visão geral.........................................................................................21 1.2 - Pressupostos filosóficos............................................................................27 1.2.1 - Contribuições da teoria de campo..........................................................27 1.2.2 - Contribuições da teoria organísmica......................................................29 1.2.3 - Contribuições da psicologia da Gestalt..................................................31 1.2.4 - Contribuições da fenomenologia............................................................34 1.2.5 - Contribuições do existencialismo dialógico............................................35 1.3 - Gestalt-terapia: a terapia do contato.........................................................40 2 - A CLÍNICA GESTÁLTICA COM CRIANÇAS E O CUIDADO QUE EMERGE COMO FIGURA A PARTIR DAS TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA E NA SOCIEDADE......................................................................56 3 - OS CUIDADOS QUE SUSTENTAM O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO SELF DA CRIANÇA DO PONTO DE VISTA DA GESTALT-TERAPIA.........................................................................................70 4 - ANÁLISE......................................................................................................87 4.1 - Descrição das sessões típicas do processo de psicoterapia de Felipe...87 4.2 - Análise do processo terapêutico de Felipe..............................................103 4.2.1 - Heterossuporte: os cuidados que sustentaram o diálogo constitutivo com Felipe.......................................................................................................103 4.2.2 - A construção do raciocínio clínico: o sentido da ansiedade de Felipe...............................................................................................................109 4.2.3 - O manejo terapêutico...........................................................................111 4.2.4 - A constituição da fronteira de contato: da dimensão constitutiva para a dimensão do inter-humano...........................................................................113 4.2.5 - As sessões de orientação com Mariana...............................................115 4.2.6 - O prognóstico do processo...................................................................119 4.3 - Descrição das sessões típicas do processo de psicoterapia de Carol...........................................................................................................123 4.4 - Análise do processo terapêutico de Carol...............................................145 4.4.1 - A construção do raciocínio clínico por meio das informações do campo e do diálogo constitutivo com Carol.................................................................145 4.4.2 - O manejo terapêutico...........................................................................152 4.4.3- As sessões de orientação com Tatiana e Marcelo................................153 4.4.4 - As conquistas de Carol a partir da superação do impasse em seu processo de desenvolvimento.........................................................................158 4.4.5 - O raciocínio clínico que justifica o encerramento do processo.............159 4.5 - Descrição das sessões típicas do processo terapêutico da relação de Melissa e Beatriz.........................................................................................161 4.6 - Análise do processo terapêutico da relação de Melissa e Beatriz..........185 4.6.1 - O processo terapêutico de uma relação: a constituição do autossuporte do cuidador e a comunicação do sofrimento da criança............185 4.6.2 - A construção do raciocínio clínico por meio das informações do campo e das experiências constitutivas com Melissa e Beatriz..................................187 4.6.3 - O manejo terapêutico: o processo de constituição do autossuporte de Melissa e a comunicação do sofrimento de Beatriz....................................195 4.6.4 - O fechamento do processo...................................................................204 5 - DISCUSSÃO..............................................................................................206 5.1 - Heterossuporte: os cuidados que sustentam as experiências constitutivas.....................................................................................................208 5.2 - A construção do raciocínio clínico e a definição do manejo terapêutico.211 5.3 - Os cuidados oferecidos para os pais nas sessões de orientação...........212 5.4 - O autossuporte do psicoterapeuta...........................................................216 6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................219 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................222 ANEXOS..........................................................................................................228 11 INTRODUÇÃO Ao longo de quase dez anos de trabalho clínico, venho estudando o tema cuidados no desenvolvimento1 da criança e no processo de psicoterapia infantil. Em 2007, quando era aluna do curso de especialização em Gestalt- terapia no Instituto Sedes Sapientiae, comecei a atender crianças e decidi fazer minha monografia de conclusão de curso sobre o processo de desenvolvimento e psicoterapia de crianças. O interesse sobre esse tema surgiu com a dificuldade que enfrentei para construir um raciocínio clínico e realizar intervenções com segurança, tanto com as crianças quanto com seus pais. Na monografia, estudei o livro de Oaklander (1978), publicação que serve de referência para todos os Gestalt-terapeutas que desejam atender crianças. Essa publicação oferece referências de técnicas e recursos lúdicos, bem como uma proposta de intervenção com base no método de ampliação da awareness. Além de estudar a proposta de Oaklander (1978), entrei em contato com outras reflexões interessantes, principalmente as de Ajzenberg et al. (1995, 1998, 2000) e as de Aguiar (2014) ,que tentavam relacionar os conceitos e pressupostos filosóficos da Gestalt-terapia ao processo de desenvolvimento infantil e à clínica de crianças. Porém, ao final do curso de especialização, a dificuldade em reproduzir essas intervenções no contato com as crianças persistia. Isso porque Oaklander (1978) ilustrava com a sua prática clínica, de que maneira o método de ampliação da awareness, sustentado por uma relação dialógica e mediado por técnicas e experimentos, poderia ser utilizado com crianças. Porém, na minha prática clínica, as crianças que eu atendia, se mostravam agitadas e se distraíam com facilidade. Ou ainda, se retraíam do contato de tal forma que pareciam precisar de cuidados anteriores que lhes permitissem constituir o autossuporte necessário para que pudessem vir a expressar suas necessidades em seus ciclos de contato e, assim, viver umaexperiência, até que seu sofrimento pudesse ser comunicado com autonomia para que, em um 1 Apesar de os autores do principal livro da Gestat-terapia, Perls, Goodman e Hefferline (1997, [1951]) utilizarem a palavra crescimento, a palavra desenvolvimento também será utilizada nesse trabalho, já que, possivelmente, expressa a ideia de um processo que leva à constante atualização do potencial da criança ao longo do tempo. 12 momento posterior, pudessem vir a usufruir do método de ampliação da awareness, conforme a proposta de Oaklander (1978). Assim, a necessidade de continuar pesquisando e estudando sobre esse tema persistiu e, impulsionada por essa necessidade, iniciei o mestrado alguns anos depois. Nessa época, comecei a estudar a teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. A teoria winnicottiana me ofereceu um caminho consistente para compreender as necessidades constitutivas de um bebê e de uma criança pequena e, sobretudo, me ensinou sobre a função dos cuidados nos primeiros anos de vida. A partir desse contato, retomei meu olhar para a Gestalt-terapia e busquei estabelecer um diálogo entre as duas abordagens para construir algumas reflexões sobre cuidados a partir dos conceitos e pressupostos filosóficos da Gestalt-terapia. Como resultado do mestrado, foi possível, então, construir algumas reflexões sobre quais seriam os cuidados constitutivos do self. Ou seja, o processo pelo qual o bebê e a criança se apropriam das suas necessidades vividas em seus ciclos de contato, constituem uma fronteira de contato permeável, e desenvolvem sua capacidade de realizar ajustamentos criativos a partir da relação que estabelece com seus cuidadores. Assim, a dissertação de mestrado permitiu construir uma compreensão teórica sobre a forma como ocorre a passagem do heterossuporte para o autossuporte. Com base nestas referências sobre cuidados foi possível construir um questionário de anamnese que passou a ser utilizado na minha prática clínica e, conforme será apresentado nos casos descritos nesse trabalho, revelou-se uma ferramenta importante no processo de construção do meu raciocínio clínico. Esse questionário pretende investigar não só os marcadores tradicionais do desenvolvimento (idade da criança quando começou a falar e a andar, por exemplo), mas, principalmente, a qualidade dos cuidados que a criança recebeu ao longo da sua vida, o que contribui para a construção do raciocínio clínico, na medida em que oferece informações sobre a forma como as necessidades da criança encontram ou não suporte para serem expressas em seus ciclos de contato ao longo do tempo. Além disso, sustentada pelas reflexões construídas na dissertação de mestrado, ampliei o fundo teórico que poderia nortear a oferta dos cuidados constitutivos do self nos processos terapêuticos que realizava com crianças. 13 Esses cuidados iniciais pareciam permitir que as crianças assimilassem o autossuporte necessário para que pudessem expressar suas necessidades em seus ciclos de contato e, assim, vivenciar uma experiência com autonomia crescente, até que fosse possível utilizar com elas o método de ampliação da awareness. Assim, comecei a registrar esses atendimentos, pois me senti motivada a descrever como os cuidados constitutivos do self poderiam ser vivenciados na clínica gestáltica com crianças. Em paralelo, foi preciso me desprender do suporte representado pela teoria winnicottiana, cuja linguagem e alguns conceitos ainda se faziam presentes nos cuidados que foram identificados na dissertação de mestrado para, tendo-me apropriado desse novo conhecimento, poder buscar nos conceitos da Gestalt-terapia, a teoria que iria descrever os cuidados constitutivos do self no processo de desenvolvimento da criança. Desse modo, a fundamentação teórica da prática clínica que foi registrada e que será apresentada nesse trabalho, poderia ser apresentada utilizando os pressupostos e conceitos da Gestalt-terapia. Nesse sentido, retomei meus estudos sobre os conceitos e pressupostos filosóficos da Gestalt-terapia, sobre os cuidados constitutivos do self e sobre a clínica gestáltica com crianças. São estes, portanto, os três capítulos que trazem a fundamentação teórica da prática clínica que será apresentada nesse trabalho. No primeiro capítulo são apresentados os pressupostos e os conceitos filosóficos da Gestalt-terapia. Nesse capítulo, o conceito de contato é evidenciado, na medida em que se revela seu papel fundante na teoria da Gestalt-terapia. Conforme os conceitos da Gestalt-terapia são apresentados, ampliando a compreensão sobre o conceito de contato, foi possível descrever a concepção de saúde para a abordagem. Além da concepção de adoecimento, que este trabalho assume. Em seguida, no segundo capítulo, a proposta de trabalho da Gestalt- terapia com crianças é apresentada para que seja possível localizar a contribuição dessa tese: apresentar e discutir os cuidados que antecedem o manejo tradicionalmente proposto pela abordagem (o método de ampliação da awareness) e que sustentam a constituição do self da criança. Nesse capítulo também será apresentada uma discussão sobre algumas características do 14 mundo contemporâneo, para contextualizar o pano de fundo, a partir do qual os cuidados constitutivos do self emergem como figura na clínica com crianças. O terceiro capítulo apresenta os cuidados que podem sustentar a constituição do self da criança no seu processo de desenvolvimento. Em seguida, os casos serão apresentados e analisados. Os atendimentos que serão apresentados começaram a ser registrados logo depois da conclusão da minha dissertação de mestrado. Os processos terapêuticos que serão apresentados são os o Felipe e da Carol, ambos com cinco anos de idade. Além disso, será apresentado o processo terapêutico com uma nova configuração que, nesse trabalho, foi denominado como o processo terapêutico de uma relação: Melissa, uma mãe de trinta e cinco anos que buscou ajuda para se relacionar com sua filha Beatriz, de três anos de idade. Com a análise e a discussão desses casos, foi possível apresentar de maneira sistematizada a forma como os cuidados constitutivos do self podem ser oferecidos na relação terapêutica, e descrever como eles contribuem para a construção do raciocínio clínico e para a definição do manejo terapêutico na clínica gestáltica com crianças. Foi igualmente possível identificar, na análise e na discussão dos casos, os cuidados que precisam ser oferecidos na relação com os pais da criança. Ficou evidente que a função do psicoterapeuta não se restringe à oferta de cuidados que retomam o processo de constituição do self da criança, mas inclui a possibilidade de cuidar dos pais para que eles possam vir a sustentar o processo de desenvolvimento da criança no dia a dia da relação, prescindindo gradualmente da psicoterapia. Esse trabalho teve como motivação uma inquietação pessoal que levou à necessidade de explicitar e revelar os cuidados envolvidos no processo de constituição da subjetividade da criança, tanto no dia a dia das suas relações, no seu processo de desenvolvimento, quanto na relação terapêutica. Para tanto, foi preciso compreender, na teoria e na prática clínica, de que forma a criança, em seu processo de crescimento, comunica o impasse para poder estabelecer um diálogo em um momento no qual ela ainda não tem recursos para expressar suas necessidades na relação e reconhecer a alteridade do psicoterapeuta. 15 Ao atender essa necessidade pessoal e comunicar os cuidados constitutivos do self da criança na perspectiva da Gestalt-terapia, percebo que alcancei uma maior awareness na minha prática clínica. Considero que a necessidade pessoal que motivou esses estudos foi atendida. Porém, desejo que esse doutorado possa contribuircom o trabalho de outros Gestalt- terapeutas que formulam questionamentos semelhantes e que também buscam compreender e oferecer os cuidados necessários para as crianças quando elas revelam a precariedade do seu autossuporte na relação terapêutica. Se isso for possível, acredito que minha experiência alcançará um novo sentido, certamente mais amplo e, por esse motivo, mais significativo. OBJETIVO O objetivo desse trabalho é contribuir para a compreensão do sofrimento que revela a precariedade do autossuporte, dimensão do self da criança e os cuidados necessários para sustentar esse processo de constituição no processo de crescimento da criança e na relação terapêutica. A identificação desses cuidados pretende oferecer referências para facilitar a construção do raciocínio clínico e a definição do manejo terapêutico no atendimento de crianças que ainda não constituíram o autossuporte para comunicar suas experiências com autonomia. OBJETIVOS ESPECÍFICOS 1. Contribuir para o aprofundamento da compressão do conceito de contato na Gestalt-terapia. 2. Contribuir para a compreensão do conceito de suporte na Gestalt- terapia. 3. Contribuir para a ampliação do sentido de sofrimento e de cuidado na clínica gestáltica com crianças. 4. Oferecer referências para que os Gestalt-terapeutas, que trabalham com crianças, possam sustentar a construção do raciocínio clínico e as intervenções que realizam nas sessões com a criança e com os pais. 16 JUSTIFICATIVA Esse trabalho pretende oferecer uma contribuição significativa para a Gestalt-terapia, em especial para os Gestalt-terapeutas que trabalham com crianças, ao ampliar a concepção de sofrimento e de cuidado na clínica gestáltica com crianças, e ao revelar os cuidados constitutivos do self, tanto no processo de crescimento quanto na prática clínica. Dessa forma, será possível propor novas referências para a construção do raciocínio clínico e para a definição do manejo terapêutico na clínica gestáltica com crianças. Esse trabalho também se justifica na medida em que pode contribuir para a ampliação da compreensão dos conceitos de contato e de suporte nessa abordagem. 17 METODOLOGIA Esse trabalho configurou-se como um estudo de caso em pesquisa clínica que utiliza a abordagem da Gestalt-terapia. Os sujeitos foram três crianças, um pai e três mães, que realizaram um processo de psicoterapia. A pesquisa clínica consiste em situações que possam favorecer a mudança. As situações terapêuticas representam momentos de coleta de material que são retomados a posteriori para a análise (Giami, 2004). Nesse sentido, os dados foram coletados por meio de uma descrição detalhada dos acontecimentos, conversas, comunicação não verbal, produções de desenhos e outros materiais gráficos, sensações e sentimentos experimentados pelo terapeuta, pelas crianças e seus pais durante as sessões. O registro das sessões foi realizado imediatamente após os atendimentos para que nenhum acontecimento significativo fosse esquecido. A pesquisa se estendeu de novembro de 2013 a outubro de 2015, período que correspondeu à época em que os processos terapêuticos de Felipe, Carol e da relação de Melissa e Beatriz estavam em andamento. A escolha desses casos para a pesquisa ocorreu por conveniência, pois foram processos que se iniciaram em um período próximo ao início dessa pesquisa. Desse modo, foi possível registrar as sessões desde a primeira entrevista com os pais até o fechamento dos processos. O conhecimento construído no momento da coleta de dados (registro das sessões) e da análise permitiu que os sujeitos fossem beneficiados pelos efeitos das intervenções realizadas a partir de uma maior clareza que a psicoterapeuta adquiriu ao se apropriar e explicitar na pesquisa os fatores que sustentavam o seu raciocínio clínico. Assim, esse trabalho se caracteriza pela especificidade da pesquisa clínica e contempla o cuidado necessário para que o momento da coleta do material possa ter valor de intervenção e trazer vantagens ao objeto (Giami, 2004, p.45). Esses registros foram analisados a partir de um enfoque qualitativo. A metodologia desse trabalho se inspirou no conceito de sujeito típico, proposto por Rey (2000). O autor explica que os sujeitos típicos são capazes de prover informações relevantes que, em determinadas ocasiões, são altamente singulares em relação ao problema estudado (Rey, 2000, p.111). De forma análoga, foram selecionadas as sessões típicas. Ao contrário do que o nome 18 sugere, as sessões típicas não são as que revelam características que se repetem ao longo do processo, mas sessões que trazem uma maior riqueza em relação aos fenômenos que pretendem ser investigados, assim como sugere o conceito de sujeito típico proposto por Rey (2000). A partir da escolha das sessões típicas, os acontecimentos mais representativos, ou que se repetiam, foram identificados e os temas que revelavam permitiram a construção de uma compreensão tanto do impasse e da transformação das crianças e dos seus pais, quanto dos cuidados oferecidos pela psicoterapeuta. A partir da análise dos casos, o mesmo exercício de atribuição de sentido foi feito. Os fenômenos que mais se destacaram e os temas recorrentes na análise foram identificados e agrupados para que pudessem ser articulados com a teoria apresentada nos três primeiros capítulos desse trabalho e para que a reflexão sobre os fenômenos vivenciados e analisados pudesse ser delimitada e ampliada. Segundo Fukumitsu (2013), o método fenomenológico propõe um distanciamento da teoria no contato com os sujeitos até a construção da compreensão dos fenômenos. A análise, portanto, é feita a partir da identificação e do agrupamento dos temas que se destacam ou que são recorrentes. Esses critérios foram seguidos na análise desse trabalho, na medida em que a teoria foi deixada em segundo plano ao longo da vivência, do registro das sessões e da compreensão dos casos, e foi retomada, em um momento posterior, para que os fenômenos identificados pudessem ser relacionados à teoria já existente sobre clínica gestáltica com crianças e, desse modo, a contribuição desse trabalho pudesse ser melhor delimitada. É importante destacar que foi solicitada aos pais a autorização para que as sessões com eles e as crianças fossem registradas por escrito e analisadas com a intenção de contribuir para a melhor compreensão sobre o processo de psicoterapia infantil na abordagem utilizada pelo psicoterapeuta (Gestalt- terapia). Foi explicado para os pais e para as crianças que o sigilo dos nomes e das informações que possam identificá-los seria mantido e que tanto a descrição como a análise seriam utilizadas no trabalho de doutorado, em artigos e apresentações em Congressos. Por esse motivo, todos os nomes apresentados nesse trabalho são fictícios. Os pais foram orientados a pensar e 19 a avaliar se a participação nessa pesquisa não lhes causaria nenhum desconforto e, caso optassem por não participar, ressaltou-se que não haveria nenhum tipo de prejuízo em relação ao atendimento que a criança receberia. Em todos os casos, os pais concordaram e receberam o termo de consentimento para ler, tirar suas dúvidas e assinar. Nesse momento, ressaltou-se também que existia a possibilidade de desistirem da participação da pesquisa a qualquer momento do processo. Na primeira sessão com as crianças que tinham mais de três anos de idade, após o contato inicial e as explicações sobre os atendimentos, também foi pedido a elas a permissão para o registro por escrito das sessões. Foi explicado que, após cada atendimento, a psicoterapeuta iria escrever o que aconteceu para ajudar em seus estudos sobre os cuidados que contribuem com o crescimento e desenvolvimento das crianças. Foi lhes dito que poderiam pensar, e se não quisessemque as sessões fossem transcritas, os atendimentos iriam continuar da mesma forma. Como elas concordaram em participar, a psicoterapeuta leu o termo de consentimento, perguntou se existia alguma dúvida e pediu para que elas assinassem. No caso da criança com menos de três anos de idade que participou de um dos atendimentos descritos nesse trabalho, a autorização foi pedida apenas para a mãe. LOCAL DE COLETA DE DADOS Os atendimentos foram realizados em consultório particular e os registros foram feitos no computador, após cada atendimento. Esses registros envolvem a descrição das atividades e conversas ao longo da sessão, e também da comunicação não verbal e das sensações e sentimentos experimentados pela terapeuta ao longo do atendimento. Os desenhos e os materiais produzidos pela criança foram fotografados. PARTICIPANTES Os sujeitos foram uma menina e um menino de cinco anos e uma menina de três anos, um pai e três mães que realizaram processos de psicoterapia. A escolha desses participantes foi por conveniência. Esses pais procuraram a psicoterapia para seus filhos e para si espontaneamente, no 20 período em que essa pesquisa se iniciava, e foram convidados a participar independentemente da queixa que apresentaram. PROCEDIMENTOS DE COLETA E CUIDADOS ÉTICOS Os participantes foram crianças e seus pais que buscaram o processo de psicoterapia de maneira espontânea, independentemente da queixa, e encaminhados por diferentes fontes. O objetivo da pesquisa foi explicado primeiro para os pais e quando eles aceitaram participar, o pedido foi feito também para a criança. Tanto para os pais como para as crianças foi ressaltado que existia a possibilidade de não aceitarem, caso se sentissem desconfortáveis, e que a psicoterapia e a relação com a terapeuta não sofreriam nenhum prejuízo por conta dessa decisão. Os pais e as crianças que aceitaram participar receberam o termo de concordância para que pudessem ler e assinar. O projeto foi encaminhado para a Comissão Científica da PUC-SP para análise e foi aprovado. O número do protocolo do projeto aprovado na Plataforma Brasil é 37594714.9.0000.5482. 21 1 - GESTALT - TERAPIA 1.1 - Uma visão geral A Gestalt-terapia é uma abordagem existencial fenomenológica que foi construída a partir das diferentes influências filosóficas que Frederick Perls (1893–1970), seu fundador, recebeu ao longo da sua vida. Em conjunto com Laura Perls (1905–1990), Paul Goodman (1911–1972) e Ralph Hefferline (1910–1974), ele construiu uma abordagem a partir da influência da teoria de campo, da teoria organísmica, da psicologia da Gestalt, da fenomenologia e do existencialismo dialógico. A influência dessas diferentes concepções filosóficas, metodológicas e terapêuticas resultou em novos conceitos que deram origem a uma nova abordagem. A descrição da biografia de Fritz Perls pode ajudar a compreender como diferentes teorias e filosofias influenciaram na construção de uma nova abordagem. Por esse motivo, o percurso de Perls será apresentado, uma vez que se acredita que não é possível compreender uma abordagem sem que seja contextualizada, ressaltando o momento histórico no qual ela foi criada, e pessoalizada, apresentando a pessoa que fez essa construção. Perls nasceu em Berlim, em uma família judia. Seu pai era comerciante e, segundo o que Perls (1969) descreve em sua autobiografia, o pai brigava com frequência, inclusive fisicamente com sua mãe. Com o tempo, uma vez que a família mudava de um lugar para o outro, o pai se afastou e se isolou, tanto física quanto afetivamente. Perls diz que seu pai, em casa, era um hóspede a ser servido e respeitado. Sua mãe era uma pessoa muito interessada pelas artes, em especial pelo teatro. Conta também que tinha duas irmãs. A mais velha morreu em um campo de concentração e a outra, com quem tinha uma relação mais próxima na infância, fugiu com o marido para a China durante a Segunda Guerra, e depois conseguiu se mudar para os EUA, na época em que Perls também passou a morar lá. A relação dos pais de Perls era bastante conflituosa e, talvez, segundo sua própria análise (Perls, 1969), o ódio que sua mãe sentia na relação com o marido tenha influenciado nos sentimentos ambivalentes que ele nutria em relação ao pai. Segundo Perls, o pai era uma pessoa afetiva, mas arrogante, e 22 por quem nutria um grande ressentimento, revelado na culpa que seu pai lhe provocava com algumas falas2. Na adolescência, Perls foi expulso do colégio e se tornou um adolescente rebelde e instável, até ser admitido em um colégio mais liberal, onde seu interesse pelo teatro foi incentivado, o que o ajudou a se sentir mais aceito. Após esse período, decidiu estudar medicina. Quando completou 21 anos e estava no meio do curso, eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Ele explica que tinha um “coração fraco” e andava curvado. Por isso, foi declarado no exame médico do exército como “inapto para a reserva” e decidiu se apresentar como voluntário da Cruz Vermelha, o que lhe permitia permanecer fora da zona de combate durante algum tempo e continuar seus estudos em Berlim. Porém, em 1916, foi para as trincheiras, onde atuou como assistente médico. Na sua autobiografia, relata as mortes que presenciou durante a guerra e comenta sua dificuldade de se dessensibilizar ou de criar algum tipo de defesa diante dessas lembranças (Perls, 1969). Segundo Tellegen (1984), a guerra marcou a vida de Perls. Para a autora, os anos seguintes foram uma constante busca por direcionamento e enraizamento. A guerra, sem dúvida, pode ter representado uma experiência traumática que contribuiu para a sensação de desenraizamento que Perls possivelmente experimentava, e para a experiência de pertencimento que buscou ao longo de toda a sua vida. No entanto, é possível que a necessidade de pertencimento, aceitação e reconhecimento de si no Outro e no meio onde habita, já era uma necessidade que não encontrava suporte durante sua infância, adolescência e início da sua vida adulta, a qual se intensificou durante as experiências que teve na guerra. Em 1920, Perls formou-se médico. Depois de algum tempo, mudou-se para Frankfurt. Em 1926, trabalhou como assistente de Kurt Goldstein, no Instituto de Soldados Portadores de Lesão Cerebral, onde conheceu Laura, que havia feito seu doutorado em psicologia da Gestalt e com quem veio a se casar. Perls 2 Certa vez, ele fez um comentário do qual me ressenti profundamente: “E daí. Eu bebo até morrer. Meu filho tomará conta da família (Perls, 1979, p.214). “Eu o perdoo (...) mas jamais esquecerei do que você fez”. Bacana, não é? (Perls, 1979, p.215). 23 havia iniciado análise em Berlim e deu continuidade em Frankfurt. Após um ano, sua analista o encaminhou para Viena para que pudesse iniciar sua análise didática. Quando voltou para Berlim, em 1928, continuou sua análise com Wilhem Reich (Tellegen, 1984). Em 1931, Perls, que estava envolvido em um movimento antinazista precisou fugir. Perls e Laura a essa altura já haviam tido seu primeiro filho e precisaram se separar temporariamente. Ele foi para a Holanda e a família o encontrou mais tarde. Recebeu ajuda de Ernest Jones para se mudar para a África do Sul e se estabelecer nesse país como analista didata. Em 1935, criou o Instituto Sul-Africano de Psicanálise. Como na época Perls e Laura eram os únicos psicanalistas do país, logo puderam usufruir de uma vida muito confortável financeiramente. Em sua autobiografia diz que nesses anos perdeu a rebeldia que lhe era característica. Conta que se enquadrou tanto às regras do atendimento psicanalítico quanto aos adornos de cidadão quadrado e respeitável: família, casa, criados, ganhar mais dinheiro que o necessário (Perls, 1969, p.49). Tellegen (1984)explica que esse período trouxe de um lado um grande conforto financeiro e de outro, um isolamento cultural e profissional que se fez sentir com o tempo. É possível pensar que essa sensação de isolamento ou de estar apartado não só do centro das discussões da psicanálise, como também do seu país de origem por imposição da guerra que se aproximava, provocava um mal-estar e uma inquietação em Perls. Essa inquietação era nomeada por ele como um ressentimento por não poder viver de acordo com o que ele acreditava ser a sua essência, a rebeldia. Em 1936, Perls viajou à Tchecoslováquia para participar de um Congresso Internacional de Psicanálise. Lá, apresentou um trabalho intitulado “Resistências Orais”. Segundo ele, a palestra encontrou profunda desaprovação (Perls, 1969, p.50). Tal reação o surpreendeu. Conta que, na época, não percebeu que sua proposta invalidava fundamentos básicos da psicanálise. Além disso, nutria uma grande expectativa em poder conhecer Freud pessoalmente. No entanto, Perls descreve que foi recebido com frieza. E apesar do encontro ter durado cerca de quarenta e cinco minutos, a primeira frase que Freud lhe disse nessa ocasião marcou-o para o resto da vida. Perls entrou na sala de Freud dizendo que veio da África do Sul para dar uma 24 palestra e para vê-lo. E Freud respondeu: “Bem, e quando você volta?”. A resposta de Freud provocou um entorpecimento em Perls e, com o tempo, essa sensação deu lugar a uma grande mágoa e ressentimento direcionados a Freud. O trabalho que apresentou nesse Congresso sobre “Resistências Orais” transformou-se na essência do seu primeiro livro, Ego, Fome e Agressão, que foi publicado em 1942. Esse livro tinha como subtítulo “Uma revisão da teoria e método de Freud”. Perls se propôs a rever o método psicanalítico à luz da teoria organísmica, que apresentava, por sua vez, uma grande influência da psicologia da Gestalt. Perls, depois de alguns anos, considerou o conteúdo desse livro obsoleto, segundo é possível verificar no prefácio que escreveu em 1969 (Tellegen, 1984). Em 1946, após o término da Segunda Guerra Mundial, motivados pela aversão ao fascismo que parecia emergir na África do Sul, Perls e sua família decidiram imigrar para os Estados Unidos onde encontraram vários analistas europeus. Com o apoio desses conhecidos, logo estavam bem estabelecidos como psicanalistas. Nos primeiros dez anos em Nova York, o casal se encontrava com frequência com artistas e intelectuais radicais e dissidentes, o que fez com o tempo com que Perls se afastasse de vez da psicanálise. Entre esses intelectuais estavam Paul Goodman, anarquista e crítico literário e Ralph Hefferline. Ambos foram co-autores do segundo livro de Perls, Gestalt-Therapy. O livro foi publicado em 1951, e em 1952, Perls e Laura fundaram o Gestatl Institute of New York. A nova abordagem foi, então, lançada (Tellegen, 1984). Laura e Goodman permaneceram em Nova York e exerciam a liderança intelectual dos trabalhos desenvolvidos no Instituto. Perls se afastou de Nova York com suas constantes viagens pelos Estados Unidos, ocasião em que visitava grupos de profissionais interessados na Gestalt-terapia. Essas viagens resultaram na formação de núcleos que, mais tarde, deram origem aos Institutos de Cleveland, Los Angeles e São Francisco. Em 1962, Perls ficou dois meses em um mosteiro budista no Japão e um mês em um Kibutz em Israel. Em 1964 radicou-se na Califórnia, em Esalen, o mais conhecido centro de desenvolvimento do potencial humano. Durante cinco anos, Perls ensinou a Gestalt-terapia em programas de curta duração, em Esalen. O terceiro livro que publicou, Gestalt-terapia Verbatim, é uma 25 transcrição das palestras e sessões terapêuticas dessa época. Foi lá também que escreveu sua autobiografia (Tellegen, 1984). Novamente, em 1969, aos 76 anos, Perls muda de país. Foi para o Canadá morar em uma comunidade gestáltica, motivado pela sua convicção de que a vida em comunidade poderia superar qualquer terapia e também pela situação política dos Estados Unidos. O período da Guerra do Vietnã foi interpretado por ele como uma evidência do surgimento do fascismo norte-americano. Assim, teve início o Instituto de Gestalt do Canadá, onde Perls passou seus últimos anos. Talvez seja possível supor que sua necessidade de pertencimento e aceitação tenha motivado o caminho que percorreu ao longo da vida. E, em seus últimos anos, vivendo em Esalen e no Canada, é possível que a experiência de aceitação e pertencimento tenha sido vivida, e sua necessidade atendida. Em uma das viagens que fez para divulgar a Gestalt-terapia, Perls foi internado em Chicago e faleceu em março de 1970 (Tellegen, 1884). Por meio dessa biografia resumida, é possível notar as principais influências que Perls recebeu ao longo da sua vida, que o ajudaram a construir uma nova abordagem. É importante ressaltar que o apoio de Laura, Paul Goodman e Ralph Hefferline também foi fundamental nesse processo. Como Perls estava vivenciando o novo conhecimento ao mesmo tempo em que divulgava a nova abordagem em workshops, ele não teve tempo para registrar suas ideias de forma sistematizada. Porém, os autores das novas gerações, que poderiam ter sistematizado e avançado na teoria, priorizaram a reprodução da prática clínica e das vivências realizadas por Perls. Desse modo, a abordagem permanece com uma lacuna na forma como é comunicada. Apenas as pessoas que se dispõem a vivenciar a Gestalt-terapia por meio dos workshops e cursos de formação alcançam um conhecimento - ainda assim, muito mais sensorial e intuitivo do que teórico - que permita fundamentar a proposta de trabalho da Gestalt-terapia. Esse trabalho pretende contribuir também nesse sentido, ao sistematizar na parte teórica o conhecimento construído em relação aos conceitos, à clínica com crianças e aos cuidados que sustentam a constituição da subjetividade da criança. E, na apresentação e discussão dos casos, esse trabalho pretende identificar e explicitar como esses cuidados podem ser oferecidos no contexto 26 clínico para que possam vir a ser utilizados como referência para a construção do raciocínio clínico e para a definição do manejo terapêutico na clínica gestáltica com crianças. Para tanto, serão apresentadas primeiramente as teorias e filosofias com as quais Perls entrou em contato ao longo da sua vida e que se tornaram os pressupostos filosóficos da abordagem, na medida em que sustentaram a construção dos conceitos da Gestalt-terapia. Em seguida, serão descritos os conceitos que foram construídos por Perls, Hefferline e Goodman (1997, [1951]). 27 1.2 - Pressupostos filosóficos 1.2.1- Contribuições da teoria de campo A teoria de campo de Kurt Lewin (1892-1942) foi uma das teorias que influenciou o pensamento de Perls. A ideia de campo vem de campo elétrico ou magnético e representa uma metáfora. O que acontece a algo localizado nesse campo de forças é função das propriedades globais do campo, considerado um todo dinâmico interativo. O campo como um todo também é alterado como resultado da inclusão de algo novo. A marca de teoria de campo é a possibilidade de olhar para a situação total, ao invés de considerá-la item por item de maneira fragmentada (Parlett, 1991). Segundo afirma Lewin (1965, [1951]), a teoria de campo se caracterizaria melhor como um método que pretende identificar de que maneira o campo está configurado, utilizando uma linguagem matemática e dinâmica que revela as forças presentes no campo, no momento em que um comportamento acontece. Desse modo, Lewin (1965, [1951]) se preocupa em descrever a totalidade dos fatos que forma o campo de um indivíduo em um momento específico. Por esse motivo, para a teoria de campo, a análise deve começar com a situação como um todo. Para tanto, os elementos não devem sertomados de maneira isolada. Apenas após esse primeiro olhar para o todo é que os vários aspectos e partes da situação podem ser olhados de maneira mais especifica. Assim, os mapas da teoria de campo retratam os seres humanos em seus contextos, ou seja, pessoas em seus relacionamentos e em comunidade. A essência da teoria de campo é a possibilidade de estender a perspectiva holística em relação à pessoa, para incluir o ambiente, o mundo social, as organizações e a cultura (Parlett, 1991). Lewin (1965, [1951]) explica ainda que para relacionar o comportamento presente com fatos do passado é preciso conhecer o suficiente sobre a história e o desenvolvimento do campo, para que seja possível analisar como o passado mudou o campo no momento presente. Nesse sentido, a história é presentificada no método sistemático de análise. Além disso, o autor explica que o comportamento do indivíduo não depende totalmente da situação presente. Seu humor é profundamente afetado pelas suas esperanças e desejos e pela sua maneira de ver o passado (Lewin, 1965, [1951], p.86). Esse 28 conjunto, que é constituído pelo sentido que o indivíduo atribui ao seu futuro e ao seu passado, é denominado pelo autor como perspectiva de tempo. A teoria de campo proposta por Lewin (1965, [1951]) utiliza uma representação matemática do campo. Os conceitos topológicos e vetoriais apresentam à possibilidade de análise, uma precisão conceitual, segundo o autor, mais adequada do que qualquer outro instrumento conceitual da psicologia. As forças que impulsionam o comportamento do indivíduo são representadas por vetores que dependem sempre da relação que se estabelece entre o indivíduo e o seu meio. Essas forças representadas pelos vetores, por sua vez, são denominadas de tensão. Assim, segundo Lewin (1975, [1935]), o que impulsiona o comportamento do indivíduo são as tensões promovidas pelas suas necessidades. A tensão gerada por uma necessidade tende a se igualar ao estado dos seus sistemas vizinhos. O autor conclui que quanto mais rígido for o campo, mais a tensão no indivíduo tende a se manter, e quanto mais fluido o campo, com menos resistência, as diferenças nos campos de tensão tendem a se igualar. Nesse contexto, o autor formula os conceitos de barreira e fronteira. A fronteira é o que permite fluir ou reter as descargas de tensão. Segundo o autor, os indivíduos diferem em relação à nitidez e à definição das fronteiras em seu espaço psicológico, e também na tendência de evitar as fronteiras pouco nítidas. As barreiras, por sua vez, são fronteiras que oferecem resistência à locomoção psicológica e podem ter diferentes graus de solidez de acordo com o grau de resistência que oferecem (Lewin, 1973 [1936]). Parlett (1991) publicou um artigo bastante conhecido dentro da Gestalt- terapia, no qual apresenta a teoria de campo na forma de cinco princípios. O primeiro princípio é o da organização que aponta para a interligação entre as coisas e afirma que o significado deriva da situação total. Segundo esse princípio, a propriedade das coisas é definida pelo seu contexto de utilização. O segundo princípio é o da contemporaneidade. Este nos indica que é a constelação de influências no campo do momento presente que nos explica o comportamento no momento presente. É importante ressaltar que o momento presente pode incluir o passado - lembrado - no agora, e o futuro - antecipado - no agora. O terceiro princípio é o da singularidade, que indica que cada pessoa 29 em uma situação no campo é um evento único, e que as circunstâncias nunca são as mesmas. O quarto princípio é o da mudança de processo que se refere ao campo em constante transformação. Esse princípio indica que a experiência é provisória e nunca permanente, uma vez que o campo é sempre reconstruído momento a momento. Por fim, o princípio da possível relevância afirma que nenhuma parte do campo pode ser excluída ou considerada irrelevante. A teoria de campo influenciou a Gestalt-terapia principalmente por favorecer a construção dos conceitos de campo, de fronteira de contato e contato, que serão apresentados mais adiante nesse capítulo. 1.2.2- Contribuições da teoria organísmica A teoria organísmica foi proposta por Kurt Goldstein (1878-1965), e é também uma das teorias que sustentam a epistemologia e a antropologia da Gestalt-terapia, além de ser o fundo, junto com os outros pressupostos filosóficos, a partir do qual os conceitos da abordagem foram construídos e propostos por Perls, Hefferline e Goodman (1997, [1951]). Isso porque Perls acompanhou o trabalho de Kurt Goldstein no atendimento de soldados portadores de lesões cerebrais. Goldstein (1995, [1934]) era médico neurologista e tratou de muitas pessoas que sofreram lesões cerebrais. Ao longo dos anos, a partir das observações que fazia do comportamento dos seus pacientes, o autor percebeu que o método das ciências naturais lhe provocava uma insatisfação crescente. Principalmente, porque restringia o seu olhar para os efeitos diretos das lesões cerebrais. Como, por exemplo, nos casos em que a lesão afetava a área motora do cérebro, o olhar do pesquisador se restringia aos movimentos do indivíduo. No entanto, o autor percebeu que o indivíduo como um todo era afetado pelas lesões e seus efeitos não se restringiam apenas à função correspondente da área cerebral afetada pela lesão. Ou seja, o autor constatou que não era possível compreender o indivíduo olhando para as suas partes de maneira isolada, e propôs uma ampliação do olhar. Nesse sentido, o olhar integrador proposto para a relação do indivíduo com o seu meio pela teoria de campo corresponde ao olhar integrador que a teoria organísmica propõe para as diferentes dimensões humanas (física, emocional, cognitiva, energética...). 30 Nesse contexto, Goldstein (1995, [1934]) apresenta um novo método, denominado de holístico. A proposta do autor leva o organismo, ou o ser humano de maneira integrada, para o primeiro plano da compreensão do que significa um funcionamento normal e as perturbações provocadas pelas lesões. No método holístico, portanto, a palavra organismo representa o olhar para o ser humano de maneira integrada. Goldstein (1995, [1934]) apresenta as leis gerais que influenciam a vida organísmica a partir da observação que realizou no comportamento dos seus pacientes: a diferenciação entre comportamento ordenado e comportamento desordenado e a tendência ao comportamento ordenado. O autor explica a diferença entre esses dois tipos de comportamentos e a forma como o indivíduo busca o reestabelecimento do comportamento ordenado. Goldstein (1995, [1934]) afirma que o comportamento pode ser dividido em duas classes: ordenado e desordenado. Segundo o autor, essas duas classes de comportamento podem ser encontradas repetidas vezes e podem se alternar. O comportamento ordenado proporciona respostas constantes e adequadas ao organismo e às circunstâncias, a ponto de proporcionarem ao indivíduo uma sensação de bem-estar; as reações desordenadas, por sua vez, são inconstantes e incoerentes. Essas reações podem ser experimentadas pelo indivíduo como uma sensação de aprisionamento e insegurança. É importante ressaltar também que, após uma situação ordenada, o indivíduo pode passar para outra situação sem muito desgaste ou dificuldade. Porém, após uma situação desordenada, a reação do indivíduo parece permanecer impedida por um período de tempo mais longo (Goldstein, 1995, [1934]). Conforme citado anteriormente, Goldstein (1995, [1934]) afirma que existe uma tendência do organismo ao comportamento ordenado. Segundo ele, o reestabelecimento do comportamento ordenado pode acontecer de diferentes maneiras. Em seus estudos com pacientes com lesão cerebral, identificou que a busca pelo reestabelecimento do comportamento ordenado acontecia pela falhana percepção dos efeitos da lesão, pelas modificações que o indivíduo faz em seu meio, pela evitação de situações que possam levar a reações desordenadas, ou ainda, pelo desenvolvimento de comportamentos substitutos (Goldstein, 1995, [1934]). 31 Assim, Goldstein (1995, [1934]) explica que o ambiente do indivíduo pode ficar muito limitado por precisar adotar essas estratégias para conservar o comportamento ordenado. O organismo comprometido alcança o comportamento ordenado apenas por meio do encolhimento do seu ambiente de maneira proporcional ao seu comprometimento (Goldstein 1995, [1934], p.56). Desse modo, a teoria organísmica propõe que, quando um evento qualquer altera o estado de equilíbrio do organismo, existe uma tendência das partes a se reorganizarem do modo como o campo permite. Segundo o próprio autor descreveu em seus estudos, existem duas dimensões de restabelecimento do equilíbrio organísmico: por meio de sistemas internos de compensação fisiológica e por meio dos sistemas de contato sensoriais e motores, pelos quais o organismo busca em seu meio o que precisa para atender a suas necessidades. Além disso, em um contexto adverso, o organismo irá desenvolver mecanismos adaptativos e, nesse sentido, um sintoma é compreendido como um ajustamento que pode ser mais ou menos funcional (Tellegen,1984). Lima (2013) amplia essa síntese ao afirmar que, conforme a teoria organísmica era construída, o autor percebia que a tendência à autorregulação com os diferentes recursos que o indivíduo pode dispor é algo comum a qualquer ser humano, e ressalta três aspectos nos quais a teoria organísmica contribuiu para um novo olhar para o ser humano: a proposta de se olhar para o homem em sua totalidade e não como a soma de suas diferentes funções; o olhar para o homem como um ser que busca se atualizar por um princípio autorregulador; e a demonstração de que o movimento autorregulador assume sempre um caráter interacional, com o meio no qual o indivíduo está inserido. 1.2.3 - Contribuições da psicologia da Gestalt A psicologia da Gestalt surgiu no início do século XX e seus principais autores são Wertheimer (1880-1943), Köler (1887-1967) e Koffka (1886-1940). Segundo os experimentos realizados por Wertheimer (1938, [1923]), em um contexto no qual um estímulo é apresentado para o indivíduo e, após um intervalo de 60 milissegundos, um novo estimulo é apresentado, o indivíduo vê o primeiro objeto movimentando-se da primeira localização para a segunda. O 32 importante nesse experimento é a constatação de que existe um período de tempo durante o qual não há um estímulo, e o indivíduo percebe essa ausência como um movimento. Esse movimento foi denominado pelo autor como fi. Nesse contexto, tanto os objetos que serviam como estímulo como a percepção da relação dos dois objetos em movimento (fi) foram definidos como Gestalt (Engelmann, 2002). O substantivo alemão Gestalt apresenta, portanto, dois significados: além do sentido de forma ou feitio como atribuído às coisas, tem a significação de uma unidade concreta per se, que tem ou pode ter, a forma como uma das suas características (Köhler, 1968, [1947], p.104). Assim, a palavra Gestalt significa também a configuração de uma situação; por representar um significado tão especifico, os autores optaram por manter a palavra em alemão. Segundo Köler (1968, [1947]), os autores da psicologia da Gestalt utilizam essa palavra com a intenção de comunicar o segundo significado do substantivo Gestalt. Isso porque a psicologia da Gestalt não se restringiu ao estudo das formas ou aos fenômenos da percepção, mas buscou compreender também os processos de aprendizagem, as emoções, o raciocínio e o comportamento. É importante explicar que, enquanto a psicologia da Gestalt é uma linha de pesquisa que investiga as regras da percepção e os temas citados anteriormente; a Gestalt-terapia é uma abordagem psicológica que utilizou o mesmo substantivo alemão em seu nome e assimilou alguns dos princípios da psicologia da Gestalt no processo de construção da Gestalt-terapia. Isso porque alguns princípios propostos pela psicologia da Gestalt eram considerados muito importantes por Perls (1969) e passaram a representar uma influência significativa na construção de diversos conceitos da Gestalt- terapia. Entre estes princípios estão a diferenciação da Gestalt entre figura e fundo e o que o autor denomina de a dinâmica da Gestalt, o movimento que ela realiza no sentido de um fechamento. O aspecto dinâmico da Gestalt descrito por Perls (1969) corresponde ao princípio da pregnância proposto pela psicologia da Gestalt. Segundo Wertheimer (1945) existe uma lei que determina a percepção - a pregnância. De acordo com esta lei, quando enxergamos três pontos, segundo a figura 33 abaixo, a tendência natural da nossa percepção é identificar um triângulo, ou seja, existe um movimento da percepção em busca de um fechamento. Figura 1: Ilustração do princípio da pregnância O princípio da pregnância, para Perls (1969), indica que quando uma necessidade não é atendida, ela permanece presente na relação do indivíduo com as outras pessoas e é denominada como uma Gestalt incompleta ou uma situação inacabada, até que a necessidade original possa ser identificada e atendida e que a Gestalt se feche. Nós experienciamos essa dinâmica diariamente, muitas vezes. O melhor nome para a Gestalt incompleta é situação inacabada (Perls, 1969, p.67). Além do aspecto dinâmico, o princípio da pregnância revela também, assim como na teoria de campo e na organísmica, o olhar holístico para a experiência do indivíduo. A experiência de uma Gestalt que emerge e busca fechamento no campo é sustentada de maneira integrada pelo pensamento, pelas emoções e pelas ações do indivíduo. O aspecto dinâmico e holístico também rege o princípio de figura e fundo. A figura depende do fundo sobre o qual ela se destaca. O fundo é a estrutura e serve como uma moldura que enquadra a figura e, assim, determina sua forma (Koffka, (1975, [1935]). Sob este ponto de vista, nenhum fenômeno que se destaca no campo pode ser compreendido sem que o fundo no qual este está inserido seja levado em consideração, o que caracteriza o aspecto holístico dessa visão. Em todo caso, um significado se cria relacionando-se uma figura, 34 o primeiro plano, com o fundo no qual aparece (...) Não há comunicação clara possível sem compreender a relação figura/fundo (Perls, 1969, p.67). O princípio de figura e fundo também revela seu aspecto dinâmico na medida em que a figura, que se destaca do fundo, não permanece fixa, pois pode se alternar em diferentes circunstâncias e de acordo com aspectos subjetivos. Além disso, outro aspecto do princípio de figura e fundo que também foi assimilado pela Gestalt-terapia é a ideia de que a figura tem a maior densidade de energia (Koffka, (1975, [1935]), p.204). Assim, como a figura concentra mais energia em relação ao fundo, o indivíduo irá se interessar e se lembrar da figura e não do fundo (Koffka, (1975, [1935])). Desse modo, esses dois princípios da psicologia da Gestalt, a figura e fundo e o princípio da pregnância, exercem uma forte influência sobre conceitos centrais da Gestalt-terapia, conforme será apresentado mais adiante. 1.2.4 - Contribuições da fenomenologia Segundo Rehfeld (2013), na metade do século XIX, houve uma crise das ciências europeias, resultante da falta de prática, por parte dos cientistas, de colocar verdadeiramente em questão os objetos dos seus estudos, sua metodologia e a ideia de rigor (Rehfeld, 2013, p.25). Nesse contexto, a obra de Husserl (1859-938) revolucionou o pensamento das ciências humanas ao demonstrar que não era possível pensar em um método único para todas as ciências, já que cada uma apresentava suas especificidades em funçãodo seu objeto de estudo. A influência maior dessas ideias é a nova compreensão que o autor propõe ao afirmar que não é possível desenvolver as ciências humanas com os mesmos parâmetros e rigor das ciências naturais (Rehfeld, 2013). O psicólogo não pode se relacionar com o mundo e com seus clientes subordinado às leis generalizantes3; é preciso uma mudança de atitude, o que Husserl denomina como epoqué ou redução fenomenológica. Para tanto, o psicólogo precisa colocar entre parênteses a realidade e o senso comum para 3 As leis generalizantes resultantes do pensamento positivista promoveram a crise das ciências europeias citadas anteriormente, uma vez que se descobriu que nas ciências humanas é inviável a produção de conhecimento que corresponda a uma verdade única e universal (Rehfeld, 2013). 35 captar a essência ou o sentido das coisas e apreender os fenômenos (Rehfeld, 2013). Merleau-Ponty (1996, [1945]) explica que a fenomenologia é o estudo das essências e, nesse sentido, a compreensão dos problemas implica na definição das essências. Alcançar a essência é a tentativa de uma descrição direta da nossa experiência tal como ela é (Merleau-Ponty, 1996, p.1). A fenomenologia, principalmente na maneira como é utilizada pela Gestalt- terapia, corresponde a uma prática, um método fenomenológico, um movimento que se realiza antes mesmo de se alcançar uma compreensão do fenômeno. O método fenomenológico pretende descrever, e não explicar ou analisar, o que corresponde ao que Husserl denominava de retornar às coisas mesmas (Merleau-Ponty 1996, [1945]). Desse modo, Husserl se contrapõe às ciências positivistas que consideram os objetos como independentes do observador. A fenomenologia, ao contrário, propõe que não existe objeto, ou mundo, sem um sujeito, assim como não existe um Eu sem o mundo. Deste ponto de vista, um polo é constitutivo do outro e nessa dinâmica dialética entre sujeito e objeto é que o ser constitui seu sentido (Rehfeld, 2013). A relação é, portanto, uma relação sempre contraditória e intencional, reveladora de um sentido no contato com o Outro. O Eu e o Outro se afirmam e se negam mutuamente, e é nesse processo de contradição que o sentido e o ser se constituem continuamente. Assim, por meio da redução fenomenológica e da descrição da experiência, é possível identificar a dinâmica entre as diferentes intencionalidades do Eu e do Outro. Desse modo, ao identificar a constante interação e contradição da experiência do terapeuta e do cliente, torna-se possível compreender o sentido da maneira única e singular de o cliente se relacionar com o mundo. A partir desse olhar, esse trabalho irá descrever as experiências da psicoterapeuta e dos clientes para que seja possível desvelar a intenção das ações das crianças e dos seus pais e, dessa forma, pensar no cuidado que atenda à necessidade singular das crianças na relação terapêutica. 1.2.5 - Contribuições do existencialismo dialógico Martin Buber (1878-1965) apresenta a alteridade por meio das palavras- princípio Eu-Tu e Eu-Isso. Com sua filosofia, o autor descreve e ressalta a 36 característica constitutiva da presença do Outro. O autor apresenta a palavra como sendo dialógica, na medida em que é portadora do ser. É através dela que o homem se introduz na existência (Zuben, 2006, p.28). A intencionalidade que anima a palavra promove um movimento entre dois polos, entre duas possibilidades de existência chamadas por Buber de palavras-princípio. Cada atitude do homem é atualizada por uma palavra-princípio, Eu-Tu ou Eu-Isso, o que não significa que existam “Eus” distintos, mas existe, sim, uma possibilidade dupla de existir como homem (Zuben, 2006). Existem, portanto, duas maneiras de se relacionar. A relação Eu-Tu propicia a experiência do encontro dialógico. No momento do encontro existe uma atualização do Eu orientada pelo Tu. O Eu, por aceitar a presença do Tu, presentifica o Outro nesse evento. Na relação dialógica, o Eu está presente como pessoa e o Tu como Outro, o que equivale a afirmar que a alteridade do Tu é reconhecida e respeitada. Ou seja, o Tu é também reconhecido como sujeito ou pessoa (Zuben, 2006). A relação com o Tu é imediata. Entre o Eu e o Tu não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia; e a própria memória se transforma no momento em que passa dos detalhes à totalidade. Entre Eu e Tu não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação; e a própria aspiração se transforma no momento em que passa do sonho à realidade. Todo meio é obstáculo. Somente na medida em que todos os meios são abolidos, acontece o encontro (Buber, 2006, [1974], p.57). Podemos apenas nos preparar para o encontro da relação Eu-Tu, ao mesmo tempo em que é necessário que o Outro também esteja disponível para o encontro, uma vez que o diálogo genuíno só pode ser mútuo (Buber, 2006, [1974]). A relação Eu-Tu implica, portanto, em um encontro de duas subjetividades, no qual o propósito da relação é o próprio encontro. Quando o encontro dialógico acontece, por meio do contato com a alteridade, uma transformação acontece no Eu. O encontro sempre provoca contato com o novo, crescimento e transformação. O encontro Eu-Tu é breve. O Outro, que no momento do encontro é contemplado, logo volta a ser visto como um conjunto de qualidades, deixando a sua condição de Tu. Por mais exclusiva que tenha sido a sua presença, 37 assim que a relação é impregnada pelos meios, o Tu retorna a sua condição de objeto entre outros objetos (Buber, 2006, [1974]). Em contraste, segundo Hycner (1995), a postura Eu-Isso acontece quando a outra pessoa é percebida como um objeto, como um meio para um fim específico. A alternância entre as duas posturas é necessária para a vida humana, uma vez que o homem ambiciona atingir certos propósitos. Além disso, o Tu em um momento posterior ao encontro, também está condenado a se transformar em Isso. No entanto, segundo Zuben (2006), quando a pessoa se relaciona exclusivamente a partir da postura Eu-Isso, esse aprisionamento passa a representar a destruição do si mesmo. O homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o Isso não é homem (Buber, 2006, [1974] p.72). Hycner (1995), Hycner e Jacobs (1997) e Yontef (1998) consideram a Gestalt- terapia uma abordagem dialógica e utilizam a filosofia de Martin Buber para enfatizar a possibilidade do encontro como caminho de crescimento e transformação, considerando que existe certa abertura por parte do cliente. Nesse sentido, todo contato precisa ser compreendido dentro do contexto do diálogo. O princípio básico da Gestalt-terapia de orientação dialógica é que a abordagem, o processo e o objetivo da psicoterapia são dialógicos no enfoque global (Hycner e Jacobs, 1997, p.30). Esses autores enfatizam que a presença é um passo preliminar para que o contato genuíno possa se estabelecer. A presença é uma postura existencial, na qual o indivíduo se dirige por inteiro para a outra pessoa. É a possibilidade de renunciar às preocupações e colocar como único objetivo permanecer presente na relação (Hycner e Jacobs, 1997). A inclusão também é um movimento que qualquer indivíduo que queira estabelecer uma relação dialógica precisa praticar. No contexto da psicoterapia, para praticar a inclusão, o terapeuta deve tentar experienciar, mesmo que por alguns instantes, o que o cliente está experienciando. Há uma experiência de ausência de self por alguns momentos. Ainda assim, e ao mesmo tempo, o terapeuta também precisa manter seu próprio centramento (Hycner e Jacobs, 1997, p.42). Além disso, a confirmação também é um movimento essencial para qualquer abordagem dialógica e consiste em um espelhamento, uma fala que 38 aponta para o indivíduo quem ele é. O psicoterapeutaconfirma seu cliente quando nomeia suas expressões singulares. A confirmação é fundamental, pois o ser humano só pode se apropriar de si mesmo, das suas sensações, bem como das suas habilidades e características, quando elas são nomeadas, apontadas e reconhecidas por outra pessoa. O indivíduo que é confirmado em seu próprio ser estará capacitado a se centrar em sua existência. É importante ressaltar que a confirmação não acontece em uma única experiência, mas é resultado de acontecimentos que se desenrolam ao longo da sua vida (Hycner e Jacobs, 1997). Assim, os momentos de encontro Eu-Tu não podem ser controlados, mas podem ser favorecidos quando se assumem essas posturas (inclusão, presença e confirmação) na relação. É importante destacar que os momentos de encontro Eu-Tu revelam um interesse genuíno na alteridade da pessoa com quem se está relacionando. Portanto, é uma experiência que implica no reconhecimento da singularidade e da separação do outro em relação a si, sem que se esqueça da humanidade que é comum no entre. Nesse contexto, o entre ou o inter-humano é o lugar do encontro Eu-Tu (Hycner, 1995). Desse modo, é importante explicitar que a inclusão, a presença e a confirmação parecem representar posturas, que favorecem o momento de encontro Eu-Tu, considerando que a subjetividade das pessoas envolvidas na relação esteja constituída de forma que lhes seja possível reconhecer a alteridade um do outro. Esse trabalho pretende ampliar essa compreensão ao descrever quais cuidados podem sustentar um momento de encontro, considerando que uma das pessoas envolvidas na relação ainda não tenha uma subjetividade constituída enquanto autossuporte. Hycner (1995), bem como outros autores contemporâneos da Gestalt- terapia, como Lee (2013) e Spagnuolo Lobb,(2013) denominam um encontro com essa qualidade na qual o Outro se apresenta como Tu para que o Eu possa se constituir como experiência intersubjetiva. Enquanto Tervo (2011) se refere a essa dimensão do encontro como experiências co-criadas. Porém, considerando que a denominação utilizada pelos autores contemporâneos da Gestalt-terapia, tais como experiências intersubjetivas ou co-criadas, talvez, não sejam as denominações mais adequadas, já que as experiências que acontecem no inter-humano incluem duas subjetividades e, 39 portanto, são também intersubjetivas e co-criadas. E, considerando também que as experiências que precisam ser sustentadas pelo Outro para que o Eu seja constituído, envolvem uma subjetividade. Talvez, seja mais adequado denominar o diálogo que favorece o encontro e possibilita a constituição do Eu, como um diálogo, que acontece na dimensão constitutiva. Assim, esse trabalho pretende propor que as experiências que resultam de um diálogo nessa dimensão, ou que sustentam o processo de constituição do self da criança, sejam denominadas como experiências constitutivas. Após essa discussão, que melhor localiza a denominação que esse trabalho pretende adotar para as experiências que contribuem com o processo de constituição do self, é possível retomar a apresentação da abordagem. Os pressupostos filosóficos que foram apresentados formam o pano de fundo a partir do qual os autores da Gestalt-terapia, Perls, Goodman e Hefferline (1997, [1951]), construíram a teoria da Gestalt-terapia, com a qual buscam descrever os movimentos envolvidos em uma experiência. Segundo os autores, o contato é que é a realidade mais simples e primeira (Perls, Goodman e Hefferline, 1997, [1951], p.41). Nesse sentido, logo no início do livro Gestalt-terapia, que é a publicação por meio da qual a abordagem é apresentada, os autores enfatizam que o propósito de todas as discussões teóricas apresentadas no livro é analisar a função de entrar em contato com a realidade. Desse modo, com a intenção de destacar e explicitar o contato como conceito fundante da abordagem, os conceitos da Gestalt-terapia serão apresentados a seguir, de tal forma que poderiam ser representados por uma espiral, na qual o conceito de contato se encontra no centro e os demais conceitos são dimensões possíveis que permitem compreender o fenômeno da experiência humana. Assim, conforme os outros conceitos são apresentados, eles ampliam o olhar e buscam abranger a complexidade do contato. 40 1.3 - Gestalt-terapia: a terapia do contato A opção por enfatizar o conceito de contato na apresentação da Gestalt- terapia está sustentada em dois motivos principais. Em um primeiro momento, logo que conheci a Gestalt-terapia, percebi, de forma intuitiva, a riqueza do conceito de contato. Esse conceito despertou a minha atenção, uma vez que a aparente simplicidade com a qual ele é apresentado não limita a sua potência de descrever a complexidade das experiências humanas. Em um segundo momento, conforme pude estudar e conhecer melhor tanto os pressupostos filosóficos quanto os conceitos da Gestalt-terapia, identifiquei que o conceito de contato aparecia como um denominador comum entre as ideias propostas pela abordagem. Essa constatação foi confirmada pela apresentação que Perls, Hefferline e Goodman (1997, [1951]) fazem da abordagem, ao explicar que os conceitos que apresentam pretendem tratar da experiência, que é descrita com o conceito de contato e ampliada com os conceitos de fronteira de contato, ajustamento criativo, campo, funções de contato, suporte, awareness e self. Por esses motivos, a Gestalt-terapia será apresentada a partir do processo de contato. Os demais conceitos serão descritos e será possível identificar como eles permitem ampliar a compreensão do fenômeno que Perls, Hefferline e Goodman (1997, [1951]) se propõem a descrever: a experiência. A intenção dessa forma de apresentar a abordagem é também de tornar cada vez mais evidente os movimentos que estão implicados na possibilidade de sustentar os próprios processos de contato. Assim, uma vez apresentada a concepção de saúde para a Gestalt-terapia, que implica na possibilidade de encontrar suporte para a experiência, é possível iniciar a reflexão sobre os cuidados que levam à saúde do ponto de vista da abordagem. O processo do contato foi proposto inicialmente por Perls, Hefferline e Goodman (1997, [1951]). No livro Gestalt-terapia, os autores explicam que o processo do contato transcorre ao longo de quatro fases: pré-contato, contato, contato final e pós-contato. Em cada uma dessas fases se reconfigura a experiência do organismo no campo. O pré-contato está relacionado ao momento no qual o excitamento surge no organismo. Na fase seguinte, no contato, a energia do organismo se expande em direção à fronteira de contato com o ambiente, na busca por um objeto ou por possibilidades de satisfazer 41 sua necessidade. Ainda no contato, o organismo manipula o ambiente, escolhendo certas possibilidades e rejeitando outras. No contato final, o organismo e um elemento do campo se envolvem no ato do contato, na fronteira de contato. Nessa fase, existe uma troca nutritiva com o meio, que irá, na medida em que é assimilada, contribuir para o processo de crescimento do organismo. E, de modo dialético, o organismo irá imprimir sua marca no elemento do campo que está contatando. Finalmente, na última fase, no pós- contato, a energia do organismo diminui para que seja possível assimilar o novo e integrá-lo. Segundo Form e Miller (2007, [1977]) na introdução do livro Gestalt-terapia de Perls, Hefferline e Goodman (1997, [1951]), o lugar da experiência é o contato, e é em direção ao contato que a teoria e a prática do psicoterapeuta precisam se orientar. O local primordial da experiência psicológica, para onde teoria e prática psicoterapêuticas têm que dirigir sua atenção, é o próprio contato, o lugar onde self e ambiente organizam seu encontro e se envolvem mutuamente (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, [1951], p.23).
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