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REPUBLICANISMO E LIBERALISMO - DA RELAÇÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA NO MARCO DAS TRADIÇÕES DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO Marcelo Andrade Cattoni de Olivreira Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG) Professor Adjunto de Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica, Teoria Geral do Direito e Hermenêutica e Teoria da Argumentação Jurídica (PUCMinas) Professor Adjunto de Teoria da Constituição, Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional (UFMG) Professor de Teoria Geral do Direito do Curso de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara Membro do Comitê de Ética na Pesquisa (PUCMinas) Membro da Associação Brasileira de Filosofia e Sociologia do Direito Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria de Estado da Justiça e Direitos Humanos de Minas Gerais Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Minas Gerais 1 – INTRODUÇÃO Na introdução à sua tradução de Faktizität und Geltung (Direito e Democracia: Entre facticidade e validade ), de Jürgen Habermas, Manuel Jiménez Redondo (1998) parte do pressuposto segundo o qual se poderia considerar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como uma das expressões mais significativas do conteúdo normativo da Modernidade política. Analisando a Declaração, seria possível reconhecer a marca das duas grandes tradições do pensamento político moderno, a liberal e a republicana, representadas, respectivamente, nos embates políticos da Revolução Francesa, pelos girondinos e pelos jacobinos (ELSTER 1994: 57ss.). Após o seu preâmbulo, que procura explicitar as razões pelas quais os “representantes do povo francês” julgaram necessário “expor em uma declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem” - ou seja, o esquecimento, a ignorância e desapreço pelos direitos do homem como causa de toda corrupção dos governos - , a Declaração de 1789 passa a especificar uma série de princípios e de direitos, dentre os quais, os direitos à igualdade jurídica, à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão (arts.1º e 2º); e o objetivo de toda sociedade política, a conservação desses direitos “naturais e imprescritíveis do homem” (art. 2º). O art. 4º esclarece que “a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem; por isso, o exercício dos direitos naturais do homem não tem outro limite que aqueles que assegurem aos demais membros de uma sociedade o gozo dos mesmos direitos”. Até esse ponto, a Declaração nada mais seria que a expressão da idéia liberal lockeana fundamental, segundo a qual haveria um conjunto de direitos pré- políticos, verdadeira fonte normativa natural, que precederia, limitaria e condicionaria a lei, devendo essa ser tão- somente a encarnação e a expressão daqueles direitos. Assim, o art. 5º dirá que não cabe à lei senão proibir as ações nocivas à sociedade, que desrespeitem os fins para os quais a sociedade civil se constitui: a garantia e a conservação dos direitos naturais do homem. E o restante do art. 5º, “tudo o que não está vedado pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser forçado a realizar o que a lei não ordena”, e, ainda, o art. 3º, “a soberania reside essencialmente na nação. Nenhum indivíduo ou corporação poderão realizar o exercício de autoridade que não emane expressamente dela”, podem, também, ser interpretados no sentido liberal segundo o qual, ...“para evitar os inconvenientes do ‘estado de natureza’ e com o objetivo de uma melhor conservação dos direitos, se institui por pacto uma commonwealth para cujo government se delega a faculdade que no ‘estado de natureza’ cada indivíduo tinha de fazer valer coercivamente seus direitos; ao government dessa commonwealth compete agora com exclusividade a função de fixar, interpretar e impor os direitos.”(JIMÉNEZ REDONDO 1998: 21) Todavia, segundo Jiménez Redondo, o art. 6º irá introduzir uma outra fonte de normatividade e de legitimidade bastante distinta daquela que representam os direitos naturais que precederiam a sociedade política, na linha do pensamento não mais de Locke, mas de Rousseau: “A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer para a sua formação pessoalmente ou por seus representantes”; e, sendo assim, a lei “deve ser a mesma para todos, seja que proteja, seja que castigue”. O art. 6º levanta a questão acerca do que deveria ocorrer com a lei, que podendo considerar - se expressão da vontade geral, vulnere os direitos naturais. Com base no art. 5º, a lei que desrespeitasse direitos naturais deveria ser nula. Mas, desde a perspectiva do art. 6º, obter - se- ia, por sua vez, um sentido bastante diferente que, inclusive, poderia estar mais de acordo com o disposto no art. 3º. A questão é que, da perspectiva do art. 6º, explica Jiménez Redondo, “A liberdade não consiste primeiramente, como disse o artigo quarto da Declaração, ‘em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem; por tanto, o exercício dos direitos naturais do homem não têm outros limites que aqueles que assegurem aos demais membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos’ (art. 4); tampouco consiste em estar permitido a qualquer um tudo aquilo que as leis do soberano não proíbem; senão que primariamente consiste naquilo a que se faz referência n’O contrato social [de Rousseau] ao assinalar o problema que o contrato resolve: ‘Encontrar una forma de associação que defenda, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo - se a todos, não obedeça, todavia, senão a si mesmo’, isto é, a liberdade consiste primariamente em autonomia pública, quer dizer, em havendo de estar submetido a leis, não estar submetido a outras leis que as que qualquer um haja podido impor a si mesmo, conjuntamente, com cada um de todos os demais, podendo valer para todos e para qualquer um.” (JIMÉNEZ REDONDO 1998: 23) Todavia, segundo Jiménez Redondo, (grifos meus ) “Deste conceito positivo de liberdade deriva, certamente, outro inteiramente subordinado a ele: ‘Tudo o que não está vedado pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordena’ (art. 5), mas disso não resulta necessariamente o conceito do artigo quarto.” (JIMÉNEZ REDONDO 1998: 23) Afinal, um argumento é dizer que a lei não pode ferir os direitos humanos naturais (ou fundamentais), baseados na noção de liberdade segundo a qual essa consiste em fazer tudo o que não prejudique o igual exercício da mesma liberdade pelos outros, e outro argumento consiste em afirmar que a lei é a expressão da liberdade enquanto autonomia política de cada um, que se exerce no interior ou no todo da sociedade política. Para se pontuar a importância de tal problemática, e da força que essas duas concepções ainda possuem na atualidade, basta abrirmos a Constituição brasileira de 1988 para notarmos, a princípio, um certo paralelismo com a Declaração de1789. Por um lado, o art.5º da Constituição brasileira dispõe que todos são iguais perante a lei, sendo garantidos os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; e o art. 60, §4º, inciso IV, torna esses direitos um limite ao exercício do Poder Legislativo, inclusive do Poder Constituinte de Reforma da Constituição, ao determinar que não deverá ser (o texto, em tom de declaração, diz, literalmente, “não será”) objeto de apreciação por parte do Poder Legislativo proposta de Ementa tendente a abolir direitos e garantias individuais (isso, sem nos esquecermos da normativa do inciso XXXVI, do art.5º, que determina que a lei não deverá prejudicar - “não prejudicará”, como está no texto – o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada). Por outro lado, o art. 1º, parágrafo único, da Constituição, dispõe que a fonte de legitimidade do poder político é o povo , que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente; e o art.5º, II, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Como, ontem e hoje, compreender adequadamente esses dispositivos normativos? Diante dessa problemática, Isaiah Berlin, como outros autores, no terreno da Filosofia Política, buscou sintetizar o que seria o grande e duvidoso legado da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, com as seguintes palavras: “A relação entre democracia e liberdade individual é bem mais tênue do que pareceu a muitos defensores de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou, pelo menos, de participar do processo através do qual minha vida deve ser controlada, pode ser um desejo tão profundo quanto o de uma área livre para a ação, e talvez historicamente mais antigo . Mas não é um desejo relativo à mesma coisa . Na realidade, é tão diferente, que levou, em última instância, ao grande conflito de ideologias que domina nosso mundo. Pois é isto – a concepção “positiva” de liberdade: não liberdade de, mas liberdade para – de levar uma forma de vida prescrita – que os adeptos do conceito de liberdade “negativa” imaginam seja, algumas vezes, nada mais do que um ilusório disfarce para a tirania brutal.” (BERLIN 1981: 142) Mas será essa a forma mais adequada, ao paradigma do Estado Democrático de Direito, de se reconstruir o conteúdo normativo moderno, que se expressa, por exemplo, através do disposto pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e que encontra ecos até hoje, como no Direito Constitucional brasileiro? Tal indagação se impõe não somente por uma questão teórica mas também por uma questão prática, operacional, do Direito, fundamental para a questão acerca de uma justificação do controle judicial de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Pois é algo bastante diferente tentar justificar, por um lado, de uma perspectiva liberal, que tal controle se sustenta em razão da garantia dos direitos liberais fundamentais frente ao legislador, e, por outro lado, buscar justificar, se é que é possível justificar, de uma perspectiva republicana, que esse controle se baseia na garantia da manifestação de uma cidadania ativa. Será impossível compreender de forma não concorrente o que estaria disposto nos arts. 4º e 6º, da Declaração, os direitos do homem e os direitos do cidadão ? Ou, em outras palavras, será possível conectar a fonte normativa que emprestaria legitimidade às leis, que é representada pelos direitos humanos (“naturais”), de liberdade, de propriedade e de segurança, que o liberalismo buscou consagrar, e a fonte normativa, destacada pelos republicanos, que representa o exercício democrático da autodeterminação política, da qual as leis deveriam emanar? Cabe dizer, desde já, que a tentativa histórica de solucionar tal questão, através da divisão de papéis entre homem membro da sociedade civil e cidadão membro da sociedade política não resolve o problema, que poderia ser colocado por uma lei expressão da autonomia política dos cidadãos que pudesse violar direitos humanos naturais (portanto, comuns a todos, cidadãos ativos ou não), já que, em princípio, a possibilidade de violação desses direitos permaneceria. A fim de buscar contribuir para a reflexão acerca dessas indagações, todas elas centrais para uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, teremos de reconstruir os conceitos de autonomia pública e de autonomia privada, bem como os de constitucionalismo e de democracia, a eles relacionados, e mostrar que, no paradigma do Estado Democrático de Direito, à luz de uma teoria discursiva do Direito e da Democracia, tais conceitos não se opõem mas, ao contrário, estão intimamente implicados. Mas, antes disso, neste capítulo, procurarei explicitar como as tradições político- democráticas modernas, a republicana e a liberal, buscaram enfrentar esses problemas. E, também, como resultam, de suas construções, compreensões político- constitucionais divergentes, acerca da relação entre constitucionalismo e democracia. Como veremos, ao referir a Constituição a valores éticos tradicionais de uma nação, sempre carentes de estabilização, ou ao considerá - la um limite jurídico- moral à atuação do legislador político, respectivamente, os republicamos darão prioridade à autonomia pública em detrimento da privada e os liberais darão prioridade à autonomia privada em detrimento da pública. Ao vincular - se, como veremos, a uma noção de liberdade positiva, o Republicanismo acentuará a autonomia pública e a interpretará em termos de autorrealização ética; e o Liberalismo, ao vincular - se a uma noção de liberdade negativa, acentuará a autonomia privada e a interpretará como autonomia moral ou, então, como “escolha racional”. Nesse sentido, a Democracia surgirá ou como uma forma político- instrumental que legitima um governo que representa os interesses majoritários, como considerarão os liberais, ou como a forma política de autorrealização ética de uma nação, como compreenderão os republicanos. Todavia, como veremos, essas tentativas empreendidas tanto por liberais quanto por republicanos são extremamente reducionistas. Pois buscar solucionar o conflito entre autonomia pública e autonomia privada, através de uma pretensa fundamentação ética, ou então moral, da relação entre constitucionalismo e democracia que, em última análise, leva à prioridade de uma sobre a outra concepção da liberdade, “negativa” ou “positiva”, é permanecer cego à conexão interna entre autonomia pública e autonomia privada, à sua co- originalidade e à sua equiprimordialidade. 2 - REPUBLICANISMO E LIBERALISMO A tradição política republicana 1 remete - se a Aristóteles, através da filosofia romana republicana e do pensamento político italiano do Renascimento (Humanismo Cívico)2. É recepcionada pelo pensamento de James Harrigton 3, o famoso opositor de Thomas Hobbes, e, através da obra de Harrigton e de outros, influenciou os debates norte - americanos da Convençãode Filadélfia. Essa tradição do Republicanismo Cívico, do Maquiavel dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio4, foi 1 Para uma pequena genealogia da tradição republicana, ver MOUFFE 1996: 85. E, sobretudo, SANDEL 1982. 2Sobre o Humanismo Cívico, ver BIGNOTTO 1991: 9ss. Também SKINNER 1996: 91ss. 3 Sobre James Harrington, ver SABINE in HARRIGNTON 1996. 4Sobre Maquiavel e o Republicanismo renascentista ver BIGNOTTO 1991. Também SKINNER 1996: 176- 177; 201ss. transposta para a linguagem moderna do Jusnaturalismo, na recepção e atualização realizadas pela obra de Jean- Jacques Rousseau, influenciando grandes nomes da Revoluções Francesa e Americana. Mereceu as reflexões de G.W.F. Hegel e do jovem Karl Marx, e despertou, já no século XX, a admiração e a recepção crítica nos escritos políticos e filosóficos de Carl Friedrich (1967) e de Hannah Arendt (1958; 1990; 1992), dentre outros. Contemporaneamente, são considerados republicanos autores como Charles Taylor (1993; 1997), Michael Walzer (1993; 1997), Michael Sandel (1982) e Alasdair McIntyre, além de juristas como Neil MacCormick (1995), Michael Perry (1990; 1994) e Frank Michelman (1988). A tradição política liberal, de John Locke a Immanuel Kant, de Emmanuel Sieyes e Thomas Paine, a Benjamin Constant ou a John Stuart Mill, e passado por Jeremy Benthan e outros, chega aos nossos dias através dos ensaios de Isaiah Berlin e de obras tão diversificadas como as de John Rawls (1971; 1993a), Robert Nozick (1991), Charles Larmore (1996) ou Ronald Dworkin (1978; 1993). Mas é a obra filosófico- política e moral de John Rawls que, atualizando o jusnaturalismo de matriz kantiana e não- utilitarista, reacendeu nos Estados Unidos o debate 5, que mais tarde se alastrou pelo mundo, entre Republicanos (comunitaristas ou não) e Liberais (sociais ou não). Essas duas tradições, enquanto tradições do pensamento político moderno, compartilham a idéia segundo a qual todos os cidadãos são livres e iguais. Assim, ambas defendem, não apenas a existência de uma 5Sobre o debate ver, MOUFFE 1996: 37ss; 83ss., KUKATHAS- PETTIT 1995, HABERMAS 1997b, em várias passagens, TOURAINE 1996 , em várias passagens, APEL in BLANCO FERNÁNDEZ- PÉREZ TAPIAS- SÁEZ RUEDA 1994. Constituição e de um regime democrático, mas, também, a constitucionalização de direitos fundamentais. Todavia, isso não significa que a Constituição, a Democracia e os direitos fundamentais sejam interpretados da mesma forma por elas. Ao contrário, o que há entre essas tradições políticas é uma série de divergências 6, nem sempre conciliáveis, quanto aos conceitos de processo político, cidadania (VIEIRA, J.R. 1997: 220), direitos, constituição, democracia, etc.(HABERMAS 1997b: 2: 19ss.). Tomemos, de início, o pensamento de Jean- Jacques Rousseau e de John Locke, autores, esses, que podem ser compreendidos como aqueles que, em primeiro lugar, fixaram – e a Declaração de 1789 pode ser considerada como reflexo disso – os termos das questões filosófico- políticas que, à essa altura das nossas indagações, devem ser discutidas. Jean- Jacques Rousseau, assim como John Locke, é muito conhecido, dentre outros motivos, por ser um grande representante do "contratualismo"7. Em 6 Divergências, essas, que são muito bem apresentadas ao longo de toda reflexão empreendida em CITTADINO 1999. Ver, p. ex., a explicação da nota 10, na p.5, dessa obra. 7Para uma visão geral do "contratualismo", e de que "por tal termo se entende uma escola que floresceu na Europa entre os começos do século XVII e os fins do século XVIII e teve seus máximos expoentes em J.Althusius (1557- 1638), T.Hobbes (1588- 1679), B.Spinoza (1632- 1677), S.Pufendorf (1632- 1694), J.Locke (1632- 1704), J.- J.Rousseau (1712- 1778), I.Kant (1724- 1804)", ver o verbete de Nicola Matteucci, in BOBBIO- MATEUCCI- PASQUINO 1994: 272. Matteucci adverte para o fato, bastante relevante para o presente estudo, de que por escola entende "não uma comum orientação política, mas o uso comum de uma mesma sintaxe ou de uma mesma estrutura conceitual para racionalizar a força e alicerçar o poder no consenso". Mas se vai tornando inegável, à medida que a análise de Matteucci avança, a influência dessas referidas "orientações políticas divergentes" (verdadeiras pragmáticas) nessa "estrutura conceitual", que pouco resta como sendo a mesma, ainda mais em se tratando da busca de "uma racionalização da força" ou de "um fundamento consensual do poder". Sobre as teorias contratualistas hoje, ver, por exemplo, KERN- MÜLLER 1992. seu livro, Do Contrato Social 8, Rousseau (1983a) traça uma grande tese acerca da organização, ou do que deveria ser a organização, política legítima. "O homem nasce livre, e por toda parte encontra - se a ferros" (ROUSSEAU, J.J. 1983a: 22). Não há uma organização política que, não tendo sido erguida em respeito à liberdade e à igualdade civis, exerça um domínio legítimo sobre os homens. Somente um Pacto ou Contrato social que, ao contrário de Hobbes, e num certo sentido na linha de Locke , não aliena a um Leviathan , mas transforma e assegura, os direitos naturais, poderá fundar uma organização política legítima. Assim, não há como concordar com Bobbio (1992b: 46) e outros, quando simplesmente afirmam que Rousseau se afastaria de Locke e se aproximaria de Hobbes 9, por compreender o contrato social como um "ato de renúncia coletiva aos direitos naturais", pois isso é desconsiderar as críticas de Rousseau ao Absolutismo. Cabe lembrar que, em primeiro lugar, para Rousseau, o Direito não pode advir da força (ROUSSEAU 1983a: 25- 8A tradução do francês ao português, na publicação feita pela Abril Cultural, em sua coleção "Os Pensadores", é de Lourdes Santos Machado, com notas também redigidas por Paul Arbousse - Bastide. Na primeira nota, os organizadores advertem, de modo, como se verá, bastante significativo: "Na edição Dreyfus- Brisac, famosa por ser a primeira a tentar a reposição do texto segundo as fontes originais, figura um fac- símile da primeira folha do Manuscrito de Genebra , primitivo esboço do Contrato Social. Aí se encontram as muitas variantes por que passou o título da obra. Primeiro, foi mesmo "Do Contrato Social". Depois, provavelmente para fugir ao sabor individualista dessa expressão, foi ela riscada e substituída por "Da Sociedade Civil". A seguir, consciente da originalidade de sua interpretação do esquema contratual, Rousseau retoma o primeiro título. Quanto ao subtítulo, encontramos sucessivamente "Ensaio sobre a Constituição do Estado", "Ensaio sobre a Formação do Corpo Político", "Ensaio sobre a Formação do Estado" e "Ensaio sobre a Forma da República". "Princípios do Direito Político" é novidade que só surge na versão definitiva do Contrato ." 9 Mesmo assim, a própria leitura de Hobbes, empreendida por Bobbio, carece de maiores aprofunda men tos. Como demost ra m os estudos mais recentes, Hobbes poderia ser visto como um paradoxal defensor da esfera privada, que seria garantida por um governo autoritário. Mas esse autoritarismo possui limites. O soberano somente realizariasuas ações através da linguagem abstrata do Direito moderno, o que viabilizaria, portanto, o direito de todos a iguais liberdades subjetivas. Assim, Napoleão Bonaparte corporificaria a figura de um soberano como esse, e muito melhor do que qualquer um dos reis Stuart. 26), e que “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem” (ROUSSEAU, J.J. 1983a: 27). E em segundo lugar, considero ser possível compreender o que Bobbio referindo - se a Rousseau chama de "renúncia não em favor de um terceiro mas em favor de todos", não como uma alienação pura e simples de direitos, mas como uma transfiguração dos direitos naturais, em razão da institucionalização jurídica desses no plano da comunidade política do Estado. Porque tal institucionalização visa a assegurar e realizar esses direitos e não a uma mera transferência de poder em favor do Estado, Rousseau aproxima- se de Locke, já que ambos compreendem, ao contrário de Hobbes, que o contrato social visa a assegurar os direitos naturais, através da sua institucionalização jurídico- política. Isso, inclusive, pode ser ilustrado com as mesmas passagens da obra rousseauniana citada por Bobbio (1992b: 47), as duas primeiras do capítulo VI e a última do capítulo VIII, Do Contrato Social : "Encontrar uma forma de associação que defenda e apóie com toda a força coletiva a pessoa e os bens de cada um dos membros e por meio da qual, cada um unindo- se a todos, obedeça somente a si mesmo e permaneça livre como antes". "Cada um oferecendo - se a todos não se oferece a ninguém, e porque não existe membro algum sobre o qual não seja adquirido o mesmo direito que lhe é concedido acima de nós, ganha - se o equivalente de tudo aquilo que se perde, e mais a força para conservar o que se tem". "O que o homem perde através do contrato social é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo aquilo que causa desejo e que ele pode obter: o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo aquilo que possui." Entretanto, é correto afirmar que a aproximação de ambos vai até o ponto em que se passa a discutir o que seria assegurar e realizar direitos naturais, através de sua institucionalização jurídica, no nível da comunidade política do Estado. E, nesse sentido, cabe destacar uma diferença fundamental entre Rousseau e Locke, quanto ao “direito civil de liberdade”, e que, com certeza, refletir - se- á na compreensão final que cada um deles possui do contrato social, do Direito e da política - a razão de tantos equívocos e análises apressadas. Jean- Jacques Rousseau, na linha da tradição republicana, compreende o direito à liberdade como direito à autodeterminação política, que se realiza através do exercício da liberdade civil e da soberania do povo, na construção de uma comunidade ou "corpo" ético- político, enquanto John Locke, como autor do Liberalismo, compreende o direito de liberdade fundamentalmente como autodeterminação privada quanto à propriedade e à felicidade, a ser assegurado juridicamente frente aos outros indivíduos e à própria organização político - estatal. Enquanto em Rousseau a liberdade é liberdade para algo , em Locke é liberdade de ou frente a algo 10 . Em Rousseau, a liberdade natural se institucionaliza juridicamente, no âmbito da comunidade política, como liberdade civil, no plano da e para a participação política (pertinência à pólis), e que resgata a idéia de virtude cívica ; em Locke, a liberdade natural se institucionaliza juridicamente no plano da comunidade política como liberdade civil, 10 Uso, aqui, mais uma vez, as expressões de BERLIN 1981. Retomando o tema da famosa conferência de Benjamin Constant, Berlin fala em liberdade em sentido positivo e liberdade em sentido negativo . Todavia tal distinção é problemática da perspectiva de uma teoria discursiva da democracia. através do reconhecimento e da garantia, pela comunidade política - estatal, da existência à parte de uma esfera privada (separação entre Estado e sociedade). Para Locke e Rousseau, o contrato social que constitui a organização civil, ou sócio- política, a constituição do Estado ou a constituição política, tem finalidades comuns e finalidades diferentes. Para ambos, é a forma de se assegurar efetiva e legitimamente os direitos naturais dos indivíduos 11 . Mas em Locke o contrato ou pacto fundamental tem por finalidade criar uma organização social através da qual o indivíduo, compreendido antes como sujeito de direitos privados do que como cidadão, possa exercer com segurança e sem interferências os seus direitos à vida, à liberdade privada e, principalmente, aos bens a que chama "propriedade" 12: "124.O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidades, colocando- se eles sob o governo, é a preservação da propriedade. Para esse objetivo, muitas condições faltam no estado de natureza.” (LOCKE 1983: 84) 13 . 11 O que o empirismo político característico das análises de BOBBIO 1992b: 48 não deixa ver é justamente o aspecto normativo da exposição tanto de Locke, quanto, e fundamentalmente, de Rousseau, acerca do pacto social: com esse se funda a organização política, através da institucionalização político- jurídica de direitos que passam a ser reciprocamente reconhecidos, desde o início, quando da passagem do "estado de natureza" para o "estado civil". 12 Sobre o conceito de propriedade em John Locke, ver JORGE FILHO 1992: 77ss. Aqui, o contraste entre Locke e Rousseau é imenso. Basta lembrar que Rousseau considera que a propriedade privada está na origem das desigualdades “morais” ou “políticas” entre os homens (ROUSSEAU, J.J. 1983b: 259). 13 No original, “ The great and chief end therefore, of Mens uniting into Commonwealths, and putting themselves under Government, is the preservation of their Property. To which in the state of nature there are many things wanting”. (LOCKE 1963: 395- 396) Para Locke, diferentemente de Rousseau, há que se diferenciar o pacto fundamental do pacto que cria o governo (um governo representativo 14 , eleito pela maioria dos membros da "comunidade política" (Commonwealth 15)), pois um é o processo político fundador, outro o processo eleitoral de escolha de representantes. A dissolução, por exemplo, do governo, não implica necessariamente dissolução da sociedade, embora ocorra o contrário quando se dissolve a sociedade pois, nesse caso, o governo não encontraria como subsistir (LOCKE 1963: 454; 1983: 118). E uma das razões pelas quais um governo pode (e deve) ser dissolvido, se não for a razão principal, consiste no descumprimento por esse de suas finalidades e encargos, ou seja, ..."quando tenta invadir a propriedade do súdito e tornar - se a si mesmo ou a qualquer parte da comunidade senhor ou árbitro da vida, liberdade ou fortuna do povo". (LOCKE 1983: 121; 1963: 460) Já Rousseau concebe tanto o pacto fundador, quanto o processo político e o processo eleitoral de modo diverso. O contrato social, enquanto constituição política, consubstancia a formação de um corpo político que, através da comunhão de seusmembros (“fraternité”), exerce o direito comunitário à autodeterminação, em busca da realização da felicidade, da 14Cabe lembrar que em Locke, o governo, composto de representantes ou de um representante do povo, é exercido fundamentalmente pelo poder legislativo, existente ao lado do poder executivo e do poder federativo, e se diferencia do seio do povo, não se confundindo com este último. Sobre isso, ver LOCKE 1963: 401ss; 1983: 86ss. 15É o próprio Locke quem explica o que significa Commonwealth, nessa passagem do seu já citado livro: "133. By Commonwealth, I must be understood all along to mean, not a democracy, or any Form of Government, but any Independent Community which the Latines signified by the word Civitas, to which the word which best answers in our Language, is Commonwealth, and most properly expresses such a Society of Men, which Community or City in English does not, for there may be Subordinate Communities in a Government; and City among us has a quite different notion from Commonwealth". autorrealização ética 16 . "Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem" (ROUSSEAU 1983a: 27). A garantia de cidadania, liberdade e igualdade civis, na busca da felicidade, é a finalidade por excelência do pacto social e da sociedade política que através dele se constitui: "'Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro enquanto parte indivisível do todo'. Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem, eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado." (ROUSSEAU, J.J. 1983a: 33- 34) Cada momento em que se expressa a vontade geral é uma confirmação do pacto social e da constituição do corpo político. Em Rousseau, não há lugar nem para governo representativo no sentido lockeano, já que "A soberania não pode ser representada pela mesma razão porque não pode ser alienada" 17 e porque "Há um único contrato no Estado, 16 O jacobinismo e seu Comité de Saúde Pública representará a quintessência desse ponto de vista. 17Em Rousseau, a idéia de soberania inalienável e indivisível opõe- se ao governo representativo no sentido de Locke. A íntegra do famoso trecho é: "A soberania não pode ser representada pela mesma razão por que não pode ser alienada, consiste essencialmente na vontade geral e a vontade geral absolutamente não se representa. É ela mesma ou é outra, não há meio- termo. Os deputados do povo não são, nem podem ser seus representantes; não passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei."(ROUSSEAU, J.J. 1983a: 108) E num ataque frontal a Montesquieu e a Locke, afirma: "O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso, que dela faz, mostra que merece perdê- la."(p.108) E explicitando as raízes medievais do "governo o da associação, e, por si só, exclui todos os demais"(ROUSSEAU, J.J. 1983a: 111) 18 , nem muito menos para dissolução do autogoverno através do exercício de um direito individual de resistência, possível em Locke (1983: 114), porque a soberania popular não pode voltar - se contra si mesma, nem a vontade geral pode errar 19 , embora seja possível a censura através de julgamento público (ROUSSEAU, J.J. 1983 a: 135ss.) a comissários do povo e a atos do governo. Enquanto, pois, em Locke há lugar para dois pactos e o processo político, após a assinatura do pacto fundamental, é praticamente reduzido a um processo eleitoral de escolha de representantes, em Rousseau o processo político, mesmo o que institui o governo (ROUSSEAU, J.J. 1983 a: 112), é o centro que integra e constitui o social, processo em que se expressa a vontade geral e se confirma o pacto social, no sentido das suas finalidades ético- políticas. Assim, é nesse sentido que podemos dizer que o processo político, segundo o modelo liberal, ilustrado pelo pensamento lockeano, realiza a tarefa de programar o governo de acordo com o interesse da sociedade , compreendendo - se o primeiro como um aparato administrativo e a segunda como uma rede de interações entre sujeitos privados organizada na forma do mercado. A política , como em Locke, tem a função de reunir os interesses privados e encaminhá - los à Administração Público- Estatal, cuja finalidade é utilizar - se do poder político para atingir objetivos coletivos majoritários. Uma formação democrática da vontade e da opinião tem, nesse contexto, a representativo", considera - o incompatível com o direito e com a liberdade civil. 18Não há lugar, portanto, para um pacto secundário entre povo e governantes. 19ROUSSEAU, J.J. 1983 a: 46: "... a vontade geral é sempre certa e tende sempre à utilidade pública." função de legitimar o exercício do poder político: os resultados eleitorais são a concessão para se assumir o governo, ao passo que o governo deve justificar o uso do poder ao público. Já o Republicanismo, ilustrado pelo pensamento de Rousseau, concebe a política para além dessa função de mediação social, pois ela é, em primeiro lugar, constitutiva dos processos societários em geral: é a forma em que se reflete a vida ética real, o meio através do qual os indivíduos solidariamente se tornam conscientes de que dependem uns dos outros e, agindo como cidadãos, modelam e desenvolvem suas relações de reconhecimento recíproco, transformando - se numa associação de co- associados livres e iguais perante o Direito. Segundo Habermas, "Com isso, a arquitetura liberal de governo e sociedade sofre uma mudança importante: além das normas hierárquicas do Estado e das regras descentralizadas do mercado, ou seja, além do poder administrativo e dos interesses pessoais, a solidariedade e a orientação para o bem comum aparecem como uma terceira fonte de integração social(...) Na concepção republicana, a esfera público- política adquire, juntamente com sua base na sociedade civil, uma importância estratégica." (HABERMAS 1995b: 108) Com base nessas duas compressões concorrentes, é possível traçar, em termos esquemáticos, duas concepções diferentes de cidadania . O status de cidadão, para o Liberalismo, é fundamentalmente determinado por direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidadãos.Como titulares desses direitos, eles gozam da proteção estatal na medida em que buscam realizar seus interesses privados dentro dos limites estabelecidos pela lei, e isso inclui a proteção contra intervenções estatais. Direitos políticos, como o direito ao voto ou à liberdade de expressão, não têm apenas a mesma estrutura, mas também um significado semelhante enquanto direitos civis que fornecem um espaço no qual questões pragmáticas, através de um agir estratégico funcionalmente regulado, tornam - se livres de coerção externa, fundando um processo político moldado no funcionamento do mercado. Esses direitos ..."dão aos cidadãos a oportunidade para afirmar seus interesses privados de tal modo que, por meio de eleições, da composição de corpos legislativos e da formação de um governo, esses interesses são finalmente agregados numa vontade política que provoca um impacto sobre a Administração." (HABERMAS 1995b: 109) O processo democrático se dá, para o Liberalismo, exclusivamente sob a forma de compromissos entre interesses divergentes, devendo a igualdade civil ser assegurada pelo direito geral e igualitário de votar, pela composição representativa dos corpos parlamentares, pelas normas decisórias, etc., normas, essas, justificadas em termos de direitos liberais fundamentais. Segundo Habermas: “Na interpretação liberal, a política é essencialmente uma luta por posições mais favoráveis no âmbito do poder administrativo. O processo de formação da opinião e da vontade na esfera pública e no parlamento é determinado através da concorrência de atores coletivos que agem, estrategicamente, a fim de obter ou manter posições de poder. O sucesso se mede pelo assentimento qualificado pelos votos de eleitores, dados a pessoas e programas. Em seu voto, os eleitores expressam suas preferências. Suas decisões eleitorais têm a mesma estrutura que os atos de escolha de participantes do mercado, orientados pelo sucesso.” (HABERMAS 1997b: 1: 337) Segundo o modelo republicano, a cidadania não é apenas determinada pelo modelo das liberdades negativas que podem ser reivindicadas pelos cidadãos enquanto sujeitos de direito privado. Os direitos políticos são, antes de tudo, liberdades positivas, pois garantem não a liberdade de coerção externa mas a possibilidade de participação política comum pela qual os cidadãos, na construção de uma identidade ético- política comum, reconhecem - se como co- associados livres e iguais: “Enquanto a interpretação liberal vê o sentido de uma ordem jurídica no fato de ela permitir constatar, no caso concreto, quais direitos competem a quais indivíduos, a visão republicana considera que esses direitos subjetivos resultam de uma ordem jurídica objetiva, a qual não somente torna possível, como também garante a integridade de uma convivência autônoma, com iguais direitos e que repousa no respeito mútuo.”(HABERMAS 1997b: 336) Ao contrário do Liberalismo, o Republicanismo considera que o processo político não serve apenas para programar e fiscalizar a atividade administrativa do Estado por cidadãos que já adquiriram uma autonomia privada pré- social e pré- política, nem é um simples elo entre Estado e sociedade, pois a autoridade da Administração Pública não é também algo dado. Essa autoridade, escolhida através de um processo eleitoral que conserva a lembrança do ato de fundação da sociedade como comunidade política, emerge da práxis de autolegislação dos cidadãos e se legitima no fato de ela proteger essa práxis, através do processo de institucionalização da autonomia cívica, das liberdades públicas. "Para a política, no sentido de práxis de autolegislação cívica, o paradigma não é o mercado, mas o diálogo" (HABERMAS 1995b: 110), um diálogo que gira não meramente em torno de preferências e interesses mas de valores comunitariamente compreendidos. Para o Republicanismo, “”Política” é entendida como forma de reflexão de um contexto vital ético - como medium no qual os membros de comunidades solidárias, mais ou menos naturais, tornam - se conscientes de sua dependência recíproca e, na qualidade de cidadãos, continuam e configuram, com consciência e vontade, as relações de reconhecimento recíproco já existentes.” (HABERMAS 1997b: 1: 333) Um governo republicano nunca estaria somente incumbido de exercer um mandato amplamente aberto, como no modelo liberal, mas também obrigado programaticamente a cumprir certas políticas, permanecendo ligado à comunidade política que se autogoverna. "Assim, a raison d'être do Estado não reside fundamentalmente na proteção de direitos privados iguais, mas na garantia de uma formação abrangente da vontade e da opinião, processo no qual cidadãos livres e iguais chegam a um entendimento em que objetivos e normas se baseiam no igual interesse de todos." (HABERMAS 1995b: 109) A formação democrática da vontade se daria, pois, para o Republicanismo, sob a forma de um discurso ético- político que conta com um consenso de fundo estabelecido culturalmente e compartilhado pelo conjunto dos cidadãos. Quais são as visões de Estado e de Sociedade subjacentes a essas compressões de processo político, cidadania e direitos? E, enfim, quais os reflexos dessas concepções na compreensão da Constituição e da Democracia , à luz das tradições republicana e liberal? Tanto a tradição liberal quanto a republicana pressupõem uma visão de sociedade centrada no Estado. Mas enquanto para a primeira, o Estado é o guardião de uma sociedade de mercado, para a segunda o Estado é a institucionalização autoconsciente de uma comunidade ética. De acordo com os republicanos, a formação política da vontade e da opinião dos cidadãos cria o meio através do qual a sociedade se constitui como uma totalidade política, onde não faz sentido distinguir - se o Estado e a sociedade, pois "A sociedade é desde sempre, uma sociedade política - societas civilis. Daí o fato de a democracia tornar - se equivalente à auto- organização política da sociedade como um todo" (HABERMAS 1995b: 116) 20 . Assim, a Constituição é compreendida como a consubstanciação axiológica concreta da identidade ética e da auto- organização total de uma sociedade política, verdadeira “medida material da sociedade” ou “ordem fundamental jurídica da coletividade”, para usar a conhecida expressão do constitucionalista alemão Konrad Hesse (1998: 37). Sua realização se dá através do exercício conjunto da autonomia pública dos seus membros. Diferentemente, de acordo com os liberais, a separação entre Estado e sociedade, que desperta uma reação polêmica por parte dos republicanos, não pode ser eliminada, mas somente diminuída pelo processo democrático. Assim, a Constituição , enquanto mecanismo ou instrumento de governo (“instrument of government” ) tem uma função de compatibilização. O equilíbrio regulado entre poder político e interesses sociais diversos necessita de um canal constitucional : "Espera- se que a Constituição controle o aparato estatal por meio de restrições normativas (tais como os direitos fundamentais, a separação de poderes, etc.) e o obrigue, mediante a competiçãode partidos políticos, por um lado, e a competição entre governo e oposição, por outro, a levar em conta, adequadamente, os interesses concorrentes e as orientações de valor (...) O modelo liberal depende não da 20 Acerca dessa compreensão de democracia, ver ARENDT 1990, fundamentalmente, caps. 4 e 5. autodeterminação democrática de cidadãos capazes de deliberação, mas da institucionalização jurídica de uma sociedade econômica encarregada de garantir um bem comum essencialmente apolítico por meio da satisfação de preferências particulares." (HABERMAS 1995b: 117) Tais compreensões acerca da relação entre Estado e sociedade, segundo uma visão republicana ou liberal do processo político, também projetam duas compreensões concorrentes da soberania popular e da Democracia . Como em Rousseau, a tradição republicana reavalia e se apropria do conceito de soberania inicialmente associada aos regimes absolutistas e a transfere para a vontade do povo unido, ..."ao fundir a força do Leviatã com a idéia clássica da auto- regulamentação dos cidadãos livres e iguais e ao combiná- la com seu conceito moderno de autonomia." (HABERMAS 1995b: 120) Apesar disso, o conceito de soberania permaneceu ligado, como em Rousseau, à noção de uma encarnação no povo fisicamente presente e reunido, o que levou à concepção segundo a qual a soberania é, por princípio, indelegável e, portanto, irrepresentável, como já analisado. A isso se opõe o Liberalismo, segundo o qual, no Estado de Direito, toda autoridade emana do povo, que a exerce por meio de seus representantes políticos eleitos, no quadro das competências atribuídas constitucionalmente aos órgãos legislativos, executivos e judiciários do Estado. Em termos esquemático- comparativos , a tradição republicana, por um lado, pressupõe uma concepção política segundo a qual a Constituição, enquanto expressão da autonomia política do povo signatário de um pacto fundamental , reflete uma ordem concreta de valores, que materializa a identidade ético- cultural, de uma sociedade política que se quer homogênea, e a Democracia é a forma política de plena realização dessa identidade, através de um processo de auto- reflexão conjunta e do diálogo entre os cidadãos. O acento é, portanto, dado à autonomia pública enquanto meio para a autorrealização ética da comunidade. E a tradição liberal, por outro lado, pressupõe uma concepção política segundo a qual a Constituição é um mecanismo ou instrumento de governo (“instrument of government”), capaz de regular o embate entre os vários atores políticos que concorrem entre si, e a Democracia é um processo através do qual se elege e se estabelece o exercício de um governo legitimado por decisão da maioria. O acento é dado, agora, pelo Liberalismo, à autonomia privada enquanto exercício da autonomia moral e da escolha racional. Acentuando, assim, compreensões divergentes acerca do Direito (e dos direitos), bem como da política, da Constituição e da Democracia, as tradições republicana e liberal contribuíram para a formação da linguagem e do imaginário políticos dos últimos séculos. Entretanto, se, nos próximos capítulos, quisermos levar a sério tanto a autonomia pública quanto a autonomia privada, dos co- associados jurídicos, em sua co- originalidade e equiprimordialidade, teremos de renunciar ao reducionismo representado pelas tentativas republicanas e liberais de fundamentação ética ou então moral do constitucionalismo e da democracia e, nesse sentido, reconstruirmos a relação entre esses últimos e a autonomia, em todas as suas dimensões, de forma a que tais conceitos não mais se oponham, nem se excluam. Teremos, justamente, de superar o paradoxal legado das duas grandes tradições do pensamento político moderno. DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO NO MARCO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DA NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DAS TRADIÇÕES REPUBLICANA E LIBERAL ATRAVÉS DE UMA VISÃO PROCEDIMENTALISTA DO DIREITO E DA POLÍTICA DELIBERATIVA 1 - INTRODUÇÃO Republicanismo e Liberalismo são duas tradições do pensamento político moderno que informam o debate político- jurídico dos últimos séculos. Como vimos no capítulo anterior, apresentam modelos que, preocupados não tanto em explicar ou descrever processos políticos concretos, levantam a pretensão de fundar a política em termos normativo- idealizantes. Tais modelos têm perdido muito do seu poder de convencimento que, por não levarem em consideração a complexidade da sociedade atual, ao manterem, por exemplo, um modelo de sociedade composta por indivíduos e centrada no Estado, ou, mais especificamente, no caso republicano, ao pressupor uma homogeneidade ético- cultural como base da democracia, pouco ou nada são capazes de articularem - se a uma análise empírica no nível dos processos políticos concretos, em nossas sociedades complexas, descentradas e pluralistas. Assim, apesar de o modelo liberal levar a sério o chamado “fato do pluralismo razoável”(John Rawls), ele é excessivamente céptico, porque, como vimos, tende a reduzir o debate político, à luz de um modelo econômico do mercado, a uma mera disputa entre os atores políticos, e não explica, de modo consistente, como atores voltados exclusivamente para a satisfação de interesses próprios podem concordar acerca das normas que irão reger, de forma imparcial, sua vida em comum. Essa afirmação deve ser tomada com certo cuidado, em se tratando da posição de John Rawls, apresentada em Political Liberalism (1993a) , pois ela tende a romper com uma concepção “mercadológica” da política, presente em outros autores liberais . Embora não seja necessário analisar, aqui, de modo exaustivo a teoria política de Rawls, cabe ressaltar que a Teoria Política da Justiça como Equanimidade (“Justice as Fairness”)21 , em sua versão mais atual, tende a abandonar uma perspectiva, tão presente em 1971 (RAWLS 1971: 4), de uma teoria da escolha racional. A partir de trabalhos posteriores (RAWLS 1993b) à obra A Theory of Justice (1971), a teoria de John Rawls tem procurado tornar - se o que esse filósofo norte - americano chama de “Construtivismo Político” (“Polítical Constructivism ”) (RAWLS 1993a: 89ss.), em que a linguagem do contratualismo ressurge como estratégia de exposição, a fim de explicar, através da idéia de “posição original” (“original position”), que como um todo é um “mecanismo de representação” (“device of representation” ) dos cidadãos livres e iguais em uma sociedade bem ordenada (RAWLS 1993a: 21 Traduzo o termo inglês “fairness” por equanimidade e não por eqüidade, para marcar o contexto não- aristotélico da Teoria da Justiça apresentada por John Rawls, uma concepção que se pretende procedimental e não substan tivista. 22ss.), como os princípios da justiça 22 podem ser selecionados e não escolhidos pelas “partes”. Assim, um modelo do mercado estaria abandonado, já que, para John Rawls , ...“o que é fundamental [para a democracia] é um procedimento político que assegure a todos os cidadãos plena e efetiva voz em um esquema equânime de representação (“in a fair scheme of representation”).Tal esquema é fundamental porque a proteção adequada de outros direitos fundamentais [além das liberdades de base] depende dele. A igualdade formal não é suficiente.” (RAWLS 1993a: 361) O Liberalismo Político, com essa compreensão do processo político, pretende apresentar uma concepção política e liberal de justiça, a fim de buscar resolver o que seria o grande tema da Filosofia Política atual: o de como ordenar a sociedade de modo a que seja justa, estável e democrática, dado o fato do pluralismo razoável de visões de mundo e modos de vida (RAWLS 1993a). Uma concepção política de justiça, segundo Rawls, é caracterizada por três elementos. O primeiro elemento diz respeito ao seu objeto: embora contenha certos ideais, princípios e “standards ”, e que esses ideais, princípios e “standards ” articulem certos valores (nesse caso, valores políticos ), Rawls esclarece que uma concepção política de justiça não se aplica a qualquer coisa, mas tão somente à 22 Segundo Rawls, os princípios da justiça selecionados pelas partes na posição original devem ser, assim, enunciados: “a. Toda pessoa tem igual direito a um esquema plenamente adequado de liberdades fundamentais iguais, o qual seja compatível com um esquema similar de liberdades para todos; b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer a duas condições. Primeiro, devem estar associadas a cargos e a posições abertos a todos, em condições de uma eqüitativa igualdade de oportunidades; e, segundo, devem proporcionar o maior benefício aos membros menos favorecidos da sociedade” (RAWLS 1993a: .291) A mudança em relação à anterior formulação do primeiro princípio, explica Rawls, está em que a expressão “um esquema plenamente adequado” substitui a expressão “o sistema total o mais extenso“, tal como se encontra em Theory (RAWLS 1971: 250; :302), o que leva à inserção dos termos “o qual” antes de “compatível”. Tais alterações visam, segundo Rawls, afastar um “critério de maximização” (“maximin”) das liberdades, que poderia estar subjacente à formulação original (RAWLS 1993a: 331). “estrutura de base da sociedade” e, no seu caso, à estrutura de base de uma sociedade democrática moderna (RAWLS 1993a: 11). O segundo elemento refere - se a uma concepção política de justiça que se apresenta como uma “visão independente” (“freestanding view”) de qualquer doutrina compreensiva (RAWLS 1993a: 12). Já o terceiro elemento é o de que o conteúdo de tal concepção é expresso por certas idéias fundamentais, implícitas, segundo Rawls, na cultura política pública de uma sociedade democrática: a sociedade é um sistema de cooperação no tempo, de geração em geração; os cidadãos que cooperam são pessoas livres e iguais; uma sociedade bem- ordenada é uma sociedade efetivamente regulada por uma concepção política de justiça (RAWLS 1993a: 13- 14). Tais idéias, ainda, segundo Rawls, podem apoiar - se num “consenso por sobreposição” (“overlapping consensus”), o que garantiria estabilidade e viabilidade (RAWLS 1993a: 15). E o que caracteriza, segundo Rawls, o conteúdo de uma concepção política liberal de justiça? Primeiro, o fato de especificar certos direitos, liberdades e oportunidades fundamentais; segundo, a prioridade especial que atribui a esses direitos, liberdades e oportunidades, especialmente frente a pretensões do bem geral e a valores perfeccionistas; e, terceiro, por estabelecer meios que assegurem a todos os cidadãos as condições adequadas para o uso efetivo desses direitos, liberdades e oportunidades (RAWLS 1993a: 6). Todavia, um acentuado caráter monológico parece persistir, pois o que, em última análise, garantiria a “razoabilidade” (o senso de justiça e a capacidade de honrar os termos da cooperação social) nos processos de justificação /cons t rução e de aplicação /es tabilização dos princípios da justiça seriam restrições formais e materiais impostas e dadas, desde o início (RAWLS 1993a: 103), à ”racionalidade” (capacidade para se ter uma concepção de vida boa), tanto dos cidadãos, no debate político, quanto das partes que os representa m, na posição original. Pois ainda que a posição original seja tão somente um “mecanismo de representação”, no sentido de se esclarecer o que seria o ponto de vista político ou moral da imparcialidade, ela torna o raciocínio prático extremamente solitário e limitado quanto aos temas. Segundo Rawls, “podemos adentrar essa posição a qualquer momento, simplesmente raciocinando por princípios de justiça, de acordo com as restrições (...) de informação” RAWLS 1993a: 27) acerca da nossa própria concepção do bem e da situação social e cultural em que nos encontramos. Assim, também, a concepção desenvolvida por Rawls de “Public Reason ”, ou de “uso público da razão”. Ela remete a política e a esfera pública ao Estado e aos seus fóruns oficiais, excluindo de um “uso público da razão” os debates empreendidos pela sociedade civil, bem como constrange as questões públicas e políticas a uma agenda fechada e pré - definida de temas, que exclui qualquer questão que esteja relacionada às diversas formas ou modos de vida presentes na sociedade (RAWLS 1993a: 212ss.). Faltam diálogo, abertura e discursividade à concepção da política e do público proposta por Rawls (HABERMAS- RAWLS 1997; CATTONI DE OLIVEIRA 1998b; KUKATHAS- PETIT 1995). A posição rawlsoniana poderia ser criticada, também, no sentido de que pressupõe uma noção bastante restritiva, típica do Liberalismo, do que sejam “questões constitucionais essenciais”, inclusive e apesar de Rawls dizer que seu objeto de análise é filosófico - político e não uma “questão de Direito”. O modelo republicano, por outro lado, embora possua a vantagem de compreender a política como algo mais que uma simples concorrência entre atores políticos, que visam a satisfazer interesses próprios, diversos e divergentes, e procure resgatar a “dignidade da política” (ARENDT), considerando - a como uma forma dialógica de integração social, é um modelo excessivamente normativo, pois tende a reduzir o debate político a um processo de auto- esclarecimento coletivo, acerca de um modo ou projeto de vida que se pressupõe comum, com base num forte consenso ético. Assim, embora autores republicanos comunitaristas como Michael Walzer (1993; 1997) e Charles Taylor (1993; 1997) se considerem defensores do pluralismo social e cultural, é preciso lembrar que para eles as decisões políticas só se justificam de forma relativa e à luz de valores comunitários prevalecentes, e nunca de forma imparcial. A justiça é, assim, considerada tão somente como um bem coletivo dentre outros, comunitariamente interpre tado. A importância do pluralismo residiria, no máximo, apenas na necessidade da tolerância e do desenvolvimento de uma “política de reconhecimento” de identidades e de diferenças entre as diversas comunidades ético- políticas (TAYLOR 1993; HABERMAS 1998b: 203ss.; APEL 1994). Ora, como veremos no presente capítulo, os discursos éticos acerca do bem fazem parte do debate político, mas este não se reduz àqueles: Como assevera Habermas(1995b: 107- 121), no contexto das sociedades complexas modernas, marcadas por uma pluralidade de formas de vida racionais, bem como por imperativos sistêmico - funcionais, argumentos éticos acerca do que é o bem são temperados por questões pragmáticas de interesse, à luz de razões morais acerca do que é justo, possibilitando, senão a construção de consensos, ao menos a formação de compromissos políticos sob condições equânimes. Para o modelo republicano, a Democracia só seria possível em sociedades ou em comunidades culturalmente homogêneas, em que uma forte educação cívica possibilitaria a formação de cidadãos conscientes e virtuosos, capazes, por isso, de realizar os valores consagrados e refletidos na Constituição. Com isso, não quero dizer que a análise de processos políticos possam prescindir de uma perspectiva normativa e renunciar, quer em termos da teoria da ação, como é o caso da Teoria da Escolha Racional 23 , quer em termos da Teoria dos Sistemas 24 , a qualquer abordagem participante, ou que não seja possível (re- ) construir uma visão alternativa aos modelos liberal e republicano, já que, com Habermas (1997b: 2: 9), acredito que qualquer um que queira compreender adequadamente o funcionamento de um sistema político organizado constitucionalmente, inclusive num nível empírico, não pode deixar de referir - se à força legitimadora da gênese democrática do Direito. Para isso, não é preciso compreender, quer em termos de um hiato entre ideal e real a ser preenchido, quer em termos de uma filosofia da história fundada numa dialética que tudo reconcilia porque tudo suprime, a relação entre idealidade e faticidade dos processos jurídicos e políticos em geral. 23Para uma crítica ao realismo da Teoria da Escolha Racional, ver HABERMAS 1997b: 2: 65ss. 24Para uma crítica à Teoria dos Sistemas, ver HABERMAS 1997b: 2: 63- 65; 74ss. O presente capítulo tratará, em primeiro lugar, de expor e de desenvolver a teoria habermasiana da Democracia, que visa superar os modelos normativos de política deliberativa legados pelas tradições republicana e liberal. Isso será feito a partir da crítica ao que Habermas chama de “sobrecarga ética dos discursos políticos”, levada a cabo pelo republicanismo comunitarista. Num segundo momento, a partir do marco teorético- discursivo, buscará construir uma visão não- conflitiva da relação entre autonomia pública e autonomia privada, e entre constitucionalismo e democracia, já apontando para uma certa mudança de perspectiva, a ser realizada no próximo capítulo, com o desenvolvimento de uma teoria da Constituição e uma teoria do Processo Constitucional constitucionalmente adequadas ao paradigma do Estado Democrático de Direito, visando construir uma compreensão, também constitucionalmente adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito, da Jurisdição Constitucional e do controle judicial de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 2 – A TEORIA DISCURSIVA DA DEMOCRACIA, DE JÜRGEN HABERMAS Jürgen Habermas introduz, reconstrutivamente, uma nova concepção de política deliberativa e de Democracia, através da crítica a o que ele chama de “sobrecarga ética da visão republicana” (HABERMAS 1995b: 111). Num certo sentido, como vimos, quando comparado ao modelo liberal, o modelo republicano de política deliberativa tem a vantagem de preservar o significado original da democracia, no sentido da institucionalização de um uso público da razão , exercida, conjuntamente, pelos cidadãos, em sua prática política de autodeterminação. O Republicanismo leva, assim, em conta, as condições comunicativas que legitimam o processo político de formação da vontade e da opinião públicas, condições, essas, sob as quais se pode esperar que o processo político produza resultados razoáveis. A confiança republicana na força legitimadora do uso público da razão contrasta com o ceticismo do modelo liberal que, como vimos no capítulo 2, compreende o processo político nos moldes de uma disputa, jurídico e moralmente regulada, entre interesses estrategicamente orientados. Tal uso público da razão teria por objetivo, segundo o modelo republicano, permitir que se discutam interpretações e orientações de valor, bem como possíveis projetos de superação de carências e de necessidades comuns. Para Habermas, republicanos contemporâneos, como Charles Taylor (1993; 1997), Michael Walzer (1993; 1997), Michael Sandel (1982) e Alasdair McIntyre (1984; 1991), no entanto, tendem a dar uma interpretação comunitarista a essa prática comunicativa (MULHALL- SWIFT 1997). Segundo Habermas, o modelo comunitarista seria excessivamente idealista, mesmo à luz de uma análise puramente normativa. Sob tal modelo, o discurso político estaria reduzido, tão- somente, a questões éticas de auto- esclarecimento e auto- realização, em virtude de uma assimilação da política a um processo hermenêutico de auto- reflexão, acerca de uma forma de vida ou de uma identidade coletiva tidas como compartilhadas. O processo democrático estaria, assim, dependente das virtudes de cidadãos, devotados ao bem- comum, e assegurado, em última análise, por um consenso ético de fundo. Haveria, segundo a visão comunitarista, uma conexão necessária entre democracia e comunidade ética concreta consolidada pois, de outro modo, não se poderia explicar como a orientação dos cidadãos para o bem- comum seria possível. Segundo a corrente comunitarista do Republicanismo, uma pessoa não poderia tornar - se consciente de sua co- participação em uma forma de vida específica e, com isso, de seu vínculo social anterior, senão em virtude de uma prática política exercida em comum com outras pessoas. Seria através dessa prática que se obteria um sentido claro das identidades e diferenças, de quem se é e de quem se gostaria de ser, da sua pertinência ou não à comunidade política, ou seja: ...“por meio do intercâmbio público com outros que devem suas identidades às mesmas tradições e a processos formativos semelhantes”.(HABERMAS 1995b: 112) Assim, essa é a concepção comunitarista pressuposta à crítica, por exemplo, apresentada a John Rawls e ao Liberaismo em geral, por Michael Sandel (1982). Segundo Kukathas e Pettit, a essência do argumento de Sandel é a seguinte: “Para os liberais como Rawls a justiça é a primeira das virtudes das instituições sociais. Mas para que isso seja assim certas coisas devem ser verdade: devemos ser ‘criaturas de um determinado tipo, relacionadas de uma certa forma com as circunstâncias humanas’(Sandel). Temos de ser pessoas independentes dos nossos interesses e afectos particulares, capazes de recuar para os perscrutarmos, apreciarmos e revermos. Contudo, não é plausível que possamos olhar - nos dessa forma. No mundo real não podemos libertar - nos dos interesses e lealdades que não só determinam as nossas obrigações, mas também estabelecem as nossas identidades. Os liberais como Rawls insistem em que nos libertemos para podermos identificar os princípios através dos quais organizamos a nossa associação e defendem que devemos julgar essa associação pelaconformidade com princípios justos. Ao fazê- lo, vivemos segundo uma moral que escolhemos ou construímos e, por isso, somos livres. No entanto, esta pretensão não faz sentido porque pressupõe uma capacidade que não possuímos: a capacidade de escolher ou de construir uma moral sem autoconhecimento ou, na verdade, sem experiência moral. Os argumentos de Rawls que defendem o primado da justiça baseiam- se numa concepção do eu (self ) que não faz sentido e que, por isso, não pode fornecer as bases para avaliar as nossas instituições sociais ou práticas morais.”(KUKATHAS- PETIT 1995: 116) Para Sandel e para os demais comunitaristas, a finalidade, portanto, para qual se deve voltar o “raciocínio moral e político” não é a da formulação de uma normativa independente e neutra perante questões éticas, como defendem os liberais. Esse “raciocínio” deve voltar - se para a finalidade da autocompreensão, que só pode ser alcançada pela auto- reflexão conjunta das pessoas, enquanto membros de uma sociedade, que molda as identidades de cada uma delas. O que importa, segundo os comunitaristas, não é pretender construir princípios que nada corresponderiam à nossa identidade ou à nossa comunidade, até mesmo porque isso seria impossível; mesmo os princípios de justiça formulados por Rawls pressupõem uma determinada forma de vida, correspondente ao “atomismo do século XVII” (TAYLOR 1997: 253- 254). O que importa antes de tudo é perguntarmo - nos a respeito de quem somos e do que é bom para nós, enquanto membros de uma comunidade concreta, enquanto seres cujas identidades são moldadas por essa comunidade. Quem somos e, daí, o que é bom para nós, essas devem ser consideradas as indagações centrais da política e os objetos centrais de nossas reflexões práticas. É bastante longa a crítica de Habermas (1995b: 111ss.) à concepção comunitarista de política deliberativa, mas que pode ser resumida através dos seguintes pontos: a) Tal redução dos discursos políticos a questões éticas não combina com a função dos processos legislativos em que tais discursos surgem. Razões éticas são levadas em consideração no processo legislativo democrático, a legislação contém elementos teleológicos, mas isso não significa que as leis representem meramente a explicação hermenêutica de orientações de valor compartilhadas. Por sua própria estrutura, as leis são determinadas, antes de tudo, pela questão de se saber quais normas os cidadãos devem adotar para regular sua vida em comum; b) As questões éticas são certamente parte importante da política. Mas devem estar subordinadas às questões morais (de justiça) e ligadas às questões pragmáticas (de interesse). Se por um lado, na política legislativa, deve- se levar em consideração o que é bom não somente para nós, enquanto comunidade concreta, mas abrir - se a o que é justo, no igual interesse de todos, uma questão que transborda particularismos, por outro há de se reconhecer que compromissos constituem a maior parte dos processos políticos, sob as condições políticas determinadas pelo pluralismo axiológico, cultural, religioso, etc., nas atuais sociedades complexas. Muitos objetivos políticos acabam por ser selecionados com base em interesses e orientações de valor que não são, por vezes, compartilhados por todos, dando margens a negociações e a orientações estratégicas, cujos âmbitos devem encontrar - se previamente regulados. Segundo Habermas: “Diferentemente da constrição ética do discurso político, o conceito de política deliberativa somente adquire referência empírica quando levamos em consideração a multiplicidade das formas comunicativas da formação política e racional da vontade (...) a política deliberativa deve ser concebida como uma síndrome que depende de uma rede bem regulamentada de processos de negociação e de várias formas de argumentação, incluindo discursos pragmáticos, éticos e morais, cada um deles tendo como base diferentes pressupostos e procedimentos comunicativos. Na política legislativa, o fornecimento de informação e a escolha racional de estratégias estão entrelaçados com o equilíbrio de interesses, com a consecução de uma auto- compreensão ética e a articulação de fortes preferências, e com a justificação moral e as provas de coerência legal.”(HABERMAS 1995b: 114) Partindo - se desse conceito procedimentalista da política deliberativa, à Teoria Discursiva da Democracia corresponde um modelo de sociedade descentrada. "A teoria do discurso apropria - se de elementos dessas duas visões [liberal e republicana], integrando - os no conceito de procedimento ideal para deliberação e tomada de decisão. Entrelaçando considerações pragmáticas, compromissos, discursos de autocompreensão e de justiça, esse procedimento democrático tem a presunção de que, dessa maneira, se obtêm resultados razoáveis e justos. De acordo com essa visão procedimentalista, a razão prática afasta - se dos direitos humanos universais, ou da substância ética concreta de uma comunidade específica, para adequar - se às regras do discurso e às formas de argumentação. Em última análise, o conteúdo normativo surge da própria estrutura das ações comunicativas." (HABERMAS 1995b: 115) É nesse sentido que, segundo Habermas (1995b: 117), a Teoria Discursiva da Democracia reveste o processo democrático de conotações normativas mais fortes que as encontradas no modelo liberal, mas mais fracas que as encontradas no modelo republicano: "Em consonância com o Republicanismo, a teoria do discurso dá destaque ao processo de formação política da vontade e da opinião, sem, no entanto, considerar a Constituição como elemento secundário. Ao contrário, concebe os princípios do Estado Constitucional como resposta consistente à questão de como podem ser institucionalizadas as exigentes formas comunicativas de uma formação democrática da vontade e da opinião." (HABERMAS 1995b: 117) Portanto, como afirma Habermas (1995b: 120), as tradições republicana e liberal esgotariam as alternativas, se tivéssemos de conceber o Estado e a sociedade em termos do todo e suas partes, sendo o todo constituído ou por um corpo soberano de cidadãos, como no modelo republicano, ou por uma Constituição mecanicamente reguladora de um processo político, pensado nos moldes do mercado, como no caso do modelo liberal. Mas isso não é correto, nem necessário. 3 – DA INTERRELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO NUMA VISÃO PROCEDIMENTALISTA DO DIREITO E DA POLÍTICA DELIBERATIVA – UMA APROXIMAÇÃO A perspectiva desenvolvida pela Teoria Discursiva da Democracia é fundamental para a reconstrução de uma visão não- conflitiva tanto da relação entre autonomia pública e autonomia privada, quanto da relação entre Constitucionalismo e Democracia. A Teoria Discursiva da Democracia sustenta que o êxito da política deliberativa depende da institucionalização jurídico- constitucional dos procedimentos e das condições de comunicação correspondentes, e considera, como vimos, os princípios do Estado Constitucional como resposta consistente à questão de como podem ser institucionalizadas as exigentes formas comunicativas de uma
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