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ESTUDOS AVANÇADOS 33 (97), 2019 193
Introdução
análise das referências à escravidão nos sermões brasileiros (transcritos 
e impressos) do período colonial requer uma breve premissa sobre a 
posição oficial da realidade eclesial a que pertenciam os autores dos ser-
mões, no que concerne ao tema. As primeiras Constituições do Arcebispado da 
Bahia (1707) dedicaram quarenta cânones aos temas da catequese e tratamento 
dos escravos. A escravidão não é posta em causa como instituição; pelo contrá-
rio, supõe-se que seja legítima; já em vigor há 200 anos nas colônias portugue-
sas, fora legalmente permitida pelo governo e aceita pela maioria dos teólogos 
da época. Em vez disso, os cânones insistem na questão religiosa, isto é, na 
catequese dos escravos e exigem dos proprietários que respeitem essa obrigação 
concedendo-lhes descanso dominical. Eles também se referem aos numerosos 
atos de injustiça e maus-tratos infligidos aos escravos pelos senhores (Strieder, 
2000).
Desse modo, fica claro nas Constituições que as instituições eclesiásticas 
estavam interessadas em libertar os escravos da escravidão da alma e garantir seu 
direito à educação religiosa e às necessidades básicas, como a alimentação; mas a 
legitimidade do trabalho escravo não era questionada. Obviamente, essa posição 
tinha que inspirar (e limitar) os pregadores em sua atuação.
Para compor o léxico sobre o tema da escravidão utilizado pelas diversas 
ordens religiosas responsáveis pela pregação no Brasil colonial, identificamos nos 
sermões alguns termos relacionados ao conceito, como escravidão, cativeiro. E 
explicitamos os significados atribuídos e o uso feito no contexto do sermão. 
Os termos dos sermões dos predicadores jesuítas 
Os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549 e dedicaram-se à catequese dos 
indígenas e à assistência religiosa dos colonos. O ministério da pregação ocupou 
grande parte de suas atividades missionárias, que se estendiam de Salvador à 
costa centro-sul e ao nordeste e norte, até Maranhão e Amazônia (Leite, 2004).
A primeira referência ao termo escravo encontra-se na pregação de José 
de Anchieta, no Sermão da vigésima Dominga de Pentecostes de 26 de outubro 
de 1567. Parafraseando São Paulo, Anchieta representa Cristo na condição de 
Escravidão do corpo
e da alma em sermões brasileiros 
do século XVI ao XVIII
MARINA MASSIMI I 
A
DOI: 10.1590/s0103-4014.2019.3397.011
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escravo, feito tal para libertar o homem da escravidão do demônio e põe estas 
palavras em sua boca: “Eu, que sou verdadeiramente filho de Deus, assumi a 
forma de um escravo para tornar senhor o homem que era escravo do pecado” 
(Anchieta; Viotti, 1987, p.47). Anchieta refere-se ao Brasil, afirmando que Cris-
to se tornou escravo:
[...] condenar a negligência dos homens do Brasil, que não se importam 
com os escravos, que os deixam acasalar sem casamento, deixá-los morrer às 
vezes sem batismo e sem confissão. E [ele se tornou um escravo] para que 
saibamos valorizar as coisas de acordo com seu valor e não consideramos o 
escravo como um escravo bárbaro e bestial que custa tanto dinheiro, mas 
nele vemos representada a imagem de Cristo Nosso Senhor, que se tornou 
escravo para salvar esse escravo e me serviu como escravo durante trinta e 
três anos, para salvar a mim, escravo do demônio. (ibidem, p.48)
No sermão, o que está em jogo em relação ao tratamento dos escravos é 
apenas no plano espiritual: a salvação da alma do escravo e do senhor. Não se 
aborda a questão da exploração do trabalho escravo.
Antonio de Sá SI usa o termo escravidão em diversos e diferentes contex-
tos. Em um grupo de sermões pregados em Lisboa aos domingos de Quaresma 
na igreja paroquial de La Maddalena, Sá usa a expressão “cativeiro” várias vezes, 
referida à dimensão espiritual: no Sermão I, cita o “cativeiro da vontade” (Sá, 
1750, p.213) por obra do mundo e suas mentiras; o “cativeiro do coração” (ibi-
dem, p.217); o “cativeiro dos principios mundanos” inicialmente promissores 
de prosperidade mas ultimamente fontes de tristeza (ibidem, p.219). A condi-
ção do escravo é citada como parte do corpo social, político e religioso: “o peso 
do Céu ninguém há a quem não pertença. O Rei, o vassalo, o senhor, o escravo, 
o rico, o pobre, todos nascem para o Céu” (ibidem, p.222).
No Sermão IV, Sá (1750, p.259) narra o cativeiro do povo judeu descrito 
como prolongada tortura pior do que a morte: “a molestia do cativeiro é pro-
longada, vagarosamente atormenta; [...] e cresce tanto a graveza de uma pena 
pelo que dura”. À mesma condição, Sá se refere no Sermão da quinta dominga 
de Quaresma pregado na Capela real no ano de 1660: os hebreus “em Sião vi-
viam ditosos, e em Babilônia vivem cativos” (ibidem, p.51).
O Sermão V se refere ao cativeiro espiritual: “não há coisa que tanto ca-
tive o coração humano, como é um ser fantástico, um ser aparente” (ibidem, 
p.274). Sá estabelece a comparação entre o cativeiro dos judeus no Egito e o 
cativeiro da alma, para aprofundar ainda mais a questão do engano na estimativa 
das coisas:
[...] estimar o melhor é tão pouco usado entre os homens. [...] Liberta 
Deus o povo hebreu do cativeiro do Faraó; e o que fizeram os hebreus? 
Suspiravam pelo Egito, choravam pelo cativeiro. [...] Mas há coisa mais 
agradável que a liberdade? Ha coisa mais abominável que o cativeiro? Pois 
como se ama o cativeiro e se aborrece a liberdade? (ibidem, p.284)
Cortesia Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM-USP).
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Retrato do padre Antonio Vieira (1608-1697) segundo a gravura de Arnoldo Westerhout.
Cortesia Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM-USP).
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O cativeiro da alma depende da “desordem de nossas potências”, pois 
“deo Deus aos homens entendimento e vontade, e a cada potência destas apro-
priou seu oficio diverso: ao entendimento o eleger, e à vontade de amar”. Toda-
via, “a malícia humana desordenou tudo, e depondo o entendimento seu oficio, 
faz que a vontade sirva o oficio do entendimento” (ibidem, p.285).
O Sermão do dia de Cinza pregado na Real Capela (1669) contém a se-
guinte declaração: a Igreja “nenhuma distinção faz de homens a homens: tão 
homem e tão pó chama aos que reinam, como aos que servem. [...] Só a vaidade 
dos tempos pode introduzir desigualdades” (ibidem, p.3). 
No Sermão dos Passos, pregado ao recolher da procissão no ano de 1675, 
Sá descreve Cristo “açoitado como escravo” e depois da morte esperado “por 
aquelas santas almas do Limbo para que as liberteis do cativeiro” (ibidem, p.61). 
Cristo diz ao homem, referindo-se a si mesmo: “Eu fui vendido para te com-
prar” (ibidem, p.67).
O autor dos sermões, Antonio de Sá, (Rio de Janeiro, 1620-1678) estu-
dou no colégio jesuíta da cidade, onde ingressou na Ordem e ensinou teologia. 
Em Portugal e Roma permaneceu alguns anos como secretário geral da Com-
panhia. 
Compêndio de sermões proferidos no Brasil deve ser considerado, segun-
do seu autor, o livro do missionário jesuíta no Brasil, Giorgio Benci, Economia 
cristã dos senhores no governo dos escravos (1705). Uma primeira versão manus-
crita de 1700 foi oferecida a D. João Franco de Oliveira, arcebispo da Bahia e 
metropolitano do Brasil e enviada a Roma.1 A edição impressa do manuscrito foi 
realizada pelo jesuíta Bonucci e dedicada ao grão-duque da Toscana, Cosmo dei 
Medici, filho de Vittoria della Rovere e parente do jesuíta Luigi Vincenzo Ma-
miani, missionário no Brasil retornado à Itália em 1701. Na dedicação, Bonucci 
afirma que Cosmo mostrou “compaixão inata e profunda misericórdia para com 
os oprimidos e afligidos pelo duro cativeiro”. Seguidor do estilo retórico de An-
tonio Vieira e seu companheiro de missão, Benci afirma ter escrito um “sermão 
sobre as obrigações dos senhores com seus escravos” e que, para fazer dele uma 
edição impressa, transformou-o num breve tratado. Por esse motivo, incluímos 
o texto em nosso léxico. Nascido em 1650, após um longo períodode missão 
no Brasil (de 1681 a 1700), onde desempenhara importantes funções (visitador, 
professor de humanidade e teologia, secretário do Provincial), Benci pediu para 
ser enviado de volta à Europa. Em 1705, foi transferido para Portugal, onde 
morreu em 1708. Por que Benci solicitou o retorno da missão? e por que seu 
texto foi publicado na Itália? A situação de Benci é parte da história da dispu-
ta entre jesuítas portugueses e jesuitas italianos missionários no Brasil (Zeron, 
2014).2 
Analisemos os termos usados no livro para se referir à escravidão. A defini-
ção de “escravo” encontra-se quase na conclusão do tratado. Refere-se a quatro 
aspectos: “a incapacidade de autodominio; a falta de uso da razão; a pequena es-
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tima; a morte, ou quase morte” (Benci, 1705, p.194). Cada uma dessas quatro 
condições é descrita: a primeira:
Passam um dia e outro dia; passam os meses e os anos; e os tristes servos 
sempre a trabalhar, sem sossego, sem descanso, sem alivio; ao sol, e a chuva; 
de noite sem dormir e de dia sem cessar. E os frutos e os lucros de todo este 
trabalho, quem é que os goza e os come? Não eles, senão outros; não os 
mesmos servos, senão seus senhores. (ibidem, p.195)
Em segundo lugar, “o cativo assim como com a liberdade perde o uso 
da vontade, assim também perde o do entendimento. É o entendimento no 
homem a operação mais nobre, e pela qual se distingue dos outros animais; mas 
pelo cativeiro de tal sorte se priva do uso da razão, que se faz mui parecido e 
semelhante ao mais bruto dos brutos” (ibidem, p.196).
Em terceiro lugar, “o vilipendio, o desprezo e a pouca estimação. Que será 
dos escravos do Brasil por serem pretos? Todos os escravos, por serem escravos, 
são tidos em pouco e tratados com desprezo; mas ainda é mais vil e abatido o 
trato que se dá aos escravos pretos, só por serem pretos” (ibidem, p.197).
Finalmente, a quarta condição é definida como “morte, ou quase morte”: 
o escravo, “ainda que natural e fisicamente vivo, política e civilmente está mor-
to”, já que ele não pode exercer nenhuma atividade política (ibidem, p.198). 
Benci conclui:
Tal é senhores o estado de um cativo. É homem, mas sem vontade e sem 
entendimento; trabalha e trabalhas sempre, mas sem lucro; vive, mas como 
se não vivesse; e sendo por natureza igual a seu senhor, porque é homem, 
pelo cativeiro se faz muito inferior e como se não fosse homem, é o mais vil, 
p mais abatido, e o mais desprezado de todos os homens. (ibidem, p.200)
Qual é a causa do fato de que, embora a condição humana seja natural-
mente dotada de liberdade e autodominio, alguns homens são escravos e outros 
senhores e livres? De acordo com Benci, trata-se de uma consequência do pe-
cado original. Retoma a afirmação de Tomás de Aquino (2001. Summa I, 1 p. 
qu. 96 art.4), de que, no estado de inocência original, não havia servidão). Um 
individuo é servo, 
Quando as suas ações se dirigem não ao bem próprio seu, senão de quem o 
domina. E porque cada um naturalmente apetece o bem próprio, e conse-
guintemente se entristece quando vê que o bem, que devia ser seu, passa a 
ser alheio, por isso o tal domínio não pode deixar de ser penoso e molesto 
aos que servem; pela qual razão no estado de inocência (estado livre de 
toda pena e moléstia) não podia haver domínio e senhorio de um homem 
para com outro homem. O pecado, pois, foi o que abriu as portas por onde 
entrou o cativeiro no mundo; porque revelando-se o homem contra seu 
Criador, se rebelaram nele e contra ele os seus mesmos apetites. (Benci, 
1705, p.28)
Assim, a escravidão da alma e a escravidão do corpo têm uma causa idên-
tica, causando ambas “ofensas a Deus” (ibidem, p.29).
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Todavia, na visão de Benci, a escravidão é uma circustância histórica ine-
vitável. A única ação possível é regulá-la e tornar os aspectos morais e religiosos 
compatíveis com os interesses dos proprietários e da coroa portuguesa (Zeron, 
2011; Lara, 2005). Esse é o objetivo da obra de Benci (1705, p.29): dar “regra, 
norma e modelo, por onde se devem governar os senhores cristãos, para satisfa-
zerem as obrigações de verdadeiros senhores”. Grande parte do tratado é dedi-
cada à descrição detalhada desses deveres e das infrações praticadas no Brasil e é 
denunciada a desconsideração dessas obrigações pelos senhores: “que entre os 
cristãos poderia existir tanto rigor e crueldade, eu não teria nunca imaginado, se 
a experiência não tivesse mostrado aos meus próprios olhos espectaculos tão de-
ploráveis que poderia-se imaginar ocorrer apenas em países islâmicos com escra-
vos berberes” (ibidem, p.55). Isso indubitavelmente provocará a ira divina con-
tra esses senhores cruéis e talvez tal “seja a causa pela qual o Brasil experimentou 
muitas e notáveis derrotas militares por parte dos holandeses, conduzidos por 
Deus da Europa pela ruína e destruição da América”, o que levou à ruína “das 
mais ricos e prósperas fábricas de açúcar” (ibidem, p.61). Benci aproxima essas 
derrotas às punições infligidas por Deus aos hebreus.
Apesar dessas condenações, Benci tem uma visão negativa dos africanos 
e afirma que “os negros são inigualáveis, mais habilidosos que os brancos em 
qualquer tipo de perversidade” (ibidem, p.158).
Se tal era o pensamento sobre a escravidão expresso pelos jesuítas em sua 
pregação, qual era a prática da Companhia de Jesus em relação à escravidão?
A questão é complexa e amplamente discutida pela historiografia recente. 
Segundo Alencastro (2000), os primeiros contatos com a escravidão levaram a 
ordem religiosa a assumir uma posição contraditória. Inicialmente, a Compa-
nhia de Jesus se opunha claramente ao fato de padres e religiosos jesuítas terem 
escravos a seu serviço. Todavia, a recomendação dada em 1569, pelo padre 
geral Francisco de Borja, ao provincial de Portugal sobre o fato de que era im-
próprio para a Companhia usar trabalho escravo, indica a existência de práticas 
que contradiziam a proibição, particularmente na África Ocidental. O recurso 
sistemático ao uso do trabalho escravo foi consequência da mudança nas formas 
de financiamento das missões pela coroa portuguesa, notadamente a concessão 
de terras. Zeron (2011) discorda dessa interpretação por considerar o emprego 
da mão de obra escrava parte de um amplo plano de ação cujo objetivo seria 
legitimar o poder político da Companhia na manutenção da sociedade colonial; 
e comprova essa tese ao apontar que, a partir de 1549, Manoel da Nóbrega, 
responsável pela comunidade missionária no Brasil, instou o rei a enviar escravos 
africanos ao Colégio da Bahia.
Em carta datada de 2 de setembro de 1557, Nóbrega comunicou ao pro-
vincial a decisão sua e dos membros da comunidade jesuíta de Salvador de acei-
tar as doações do soberano, a fim de manter as atividades missionárias da Com-
panhia no Brasil: entre elas, a concessão de terras e escravos da Guiné, os quais 
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iriam lidar com o cultivo da terra, pecuária, pesca, colheitas, abastecimento de 
água. Dessa forma, os religiosos poderiam estar à inteira disposição para realizar 
atividades missionárias (Nóbrega, 1955). No entanto, em 1570, o novo provin-
cial de Portugal, padre Luís da Grã (1559-1571), enviou instruções contrárias 
a Nóbrega. Assim começou no Brasil o conflito entre duas posições, no que se 
refere à questão. A primeira, encabeçada por Nóbrega, justificava o uso do tra-
balho escravo com base em uma visão pragmatista sobre o fato de que a expan-
são da Companhia implicava a posse de bens materiais e a necessidade da mão 
de obra escrava. A segunda, liderada por Grã, em nome dos ideais evangélicos da 
pobreza e do ascetismo, afirmava que a Companhia tinha que se abster da posse 
de bens materiais e escravos. A escolha de Nóbrega foi aceita pelo general Diego 
Laínez, mas a discussão continuou na Companhia de Jesus até a Congregação 
Provincial de 1568, em Roma, aprovar o uso do trabalho escravo africano para a 
manutenção dasatividades lucrativas em apoio às obras missionárias. Em 1576, 
uma nova Congregação Provincial revogou a proibição do trabalho escravo dos 
indígenas nos colégios. Essa mudança de direção em relação à posição originaria 
provocou reações dentro das comunidades. É o caso de alguns jesuítas portu-
gueses: Miguel Garcia solicitou uma consulta da Mesa de Consciência; Gonçalo 
Leite3 e Leonardo Armínio4 denunciaram o uso do trabalho escravo. 
A situação piorou quando os jesuítas se envolveram na indústria açucarei-
ra e se tornaram proprietários de plantações de cana-de-açúcar e engenhos. A 
inserção da Companhia no sistema produtivo da América portuguesa implicou 
a tolerância do trabalho escravo, ainda que dentro da Ordem continuassem os 
desentendimentos a esse respeito. 
A obra do jesuíta italiano Andreoni, publicada em Lisboa em 1711, sob o 
pseudônimo de João André Antonil (1982), Cultura e opulência do Brasil, do-
cumenta um profundo conhecimento do sistema produtivo em vigor e a crença 
na necessidade da mão de obra escrava para mantê-lo em pé. Tomando a tra-
dicional metáfora do corpo muito utilizada nos sermões, Andreoni afirma que
[...] os escravos são as mãos e pés do senhor do engenho porque sem eles 
no Brasil é impossível fazer, conservar e aumentar a produção, nem manter 
o processamento do açúcar. Do modo de se comportar com eles, depende 
a obtenção de um serviço bom ou muito ruim. (Antonil/Andreoni, 1982, 
p.89)
Entretanto, o significado original da metáfora fisiológica da derivação gre-
ga, latina e paulina, concernente ao corpo social, religioso e político, é total-
mente modificado em outras partes do livro: o corpo assume a conotação do 
mecanismo de produção do qual os escravos se tornam os componentes: “É 
necessário comprar algumas peças por ano e distribuí-las nas diferentes partes 
do engenho”. Para que seu funcionamento seja o mais efetivo possível, é neces-
sário organizar o trabalho dos escravos de acordo com sua origem étnica, já que 
“pertencem a diferentes nações e alguns são mais rudes do que outros” e “muito 
diferentes em sua capacidade de força física” (ibidem, p.89). 
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Os tons do livro quanto à descrição dos escravos africanos são, no entanto, 
descontínuos. Em algumas partes, Andreoni usa tons eloquentes de denúncia e 
condenação aos maus-tratos infligidos pelos senhores, que “apesar de serem cris-
tãos, vilipendiam seus escravos pior do que os infiéis”. Lembra que um dia esses 
maus senhores terão que comparecer perante a corte de Deus e lá eles terão que 
explicar o fato de que negar comida e roupas ao escravo significa negá-las ao pró-
prio Cristo (ibidem, p.90). Nesses pontos da escrita, o estilo retórico muda com-
pletamente e, ao contrário do tom conciso e pragmático usado anteriormente, An-
dreoni emprega imagens, metáforas, amplificações, para mover os afetos do leitor. 
Segundo Giuli (2016), Andreoni mistura colonialismo mercantilista e mo-
ralidade cristã: apesar de fornecer descrições impressionantes e precisas das peri-
gosas condições de trabalho dos escravos, em nenhum caso questiona a legitimi-
dade da escravidão, aceita como uma situação imanente e inevitável, necessária 
ao sistema produtivo da América portuguesa.
Em resumo, do ponto de vista jesuítico, uma vez que a escravidão do 
corpo era um fato intransponível e que o trabalho escravo era uma prática uti-
lizada pela Companhia para garantir sua manutenção, era necessário dedicar-se 
à libertação da escravidão da alma. No entanto, permanecia a dúvida em alguns 
se esta instituição, contrária à lei natural e cristã e teologicamente avaliada como 
consequência do pecado original, seria parte do plano salvífico e misterioso da 
história guiada por Deus, e poderia ser considerada como caminho penitencial e 
expiatório, que levaria aqueles que forem suas vítimas, à salvação.
Os termos nos sermões dos pregadores carmelitas
Os carmelitas chegaram ao Brasil em 1580, estabeleceram-se em Olinda 
e fundaram conventos em Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Pará e Amazônia, 
Bahia, Rio de Janeiro, Santos, Santa Catarina, São Paulo e Minas Gerais. Em 
1641, a província brasileira de Sant’Elia foi estabelecida e depois dividida em 
duas subprovíncias: Brasil e Maranhão.
O carmelita e ex-jesuíta baiano Eusébio de Mattos (1629-1692), no Ser-
mão pregado nas Exéquias dos Irmãos dos Passos de Cristo, aprofunda o sentido 
espiritual do “cativeiro do Egito”, na história biblica, reconduzindo a escravidão 
do corpo à escravidão da alma. Moisés foi chamado por Deus para libertar os 
judeus do cativeiro do Egito, que “representava as almas dos fiéis no carcere do 
Purgatório. E é negocio de tanta importância a liberdade das almas, que à custa 
de todo o perigo se deve tratar de seu remedio” (Mattos, 1694, p.155). Moisés 
pertencia à mesma raça que os judeus em cativeiro, mas ele era livre: “pois o livre 
socorra aos cativos; o Hebreo que vive em sua liberdade, và livrar aos hebreus 
que estão no cativeiro!” (ibidem, p.156). Similarmente, Cristo, através da encar-
nação, assumiu a natureza humana, pois “se deu por obrigado a remir as almas 
dos homens” (ibidem, p.157). 
No Sermão oitavo pregado na festa da Justiça, Mattos se refere à controvér-
sia juridica legal entre o povo judeu e o faraó:
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Faraó sustentava a sua regalia; o povo clamava pela sua liberdade. Faraó 
tinha adquirido o direito da posse; o povo tinha por si a lei da natureza. 
Nestes termos, correu esta causa tantos anos, que não havendo quem a de-
cidisse entre os homens, foi affecta a Deus; e a quem escolheria Deus para 
comissario seu e julgador nesta causa? Escolheu a Moisés. (ibidem, p.194)
É interessante observar no sermão o uso da terminologia jurídica em re-
lação à escravidão: o direito de posse do escravo adquirido é contrastado pelo 
direito natural dos povos à liberdade. A solução para a diatribe não ocorre em 
um tribunal humano, mas é delegada à intervenção divina.
Na III Prática do Ecce Homo de 1677, Mattos (2007) comenta a imagem 
de Cristo açoitado na coluna, cujas mãos estão atadas porque ele é escravo do 
amor. Sua liberdade foi conquistada pelo amado (homem). Afirma: “mal vive 
em sua liberdade quem vive sujeito às leis do amor; quem se não cativa não ama; 
porque amar é cativar-se; e aquele mais perfeitamente ama, que mais estreita-
mente se cativa” (Mattos, 2007, p.43). Mattos propõe o exemplo do vínculo de 
amizade entre Davi e Jônata: “não viviam presas entre si aquelas duas vontades, 
não viviam aquelas duas almas atadas ambas entre si?” (ibidem, p.44). O amor, 
de fato, pode ser definido como o cativeiro da vontade: o amante confia sua 
liberdade ao amado, como fez Cristo com o homem, atando-se às cordas, por 
amor. Mattos contrasta a condição de permanecer atado pelo amor, assumida 
por Cristo, à de permanecer desvinculados (por causa do pecado) própria dos 
cristãos: “este é a sorte dos precitos: passar a vida em solturas” (ibidem, p.47). 
Então, libertar-se dos laços, não se deixar reduzir ao estado de escravidão, torna-
-se sinônimo de falta de amor. O pregador insiste:
[...] se as maiores santidades vivem entre prisões, como pretende um peca-
dor salvar-se entre solturas? que dirão os homens no Dia do Juízo, apare-
cendo com soltura diante de Cristo? E Cristo com aquelas cordas por amor 
aos homens! A culpa solta pera ser julgada pela inocência presa! Terrível 
tribunal! (ibidem, p.48)
Aqui o termo liberdade é usado no sentido material, como sinônimo de 
falta de restrições, de desordem moral. Nesse ponto, entretanto, o pregador in-
verte o significado das palavras: ser escravo pode significar estar preso, e ser livre 
pode significar ser libertado das amarras; e descreve o pecador como alguém que 
está preso por seus vícios. E continua:
Aquele Senhor com as mãos atadas por nossas culpas [...] não só tomará 
estreita conta aos pecadores que viveram soltos, senão também aos que 
viveram amarrados; soltos à culpa e amarrados à culpa, todoshão de dar a 
Deus muito estreita conta. [...] Que lastima, que confusão será, no dia do 
Juízo, ouvir o ruído das cadeias e o estrondo das correntes de todos aqueles 
que, vivendo neste mundo amarrados às suas inclinações, no outro mundo 
parecerão amarrados! (ibidem, p.48)
Cristo pedirá a eles que prestem contas de suas ações, no tribunal divino: 
“não vos pus todos em liberdade, quando a mim me ataram estas mãos? Pois como 
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vos vejo agora sem liberdade?” (Mattos, 1694, p.48). De fato, “criando-nos Deus 
em nosso livre arbítrio, que sendo nós senhores de nossa própria liberdade”, “ca-
tivamos nossa vontade ao apetite, ao pecado e ao demônio” (Mattos, 2007, p.49). 
E como pode o homem, sendo “senhor de sua vontade”, ser libertado quando 
está preso pelo pecado? O pregador responde que ele será capaz de fazê-lo através 
do desengano e da confissão feita com propósito claro e resolução firme.
Eusébio de Mattos foi importante expoente do mundo religioso e intelec-
tual do Brasil colonial. Nasceu na Bahia em 1592 e juntamente com seu irmão, 
o poeta Gregorio, estudou no colégio jesuíta de Salvador, onde foi aluno de 
Vieira. Em 1644, ingressou na Companhia de Jesus e tornou-se professor e pre-
gador, mas por desavenças com a comunidade, deixou a Ordem para entrar nos 
Carmelitas com o nome de Eusebio da Soledade.
O tema da escravidão é abordado pelo carmelita Manoel de Madre de 
Deus Bulhões, da Bahia. O Sermão V na festividade de Nossa Senhora da Concei-
ção na sua paroquia da praia de 8 de dezembro de 1731, que trata da perfeita 
amizade entre Deus e Maria, refere-se ao fato de que a amizade possibilita a 
igualdade entre os homens e a superação das relações de escravidão. Ao citar o 
exemplo da relação entre o faraó egípcio e o José bíblico, Bulhões afirma que 
“existem dois tipos de igualdade”, a igualdade por natureza (“igualdade pela 
razão de ser, porque no ser humano somos todos iguais”); e a por “amizade”, 
“como fez o faraó com José: como escravo de Putifar, exaltou-o ao supremo 
domínio de sua monarquia, tornando-o igual a si mesmo no comando de seus 
vassalos” (Bulhões, 1737, p.103). 
Bulhões (Salvador, 1663-1738), depois de ocupar cargos militares, en-
trou no convento carmelita onde formou-se em teologia e artes. Desempenhou 
importantes funções na Ordem, inclusive como representante da província no 
Capítulo Geral de Roma (1695).
Qual foi a posição teológica e prática em relação à escravidão da Ordem do 
Carmelo a que pertenciam Mattos e Bulhões? Do ponto de vista teológico, os 
carmelitas no Brasil consolidaram, na perspectiva do catolicismo tridentino, o cul-
to de santos negros (Ifigênia, Benedito, Elesbão e Gonçalo), por intermédio dos 
quais construíram uma nova memória da África protocristã, mas sem referências 
à história do cristianismo copta e, acima de tudo, sem qualquer conexão com a 
Africa contemporânea do comércio de escravos. O estilo de vida carmelita, men-
digo e ativo, possibilitou a inserção intensa na pastoral urbana e a proximidade 
com a população negra, sobretudo a partir de 1692 quando as igrejas carmelitas 
abriram as portas para o enterro dos negros (Oliveira, 2006). Todavia, o trabalho 
escravo era usado para a manutenção dos conventos (Santa Ana, 1750). A mão de 
obra escrava dos índios foi utilizada desde os primórdios da missão no Brasil, para 
construção de igrejas e residências e serviços domésticos (Nunes, 2011). Em vir-
tude do crescimento do patrimônio, nas fazendas da Ordem havia escravos: ainda 
em 1854, as carmelitas no Brasil possuíam 265.569 réis de bens em escravos.
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (97), 2019 203
Os termos nos sermões dos pregadores benedetinos 
Os beneditinos, vindos de Portugal, fundaram o primeiro núcleo monás-
tico no Brasil em Salvador em 1581, a seguir se estabeleceram no Rio de Janeiro 
(1586) e Olinda (1596). Pelas Constituições da Ordem, eles tiveram permis-
são especial para pregar e realizar missões em assentamentos indígenas (Endres, 
1980). 
Nos sermões dos beneditinos, a referência à escravidão aparece no sentido 
espiritual da submissão ao mal: “os homens estão sujeitos ao cativeiro da culpa e 
do diabo” (Pinna, 1755, p.14). O termo também é usado para indicar o vínculo 
estreito entre as potências do dinamismo psíquico: na visão tomista, intelecto e 
vontade são inseparáveis, num tipo de união em que o primeiro permanece livre 
para compreender; e a segunda é “escrava” para amar (ibidem).
O autor desse sermão, Matheus da Encarnação Pina, nascido no Rio de 
Janeiro em 1687 e beneditino desde 1703, foi pregador, professor de filosofia 
e teologia no mosteiro de Salvador; abade no Rio a partir de 1726; provincial 
e abade do mosteiro de Salvador desde 1752. Morreu no Rio em 1764. Seus 
sermões foram reunidos em coletânea publicada em 1755. 
Não encontramos sermões que se referem à escravidão do corpo e ao tra-
balho escravo. É verdade que, com exceção da obra de Pinna, não possuímos 
coletaneas de sermões beneditinos no Brasil, mas apenas documentos avulsos.
Apesar do silêncio dos sermões sobre o trabalho escravo, sabemos pelos 
documentos produzidos pelos mosteiros da Ordem no Brasil que a escravidão 
era parte integrante da vida dessas comunidades. A crônica do Mosteiro de Sal-
vador, Dietario das vidas e mortes dos monges, que falecerão neste mosteiro de São 
Sebastião da Bahia da Ordem do Príncipe dos Patriarcas, São Bento, preservada 
nos Arquivos do Mosteiro, relata que havia escravos trabalhando sob a direção 
dos monges; e que os monges davam instruções religiosas aos escravos.5 A fre-
quência dessas referências contrasta com a ausência do tema na pregação. Acerca 
do monge português Manoel Donaldo, falecido em 1639, a crônica escreve 
que cuidava de, todas as manhãs ao alvorecer, realizar a catequese de escravos 
(Dietário, folha 11). O monge Gonçalo Donaldo trabalhava no jardim com os 
escravos e assistia à missa todos os dias com eles. Agostinho da Piedade cuidava 
do governo da fazenda e se destacava pelo “zelo com que administrava bens 
temporais e tratava os escravos” (Dietário, folha 15). O monge Paolo de Jesus, 
depois de ter-se dedicado ao engenho de cana-de-açucar do mosteiro, em pon-
to da morte, recomenda aos confrades “com lágrimas nos olhos, que cuidem 
com grande caridade de escravos na saúde e na doença, na vida e na morte” 
(Dietário, folha 33). Nem todos os escravos eram adquiridos pelo mosteiro; al-
guns chegaram como dote de ricos aspirantes à vida beneditina (Dietário, folha 
132v). Havia monges que exigiam muito do trabalho dos escravos: Bento de 
Santa Bárbara, administrador do mosteiro, “obrigava os escravos a serem ágeis 
no cumprimento de seus deveres, de tal maneira que nenhum deles desobedecia, 
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (97), 2019204
sabendo que era muito rigoroso nas punições e por isso todos o temiam muito”. 
Essa situação durou até 1867, quando o abade do Mosteiro de Salvador decre-
tou a libertação dos escravos que trabalhavam na casa.
Os termos nos sermões dos pregadores franciscanos
Os franciscanos chegaram ao Brasil em 1585, criando a “Custódia de San-
to Antônio”, em Olinda; depois fundaram os conventos da Paraíba, Igaraçu 
(Pernambuco), Salvador, Espírito Santo, Maranhão. A partir de 1659, dividi-
ram-se em duas províncias: a província de Santo Antônio (norte e nordeste) e a 
Custódia da Imaculada Conceição do Sul. 
Em uma espécie de compêndio de tópicos e metáforas para os pregadores, 
Frutas do Brasil (1702), o franciscano Antonio do Rosário da Província de San-
to Antônio refere-se à condição da escravidão em vários pontos (Rosário, 2008). 
Primeiro, define a escravidão como uma experiência espiritual: “Que impor-
ta ser cà grande homem, grande qualidade, grande cabedal, grande juízo, grande 
doutor, e não ser do número dos escolhidos, ser perpétuo escravo dos demonios 
no inferno?” (Rosário, 2008, p.11-12). Para evitar essa condição, Rosário sugere 
o uso de “açoutes, que são as disciplinas que devem ser usadas para sujeitaro 
corpo ao espírito, fazendo-o confessar que é sujeito e escravo seu” (ibidem, p.15).
No capítulo dedicado à metáfora da cana-de-açúcar, o autor usa a expres-
são “açude do engenho” para referi-se ao moinho do Juízo Final. A imagem 
por si mesma refere-se ao trabalho escravo, por cujo meio a cana-de-açúcar era 
extraída e processada no Brasil. E, de fato, a referência não é acidental. Rosario 
afirma que o moinho do Julgamento irá trabalhar com fogo, e não com água, 
“para castigar aos que moem com sangue nos seus engenhos, aos que moendo 
com agua, ou com bestas, mais moem com o sangue dos escravos, que com a 
agua dos açudes. A água com que moem os engenhos dos senhores, que são 
tiranos e [...] mais que turcos para os seus cativos, pode-se dizer que é sangue” 
(Rosário, 2008, p.89). Rosário cita o episódio bíblico do rei Davi, que, ao che-
gar à cidade de Belém, recusou-se a beber a água, porque alegou que se tratava 
de sangue humano.6 Rosário explica que Davi estava se referindo ao perigo de 
vida que seus soldados haviam corrido para lhe trazer aquela água; e novamente 
volta a falar sobre o Brasil:
Os engenhos em que trabalham os escravos famintos, despidos, e faltos de 
todo o alimento de alma e corpo, ainda que moam com água, moem com 
o sangue que desumanamente lhes tiram os senhores por tormentos, que 
mais parecem mártirios de tiranos da fé, do que castigos de senhores católi-
cos. Mas la está o vale de Josafat, o vale do corte [...], onde há de se armar 
o engenho do Juízo. Ahi serão moídos e remoidos com fogo os senhores 
de engenho, que moem como tiranos, mais com sangue que com água. 
(Rosário, 2008, p.90-1)
Rosário termina assim seu discurso: “Como o engenho do Brasil é doce 
e amargoso! Doce pelo açúcar; amargoso pelo trabalho com que se faz. Bem se 
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (97), 2019 205
pode admitir entre as parábolas do Dia do Juízo, a parábola do engenho do Bra-
sil” (ibidem, p.99). A acusação do franciscano brasileiro mostra que nem todos 
os frades eram coniventes com o tratamento dado aos escravos.
Uma referência indireta à questão da escravidão ligada aos negros encon-
tra-se no sermão do franciscano frei Antonio de Santa Maria Jaboatão, de 1758, 
dedicado ao santo mestiço Gonçalo Garcia. Ao discutir o tema da cor da pele, 
Jaboatão retoma a teoria tradicional sobre as três causas da cor preta, que estig-
matizava a inferioridade da raça negra. A primeira inspirada na narrativa bíblica 
afirma que a cor preta é sinal de punição por uma culpa: Deus teria escrito em 
preto na cabeça de Cham sua malícia em relação ao pai Noé, razão pela qual o 
preto se tornaria “nota infame e mancha disforme” (Jabotão, 1758, p.208). A 
segunda causa seria a climática: o efeito da exposição excessiva ao sol, no caso 
dos habitantes dos países africanos e da América do Sul. A terceira causa consis-
tiria no domínio de um dos quatro humores, também consequência do pecado: 
“Cham pecou e se tornou negro; o sangue predomina”. Por castigo divino, 
Canaã, filho de Cham, tornou-se negro e a raça camítica foi estigmatizada por 
essa culpa originária (ibidem, p.217).
Qual era a situação dos franciscanos sobre o uso da mão de obra escra-
va? O trabalho escravo dos indígenas era difundido entre as aldeias dos padres 
capuchinhos no Maranhão, como consta em carta de 26 de fevereiro de 1711, 
enviada pelo rei ao inspetor dos Capuchinhos de Santo Antônio, sobre as quei-
xas vindas do Maranhão, em que o soberano afirma que a situação contradiz o 
voto de pobreza da Ordem.7
O recurso ao trabalho escravo dos negros nos conventos franciscanos era 
considerável (Willeke, 1976). O auge ocorreu na segunda metade do século 
XVIII: em 1773, o convento da Bahia possuía 86 escravos para um total de 81 
frades professos. As informações sobre os seis conventos da capitania de São 
Paulo mostram que, entre 1797 e 1798, para um total de 58 membros da comu-
nidade franciscana, havia um número correspondente de 108 escravos. No Mos-
teiro do Desterro das Clarissas da Bahia, para um total de 81 professas, havia 
298 escravas (290 dessas, dote das freiras que entraram no mosteiro). A partir 
de 1835, o número diminuiu. Os escravos trabalhavam em conventos, em terras 
pertencentes à Ordem e em santuários e hospícios, desempenhando diferentes 
funções: carpintaria, culinária, trabalho agrícola, coleta de esmolas. A vida na 
senzala dos conventos era tão dura quanto nas fazendas e nos engenhos, apesar 
de educação religiosa e cuidados aos doentes e idosos serem ministrados. Os 
frades recorriam aos serviços dos odiados capitães da floresta para a recuperação 
de escravos fugitivos. Os documentos se referem à compra de crianças escravas: 
a separação dos pais era justificada com base no quinquagésimo terceiro canone 
das Constituições do Sínodo da Bahia, que ordenava o afastamento de filhos de 
pais pagãos a partir dos sete anos de idade.
Em suma, apesar de seu carisma original, os franciscanos estavam profun-
damente envolvidos com o sistema escravista (Sangenis, 2014). No entanto, essa 
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (97), 2019206
prática, a despeito das justificativas teológicas e antropológicas para a inferiori-
dade dos negros, criou no âmbito da Ordem aquela “consciência infeliz” que se 
reflete na forte denúncia do Ir. Antonio del Rosario.
Conclusão
No contexto colonial, em que o trabalho escravo era fator essencial na en-
grenagem econômica, definições e termos relacionados à escravidão eram usados 
com parcimônia pelos pregadores das ordens religiosas. De fato, essa situação 
continha uma contradição intrínseca e profunda, do ponto de vista teológico: se 
o trabalho humano deveria dar continuidade à criação e ao eterna trabalho de 
Deus, como poderia ser concebido de maneira tal a aniquilar o homem? A Igreja 
poderia ser conivente com essa aberração?
A análise da posição da Igreja Tridentina evidencia o horizonte em que se 
colocam essas questões. O Concílio de Trento introduzira no mundo católico 
um código de práticas religiosas destinadas a criar uniformidade de comporta-
mento e rituais. A isso deve-se a insistência na catequese dos escravos e na frequ-
ência dos sacramentos, nas fontes analisadas. No entanto, de acordo com Bossy 
(1998, p.22), tratava-se de “uma operação ambígua” porque focava fé e com-
portamento individuais em detrimento da participação popular. Por um lado, “a 
transição do cristianismo medieval para o catolicismo moderno significava [...] 
transformar o cristianismo coletivo em cristianismo individual”. Por outro lado, 
“a tentativa de fazer essa transição foi em grande parte um fracasso” (Bossy, 
1998, p.98). O fato de a Contra-Reforma separar o crescimento da experiência 
religiosa indivídual do ambiente da comunidade (que mais poderia promovê-
-lo), levou “ao fracasso de seu próprio programa pedagógico”, insinuando o 
dualismo entre prática religiosa individual e prática social; entre indivíduo e co-
munidade; entre pessoa e sociedade, entre Igreja e mundo (ibidem, p.132). Essa 
condição é expressiva da divisão na modernidade entre pensamento e ação, cul-
tura e trabalho, ato e seu significado (Arendt, 2007). A Igreja Tridentina fez sua 
a divisão entre a dimensão mundana e ultramundana própria da Idade Moderna, 
ao reservar para si o território do cuidado das almas, mas não o dos corpos.
Nesse contexto, a interpretação espiritual da escravidão proposta pelos pre-
gadores esconde o embaraço e a omissão por parte da Igreja Católica, no que se 
refere a uma clara teologia do trabalho. De fato, não havia presença original por 
parte da catolicidade no contexto do sistema de organização do trabalho huma-
no, como ocorrera no início da Idade Média na Europa, sobretudo pela ação do 
monaquismo beneditino. A tolerância de práticas sociais e econômicas injustas e 
eticamente e teologicamente repreensíveis foi acompanhada por uma doutrina for-
malmente contrária. Daí as ambiguidades e contradições encontradas nas palavras 
dos pregadores sobre a escravidão. E, acima de tudo, a distinçãocada vez mais evi-
dente entre a escravidão do corpo e a escravidão da alma, uma distinção que, como 
vimos, em alguns casos chegou a cogitar que a submissão à escravidão do corpo 
poderia se tornar uma condição paradoxal de libertar-se da escravidão espiritual.
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (97), 2019 207
A Reforma católica havia proposto reafirmar a ação divina na realidade 
mundana, onde está inserida a presença do corpo místico, cujas formas expressi-
vas são contingentes, mas cuja consistência é eterna (Pécora, 1994). Essa inser-
ção justificava a adesão à realidade mundana pelos fiéis, mas ao mesmo tempo 
afirmava a autonomia das lógicas próprias da esfera terrena; exceto seus efeitos 
particulares que eventualmente seriam reconduzidos ao Significado último, no 
fim dos tempos. Somente Deus poderia recompor em seu Reino celestial as 
desigualdades introduzidas no plano terrestre pelos efeitos do pecado original e 
reafirmar, em Seu julgamento final, a igualdade substancial existente entre os se-
res humanos em virtude de pertencerem ao corpo místico. A desigualdade entre 
escravo e senhor seria, portanto, parte do engano das aparências que terminará 
quando a evidência das coisas eternas se descortinar para os homens. E neste 
plano, a escravidão do corpo é uma condição contingente; mas a da alma seria 
equivalente a uma condenação eterna.
Notas
1 ARSI Brasilia 4, f. 68r.
2 Giovanni Antonio Andreoni (Lucca, 1649-Salvador, 1716), sacerdote da Companhia 
de Jesus, partiu em 1681 com outros italianos para o Brasil. Na Bahia, ocupou cargos 
de diretor do Colégio Máximo da Bahia e Provincial do Brasil (1706-1709). Vieira de-
nunciou Andreoni a Roma, como um fomentador de resistência, rebelião e hostilidade 
em relação ao seu trabalho de visitador geral. Tais dissidios deram origem no ambito da 
Companhia no Brasil a duas facções, uma favorável a Vieira e a outra a Andreoni. 
3 Leite (2004, p.229): “Todos os Padres do Brasil andam perturbados e inquietos na 
consciência com muitos casos acerca de cativeiros, homicídios e muitos agravos, que os 
brancos fazem aos Índios da terra”. 
4 Leite (2004, p.182): “Alguns irmãos nunca pensaram que haviam de ver com os seus 
olhos a Companhia lançar mão de semelhante recurso”.
5 O Dietario, narrativa escrita por gerações de monges, de 1591 a 1815, fornece in-
formações sobre a vida do mosteiro e a biografia de cada monge. Segundo Endres, a 
constituição 3, n.79 do livro 2 do De Archivo Monasterium e congregationis determinou 
que cada mosteiro deveria escrever sua crónica.
6 Livro dos Reis II, cap.23, vers.17.
7 “Sou informado que os religiosos vossos súditos que no Estado do Maranhão estão 
encarregados da missão de algumas aldeias se empregam com excesso nas utilidades 
temporais do comércio, vendendo aos moradores a título de esmola o trabalho dos Ín-
dios no fabrico de canoas, sal, pescaria e semelhantes, e ainda os mesmos gêneros [...]. 
E por que o referido é muito contrário à pobreza que a vossa Religião professa, na qual 
desejo se conserve o crédito que tem de reformada, vos encomendo muito façais que 
os ditos religiosos se abstenham de negociações que são indignas de missionarios e de 
escândalo e prejuízo aos meus Índios” (Archivio Ordine Francescani Minori, maço 18) 
(apud Willeke, 1976).
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ESTUDOS AVANÇADOS 33 (97), 2019210
resumo – A pesquisa analisa o léxico sobre o tema da escravidão, empregado pelas 
diversas ordens religiosas responsáveis pela pregação no Brasil colonial. Identificamos 
alguns termos usados em sermões e relacionados ao conceito, como escravidão, escravo 
cativeiro; e explicamos os significados atribuídos a eles; e usados no contexto do ser-
mão. Comparamos os conceitos expressos pelos religiosos na pregação com a prática da 
escravidão, realizada por suas respectivas comunidades de pertencimento. Os resultados 
mostram que a tolerância dessa prática nos conventos foi acompanhada por uma dou-
trina formalmente contrária. Provavelmente daí derivam ambiguidades e contradições 
detectáveis nas palavras dos pregadores sobre o assunto; e acima de tudo, a distinção 
cada vez mais clara entre a escravidão do corpo e a escravidão da alma.
palavras-chaves: Escravidão, Sermões brasileiros, Período colonial.
abstract – This research analyzes the lexicon regarding the subject of slavery employed 
by the various religious orders responsible for preaching in colonial Brazil. We identified 
some terms used in sermons and related to the concept, such as slavery and slave captivi-
ty, and explain the meanings attributed to them and their use in the context of sermons. 
We also compared the concepts expressed by religious preachers with the practice of 
slavery of their respective communities. The results show that tolerance for this practice 
in convents was accompanied by a formally contrary doctrine. It is possibly from this 
that stem the ambiguities and contradictions detectable in the words of preachers on 
the subject and, above all, the ever-clearer distinction between the enslavement of the 
body and of the soul.
keywords: Slavery, Brazilian sermons, Colonial Brazil.
Marina Massimi pesquisadora no Instituto Estudos Avançados da Universidade de São 
Paulo (IEA-USP). @ – mmassimi3@yahoo.com /
https://orcid.org/0000-0001-9103-9960
I Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Recebido em 31.5.2019 e aceito em 28.6.2019.

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