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DESCENTRALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL: LIÇÕES DOS ANOS FHC Fernando Luiz Abrucio1 O Estado sofreu intensa transformação nas últimas duas décadas em várias partes do mundo. Entre os aspectos mais importantes desse processo, está a descentralização, pela enorme abrangência de países atingidos, pelos impactos que causou na organização estatal e pela mudança que trouxe às relações entre os governos e a sociedade, aumentando a preocupação com a accountability democrática. Tal importância é destacada pelo estudo de Elaine Kamarck. Analisando 123 nações, a autora constatou que a descentralização foi a segunda forma inovadora mais utilizada nos processos de reforma do Estado, aparecendo em 40% dos casos, e tendo sido ultrapassada apenas pela privatização (KAMARCK, 2000). O tema da descentralização também ganha destaque especial porque é, entre os tópicos de reforma do Estado, o que mais questões abarca. Autonomia local, formas de democracia participativa, racionalização da provisão de serviços, maior liberdade e responsabilidade dos gestores públicos, desigualdades regionais, entre os principais, são aspectos que fazem da descentralização um verdadeiro caleidoscópio. Por conta deste caráter, ela deve intrinsecamente lidar, a um só tempo, com as variáveis do desempenho e da democratização da gestão pública. Nos países onde a organização político territorial foi bastante alterada, a descentralização tornou-se ainda mais relevante. O Brasil está entre estes casos. O processo descentralizador, aqui, foi não só intenso e avassalador, como também influenciou a redemocratização do país, o redesenho da rede de proteção social e a reforma do Estado. A análise dos os caminhos da descentralização, portanto, é um ângulo privilegiado para se compreender a história brasileira recente. O objetivo do artigo é estudar a descentralização adotando uma perspectiva diferenciada da maioria da literatura, que explora tal tema pelo ângulo dos governos subnacionais e seus atores. Sem negligenciar este prisma, o foco principal concentra-se na 1 Doutor em Ciência Política pela USP e professor da PUC (SP) e da FGV (SP). 1 análise do papel do Governo Federal na coordenação federativa ao longo dos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso. Em termos metodológicos, a compreensão da singularidade dos anos FHC passa, primeiro, por uma discussão teórica formulada a partir da experiência internacional e, em segundo lugar e mais importante, pelo estudo da trajetória do federalismo e das relações intergovernamentais no Brasil, buscando compreender quais são os legados deste processo histórico. Este referencial permite entender a especificidade do governo Fernando Henrique e descobrir quais são as lições deste período. Para tanto, o trabalho organiza-se da seguinte forma. Na primeira parte, o fenômeno da descentralização é definido, buscando compreender sua evolução recente e as suas implicações no processo de reforma do Estado. Na segunda, o objetivo é mostrar que a descentralização ganha um sentido bastante peculiar num contexto federativo, uma vez que a coordenação intergovernamental torna-se peça-chave. A partir desta argumentação, o processo descentralizador brasileiro é compreendido como um eixo derivado da trajetória do federalismo. Por esta razão, neste ponto do trabalho, traça-se uma breve história da Federação, desde suas origens até o ocaso do regime militar. O entendimento do funcionamento do federalismo brasileiro montado na redemocratização é feito na quarta parte. As características federativas deste período e a continuidade de seus efeitos são centrais neste artigo. Na quinta seção, o foco se concentra nas mudanças realizadas na estrutura básica da Federação a partir do Plano Real. Trata-se de uma "conjuntura crítica", no sentido formulado por Paul Pierson (2000), na qual a posição relativa dos atores e os seus recursos foram alterados, levando ao redesenho de parte do arcabouço institucional. Ainda no bojo desta discussão, é traçado um mapa de várias ações do Governo Federal no terreno da coordenação federativa. Destaque é dado, a seguir, ao processo de coordenação federativa nas áreas financeira e administrativa, que ganharam importância nos anos FHC, no bojo de seu modelo de reforma do Estado. Depois são analisadas as políticas sociais de Saúde, Educação e Assistência Social, mostrando os avanços e problemas encontrados sob o prisma das relações intergovernamentais. E, mais adiante, o artigo trata dos dois principais fracassos da União no período: as políticas urbanas e de desenvolvimento. 2 Além de ressaltar as principais características dos caminhos da descentralização na Era FHC, a conclusão arrola alguns desafios de coordenação federativa que certamente serão enfrentados pelo próximo presidente . I- O Fenômeno da Descentralização Descentralização é uma palavra muito utilizada nos dias que correm, quase sempre com um sentido positivo. Só que, no mais das vezes, a quantidade de elogios que recebe é proporcional à sua imprecisão conceitual. Para tornar mais claro o debate, definimos descentralização como um processo nitidamente político, circunscrito a um Estado nacional, que resulta da conquista ou transferência efetiva de poder decisório a governos subnacionais, os quais adquirem autonomia para escolher seus governantes e legisladores (1), para comandar diretamente sua administração (2), para elaborar uma legislação referente às competências que lhes cabem (3) e, por fim, para cuidar de sua estrutura tributária e financeira (4). Obviamente que há graus diferenciados de autonomia nas diversas experiências nacionais, sendo que, geralmente, os governos subnacionais têm maior poderio nas Federações, por razões que veremos mais adiante. Também existe uma diversidade no que tange a cada um dos quatro aspectos citados acima, com experiências mais voltadas às liberdades política e jurídica e outras direcionadas mais firmemente a questões tributárias ou administrativas. De qualquer modo, tem-se aqui uma definição mínima de descentralização, no mesmo sentido da delimitação minimalista de democracia, e a partir da qual é possível compreender melhor o fenômeno. A definição mínima de descentralização é tanto mais necessária por conta desse termo designar correntemente outros três fenômenos. Um deles envolve o aspecto administrativo. Trata-se da delegação de funções de órgãos centrais para agências mais autônomas, o que na verdade é um processo de desconcentração administrativa, ou ainda então a horizontalização das estruturas organizacionais públicas, com o repasse de maior responsabilidade da cúpula aos gerentes e funcionários da ponta. Além dessa caracterização, a descentralização é igualmente utilizada para denominar a transferência de atribuições do Estado à iniciativa privada - privatização ou concessão de serviços públicos - 3 e do governo para a comunidade ou ONGs. Estes três processos não podem ser simplesmente equiparados à descentralização no seu sentido estrito, embora possam conviver com ela ou mesmo serem impulsionados por mudanças políticas descentralizadoras. Tentar distinguir claramente tais termos não é uma preocupação nomológica, mas sim uma precaução contra maneiras indevidas de se manejar os conceitos. Exemplo nesta linha foi o discurso de Margareth Thatcher e de boa parte do receituário neoliberal da década de 80, que defendia uma descentralização cujo objetivo era mais limitado. Significava o repasse de funções para governos locais sem garantir a autonomia e o financiamento, a desconcentração de atribuições da administração central para agências e, dentro destas, da cúpula para os gerentes, e ainda a privatização de empresas públicas. Essas ações buscavam diminuir custos e melhorar o desempenho dagestão pública, só que propositadamente negligenciavam o cerne de qualquer processo descentralizador: a democratização do Estado2. Com base nesta discussão conceitual, pode-se dizer que o processo descentralizador, no seu sentido essencialmente político, é um fenômeno bastante recente, que ganhou maior impulso, num maior número de países, somente nas últimas décadas do século XX. Decerto que há um debate intelectual sobre a questão desde o século XIX, em pensadores tão distintos como Proudhon e Tocqueville, além de pelo menos uma experiência precursora em larga escala, que foi o modelo norte-americano. A precocidade dos Estados Unidos é perceptível na tradição de autonomia local e no conjunto complexo de instituições e mecanismos de relacionamentos entre os níveis de governo, algo ainda poucas vezes encontrado. A formação dos modernos Estados nacionais, na verdade, foi um processo de centralização do poder e de tentativa de construir uma soberania una e indivisível, nos termos de Jean Bodin. O objetivo maior era estabelecer a ordem mínima hobbesiana, concentrando poder numa autoridade que desse conta dos perigos da fragmentação local e da invasão externa. O Governo Central tornou-se o eixo estruturador de toda a política, com um poderio praticamente inquestionável. 2 Sobre a descentralização na era Thatcher, ver B. Guy Peters (1992). 4 O fortalecimento do poder nacional não foi abrupto, mas sim, uma construção que durou séculos. Neste longo processo centralizador, a descentralização do poder era normalmente vista de modo negativo, com a grande exceção da experiência norte- americana. Com a consolidação das independências na América e com o novo colonialismo europeu na África e Ásia, ademais, o poderio do Estado nacional transformou-se em arma fundamental no jogos geopolítico e econômico, especialmente para os que disputavam mercados no contexto imperialista, entre o final do século XIX e o começo do XX. Mais adiante, a crise da ideologia do laissez faire e a formulação do pensamento keynesiano, no bojo da depressão da década de 30, legitimaram o reforço do papel da intervenção estatal centralizada. A expansão do Estado atingiu seu auge depois da Segunda Guerra Mundial. O aumento da intervenção governamental foi estruturado sob três pilares: o keynesiano, correspondente ao aspecto econômico, o Welfare State, ligado ao social, e o burocrático weberiano, modelo administrativo que dava suporte às ações dos outros dois pilares. Todos os três foram engendrados pelo Governo Central. Nos países desenvolvidos, ademais, esta engenharia institucional foi construída num contexto de ampliação da democracia no plano nacional. O fato é que, entre 1950 e 1980, era de grande prosperidade do capitalismo (por alguns chamada de "anos dourados"), o Estado nacional foi o motor do desenvolvimento e, em alguns casos, da cidadania. Paradoxalmente, o avanço e o sucesso da intervenção estatal centralizada e da nacionalização da política no pós Guerra impulsionaram, mais adiante, o processo de descentralização. Dito de outro modo, a expansão do Welfare State e da democracia, frutos do período de grande nacionalização da política, favoreceram a constituição de demandas descentralizadoras. No caso dos Welfares, cabe assinalar que eles foram instituídos pelos Governos Centrais, que agiram com maior ênfase a partir da década de 50. No começo, a administração centralizada geralmente implantava sozinha as políticas de bem estar social, contudo, ao longo do tempo, ela aumentou as ações de financiamento e/ou as parcerias com os governos subnacionais. Em outras palavras, a ampliação da oferta de serviços públicos, por parte do Poder Nacional, redundou na criação de estruturas administrativas no plano local. Um exemplo neste sentido é o da experiência norte-americana. Conforme John 5 Donahue, houve lá uma maior centralização desde os anos 30, mas as burocracias estaduais foram se aperfeiçoando para receber e utilizar melhor os grants do Governo Federal, criados desde o período Roosevelt e ampliados ainda mais pelo governo Lyndon Johnson, por meio do programa Great Society. Este processo, por si só, gerou mais adiante demandas pelo repasse integral das funções aos estados (DONAHUE, 1997: 12). O crescimento e a complexificação da estrutura administrativa do sistema de proteção social resultou em dilemas de eficiência e democratização. No que se refere ao primeiro aspecto, quanto mais atividades o Governo Central concentrava em suas mãos, mais perdia o controle sobre o desempenho e a qualidade das políticas. Um bom exemplo disso era o programa de merenda escolar do Governo Federal brasileiro. Seu alcance e recursos elevaram-se deveras ao longo do tempo e, até meados da década de 90, a União comprava os alimentos, muitas vezes trazia-os até Brasília e depois os distribuía para o restante do país. Daí resultavam os seguintes problemas: os bens em questão eram perecíveis e muitos estragavam por conta dessa logística centralizadora; os hábitos alimentícios regionais eram desprezados; e a compra centralizada normalmente aumentava os custos. Trocando em miúdos, o excesso de centralização levava à ineficiência. A centralização excessiva muitas vezes provinha das ações da burocracia nacional e dos políticos, os quais, ao concentrarem os recursos no nível central, fortaleciam seu poder decisório (burocratas) ou de chantagem perante as bases locais (líderes políticos clientelistas). A maior democratização do sistema político tem sido o melhor instrumento contra esta situação. Tal processo democratizador foi inicialmente construído mais por processos nacionais do que locais, ao contrário do que supõe visões mais românticas. Até no caso norte-americano, fundado pelo conceito de self-government e onde de fato a autonomia republicana dos governos locais prosperou em boa parcela do território, a nacionalização da política foi fundamental para a democratização do sistema, atacando os focos de corrupção no Sul e em grandes centros urbanos (como Chicago), além de garantir os direitos civis dos negros. Em vários países desenvolvidos, a nacionalização do processo democrático ampliou espaços de participação que, gradativamente, estabeleceram-se nos níveis locais de governo. Cabe lembrar que o longo caminho da centralização do poder havia sufocado uma série de demandas por autogoverno regional, e a democratização do pós Guerra permitiu 6 colocar em xeque essa estrutura política, embora a transformação do modelo não tenha ocorrido de uma hora para outra. O caso italiano reflete bem esse fenômeno, pois, como mostrou Robert Putnam, entre a promulgação da Constituição, em 1948, e o início da década de 70, ocorreu uma intricada batalha pela autonomia dos governos locais (cf. PUTNAM, 1996: 35-38). O modelo centralizador entrou em crise no começo da década de 80. Para tanto, contribuíram fatores como a internacionalização econômica, que reduziu parcela significativa do poder de intervenção estatal no plano nacional, especialmente na área financeira; a crise fiscal dos Governos Centrais, vinculada à perda de dinamismo econômico que marcara os "anos dourados"; a defesa de reformas inspiradas por uma concepção minimalista de Estado, iniciada com as vitórias de Thatcher e Reagan; o fortalecimento de organizações com modus operandi transnacional, como empresas multinacionais, ONGs, instituições multilaterais, blocos regionais e até máfias internacionais; a maior demanda por participação no nível local; e o aumento da integração econômica entre os capitais e os governos subnacionais, processo chamado por alguns autores de "glocalization" (WATTS, 1994). Sobre este processo, ficou famosa a frase de Daniel Bell: “the nation-state is becoming too small for the big problems of life and too big for the smallproblems of life” (BELL, 1988). Em boa medida, o discurso e a prática descentralizadoras derivaram dessa crise do modelo centralizador de intervenção estatal. No entanto, vale ressalvar que o balanço dos últimos vinte anos não revela uma redução significativa do tamanho do Estado ou o esvaziamento do Governo Central. Houve, sim, mudanças na estrutura centralizada anterior, com novas formas de provisão e atuação do aparato estatal, só que o resultado disso está levando a repensar o papel do Poder Nacional, em vez de destrui-lo. Em resumo, os resultados paradoxais da expansão e complexificação do Welfare State e da nacionalização da democracia, somados aos fatores recentes que enfraqueceram o Governo Central, pavimentaram o terreno onde a descentralização foi inicialmente construída. Mais outras quatro causas influenciaram este processo: a urbanização acelerada, que tornou os problemas locais e seus governos cada vez mais importantes para um maior número de pessoas; a irrupção de conflitos étnicos, os quais, quando não levaram à 7 secessão, demandaram novas relações do Poder Nacional com os grupos regionais, como na experiência espanhola; o surgimento das democracias de Terceira Onda (HUNTINGTON,1994), nas quais houve, por diversas vezes, um imbricamento entre a democratização e o processo de descentralização; e, por fim, a força do discurso político descentralizador, cada vez mais aceito e proposto em larga escala, inclusive por instituições multilaterais, como o Banco Mundial, que o defendem como uma das melhores soluções aos países menos desenvolvidos. O contexto atual pode ser classificado como uma era de descentralização, dada a desconcentração sem precedentes do poder político nacional. Os seus primeiros passos foram dados nos anos 50, mas o grande impulso se deu na década de 70, com a inclusão de um número crescente de países, num processo ainda hoje em expansão. Entre os desenvolvidos, houve grandes mudanças na organização territorial em lugares como a Bélgica (que passou por um processo de federalização nos últimos trinta anos), a Espanha e a Itália - ambas criadoras de uma estrutura regional ou quase federal (LARSSON, NOMDEN & PETITEVILLE, 1999: 400). Em todos estes casos, os governos subnacionais conquistaram uma forte autonomia. Destaca-se, ainda, a consolidação dos federalismos alemão, australiano e canadense, cada vez mais preocupados em aperfeiçoar seus mecanismos intergovernamentais para garantir o princípio da subsidiariedade, segundo o qual as políticas devem ser conduzidas, o máximo possível, pelas autoridades mais próximas dos cidadãos. É igualmente relevante a influência do viés federativo no debate acerca da União Européia. Soma-se a tudo isso, de forma inédita e até inesperada, o repasse de poder ao plano local em duas das nações mais centralizadas da Europa, a Grã-Bretanha e a França, como assinala Rudolf Hrbek: "Recentemente, se vislumbram importantes alterações da estrutura territorial na Grã-Bretanha. Sob o lema da 'devolução', o governo de Westminster transferiu direitos de autonomia abrangentes, embora diferentes, para a Escócia e o País de Gales. Vários observadores consideram essa evolução como início de uma profunda mudança da organização estatal do Reino Unido, que poderia chegar a um 'Estado de Autonomia' ou ainda uma construção federativa. (....) Na França, considerada há muito tempo exemplo clássico de um sistema centralizador, também se iniciou uma política de descentralização a partir de 1982. Sua expressão mais nítida é a criação de regiões com novas entidades 8 territoriais, ao lado dos tradicionais municípios e departamentos. Embora a competência e os recursos à disposição das regiões pareçam modestos, são nítidas as mudanças no Estado francês, bem como o fato da descentralização já significar mais do que mera transferência de atribuições administrativas para um nível mais baixo. As regiões desenvolvem autoconfiança, procuram tomar posições em relação à capital e ao governo central e, ocasionalmente, já são consideradas atores respeitados num sistema que se desenvolve passo a passo" (HRBEK, 2001: 111-112). Nos Estados Unidos, país com maior tradição federativa do mundo, houve uma renovação do discurso em prol da descentralização. Do "novo federalismo" de Nixon até o modelo mais recente do devolution powers, aconteceu um repasse de funções aos estados, que para alguns significou o retorno às "liberdades originais da Federação". Ademais, a concepção de que os governos subnacionais são "laboratórios de democracia", isto é, capazes de criar políticas inovadoras quanto mais contato direto tiverem com os cidadãos, foi um dos principais eixos da política norte-americana na década de 90 (CONLAN, 1998; OSBORNE & GAEBLER, 1994). A descentralização também avançou celeremente em outras partes do globo. Num estudo citado por Marta Arretche, constatou-se que entre 75 países em desenvolvimento analisados, 63 tinham realizado reformas descentralizadoras (apud ARRETCHE, 1996: 63). A América Latina destaca-se neste contexto. Nela, são eleitos atualmente 13 mil governos locais, contra menos de 3 mil no final dos anos 70 (BANCO MUNDIAL, 1997: 112). Países como Colômbia, Peru e Venezuela aumentaram, em maior ou menor grau, a autonomia dos governos locais. Federações mais antigas, porém tolhidas em sua liberdade por décadas de autoritarismo, como o México e a Argentina, reforçaram o poder de suas províncias ou estados - no caso mexicano, foi do plano subnacional que, em grande medida, saiu o processo de democratização recente do país (cf. RODRÍGUEZ & WARD, 1995). E o Brasil não ficou atrás, pois reconstruiu sua estrutura federativa por meio do reforço do poder das esferas estaduais e municipais, como mostraremos mais adiante. O fascínio causado pela descentralização baseia-se não apenas na crise do modelo centralizador e no surgimento de novas realidades, mas também na força política adquirida por esse conceito, cujo sinal é quase sempre positivo. Agregando uma ampla e heterogênea 9 coalizão de interesses, o discurso descentralizador teria suas principais qualidades associadas à democratização do Poder público e à melhora do desempenho governamental. Descentralização e democratização do Estado andam juntas no argumento político desde pelo menos o livro clássico de Alexis de Tocqueville, A Democracia na América. Processos históricos mais recentes, como a conquista de governos locais pelos comunistas italianos, na década de 60, ou o crescimento do municipalismo no Brasil nos anos 80, com seu viés democratizador sendo perceptível em políticas como o Orçamento Participativo, são dois entre vários dos exemplos que ajudariam a corroborar esse relacionamento virtuoso. O pressuposto que orienta essa concepção é o de que a maior proximidade dos governos em relação aos cidadãos possibilita o aumento da accountability do sistema político. De fato, o controle sobre os governantes pode ser facilitado pela descentralização, já que com ela há maior probabilidade de disseminação das informações, de criação de canais de debates e mesmo de se instituir mecanismos mais efetivos de fiscalização governamental, para citar três dos elementos básicos do processo de responsabilização democrática do Estado (PRZEWORSKI, 1998). Formas de democracia semi-direta também têm muito mais chances de se realizar no plano local. O aumento da eficiência e da efetividade é citado igualmente como outra qualidade intrínseca da descentralização. Isto porque a centralização completa das políticas resultaria, tecnicamente, em maior irracionalidade administrativa, e, politicamente, na criação de "superagências" monopolistas que dificilmente seriam controláveis, com efeitos não só para a accountability democrática, como também para o desempenho da ação estatal. Inversamente, a descentralização, ao aproximar os formuladoresdos implementadores, e, principalmente, estes dois dos cidadãos, melhoraria o fluxo de informações e a possibilidade de avaliação da qualidade da gestão pública. Nesta mesma linha de raciocínio, supõe-se que a uniformização subjacente ao modelo mais centralizador diminuiria os incentivos à inovação, ao passo que a existência de múltiplos governos seria um estímulo para a busca de novas soluções administrativas, pois os governantes locais teriam a necessidade, por conta maior da cobrança da população, e a possibilidade, por conta da maior autonomia decisória, de encontrar saídas criativas e 10 vinculadas às peculiaridades de cada circunscrição política. Esta posição é bastante difundida no debate norte-americano e vem ganhando adeptos em outros países3. Muitos defendem que pode haver, sob certas condições, uma relação de mão dupla entre a democratização e busca da eficiência no plano local, tal qual argumentam Abrucio e Soares: "Por um lado, a participação e a cobrança da população obrigam os governantes, muito mais próximos, a melhorar seu desempenho administrativo. Por outro, as condições para que os cidadãos atuem [democraticamente] de forma mais eficaz estão ligadas à qualidade da gestão pública, responsável pela informação e pela adequação dos instrumentos de controle" (ABRUCIO & SOARES, 2001: 28). A descentralização, no entanto, não tem qualidades intrínsecas e tampouco está isenta de aspectos negativos. A força política deste discurso e muitos resultados satisfatórios que daí se originaram nublam os problemas que se colocam, em muitas ocasiões, para a implantação de um processo descentralizador. Há cinco questões fundamentais que devem ser equacionadas em qualquer modelo de descentralização: a constituição de um sólido pacto nacional, o ataque às desigualdades regionais, a criação de um ambiente contrário à competição predatória entre os entes governamentais, a montagem de boas estruturas administrativas no plano subnacional e a democratização dos governos locais. A primeira se refere à relação dos governos locais com a nação. Uma fragmentação excessiva pode levar à guerra civil, à desorganização econômica ou à secessão. É claro que esta última pode ser até desejável em certas circunstancias, nas quais grupos étnicos foram sufocados pelo Governo Central e/ou por uma etnia dominante. Não obstante, o fortalecimento de uma série de nacionalismos desde a segunda metade da década de 80 tem grandes chances de produzir países com frágeis condições de sobrevivência - e, neste caso, os vetores da globalização assimétrica na qual vivemos tendem a ser implacáveis, favorecendo os que mantiveram mais território e população. Talvez tenhamos, na década que ora se desenvolve ou no mais tardar na próxima, que refletir novamente sobre formas 3 Nos EUA, um dos maiores best sellers da década de 90 foi o livro Reinventando o Governo, que analisa uma série de exemplos de experiências bem sucedidas no plano subnacional, os quais são classificados como verdadeiros laboratórios de gestão pública (OSBORNE & GAEBLER, 1994). Esta linha argumentativa, entretanto, é bem mais antiga nas literaturas de Ciência Política e Economia produzida nos Estados Unidos, bem como no debate político. 11 de organização política do espaço que respondam às demandas econômicas e geopolíticas de centralização, mas acentuando necessariamente o caráter democratizador desse processo. Supondo que um país resolva seus dilemas básicos de ordem e haja um sentimento nacional razoavelmente consolidado, é preciso evitar o crescimento das desigualdades entre as regiões. Algumas experiências recentes de descentralização não foram acompanhadas pela criação de políticas redistributivas - ou ao menos compensatórias - para as localidades mais pobres ou carentes de infra-estrutura, o que contribuiu para acentuar as diferença socioeconômicas. Nestes casos, a descentralização torna-se, na precisa definição de Remy Prud’Homme, “na mãe da segregação” (PRUD’HOMME, 1995), uma vez que as disparidades entre as partes prejudicam o desenvolvimento de muitas delas e, ao fim e ao cabo, do próprio conjunto, pois há uma piora do desempenho econômico global, um aumento do conflito distributivo e, no extremo, a luta política assume proporções preocupantes à ordem nacional. Os impactos desse processo negativo são ainda maiores em grandes nações marcadas pela desigualdade regional, como a Índia, o Brasil e a Rússia. Para solucionar este problema, faz-se necessária a atuação coordenadora do Governo Central, sem a qual não é possível uma descentralização efetiva e justa. O acirramento dos conflitos entre os níveis de governo é outra questão que pode prejudicar a descentralização. Em razão de o processo desconcentrador de poder ser normalmente recente, dois fenômenos aparecem com freqüência. Em uma ponta, muitos Governos Centrais não têm conseguido lidar com a nova realidade e querem evitar a perda de autoridade e competências, criando incertezas quanto aos passos seguintes do processo e mesmo em relação à manutenção dos que já foram dados, tal qual ocorreu na Inglaterra nos tempos de Thatcher; noutra ponta, a ausência de experiência anterior de autogoverno e o enfraquecimento do Poder Nacional têm gerado, em certos casos, estímulos à irresponsabilidade fiscal das unidades subnacionais, como na Argentina, ou a uma disputa tributária predatória, como na guerra fiscal à brasileira4. O fato é que a fragilidade dos instrumentos de cooperação e coordenação entre as esferas de poder constitui um grande obstáculo ao sucesso da descentralização. 4 Para uma visão geral do processo de descentralização, tratando sobretudo das resistências a ele e a manifestação de comportamentos fiscais irresponsáveis por parte dos governos subnacionais, ver BURKI, PERRY & DILLINGER, 1999. 12 É necessário, também, desenvolver as capacidades administrativas e financeiras dos entes subnacionais para que a descentralização ajude a melhorar o desempenho da gestão pública. Os possíveis ganhos de eficiência resultantes da desconcentração das atribuições não são alcançados caso faltem recursos suficientes às administrações locais, ou se estas deixarem de exercer sua autoridade tributária. O repasse das funções antes centralizadas só alcança plenamente seus objetivos quando acoplado à existência ou à montagem gradativa de boas estruturas gerenciais nos níveis inferiores. Obviamente que a grande concentração de tarefas nas mãos do Governo Central é prejudicial à eficiência, porém, a manutenção de padrões arcaicos de governança no plano local, além de reduzir a efetividade da ação estatal, desmoraliza a descentralização, podendo até incentivar propostas demagógicas de (re)centralização e paternalismo. Logo, a modernização administrativa dos governos subnacionais é condição sine qua non de um ciclo virtuoso descentralizador. A relação entre descentralização e democracia não é linear. Ela depende das condições sociais, econômicas e políticas existentes em determinado país e tempo histórico. Trata-se, em suma, de uma construção político-institucional. É neste sentido que, analisando a associação entre democratização e descentralização, Marta Arretche argumenta: “A concretização dos ideais democráticos depende menos da escala ou nível de governo encarregado da gestão das políticas e mais da natureza das instituições que, em cada nível de governo, devem processar as decisões” (ARRETCHE, 1996: 45). Em diversos momentos da história, formas oligárquicas predominaram no plano local. Exemplos: o Brasil da Primeira República, o Sul dos Estados Unidos na primeira metade do século XX - realidade tão bem descrita por V.O.Key Jr. (1949) -, os governos subnacionais mexicanos durante o domínio do PRI e, até hoje,a administração das Províncias mais pobres e suas municipalidades na Argentina. A lista é bem mais extensa, mas ficamos por aqui. Ora, isto quer dizer que existe uma outra "relação linear", agora entre descentralização e oligarquia? Esta ilação é tão falsa quanto a primeira. Basta observar a progressiva democratização de governos subnacionais em várias partes do mundo: em países federativos (como a Alemanha, os EUA, o Canadá) em Estados Unitários (Itália e Espanha), além dos grandes avanços ocorridos em nações em desenvolvimento, como o 13 Brasil e a Índia. A continuidade desse processo vincula-se à construção de certas condições institucionais, culturais e socioeconômicas. Para responder a estas cinco questões, é preciso adotar três pressupostos gerais que balizam qualquer processo de descentralização: 1) A opção não deve ser centralização ou descentralização. O segredo do sucesso está no relacionamento entre elas. Num extenso e detalhado trabalho que envolveu o estudo das relações intergovernamentais de todos os países da OCDE, a então presidente dessa organização, Alice Rivlin, concluiu que: “Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização. Nós precisamos agora estar dispostos a mover em ambas as direções – descentralizando algumas funções e ao mesmo tempo centralizando outras responsabilidades cruciais na formulação de políticas. Tais mudanças estão a caminho em todos os países” (OCDE, 1997: 13). 2) A descentralização envolve um projeto nacional e vários processos ou rodadas de negociação. Em relação ao primeiro aspecto, cabe ressaltar que não basta criticar os problemas do antigo modelo centralizador; é fundamental estabelecer uma estratégia nacional que oriente, minimamente, o processo descentralizador (FIORI, 1995). Assim sendo, as lideranças políticas e administrativas de todo o país precisam ter em mente o sentido geral da descentralização. No entanto, este projeto geral é rediscutido e repensado ao longo do tempo. Ademais, a desconcentração de funções ocorre em diversas áreas, às vezes muito distintas entre si, por conta da peculiaridade de cada política pública. É por esta razão que concordamos com o argumento de Maria Hermínia Tavares de Almeida: a descentralização é um processo composto por várias rodadas (ALMEIDA, 2000: 7), muito embora o histórico específico das políticas afeta seu destino posterior. Qualquer avaliação da descentralização em um determinado país, portanto, deve analisar o projeto nacional e os processos descentralizadores, bem como a relação entre eles. 3) A descentralização exige a construção de capacidades político-institucionais tanto do Poder Central como dos governos subnacionais. Ambos devem ser preparar especificamente para este processo. O Governo Central deve habilitar-se para o repasse de funções e para a coordenação das ações mais gerais, atuando em prol do equilíbrio entre as regiões, fornecendo auxílio técnico e financeiro aos níveis inferiores e avaliando as 14 políticas de cunho nacional. Os entes subnacionais, por sua vez, precisam aprimorar sua estrutura administrativa e seus mecanismos de accountability democrática. Uma competência comum é essencial: todas as esferas de poder devem desenvolver instrumentos e mesmo uma cultura política vinculados às relações intergovernamentais, em particular no caso do Governo Central, em razão de seu papel necessariamente coordenador. O caso brasileiro enfrenta todo este universo de questões atinentes à descentralização. Só que há uma particularidade: o Brasil é uma Federação, característica que dá um molde especial ao processo descentralizador. II- Federação e Descentralização: o significado dessa relação As formas de organização territorial do poder podem ser divididas em quatro tipos: a Associação de Estados, a Confederação, a Federação e o Estado Unitário. Alguns países têm adotado características de mais de um modelo, seja porque a era da descentralização trouxe mais preocupações federativas a nações unitárias, seja porque a temática dos blocos regionais impulsionou experiências com inspiração confederativa, como a União Européia, ou que procuram constituir alianças econômicas, como as uniões aduaneiras e áreas de livre comércio. De qualquer modo, há sim diferenças entre tais categorias, que dizem respeito, em especial, à maior ou menor concentração/dispersão de poder e soberania entre os entes, fazendo com que haja organizações territoriais do poder mais centrífugas ou mais centrípetas. O quadro abaixo configura esta classificação: QUADRO 1 Quadro 1: Formas Típicas de Organização Político-Territorial do Poder + centrífugo + centrípeto Associação de Confederações Federações Estado Unitário Estados 15 Resumidamente, podemos diferenciar cada uma dessas formas de organização político-territorial do poder5. A Associação de Estados estabelece uma parceria voluntária entre nações que não perdem sua soberania original e constituem uma cooperação com fins culturais, políticos e/ou econômicos, sem que isto implique um maior compromisso de compartilhamento de poder ou centralização decisória. Portanto, são membros que não abdicam de sua condição de país e, enquanto tais, podem sair dessa organização a qualquer momento. Ademais, a Associação entre Estados pode ocorrer entre Estados nacionais que não tenham contiguidade territorial, uma vez que os objetivos podem ser de cooperação econômica ou de intercâmbio cultural - tal como ocorre no Commonwealth. A Confederação, por sua vez, é a junção de unidades independentes, que podem ser Estados nacionais ou não - o início da história dos Estados Unidos representa esta segunda possibilidade. Busca-se um maior compromisso pelo compartilhamento do poder do que na Associação entre Estados, mas se evita a criação de um Governo Central. Diferentemente da Associação entre Estados, a Confederação pressupõe sempre uma contiguidade territorial. O que motiva a criação do modelo confederativo é a existência de problemas e necessidades comuns em uma mesma área territorial. Para tanto, os participantes desse acordo estabelecem políticas integradas. Contudo, ao contrário da Federação, não é constituído um Governo Central, embora possa até existir uma estrutura que funcione como pólo aglutinador da Confederação, porém sem um estatuto de legitimidade por si só. Mais do que isso, há uma superioridade do arcabouço constitucional de cada um dos membros sobre o conjunto de regras que orienta essa união. É por esta razão que as principais decisões válidas para todos os integrantes precisam da aprovação unânime deles ou, então, certas decisões não são vinculantes a todos os participantes - a questão da moeda comum na União Européia é tipicamente uma questão confederativa. O modelo confederativo foi o inicialmente praticado nos Estados Unidos após a independência, em 1776. Pode-se dizer que hoje a União Européia é o que há de mais próximo de uma Confederação6. Observando a história das experiências confederativas, 5 Essa conceituação baseia-se em ABRUCIO, 2000. 6 A experiência da União Européia tem características mais próximas da Confederação, porém alguns de seus membros e ideólogos defendem uma maior federalização de sua estrutura. Propostas como o fortalecimento do Parlamento Europeu, do Direito Comunitário e do Banco Central Europeu, retirando grande parcela do poder macroeconômico dos Estados nacionais, caminham numa linha mais federativa. Contudo, a 16 percebe-se uma a baixa capacidade de sobrevivência dessa forma de organização político- territorial do poder. Nos EUA, durou pouco mais de dez anos, enquanto o caso recente da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), composta pelas partes daquilo que fora a União Soviética, redundou em maior divisão entre estes povos, levando osanalistas a afirmar que a saída para essa região era manter a Federação Russa e esta fazer Associações com os demais Estados nacionais (SEROKA, 1994)7. Como ponto mais centrípeto da escala exposta acima, temos o Estado Unitário, onde a soberania está toda concentrada no Governo Central e é, por tal motivo, una e indivisível. O poder dos entes subnacionais deriva da ação voluntária da esfera nacional, que delega funções e graus de autoridade. Todavia, há variações cada vez maiores na forma como esta organização territorial se estrutura, sobretudo por conta dos efeitos da era da descentralização. Países de tradição centralizadora como a França e a Inglaterra, tal qual mostrado anteriormente, modificaram bastante sua distribuição espacial do poder político nos últimos vinte anos. Mesmo com tais mudanças, um aspecto diferencia claramente o Estado unitário das formas confederativas ou federativas: a distribuição de poder obedece a uma hierarquia e a uma assimetria entre o Governo Central e as unidades subnacionais. Exemplo: no Reino Unido, o primeiro-ministro trabalhista, Tony Blair, cumpriu sua promessa de campanha e criou um Parlamento regional na Escócia. Houve pressões do plano local, mas a decisão veio do âmbito nacional. Mais importante: a continuidade desse processo de desconcentração de poder vai depender da aprovação em instâncias do nível central, sobretudo o Parlamento, o qual é formado exclusivamente por representantes que, embora capacidade de países pertencentes à essa união de não compartilhar de todas as regras do ordenamento comum, como o Reino Unido repetidamente tem feito, e a ausência de políticas externa e de segurança para todo o bloco constituem enormes obstáculos à federalização da União Européia. 7 Três fatores explicam o fracasso do modelo confederativo. O primeiro é a pouca efetividade dos mecanismos que arbitram os conflitos numa Confederação, dado que o poder vinculante das decisões é mais tênue. Além disso, o processo decisório é bastante intrincado, já que o poder de veto de apenas um membro é muito amplo, e o custo desse veto é baixíssimo para o ente individual, ao passo que o preço pela unanimidade normalmente é bastante alto. E, por fim, o maior problema do modelo confederativo refere-se à proteção diante de inimigos externos ou mesmo de guerras internas. A União Européia não tem até hoje uma política de defesa comum e por isso depende dos Estados Unidos – que resguardam suas ações no “biombo” da OTAN. A importância da questão da segurança pode ser constatada pelo lugar estratégico e pela quantidade de espaço que ocupou em O Federalista: do segundo ao décimo artigo, parte que dá início e prepara o terreno para o restante da argumentação. Foi essa fragilidade do modelo confederativo que convenceu figuras históricas fundamentais para a independência, como George Washington e Benjamin Franklin, a ficarem do lado dos founding fathers norte-americanos na defesa do ideal federativo na Convenção de 1787. 17 eleitos em distritos, têm um mandato nacional, não vinculado à proteção dos direitos de tal ou qual região. É este o limite da descentralização nos Estados unitários: o poderio dos governos subnacionais é inferior constitucionalmente ao do Governo Nacional. A ausência de estruturas capazes de defender especificamente os interesses regionais corrobora isto. Não há porque construir uma engenharia institucional para defender as unidades subnacionais se elas não são reconhecidas como portadoras de direitos originários que devem ser defendidos. Em suma, não são soberanas e a soberania nacional é fruto de um contrato entre todos os indivíduos da nação, e não de um acordo entre entes territoriais8. O Estado Federal é uma forma inovadora de se lidar com a organização político territorial do poder, na qual há um compartilhamento matricial da soberania, e não piramidal, mantendo-se a estrutura nacional (ELAZAR, 1987: 37). Hoje há vinte e duas nações que adotam formalmente o sistema federativo, afora outras, como a Espanha e a África do Sul, que embora não tenham constitucionalmente este status, na prática funcionam cada vez mais enquanto tais (WATTS, 1999: 10). Além destas, muitas outras nações vêm adotando instrumentos federativos para resolver seus problemas intergovernamentais. Mesmo tendo um pouco mais de 10% dos países utilizando esse modelo de organização político territorial, o fato é que a importância geopolítica, econômica e cultural dos que adotam a forma federal é evidente, em todos os cantos do mundo, dos EUA à Rússia, da Índia à Alemanha, do Canadá à Nigéria, da Suíça à Argentina, do México ao Brasil, para ficar nos casos mais relevantes. O entendimento da especificidade do federalismo passa pela análise de sua natureza, de seu significado e de sua dinâmica. Primeiramente, toda Federação deriva de uma situação federalista (BURGESS, 1993). Duas condições conformam este cenário. Uma é a existência de heterogeneidades que dividem uma determinada nação, de cunho territorial (grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, lingüístico, socioeconômico 8 O caso italiano é interessante pois, além de ter aumentado fortemente o poder dos entes locais desde pelo menos a década de 70, define em sua Constituição promulgada no pós Guerra (1948) uma série de instâncias de defesa do interesse das unidades subnacionais. Um exemplo disto é o Senado, composto por 315 parlamentares eleitos pelas Regiões – afora os senadores vitalícios, que são designados pelo presidente, e os ex-presidentes. Outro é a eleição para presidente, na qual participam, além dos membros do Parlamento, delegados das Regiões do país. Apesar da existência destes mecanismos de representação regional, a autoridade nacional é reconhecida constitucionalmente como superior, ao passo que os governos 18 (desigualdades regionais), cultural e político (diferenças no processo de formação das elites dentro de um país e/ou uma forte rivalidade entre elas). Qualquer país federativo foi assim instituído para dar conta de uma ou mais heterogeneidades. Se um país deste tipo não constituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional manterá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco de fragmentação9. Outra condição federalista é a existência de um discurso e de uma prática defensores da unidade na diversidade, resguardando a autonomia local, mas procurando formas de manter a integridade territorial num país marcado por heterogeneidades. Trata-se do princípio filosófico da Federação, na definição de Burgess: “O gênio da Federação está em sua infinita capacidade de acomodar a competição e o conflito em torno de diversidades que têm relevância política dentro de um Estado. Tolerância, respeito, compromisso, barganha e reconhecimento mútuos são suas palavras- chave, e ‘união’ combinada com ‘autonomia’ é sua marca autêntica” (BURGESS, 1993: 7). As coexistência destas duas condições é essencial para se montar um pacto federativo. Mas, o que é uma Federação? Segundo Daniel Elazar, "O termo 'federal' é derivado do latim foedus, o qual (...) significa pacto. Em essência, um arranjo federal é uma parceria, estabelecida e regulada por um pacto, cujas conexões internas refletem um tipo especial de divisão de poder entre os parceiros, baseada no reconhecimento mútuo da integridade de cada um e no esforço de favorecer uma unidade especial entre eles" (ELAZAR, 1987: 5). Em outras palavras, a Federação é um pacto entre unidades territoriais que escolhem estabelecer uma parceria, conformando uma nação, sem que a soberania seja concentrada num só ente, como no Estado Unitário, ou então em cada uma das partes,como na Associação entre Estados e mesmo nas Confederações. A especificidade do Estado Federal, subnacionais, segundo a lei, participam por uma via concorrente e secundária do exercício da atividade governamental (Cf. SPREAFICO, 1992: 372). 9 Exemplos de heterogeneidade são os mais variados: o Canadá (heterogeneidades lingüísticas), a Índia (diversidades étnicas, lingüísticas e socioeconômicas), Brasil e Argentina (diferenças econômicas regionais e entre as elites políticas locais), para ficar em alguns casos. Ademais, todo país grande tem a questão federalista batendo à sua porta – Estados Unidos, Canadá, Brasil, Índia, Indonésia, Paquistão, Austrália, Rússia e mesmo a China, que embora não seja (ainda) uma Federação, contém uma diversidade de situações sociais misturada com a complexidade geográfica, o que cria um ambiente marcado por heterogeneidades explosivas. 19 em termos de distribuição territorial do poder, é o compartilhamento da soberania entre o Governo Central - chamado de União ou Governo Federal - e os governos subnacionais. O princípio da soberania compartilhada deve garantir a autonomia dos governos e a interdependência entre eles. Trata-se da fórmula classicamente enunciada por Daniel Elazar: self-rule plus shared rule. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que os níveis intermediários e locais detêm a capacidade de autogoverno como em qualquer processo de descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político, legal, administrativo e financeiro, mas sua força política vai além disso. A peculiaridade da Federação reside exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais - sejam estados, províncias, cantões ou até municípios, como no Brasil. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do pacto político- territorial. Ressalte-se que o Poder Nacional deriva de um acordo entre as partes, ao invés de constitui-las. Assim, a descentralização em Estados Unitários pode até repassar um efetivo poder político, mas este processo sempre provém do Centro e não institui direitos de soberania aos entes subnacionais. Os governos subnacionais também têm instrumentos políticos para defender seus interesses e direitos originários, quais sejam, a existência de Cortes constitucionais, que garantem a integridade contratual do pacto originário; uma Segunda Casa Legislativa representante dos interesses regionais (Senado ou correlato); a representação desproporcional dos estados/províncias menos populosos (e muitas vezes mais pobres) na Câmara baixa; e o grande poder de limitar mudanças na Constituição, criando um processo decisório mais intrincado, que exige maiorias qualificadas, e em muitos casos se faz necessária a aprovação dos Legislativos estaduais ou provinciais. E mais: alguns princípios básicos da Federação não podem ser emendados em hipótese alguma. Sobre este último ponto, é interessante notar que no Brasil o federalismo é considerado cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4), isto é, não pode ser objeto de Emenda constitucional, o que igualmente acontece na Alemanha, uma vez que o artigo 79, alínea 3 da Lei Fundamental torna a Federação um princípio inatingível e inalterável. Nos EUA, o contrato federativo representado pela Constituição cria uma estrutura na qual os estados e a União são "indestrutíveis". 20 Como bem constatou Alfred Stepan, toda Federação restringe o poder da maioria (demos constraining), consubstanciado na esfera nacional. Porém, o federalismo precisa igualmente responder à questão da interdependência entre os níveis de governo. A exacerbação de tendências centrífugas, da competição entre os entes e do repasse de custos do plano local ao nacional são formas que devem ser atacadas em qualquer experiência federativa, sob o risco de se enfraquecer a unidade político-territorial ou de torná-la ineficaz para resolver a "tragédia dos comuns" típica do federalismo, vinculada a problemas de heterogeneidade. O fato é que a soberania compartilhada só pode ser mantida ao longo do tempo caso se estabeleça uma relação de equilíbrio entre a autonomia dos pactuantes e a interdependência entre eles. A busca da interdependência é uma tarefa que enfrenta pelo menos cinco desafios: o caráter matricial das Federações, a dupla cidadania presente no federalismo democrático, o pluralismo intrínseco a essa forma de organização político-territorial do poder, a necessidade dos checks and balances entre os níveis de governo e o problema da coordenação federativa. Em primeiro lugar, a interdependência federativa não pode ser alcançada pela mera ação impositiva e piramidal de um Governo Central, tal qual num Estado Unitário, pois uma Federação supõe uma estrutura mais matricial, sustentada por uma soberania compartilhada - aliás, como dito antes, é por isso que no federalismo há União (ou o Governo Federal) e não Governo Central. É claro que as esferas superiores de poder estabelecem relações hierárquicas frente às demais, seja em termos legais, seja por conta do auxílio e financiamento às outras unidades governamentais. O Governo Federal tem prerrogativas específicas para manter o equilíbrio federativo, e os governos intermediários igualmente detêm forte grau de autoridade sobre as instâncias locais ou comunais. Só que a singularidade do modelo federal está na maior horizontalidade entre os entes, devido aos direitos originários dos pactuantes subnacionais e à sua capacidade política de proteger-se. Em poucas palavras, processos de barganha afetam decisivamente as relações verticais num sistema federal. Em segundo lugar, a população de uma democracia federativa possui uma dupla cidadania: a individual e a territorial, cada qual representada por mecanismos políticos distintos. Vale ressalvar que, citando novamente Stepan, "em uma Federação democrática 21 os cidadãos deve ter identidades políticas duplas, mas complementares" (STEPAN, 1999: 202). Criar uma relação de complementaridade entre os interesses e direitos locais e a perspectiva nacional é outro desafio que todo Estado Federal deve enfrentar. As Federações, ademais, são marcadas intrinsecamente pela diversidade e pelo conflito. A obtenção de padrões de interdependência não pode ser resultado da eliminação do pluralismo que é subjacente ao modelo federativo. De modo que as parcerias intergovernamentais não podem ser frutos do domínio de uma instância contra a autonomia de outra ou das demais. Destacam-se aqui o respeito mútuo e, novamente, o papel da barganha nas relações entre os níveis de governo. Desde a invenção do federalismo moderno nos Estados Unidos, esta forma de organização político-territorial do poder pressupõe a existência de controles mútuos entre os níveis de governo - trata-se de um dos checks and balances da democracia madisoniana. O objetivo deste mecanismo é a fiscalização recíproca entre os entes federativos para que nenhum deles concentre indevidamente poder e, desse modo, acabe com a autonomia dos demais. Assim sendo, a busca da interdependência numa Federação democrática tem de ser feita conjuntamente com o controle mútuo. O desenvolvimento recente dos Estados modernos levou ao crescimento do papel dos Governos Centrais, especialmente no que se refere à expansão das políticas sociais. No caso dos sistemas federais, onde vigora uma soberania compartilhada, constituiu-se um processo negociado e extenso de shared decision making, ou seja, de compartilhamento de decisões e responsabilidades. A interdependência enfrenta aqui o problema da coordenação das ações de níveis de governo autônomos,aspecto chave para entender a produção de políticas públicas numa estrutura federativa contemporânea. Em seu trabalho sobre os Estados de Bem Estar Social em países unitários e federativos, Paul Pierson (1995) revela que no federalismo as ações governamentais são divididas entre unidades políticas autônomas, as quais, porém, têm cada vez mais interconexão, por conta da nacionalização dos programas e mesmo da fragilidade financeira ou administrativa de governos locais e/ou regiões. O dilema do shared decision making surge porque é preciso compartilhar políticas entre entes federativos que, por natureza, só entram neste esquema conjunto se assim o desejarem. Desse modo, a montagem dos Welfare States nos países federativos é bem mais complexa, envolvendo jogos de 22 cooperação e competição, acordos, vetos e decisões conjuntas entre os níveis de governo. O desafio posto por esta questão foi bem resumido por Pierson: “No federalismo, dada a divisão de poderes entre os entes, as iniciativas políticas são altamente interdependentes, mas são, de forma freqüente, modestamente coordenadas” (PIERSON, 1995: 451). Para garantir a coordenação entre os níveis de governo, as Federações devem, primeiramente, equilibrar as formas de cooperação e competição existentes. Antes que um mal entendido se estabeleça, partimos da premissa, já enunciada anteriormente, de que o federalismo é intrinsecamente conflitivo. Concordamos, neste sentido, com Deil Wright, segundo o qual o conflito não é um estado patológico de uma estrutura federal; mais do que isso, o autor ressalta que a cooperação e a competição não são pólos opostos de uma escala, já que a presença do primeiro não significa a ausência do segundo, e vice-versa (WRIGHT, 1997: 27). Seguindo esta linha argumentativa, Paul Pierson assim define o funcionamento das relações intergovernamentais no federalismo: "Mais do que um simples cabo de guerra, as relações intergovernamentais requerem uma complexa mistura de competição, cooperação e acomodação" (PIERSON, 1995: 458). Daí toda Federação ter de combinar formas benignas de cooperação e competição. No caso da primeira, não se trata de impor formas de participação conjunta, mas de instaurar mecanismos de parceria que sejam aprovados pelos entes federativos. O modus operandi cooperativo é fundamental para otimizar a utilização de recursos comuns, como nas questões ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem mais de uma jurisdição (caso dos transportes metropolitanos); para auxiliar governos menos capacitados ou mais pobres a realizarem determinadas tarefas; para integrar melhor o conjunto de políticas públicas compartilhadas, evitando o jogo de empurra entre os entes - como no episódio da dengue, quando União, estados e municípios procuravam definir o(s) outro(s) como culpado(s) em relação a esta questão. Ainda é peça-chave no ataque a comportamentos financeiros predatórios, que repassam custos de um ente à nação, como também na 23 distribuição de informação sobre as fórmulas administrativas bem sucedidas, incentivando o associativismo intergovernamental10. Não se pode esquecer, também, que o modelo cooperativo contribui para elevar a esperança quanto à simetria entre os entes territoriais, fator fundamental para o equilíbrio de uma Federação. No entanto, fórmulas cooperativas mal dosadas trazem problemas. Isto ocorre quando a cooperação confunde-se com a verticalização, resultando mais em subordinação do que em parceria, como muitas vezes já aconteceu na realidade latino- americana, de forte tradição centralizadora. É também perigosa a montagem daquilo que Fritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap (armadilha da decisão conjunta), bastante visível no caso alemão, mas que se repete igualmente em outras experiências. Nesta estrutura, todas as decisões são o máximo possível compartilhadas e dependem da anuência de praticamente todos os atores federativos. Sem desmerecer os ganhos de racionalidade administrativa, tende-se à uniformização das políticas, processo que pode diminuir o ímpeto inovador dos níveis de governo, enfraquecer os checks and balances intergovernamentais e dificultar a responsabilização da administração pública. As Federações requerem determinadas formas de competição entre os níveis de governo. Primeiro, por conta da importância dos controles mútuos como instrumento contra a dominância (ou tirania, nos termos de Madison) de um nível de governo sobre os demais. Além disso, a competição federativa pode favorecer a busca pela inovação e melhor desempenho das gestões locais, já que os eleitores podem comparar a performance dos vários governantes, uma das vantagens de se ter uma multiplicidade de governos. A concorrência e a independência dos níveis de governo, por fim, tendem a evitar os excessos contidos na "armadilha da decisão conjunta", bem como o paternalismo e o parasitismo causados por certa dependência em relação às esferas superiores de poder. Há uma série de problemas advindos de competições desmedidas. O primeiro se refere ao excesso de concorrência, que afeta a solidariedade entre as partes, ponto fulcral do equilíbrio federativo. Quanto mais heterogêneo é um país, em termos socioculturais ou 10 Neste aspecto, cabe lembrar a experiência dos EUA. O crescimento da intervenção estatal impulsionado pela Era Roosevelt aconteceu num momento em que as máquinas locais estavam infestadas de clientelismo e corrupção e careciam de capacidades institucionais para realizar a contento políticas públicas mais amplas. Em tal contexto, as associações horizontais entre os níveis de governos tiveram um papel essencial na transformação do federalismo norte-americano, repassando informações sobre como alguns governos subnacionais tinham modificado sua antiga estrutura (ZIMMERMAN, 1996). 24 socioeconômicos, mais complicada é a adoção única e exclusiva da visão competitiva do federalismo. Países como a Índia, o Brasil ou a Rússia devem por sua natureza evitar uma disputa desregrada entre os entes. A competição em prol da inovação também pode ter efeitos negativos, mais particularmente no terreno das políticas sociais, como demonstrou o livro de Paul Peterson (The Price of Federalism,1995) sobre a experiência recente dos governos estaduais norte- americanos. O autor percebeu o fortalecimento de uma visão acerca do federalismo: a de que os cidadãos "votam com os pés"11, ou seja, podem escolher o lugar que otimize melhor a relação entre carga tributária e políticas públicas. Diante disso, os estados ficaram entre duas opções: ou forneciam um cardápio amplo de proteção social, tendo como efeito um Welfare magnets, isto é, mais pessoas, sobretudo as mais pobres, iriam morar nestes lugares, aumentando os gastos públicos e, em tese, diminuindo a competitividade econômica daquele lugar; ou, ao contrário, os governadores deveriam constituir uma estrutura mínima de prestação de serviços públicos e baixar os impostos, reduzindo com isso a afluência dos mais pobres àquela região e, novamente em tese, elevando a competitividade econômica e a oferta de emprego do ente federativo que optasse por esta via – é o que Peterson denomina race to the bottom. Entre o efeito de Welfare magnets e o race to the bottom, muitos governadores nos EUA estão escolhendo a segunda opção, de modo que o aumento da competição vem acompanhado da redução de políticas de combate à desigualdade. Em suma, o modelo competitivo levado ao extremo piora a questão redistributiva. O federalismo puramente competitivo vem estimulando, ainda, a guerra fiscal entre os níveis de governo. Trata-se de um leilão que exige mais e mais isenções às empresas, em que cada governo subnacional procura oferecer mais do que o outro, geralmente sem se preocupar com a forma de custear este processo. Ao fim e ao cabo,a resolução financeira desta questão toma rumos predatórios, seja acumulando dívidas para as próximas gerações, seja repassando tais custos ao nível federal e, por tabela, à nação como um todo. A diminuição da solidariedade entre os entes federativos, a menor preocupação com a eqüidade e a realização de disputas predatórias são defeitos de certos comportamentos 11 Esta visão foi formulada originalmente por Charles Tiebout (1956). 25 competitivos no federalismo. Os laços que unem os pactuantes afrouxam-se, colocando a autonomia individual - especialmente a dos mais fortes - contra a interdependência. O desafio é encontrar caminhos que permitam a melhor adequação entre competição e cooperação, procurando ressaltar seus aspectos positivos em detrimento dos negativos. Recorrendo mais uma vez à argumentação precisa de Daniel Elazar: "(...) todo sistema federal, para ser bem sucedido, deve desenvolver um equilíbrio adequado entre cooperação e competição, e entre o governo central e seus componentes" (ELAZAR, 1993: 193 – grifo meu). A coordenação federativa, por fim, depende muito do papel dos níveis superiores de governo frente à descentralização, especialmente da ação do Governo Federal. Por um lado, porque em vários países os governos subnacionais têm problemas financeiros e administrativos que dificultam a desconcentração de atribuições. Por outro, porque a União e outras instâncias federativas precisam arbitrar conflitos políticos e de jurisdição, além de incentivar a atuação conjunta e articulada entre os níveis de governo no terreno das políticas públicas. Parafraseando o conceito elaborado por Flávio Rezende para analisar reformas administrativas12, pode-se dizer que a descentralização numa Federação pode padecer de "falhas seqüenciais". Ou seja, se não houver ações coordenadoras, particularmente da União mas também dos estados, o processo descentralizador tende a ter piores resultados na prestação dos serviços públicos. O ponto essencial desta questão é que o Governo Federal precisa reforçar seu papel coordenador ante estas "falhas seqüenciais", porém não pode fazê-lo contra os princípios básicos do federalismo, como a autonomia e os direitos originários dos governos subnacionais, a barganha e o pluralismo associados ao relacionamento intergovernamental e os controles mútuos. A resposta para este dilema, em síntese, está na criação de redes federativas, e não de hierarquias centralizadoras. A partir da definição histórico-conceitual de descentralização e de federalismo, faremos a seguir a análise do caso brasileiro. Sabendo que não há um modelo único de relações intergovernamentais, pois as Federações são bastante "elásticas" (ELAZAR, 1987: 11), tentaremos entender a singularidade do Brasil. Mais especificamente, após uma discussão das trajetórias de nossa estrutura federativa, o objetivo primordial é mostrar como 12 Conforme REZENDE, 2002. 26 o Governo Federal, na Era FHC, lidou com a questão da coordenação entre os níveis de governo, tendo em conta, principalmente, o tema da descentralização. III- A trajetória da Federação brasileira: da fundação ao ocaso do regime militar "Tivemos União antes de ter estados, tivemos o todo antes das partes" (Rui Barbosa) O objetivo desta seção é analisar brevemente a evolução do federalismo brasileiro até o golpe de 1964, procurando traçar seus caminhos básicos. Para tanto, partimos da seguinte hipótese: há dois momentos importantes para a estruturação da nossa estrutura federativa até a recente democratização do país, o da formação inicial (1) e o da criação e evolução do chamado Estado varguista (2). Cada um destes episódios estabeleceu aspectos que influenciam os passos das trajetórias posteriores – ou seja, uma relação de path dependence (PIERSON, 2000). A questão federativa teve um papel fundamental na formação do Estado brasileiro. Antes mesmo de o país tornar-se uma Federação, o conflito entre o Poder Central e as elites regionais tinha sido um dos pontos cruciais na definição dos parâmetros da construção nacional. Mesmo tendo alcançado um inegável sucesso em sua conquista ultramarina, a colonização portuguesa não logrou criar uma centralização político-administrativa capaz de aglutinar e ordenar a ação dos grupos privados instalados ao longo do território brasileiro (CARVALHO, 1993:54). O poder público era, no mais das vezes, o domínio das oligarquias locais, poucas vezes atingidas por medidas centralizadoras e autoritárias da Metrópole, predominando o modus operandi localista. Nascia aqui um dos ingredientes da situação federalista brasileiro: o sentimento de autonomia. O outro foi o crescimento da desigualdade entre as regiões do país ao longo da história. Nossos pais fundadores sabiam da existência de uma situação federalista no Brasil, mas temiam que ela gerasse desunião – as duas revoltas pernambucanas, em 1817 e 1824, eram o retrato desta possibilidade. Como remédio, optou-se pela via do Estado Unitário e monárquico. Esse arranjo institucional foi escolhido pela elite central em razão de seu 27 temor quanto a uma possível repetição aqui da fragmentação territorial ocorrida na América hispânica. Cabe lembrar que havia quatro vice-reinados na América espanhola, dos quais se originaram dezessete países. Após as sangrentas lutas do período regencial, conformou-se um modelo centralizador que vigorou, firmemente, por quase cinqüenta anos13. O paulatino enfraquecimento de Dom Pedro II, a perda do apoio de importantes setores políticos desde o final da Guerra do Paraguai e, como pá de cal, a abolição da escravatura, foram fatores que solaparam as bases políticas do Império. Além destes, a insatisfação crescente das elites locais com o excesso de centralização teve um peso histórico muito grande. Os governantes das províncias eram indicados pela cúpula do Poder central, que normalmente não só escolhia pessoas de outras regiões como estabeleceu uma alta rotatividade no cargo. Por isso, a luta pelo fim da monarquia respondeu, em grande medida, mais aos anseios por descentralização de poder do que por uma republicanização da vida política. Deste modo, a república brasileira não só nasceu colada a um certo ideal federativo como a ele foi subordinada. A criação da Federação teve sua inspiração no modelo norte-americano, mas sua conformação foi bastante diferente. Primeiro porque no momento de constituição do federalismo brasileiro partiu-se de um Estado Unitário fortemente centralizado para um modelo descentralizador de poder. A partir desta característica, nossa experiência estaria mais para o modelo do hold together, em que uma união anterior desconcentra poder, tal qual a construção federativa da Índia, do que para o do come together, a junção entre partes antes separadas que distinguiu o protótipo estadunidense, segundo a terminologia utilizada por Alfred Stepan (1999). É neste sentido que Rui Barbosa, ao comparar nossa realidade com a norte- americana, afirmou: "Não somos uma Federação de povos até ontem separados e reunidos de ontem para hoje. Pelo contrário, é da União que partimos. Na União nascemos" (apud TORRES, 1961: 22). 13 O longo período centralizador não significou o fim da discussão a respeito de nossa organização político-territorial do poder. O célebre debate entre Visconde do Uruguai, defensor da centralização política e da descentralização administrativa, e Tavares Bastos, entusiasta do modelo norte-americano, teve um impacto enorme, mostrando que a situação federalista ainda se fazia presente (NUNES FERREIRA, 2000). 28 O caso brasileiro, no entanto, também diferencia-se dos modelos de hold together, os quais buscavam descentralizar poder econcomitantemente fortalecer a unidade nacional, como também do protótipo norte-americano, porque neste era igualmente essencial a idéia hamiltoniana de União, isto é, da criação de um nova estrutura que assegurasse a associação entre as partes. No nascedouro da República Velha, Os líderes locais lutaram pela Federação para aumentarem seu poderio interno e, sobretudo, para escolher autonomamente o governador de Estado. Como bem percebeu João Camilo de Oliveira Torres: "Afinal, federalismo entre nós quer dizer apego ao espírito de autonomia; nos Estados Unidos, associação de estados para defesa comum. (...) A federação [brasileira] era o nome, a figura e o rótulo ideológico para esta aspiração concreta e objetiva: a eleição dos presidentes de província " (TORRES, 1961: 153). Neste projeto federativo, portanto, só cabia a busca do autogoverno e pouco espaço sobrava para a interdependência. Isto se agravou por conta da forte assimetria e hierarquização existente entre os estados, com São Paulo e Minas Gerais detendo um poder e uma riqueza muitos maiores do que a grande maioria das unidades, o que dificultava o equilíbrio horizontal na Federação. Além disso, as oligarquias dominavam a política local na República Velha, enfraquecendo qualquer ideal republicano e democratizador do sistema político. O governador de estado tornou-se o centro deste sistema oligárquico, no qual imperava o unipartidarismo, as eleições irregulares, a fragilidade dos governos locais em relação à máquina estadual, a ausência de espaço para a oposição, a falta de mecanismos de fiscalização governamental e uma sociedade basicamente rural e com pouquíssima autonomia e capacidade para controlar de fato os governantes (LEAL, 1986; LESSA, 1988; ABRUCIO, 1998). Tratava-se, no Brasil, de um modelo muito distante do republicanismo proposto pelos founding fathers norte-americanos, de modo que a fundação da Federação descolou-se aqui do ideal republicano. O caráter centrífugo (1), o federalismo assimétrico e hierárquico (2) e a oligarquização do sistema político no plano subnacional, com o respectivo fortalecimento dos governadores e de suas máquinas estaduais (3), constituem as três características básicas do modelo federativo brasileiro em seu nascedouro. Esta configuração estruturou caminhos que influenciaram o desenvolvimento político e econômico posterior. O peso dos 29 “caciques regionais”, a desigualdade regional e a criação de um modelo político refratário à republicanização nos níveis estadual e municipal são as maiores conseqüências do modo como a Federação foi fundada no Brasil. O ideário da Revolução de 30 posicionava-se firmemente contra o modelo da política dos governadores e do federalismo oligárquico. Suas origens, no tocante à temática político-territorial, estavam na nacionalização do discurso político desde os anos '1920, principalmente por parte das Forças Armadas, e na crise da aliança do "café com leite", com o questionamento do predomínio paulista. A partir destas pressões, o varguismo anunciava-se como um momento disruptivo e fundador de uma nova ordem federativa brasileira; em resumo, um verdadeiro momento "maquiaveliano" (POCOCK, 1975). Entretanto, é preciso ressaltar que as mudanças foram gradativas, não rompendo de imediato e por completo com as bases iniciais da Federação, além de sua evolução não ter ocorrido de maneira linear e completamente coerente. Soma-se a isso a necessidade de se constituir um Estado de compromisso (DRAIBE, 1985), a partir do qual vários grupos conviveram no condomínio do poder. O modelo varguista transformou o Estado nacional, em especial as estruturas do Executivo Federal, no articulador de um projeto de desenvolvimento capitalista industrial, sob a égide da ideologia do nacional-desenvolvimentismo, e no principal organizador das demandas sociais, a partir de um tipo de corporativismo (nas relações capital/trabalho) e de clientelismo (nas relações governantes e governados), os quais serviram como instrumentos de uma "modernização conservadora". Conformou-se, por esta via, o processo de state and national building do Brasil moderno. Este modelo estatal perpassou governos e regimes diferentes. Como bem notou Aspásia Camargo, “(...) tivemos uma Era de Vargas com Vargas, uma Era de Vargas sem Vargas e, finalmente, uma Era de Vargas contra Vargas, na medida em que a hostilidade do regime de 1964 à sua herança populista não os impediu de reeditar estrutura semelhante ao modelo autoritário que ele havia implantado, com os mesmos objetivos nacional- desenvolvimentistas” (CAMARGO, 1993: 309). Como este modelo varguista, alicerce de regimes e períodos distintos e que sobreviveu algo em torno de cinqüenta anos, afetou e foi afetado pelo federalismo? Há quatro importantes aspectos que devem ser observados na relação entre o varguismo e o 30 federalismo até o golpe de 64: a) a centralização do poder e a consolidação do Estado nacional (state and national building); b) a nova dinâmica regional do poder; c) as mudanças ocorridas no período 46-64; d) os padrões de relações intergovernamentais verticais e horizontais que foram construídos. A primeira tendência importante foi a da centralização do poder. Pelo lado econômico deste projeto, a ação centralizada no Executivo Federal procurou sustentar o desenvolvimento por instrumentos estatais de fomento e atuação direta no mercado, via empresas públicas. Pelo lado social, procurou constituir gradativamente uma estrutura de políticas públicas, na maioria sustentadas e executadas pela União. E, por fim, pelo lado administrativo, criou bolsões de meritocracia a partir do DASP, os quais, apesar de conviveram com núcleos cartoriais e clientelistas, foram essenciais na modernização do país. Estes três aspectos tiveram relações conflituosas com os governos subnacionais e suas elites. No que tange à intervenção econômica, a atuação direta do Governo Federal foi crescendo ao longo do período, mas teve em alguns casos de ser compatibilizada com as estruturas estaduais, o que gerou uma dificuldade de coordenação federativa que pode ser resumida na seguinte frase: ou se estabeleceu um modelo fragmentado e sem comunicação entre as esferas de governo – como no caso do setor elétrico – ou a União, de cima para baixo e geralmente de forma autoritária, montou um modelo vertical e hierárquico de atuação no plano subnacional. No aspecto social, as primeiras políticas de Welfare, com algumas exceções, foram não só financiadas pela União mas normalmente por ela executadas. Na verdade, a temática social presente no varguismo do período de 30 a 64 esteve mais vinculada ao corporativismo e à sua concepção de cidadania regulada do que a um padrão orgânico de políticas sociais. Mas é na questão político-administrativa que houve os maiores problemas. Por um lado, porque certo grau de patrimonialismo permaneceu no plano federal, e, por outro, pois não houve a modernização da estrutura administrativa dos estados Utilizando novamente a perspectiva comparada, é interessante analisar o processo de centralização e construção do state and national building nas Federações brasileira e norte-americana. Nos EUA, o chamado modelo rooseveltiano aumentou o poder do Governo Federal de forma democrática, consultando e negociando com os outros Poderes 31 (SCHLESINGER, 1958). No caso brasileiro, por sua vez, a centralização do poder ocorreu em pleno autoritarismo do Estado Novo e, com o fim deste, o período 46-64 foi marcado pela dificuldade de estabelecer padrões mais cooperativos nas relações intergovernamentais e entre os Poderes. Ainda no que se refere à experiência estadunidense, lá foram criadas Comissões Nacionais de Reforma das estruturas político-administrativas dos estados, que num primeiro momento (década de 30) atingiram o Poder Executivo, para mais adiante serem implementadas
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