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O brilho da infelicidade Kalimeros

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O brilho da inFelicidade 
KALIMEROS 
Escola Brasileira de Psicanálise 
Rio de Janeiro 
Apresentação: 
Lenita Bente.r 
facebook.com/lacanempdf
Copyright © 1998, Kalimeros 
Organização Geral 
Lenita Bentes 
Ronaldo Fabião Gomes 
Conselho Editorial 
Clara Lúcia !nem, Eliane Schermann, Ftlippo Olivieri, 
Lenita Bentes, Maria Anita Carneiro Ribeiro 
Maria Beatriz Barra, Mirta Zbrun, Ronaldo Fabião Gomes 
Projeto Gráfico e Preparação 
Contra Capa 
O brilho da infelicidade I Kalimeros - Escola Brasileira de Psicanálise -
Rio de Janeiro. Lenita Be_ntes e Ronaldo Fabião Gomes (Orgs.) - Rio de 
Janeiro. Contra Capa Livraria, 1998. 
272 p.; 14 x 21 cm 
ISBN 85-860 1 1-09-6 
1. Psicanálise. 2. Toxicomanias. 3. Alcoolismo. 1. Bentes, Lenita, org. li. 
Gomes, Ronaldo Fabião, org. Ili. Kalimeros. Escola Brasileira de Psica­
nálise. IV. Título. 
CDD 150.195 
1998 
Todos os direitos desta edição reservados à 
Contra Capa Livraria Ltda. 
<ccapa@easynet.com. br> 
Rua Barata Ribeiro, 370 - Loja 208 
22040-000 - Rio de Janeiro - RJ 
Tel (55 21) 236-1999 
Fax (55 21) 256-0526 
Apresentação 09 
Lenita Bentes 
SUMÁRIO 
Toxicomanias: saber e gozo 
Uma passagem clandestina 15 
Celso Rcnnó Lima 
A mordaça infernal 21 
Núcleo de Pesquisa em Toxicomanias e Alcoolismo 
Clínica do supereu e as toxicomanias 31 
Daniel S illitti 
Os novos objetos de gozo 37 
Gleuza Maria M. Salomon 
Ética 
Sobre a segregação 43 · 
Colette S oler 
O mal-estar na cidade: segregação e toxicomania 55 
Cláudia HensdJel de Lima & Antônio José Alves Júnior 
Toxicomanias e diversidades clínicas 
A nomeação e o recurso às drogas ou a operação de nomear no 
discurso analítico 65 
Ernesto Sinatra 
O ato de consumir drogas e a realidade virtual 79 
Célio Garcia 
O social e as novas formas do sintoma: as toxicomanias 91 
Fernando Teixeira Grossi & Cristina Sandra Pinelli Nogueira 
O mal-estar das toxicomanias: a questão do desejo 
Eclipse do desejo 99 
Clara Lucia lnem 
Toxicomania - um gozo cínico? 107 
Ana Martha Wilson Maia 
O inferno do desejo e o deserto do gozo · 117 
Maria Anita Carneiro Ribeiro 
Identidade do toxicômano e Função Paterna 
Adolescência e droga: um caso 125 
Sônia Alberti 
O lugar variável do objeto droga 13 5 
Carlos Genaro Cauto Fernández 
Toxicomanias: onde opera o· analista? 141 
Maria Luiza Mota Miranda 
Entrada em tratamento / Sintoma analítico? 
Uma experiência vazia 149 
Maurício Tarrab 
Segredos, danos e perdas: um caso clínico 157 
Marcos Baptista 
Atrás da droga, o vazio das mulheres 167 
Andréa Brunetto 
Algumas proposições sobre o fenômeno toxicomaníaco 
para um tratamento possível das toxicomanias 
A psicanálise diante da toxicomania 173 
Fillipo 0/ivieri 
O objeto droga e o objeto criança: algumas considerações 179 
Elisabeth da Rocha Miranda 
Angústia, sintoma e objeto droga 187 
Mirta Zbrun 
A toxicomania e a demanda 191 
Gilberto Rudeck da Fonseca 
Alcoolismo e gozo 
A função do teatro, do álcool e da mendicância na economia 
pulsional 203 
Mi/a Palombini de Alencar 
Se o álcool comparece, o sujeito desaparece 211 
Maria Beatriz Barra 
Toxicomanias: o recurso na psicose 
Toxicomania e suplência 219 
Antônio Beneti 
A·morte anunciada: morte, ato e significação 
Amor à into-x-icação 227 
Eliane Schermann 
Psicossomática: toxicomanias e corpo 
Toxicomania e FPS: aproximações 237 
Núcleo de Pesquisa em Psicossomática: Psicanálise e Medicina 
Descriminalização e legalização 
Drogas: a irracionalidade da criminalização 249 
Maria Lúcia Karam 
APRESENTAÇÃO 
Poucas são as vezes· em que encontramos nos textos de 
Freud e Lacan referências sobre as toxicomanias ou o alcoolismo. 
Entretanto a genialidade de ambos fez do pouco que disseram pre­
ciosas revelações. 
Freud retoma do poeta Bockling uma observação: a que 
designava a ligação do bebedor com o vinho como o modelo do 
casamento feliz, pois "por não comportar nenhuma alteridade se­
xual ao seu programa, tal casamento outorga àquele que com ele se 
compromete, a certeza de nunca correr o risco de ser acusado pelo 
parceiro de ter usurpado seus direitos ou ter falhado em seus deve­
res" (Lecoeur, 1992, p. 20). Aqui não se trata de, ao oferecer-se à 
conquista, poder obter a recusa. A satisfação obtida conduz a um 
gozo auto-induzido, monocultivado e imediato. Trata-se do gozo 
do.Mesmo. 
Na segunda de suas "Contribuições à psicologia da vida 
amorosa" (1912), Freud trata a "relação do bebedor com o vinho" 
como exceção tanto para as modalidades da escolha do objeto 
quanto para as condições da relação de amor. Tanto a clivagem 
mãe-puta, significações contra o incesto, quanto as condições que 
este produz não comparecem na relação do bebedor com o vinho; 
esta relação faz exceção. Dito de outro modo, esta relação não 
procede de nenhuma clivagem e nem de nenhuma disjunção entre 
o amor e o desejo. O laço com o vinho é tão bem estabelecido que 
O Brilho da InFeliddade 
obtura as falhas às quais comumente o homem se apega. Nesta 
parceria o objeto não está fora de alcance; o sujeito goza de seu 
objeto de forma satisfatória, o que faz do bebedor um amante 
atípico: um amante saciado, satisfeito por seu objeto. 
A frase de Freud diz ter o bebedor substituído a mulher 
pelo vinho. Ele o colocou no lugar em que se teria visto confronta­
do com o abismo feminino. O vinho não é uma mulher. Uma 
mulher é Outra e o vinho é Um. Como Outra para o sujeito, ela 
aparece sendo do Outro; por exemplo, nos delírios de ciúme dos 
alcoolistas. Já o vinho é do sujeito e se sustenta como gozo do Um. 
Desejar uma mulher é ser causado por uma alteridade; o vinho é 
garantia contra a castração ao se apresentar como sendo o mesmo. 
Se uma mulher é um sintoma, afirma Lacan, é porque o 
homem nela crê, ou seja, crê que ela poderia dizer algo e que ele só 
teria que decifrar seus ditos como um sintoma. O sujeito alcoolista 
curto-circuita o objeto a naquilo que se refere às suas coordenadas 
lógicas, alojando-se em um discurso que carece de sua dialética pró­
pria, por não deixar lugar à falta. 
A lei não está ausente do Outro, mas a distância que dela 
mantém não atrapalha a busca do objeto, ignorando as suas restri­
ções. A lei não tendo validade, leva o sujeito a constituir um estatu­
to de exceção, visando se fazer esquecer como sujeito do desejo. A. embriaguez realiza o esquecimento. Trata-se do conhecido "Bebo 
para esquecer". 
Identificado ao mais-de-gozar, temporariamente as conse­
qüências da divisão são aliviadas. Conseqüências que "cabem" ao 
parceiro do alcoolista suportar, ora denunciando seus maleficios, 
ora provendo-o de seu produto, desse objeto em que há o sinal de 
um excesso do qual extrai um mais-de-gozar. 
O bebedor recria um corpo pleno - o que também faz o 
toxicômano - não recortado pela ação do significante. Esta é a 
sua crença: por seu ato reunir o sujeito ao corpo, anulando os efei-
10 
únita Bmlu 
tos da divisão subjetiva, banalizando-a. A ele falta mais um trago 
para recuperar o que lhe falta. Isola-se assim das variáveis da vida e 
em especial da vida amorosa em que o cortejar e o ser cortejado 
relançam o semi-dizer da palavra. 
''No tempo da embriaguez, utilizando o materna dos discur­sos proposto por Lacan, o estatuto do sujeito pode se escrever assim: 
Sujeito 
o 
Outro 
1 
O sujeito amordaçado está alienado ao discurso capitalista. 
Este sujeito visa um objeto que o anteparo da fantasia detém. Um 
mais-de-gozar sustenta o sujeito reduzido ao "eu", afirmando o 
poder do enunciado. Um sujeito satisfeito, sem sintomas, restrito a 
um corpo que goza" (Lecoeur, 1992, p. 52 e 61). 
$ S2 -----x----
s l ' a 
É pela simples razão do anteparo da fantasia não funcionar 
que não podemos dizer que as toxicomanias e o alcoolismo
sejam 
casos de.perversão, posto que a perversão supõe o uso da fantasia, 
e um uso muito específico. 
Se Freud falou do matrimônio feliz, Lacan nos disse que: 
"a droga é o que permite romper o casamento com o pipi" (1975). 
"Trata-se de uma formação de ruptura com o gozo fálico, cujas 
consequências são: 1) poder gozar sem a fantasia, 2) ser uma ruptura 
com o Nome-do-Pai que não implica em psicose; 3) faz surgir o gozo 
Uno como não sexual, pois o gozo sexual não é Uno; ele é fraturado, 
apreensível pela fragmentação do corpo." (Laurent, 1997, p. 19). 
Portanto, no alcoolismo, o objeto visado neste gozo infini­
to continua a ser o falo, razão pela qual o alcoolismo é tão bem 
tolerado, podendo-sé até observar uma certa cumplicidade social com 
11 
O Brilho do lnFelicidade 
o bebedor e seu heroísmo viril. No toxicômano, não é o objeto fálico 
o que está em causa, o que os torna exóticos e intoleráveis. 
Em que um matrimônio ou um divórcio pode contribuir 
para que daí se extraia a felicidade? Ou para que serve um marido? 
Já aí vislumbramos algo do brilho da infelicidade. ''A felicidade -
diz Freud - não se acha incluída no plano da criação" (1930). 
É preciso ser dois para fazer o amor (pelo menos dois) e é 
por isto que o coito, longe de abolir a solidão, a confirma. Os 
amantes o sabem. São os corpos que se tocam, que se amam, que 
gozam, que permanecem . . . Lucrécio o descreveu be�: "Essa fusão 
que se busca, às vezes freqüentemente, mas que nunca se encontra, 
ou se crê encontrar para logo depois se perder" (apud. Comte­
Sponville, 1997, p. 250-2). 
Daí o fracasso, sempre; a tristeza, tão freqüentemente. Eles 
queriam ser um só e ei-los mais dois do que nunca. "Da própria 
fonte dos prazeres - escreve magnificamente Lucrécio - surge 
não sei que amargor, que até nas flores sufqca o amante . . . Isso não 
prova nada contra o prazer, quando ele é puro, nada contra o amor, 
quando ele é verdadeiro, mas prova algo contra a fusão, que o 
prazer recusa exatamente quando acreditava alcançá-la. Post Coitum 
Omne Animal Triste ... " (ibid. ). Porque se vê novamente entregue a si 
mesmo, à sua solidão, à sua banalidade, a esse grande vazio do 
desejo nele desaparecido. Ou se escapa à tristeza, e se isso acontece, 
é pelo maravilhamento do prazer do amor, da gratidão, em suma, 
pelo encontro que supõe a dualidade; jamais pela fusão dos seres ou 
pela abolição das diferenças. Verdade do amor: mais vale fazê-lo do 
que sonhar. Dois amantes que gozam simultaneamente são dois praze­
res diferentes, um misterioso ao outro; dois espasmos, duas solidões. 
O corpo sabe mais sobre o amor do que os poetas. Men­
tem-nos sobre o corpo. De que têm medo? De que querem se 
consolar? De si mesmos, desta grande loucura do desejo (ou de sua 
pequenez a posteriori?), desse animal neles, deste ábismo tão de-
12 
Lenita Bmtes 
pressa preenchido, dessa paz que de repente parece a morte . . . A 
solidão é nosso quinhão e esse quinhão é o corpo. 
Sócrates recolhe a verdade sobre o amor de uma mulher, 
Diotima: "O amor não é um Deus nem Deus. De fato, todo amor é 
amor a alguma coisa, que se deseja e que falta" (ibid.) 
Entretanto sabemos que por mais próprio que sejam, nem o in­
consciente nem o corpo são nossos. Temos um corpo que deve ser simbo­
lizada O toxicômano pensa que não está em outra parte senão no corpo 
O saber é inconsciente, causa da perda da universalidade 
do gozo no ser falante. Põe em jogo um lugar que é Outro sexo e, 
como tal, fonte de equívocos, um lugar em que se diz a sexualidade; 
não o sexo que o exclui. 
Como manejar a cura para que estes sujeitos se disponham 
a trocar gozo por amor? Como fazer para que a demanda de feli­
cidade, na qual se empenham, desvie-se desse objeto de satisfação e 
nos seja dirigida? 
"Se o significante para explicar o todo não existe e portan­
to não é a droga que faz o toxicômano, mas o toxicômano que faz 
a droga" no dizer de Hugo Freda (1987), trata-se de desintoxicar 
não da-droga, mas sim a droga como significante a partir do qual o sujeito se nomeia, permanecendo entretanto anônimo, pois "quan­
do ele sonha com um gozo sem sexo, o corpo do Outro lhe faz 
signo para lembrar-lhe que só a relação com a castração faz dele 
um mamífero diferente dos demais" (Freda, 1996, p. 108). 
Desintoxicar a droga quer dizer desintoxicar não de uma 
substância, mas de um gozo que faz viver a esperança de um mun­
do em que a reprodução é sem sexo. O que ganharia o sujeito com 
isso? Ao abandonar sua "felicidade", encontrar em sua intimidade 
os contornos da causa que o determina e deixar de ser o objeto do 
Outro, do mercado do capital perverso. "O homem está casado 
com o falo. Não há outra mulher que isso" (Lacan, 1974). 
13 
O Brilho da InFelicidade 
É neste sentido que procuramos reunir no presente livro o 
desenvolvimento das seguintes linhas de pesquisa: a droga como 
"formação de ruptura" e os efeitos dessa ruptura nas estruturas 
clínicas, suas modalizações em cada sujeito, as dificuldades da entra­
da em análise, os impasses durante o tratamento, a "foraclusão 
standard" do sujeito do inconsciente que o discurso da ciência pode 
produzir, a toxicomania cruzada, o recurso frente à psicose, a ética, 
o discurso capitalista e a função paterna, a descriminalização e a 
legalização. Esperamos assim seguir a orientação de Lacan - "Me­
lhor que renuncie quem não possa unir a seu horizonte a subjetivi­
dade de sua época" . 
Lenita Bentes 
Referências Bibliográficas 
COMTE-SPONVILLE, A. Pequeno tratado dai grandei virt11dei. São Paulo, 
Martins Fontes,. 1997. 
FREUD. S. "Contribuições à psicologia da vida amo.rosa" (1912). Em: Obrai 
rompletai, vol. XI. Rio de Janeiro, Imago, 1980. 
____ . "O mal-estar na civilização (1930). Em Obrar rompletas, vol. XXI. 
Op. cit. 
FREDA, H. "Da droga ao inconsciente", IX Jornadai do CMT, Subversão do 
sujeito na clinica das toxicomanias. Belo Horizonte, 1996. 
----· "Fascículos do FEMIG", n. 4. Belo Horizonte, 1987. 
LACAN,J. "Função e campo da fala e'da linguagem em psicanálise" (1953). 
Em: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998. 
____ . O Seminário, livro 22: R S. I (1973-4). Inédito, aula de 17 de 
dezembro de 1974. 
LAURENT, E. ''Três observações sobre as toxicomanias". Em: SNjeto, lf)Ce y 
modernidad II, Buenos Aires, Atuel-TyA, 1995. 
LECOEUR., B. "O homem embriagado". Belo Horizonte, CMf-FEMIG, 1992. 
SINA TRA, E. "Da monotonia a diversidade". Em: SNjeto, !f1" y modernidad fil 
Buenos Aires, Atuel-TyA, 1995. 
14 
UMA PASSAGEM CLANDESTINA 
Celso Rennó Lima 
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise 
Há mais ou menos dois anos, numa apresentação no Nú­
cleo de Toxicomania da EBP-RJ, escutei o relato de cinco ou seis 
casos de adolescentes que fazem ou fizeram uso de drogas. Em 
todos os casos relatados um ponto me chamou à atenção: a descri­
ção que os adolescentes faziam dos efeitos do primeiro contato 
com a droga muito se assemelhava ao que já escutei ou li, e até 
mesmo pude viver, sobre a experiência dos passantes no que diz 
respeito ao momento do Passe na análise, ou seja, ao momento em 
que a queda das identificações propicia o atravessamento da fantasia. 
Logo depois, desta vez numa apresentação no Núcleo de 
Toxicomania da EBP-MG, escutava um trabalho de um colega so­
bre o Grafo do Desejo e pude, na ocasião, formular alguns comen­
tários sobre o que chamei de "uma travessia selvagem da fantasia", 
para dizer destes momentos da primeira experiência com a droga. 
Para fornecer subsídios ao desenvolvimento de minhas idéi­
as, buscarei trechos de um texto que escrevi e que se encontra publi­
cado em Opfào Lacaniana, n. 1 1 com o título: "Uma brecha no 
fantasma"" (1 994) . Na ocasião procurava elementos que pudessem 
esclarecer o que seria um traço de perversão. Foi então que,
após 
uma pesquisa no �exto freudiano, pude constatar que, ao contrário 
* N. do E. Uma vez que atualmente são utilizadas duas traduções para o 
termo alemão Phanta.tie, "fantasia" e "fantasma", informamos ao leitor que, 
salvo indicação em contrário, serão mantidas ao longo deste livro as traduções 
indicadas por cada um dos autores. 
O Bn"/ho da lnFelicidade 
do que observamos em suas traduções (português, espanhol, inglês 
ou francês), são utilizadas por Freud três palavras distintas para o 
que se traduziu como traço, o que, a meu ver, promove recortes 
conceituais diferentes. 
A primeira é Zeichen. Freud utiliza este significante na 
"Carta 52". Ele diz, por exemplo: "O essencialmente novo em 
minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de 
uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de tra­
ços [Zeichen = indícios, insigínias]" . A primeira camada do modelo 
psíquico apresentado por Freud nesta carta será denominada de 
Wahrnemungszeichen, consistindo no primeiro registi:o [NiederschriftJ 
que estará "organizado de acordo com associações por simultanei­
dade, sendo sua conscientização totalmente incapaz de se fazer". 
A segunda palavra é Zug. Este significante é utilizado por Freud em poucas ocasiões: "Uma criança é batida" e "Psicologia 
das massas e análise do eu", de onde Lacan retira o famoso concei­
to de Einzjger Zug (cf. Freud, 1 920, p. 100) . Sem dúvida trata-se de 
um traço, de um sulco que tem como conseqüência lógica a Befahung 
primordial. Mas é no texto "Uma criança é espancada", primeiro pa­
rágrafo da segunda parte, que encontramos uma passagem que nos será muito útil: "Uma fantasia deste tipo, proveniente talvez de causas 
acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto­
erótica pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista 
como um traço primário rPnmamn Zug] de perversão" (1 91 9, p. 233) . 
A terceira é Spur. Esta é a palavra alemã para traço que 
Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Na "Carta 52", nossa 
referência fundamental, vamos vê-lo utilizando Spur ao dizer que na 
camada denominada Wahrnemung nenhum traço [kein .ipu,] do que 
acontece permanece, pois isto só é possível quando do segundo 
registro [Niederschrift]: Unbewusst, onde "traços do inconsciente 
[Unbewusst.ipuren] são algo equivalente a lembranças conceituais 
[ Begnffierinnemngen] ' ' . 
1 6 
Ceho Rennó Li111a 
Neste ponto é importante trazer à cena o primeiro esque­
ma do aparelho psíquico desenvolvido por Freud na Carta 52: 
W --- WZ --- UB --- VB --- Bews 
E, com toda a ousadia que _me é permitida num momento 
como este, proponho introduzir o conceito de Zug, mais especifica­
mente, de einzeger Zug entre as camadas Wz e UB: 
W -- WZ -- enzjger Zug -- UB -- VB -- Bews 
Minha hipotese é que há traços, Zugen, que não sofrem tra­
dução para Spur, permanecendo como pontos de gozo, memória 
de gozo, como nos diz Jacques-Alain Miller (1 995) , a partir de um 
acontecimento, ou acidente que promoveu a fixação e que "foram 
mantidos com o propósito de satisfação auto-erótica" 1 • 
Esta "não-tradução" traz, como conseqüência, o que cha­
mei na ocasião de uma "brecha na fantasia", um ponto de 
"Verleugnung", de desmentido que possibilita um ponto de passa­
gem, digamos, clandestina. 
Sabemos que a fantasia primordial é a interpretação que o 
sujeito fez do seu encontro com a falta no Outro [S(t4{.)] . Sabemos 
que esta interpretação é o que sustenta o sujeito como sujeito 
desejante, proporcionando-lhe uma certa estabilidade, um certo 
ponto de certeza que se traduz no pouco de realidade que mantém 
o quadro de sua existência. Ao mesmo tempo, e aqui é importante 
lembrar-lhes o Grafo do Desejo, a fantasia fundamental está estra­
tegicamente localizada entre a falta no Outro [S(?'-)] e o sintoma 
como significação do Outro ls(A)] abrindo-se ao desejo (d) . 
17 
O Bn"/ho da InFeli&idade 
É de nosso conhecimento que a instalação desta maquini­
nha de transformar gozo em prazer, como nos disse J.-A. Miller, 
apresenta uma brecha estrutural. Este ponto de conjunção-disjunção, 
que aí está entre o sujeito e seu objeto, nos diz disto. Ou seja, diante 
do objeto o sujeito se esvanece (jading), só encontrando paradoxal­
mente na identificação a este objeto o seu ponto de ancoragem. 
É por isso que a travessia da fantasia no final de análise 
pode ser maternizada como S = a, como muito bem nos demons­
trou Bernardino Horne em uma conferência na EBP-MG. Na tra­
vessia da fantasia, a equação S = a nos diz do que propicia uma 
passagem, aí mesmo, no ponto em que o sujeito se apresenta como 
resposta do real. 
Esta travessia de final de análise só acontece quando, após 
um percurso em que uma cena fantasmática pode ser construída, 
uma interpretação desmonta o enlaçamento do sofrimento que trouxe 
o sujeito à análise, ou seja, a fantasia e o sintoma, deixando o sujeito 
frente a frente com o seu desejo. 
O que esta interpretação visa, portanto, é desvencilhar este 
enlaçamento entre Simbólico e Imaginário, que é feito pelo sintoma aí 
mesmo onde, por estrutura, vemos incidir a falha na transmissão da 
castração - lugar onde a fantasia vai se articular nos dizendo do 
desejo que o sustenta e do gozo que o mantém. Este objetivo só 
poderá ser alcançado se, ao apontar a impossibilidade do sentido, a 
interpretação promover um efração do real na brecha que ela abre 
no plano das identificações. Então acontece uma passagem que 
possibilitará ao novo suj eito que daí resulta, efetuar um novo 
enlaçamento entre Real, Simbólico e Imaginário. 
A travessia de final de análise tem conseqüências, portanto: 
a produção de um desejo inédito como efeito de um novo sujeito 
a partir da própria mudança de sua relação com o objeto que o 
sustentava na fantasia. Ali onde o percurso pulsional produzia an-
1 8 
Celso Rennó Li,11a 
gústia, veremos surgir, ao final da curva, um novo afeto: o entusias­
mo. Em outras palavras, onde havia um objeto a, mais-de-gozar, 
encontramos "este elemento de vida, este elemento de gozo vivo 
que é o objeto pequeno d' (Miller), como causa de desejo. 
O que acontece nestes momentos que não são conseqüên­
cia de um percurso analítico, nem de uma construção, nem tampouco 
de uma interpretação que propiciará a travessia, mas sim o efeito de 
uma droga qualquer? Acontece uma passagem, uma "travessia", 
que chamamos de "selvagem", ocorrendo em um ponto qualquer 
da tela protetora da fantasia em que exista uma certa fragilidade, 
conseqüência da permanência de um traço sem tradução. Esta "tra­
vessia", esta passagem, digamos, clandestina, não produz um novo 
saber como conseqüência do retorno do S 1 produzido - como na 
travessia de final de análise - mas sim um retorno de algo que vai 
exatamente negar a presença deste significante que faz borda no 
real. O que retorna é um traço saturado de gozo'-, incapaz de impedir 
uma "vontade de gozo" onde um desejo deveria surgir. Desta for­
ma é "como se houvesse acontecido um gozo inesquecível e que 
em seguida todas as repetições só tivessem por objetivo encontrar 
este gozo inesquecível. A ponto de que, enfim, o significante não 
parecesse de todo, aqui, permitir um deslocamento, mas ao contrá­
rio só abrir a uma comemoração", como nos diz ].-A.Miller, para 
acrescentar: "A fixação designa o fato de que o sujeito permanece 
agarrado a um modo de gozo quando ele deveria ultrapassá-lo, 
substituir um outro modo de gozo. É isso o que define, no fundo, 
o arcaísmo eventual de um modo de gozo. [ . . . ] Em Freud, o modo 
de gozo supostamente ultrapassado pode se encontrar reativado 
[pela] regressão libidinal [e pela] fixação de gozo" (Miller, 1 995) . 
1 9 
O Biilho da InFelicidade 
NOTAS 
1 . "A memória está no nível do gozo que se inscreve, é antes de tudo o que 
resta do gozo ... "/e sens-jouil'
é outra coisa que a verdade . . . é o sentido entanto 
que o gozo aí se fixa". 
2. "Le désir, que est suppôt de cette refente du sujet s'accommoderait sans 
doute de se dire volonté de jouissance" (Lacan, 1 966, p. 773). 
Referências bibliográficas 
FREUD, S. "Uma criança é espancada" (1 9 1 9) . Em Studienausgaben, vol. VII. 
Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1 982. 
________ . " P s i col ogia das mas sa s e aná l i se do eu" ( 1 9 20) . E m : 
Studienausgaben, vol. IX. Op. cit. 
LACAN, J. Écrits. Paris, Seuil, 1 966. 
MILLER, J.-A. "Silet". Inédito, aula de 29 de março de 1 995. 
RENNÓ LIMA, C. "Uma brecha no fantasma", Opção úzcaniana, n. 1 1 , 1 994. 
A MORDAÇA INFERNAL 
Núcleo de Pesquisa em Toxicomanias e Alcoo lismo* 
EBP- Rio de Janeiro 
Certa feita, Freud é interpelado por Einstein sobre a per­
gunta: por que a guerra? 
Se Einstein propõe a correlação direito e poder para 
explicá-la, Freud prefere substituir a palavra poder "por uma pala­
vra mais nua e crua: violência" . Segundo Freud, "os conflitos de 
interesses enti:e os homens são resolvidos pelo uso da violência" 
(1932, p. 246). Uma facção tem de ser compelida a abandonar suas 
pretensões ou objeções. 
Eliminar o adversário traria a vantagem de reforçar o po­
der da facção vitoriosa e impedir que outras a seguissem, matar 
opor-se-ia a reflexão de que o inimigo pode ser utilizado na realiza­
ção de serviços úteis. O subjugar assim veio a substituir a morte. 
Passa então a haver um caminho que se estende da violência ao 
direito à lei. Estes elementos de força desigual transformam-nos 
em senhores e escravos. 
Freud aprofunda a questão da lei quando fala de uma utili­
zação diferente por aqueles que a aplicam colocando-se acima dela, 
acima das proibições que aplicam a todos, o que os fazem passar 
da lei à violência. A recusa em admitir a mudança leva à rebelião. 
* Relatores: Lenita Bentes e Ronaldo Fabião Gomes. 
Colaboradores : Clara Lúcia lnem, Cláudia Henschel, Eliana Bentes, Fillipo 
Olivieri, Maria Beatriz Barra, Mila Alencar; Vânia Olivieri e Vera Nogueira. 
O Brilho da !11Fe/icidade 
A esse respeito Lacan nos diz: "o povo acuado, impedido, toma a 
palavra através do acontecimento histórico quando essa palavra lhe 
é negada. O povo vai colocar em ato suas falas impossíveis quando 
se vê sufocado sob 'a mordaça infernal' da censura que vai impeli­
lo a passagem ao ato de rebelião" (1 95 1 , p. 223). 
Robert Musil diz que "a política é um mandamento, um 
preceito" (1 989) porque engendra a noção de poder e, como exer­
cício de poder, exerce a censura. Como tal, o discurso da política 
pode ser considerado o discurso da censura por excelência em que 
vão aparecer as falas cortadas de sentido, destinadas aos sujeitos­
escravos que não as compreendem e cujo direito à palavra é recusa­
do. Esses sujeitos só conseguem reaver seu direito pelo ato de vio­
lência, de rebelião. 
Tal exercício do poder manifesta historicamente o desloca­
mento do discurso do mestre ao discurso capitalista. O capitalista 
manda e o proletário se lamenta diante das inegociáveis condições 
de trabalho em que a exigência da produção chega ao ponto de 
�ma extorsão da sobrecarga de trabalho. Aí o laço social corre o 
risco de romper-se uma vez que as demandas dos capitalistas sur­
gem como imperativos categóricos e as preces dos proletários se 
dirigem a este "outro lugar sem palavras que representa o exercício 
do poder dos sign ificantes mestres do discurso capitalista" (Naveau, 1 988, p. 1 14). 
Lacan no Seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise (1 969-70) 
denuncia que o Estado está aí enraizado e a marcação do limite, 
escondido no imperativo vociferado: "Circulem! Dispersai-vos!". 
Lacan fala de um diálogo de surdos, um diálogo que não cessa de 
se escrever. Trata-se de um "Goze!" que se dirige ao proletário 
como um "Trabalhe!". 
Em seus escritos, Marx também fala de uma intriga a 
ser construída para ser resolvida por meio de uma encenação: 
22 
NIÍcleo de Pesq11isa em Toxicomanias e Alcoolismo 
"a fabricação da mais-valia, esse grande segredo da sociedade mo­
derna, vai enfim se desvelar" (1 985, cap. VI, p. 1 36-7) . No drama 
social retratado por Marx, há duas personagens : uma traz a máscara 
do capitalismo exprimindo a insolência e o escárnio. A outra, a do 
proletário que exprime timidez e hesitação. O proletário como ser 
falante não importa, mas sim o que produz. O discurso capitalista 
se caracteriza por um movimento circular em que a apropriação do 
mais-de-gozar não está obstaculizada por nenhuma barreira. Tal 
discurso rech�ça a castração. 
iXt 
t - -- ---� s2 i -- 1 // a f 
discurso do amo discurso do capitalista 
O discurso capitalista perverte o discurso do mestre por 
efetuar uma reapropriação do gozo que faz com que a realidade 
advenha como fantasia. Tal discurso pretende transformar o real, 
embaraçando-o ao ''gadget" . É por es te embaraço, por saberem 
com o quê e como gozam que o toxicômano e o alcoolista não 
fazem sintoma, e não são a mesma coisa. No sintoma, a satisfação 
que se realiza é inconsciente e é o que o faz interpretável. Que fique 
claro que CJ.Uando falamos da perversão do discurso do mes�re 
efetuada pelo discurso capitalista estamos nos referindo a uma não 
orientação ao pai, pois: ''um pai só tem direito ao amor e ao respeito, 
23 
O Biilho da InFe/icidade 
se o dito amor e o dito respeito forem pere-vers-amente orientado, ou 
seja, se ele fizer de uma mulher o objeto a, que causa seu desejo" 
(Brousse, 1997, p. 77). Vers quer dizer em direção a, rumo ao pai. 
Trata-se da transmissão da lei no semi-dizer do sentido. Ser de algu­ma forma a lei sem identificar-se com ela, o que dele faz alguém 
que reconhece a castração e pode transmiti-la ao fazer de uma mu­
lhe.r seu sintoma. 
Os fenômenos toxicômanos exemplificam como a não 
''pereversion", a não orientação ao pai tem como efeito sustentar o 
gozo no corpo e romper com o Nome-do-Pai sem ser uma psico­
se, desmentir a mulher sem ser uma perversão e manter o recalcado 
sem sintomatizar como na neurose. O Nome-do-Pai não garante 
mais uma função de amarração, ou seja, a divisão, a não identidade 
consigo mesmo, cede a vez a um ser-metre, um m 'être, que Lacan designa­
va como uma "degenerescência catastrófica". Como fenômeno, tem a 
função de velar a esttutura. Na cultura da droga, pode sobreviver ao 
mal-estar do desejo, ou seja, gozar em detrimento do desejar. Por que 
não é uma perversão? O perverso, este goza com a fantasia e de for­
ma específica (É. Laurent, 1994) e o toxicômano não. 
Se pensarmos o sintoma no âmbito proposto em ''A Ter­
ceira" (1 974), podemos pensar a toxicomania como uma nova for­
ma de sintoma para o mestre moderno, uma vez que, como pro­
duto da ciência, retorna como uma espécie de mito, organizando, 
ordenando, classificando o mal-estar na civilização. 
O gozo da droga está no corpo que o toxicômano julga 
ter. Quer se unir ao Outro real por negar que este esteja fora de 
alcance. É esta ilusão que a ruptura com o falo produz, posto que o 
gozo sexual faz obstáculo a isso, é defesa contra o gozo do Outro 
ou do corpo como totalidade. A determinação fálica faz malograr 
tanto o gozo do corpo_ como Outro, como o gozo do corpo do 
Outro. Trata-se do "had Um" corpo que ninguém possui. Na ilusão 
24 
Núcleo de Pe1q11isa e,11 Toxicoma11ias e Alcoolismo 
de tê-lo, pode criar fora do tempo lógico sensações cronológicas, 
programadas. Mais uma dose por isto ou por aquilo, no momento 
em que tudo for insuportável. Onde faltam as palavras "had Um" 
corpo que é um "pró[pó]-grama" da felicidade. 
Ignorar que não se tem o corpo e o inconsciente é tentar 
dar, via indução, via substância, consistência a este Outro como 
corpo do qual se goza de uma hipotética infinitude, de uma ruptura 
que,
por não passar pelo simbólico, fica tudo a dever ao gozo femi­
nino que não desconsidera o falo. Não se trata do gozo do Outro 
sexo, mesmo que excluído, mas do gozo do Outro corpo. 
O gozo da droga não faz "ex-sistir" o lugar central em sua 
função de referência; faz consistir o gozo do Outro ao preencher a 
hiância que ele indica por não ser limitado pelo gozo fálico. Aqui, o 
alcoolista, por colocar o vinho no lugar da mulher, embora não 
rompendo com o falo, mesmo do alto de seu heroísmo viril, tam­
bém a exclui, ao potencializar um Outro que não ele próprio. Tal­
vez haja aqui um entre toque entre ambos: o toxicômano e o alcoolista. 
Do que se trata, poderíamos nos perguntar? Com certeza, 
não é de tirar o sujeito da droga, mas sim de extrair do ser o sujeito. 
Para tal, é preciso ter claro que é o discurso analítico o que mais 
além da censura tenta manter o sujeito na via do desejo, único dis­
curso que pode trazer à luz o gozo que repousa na obscuridade de 
um ganho ilimitado. 
Dizer que o s'!ieito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o 
s'!ieito da ciência talvezpasse por um paradoxo. É aí, no entanto, que se 
deve faZ!r uma deman:ação sem o que tudo se mistura e começa uma 
desonestidade que em outros lugares é chamada de oijetiva: mas que é falta 
de audácia e falta de haver situado o oijeto que malogra. Por nossa posição 
de s'!ieito, sempre somos responsáveis. Que chamem a isso como quiserem, 
terrorismo. Tenho o direito de sorrir, pois não era num meio em que a 
doutrina é abertamente matéria de negociatas que eu temia chocar quem 
quer que fosse, ao formular que o erro de boa fé é dentre todos o mais 
imperdoável (Lacan, 1965, p. 873 ). 
25 
O Brilho da lnFelicidade 
Se naquela época Freud tentou responder a pergunta "Por 
que a guerra?", é lícito, na modernidade, nos perguntarmos "Por 
que a droga?" É quando Freud concorda com Einstein a respeito 
da existência no sujeito de uma pulsão de destruição - "o ego teria 
se tornado masoquista por influência do supereu sádico" (1 932, 
p. 252) -, que Lacan, ao retornar ao conceito freudiano de 
pulsão de morte ou de destruição, des taca o gozo como algo 
que n ã o p o d e s er p l enamen te a b s o rvido p ela i n s tânc ia 
significante do falo. Sua tese é a de que o desej o e o falo não 
podem dar conta da dimensão do gozo. É nesse sentido que, na 
seção consagrada aos paradoxos do gozo, Lacan o tratará a 
partir da perspectiva da transgressão: frente ao desejo e ao falo, 
o gozo é uma transgressão, escapando sempre à determinação 
significante. 
A partir desse momento de seu ensino, Lacan afirma a teo­
ria da pulsão de morte em sua vertente residual: há sempre um 
resíduo de gozo. No Seminário, livro 1 7 (1 969-70) , depreendemos o 
avanço de sua tarefa na formalização do gozo. O gozo é situado 
em três eixos : a) retifica o es tatuto do gozo, que antes abordara 
pelo viés da transgressão; neste Seminário, ele aparece a partir 
da escrita do objeto a como mais-de-gozar, resíduo da opera­
ção significante; b) logifica o objeto a em uma relação com ou­
tros três elementos S I ' S2 e '/. constituindo a fórmula dos quatro 
discursos ; c) faz do gozo uma instância primária, fundamental, 
a partir da qual podem ser situados tanto o significante como o 
sujeito. 
No Seminário, livro 22: RS.I. (1 974-5) , Lacan propõe dois 
gozos: o jouis-sens (na interseção do imaginário e do simbólico) e o 
gozo do Outro, na interseção do imaginário com o corpo real. O 
gozo do Outro está fora do simbólico, porém não do corpo, 
embora o gozo fálico es teja fora do corpo, porém não fora do 
simbólico. 
26 
Fenômeno toxicomaníaco 
Fenômeno alcoolista 
Núcleo de Pesq11iia e111 Toxi,omanias e Akoolis1110 
Sentido 
R 
Significante 
(alcoolista) 
Nesta articulação, do mesmo modo que o sintoma fixa o 
gozo fálico em uma letra que "ex-siste" ao inconsciente, o gozo do 
Outro constitui o gozo fálico que constitui o corpo Outro. 
Uma questão. Em que classe de gozo se encontram as toxi­
comanias? E mais, se estas não podem ser consideradas um sinto­
ma, visto que têm um gozo distinto do gozo do s intoma, têm o 
gozo segundo o saber da ciência (destituído tanto do desejo quanto da singularidade do sujeito) , o gozo no corpo como Outro, não do corpo pulsional decorrente da afetação pela linguagem. Seu corpo é seu cadáver, um corpo sobre o qual trabalha, conhece a anatomia, 
os caminhos, as eficácias, os melhores tempos para alcançar a produ­
ção de gozo, a produção do fenômeno pela ruptura com a estrutura. 
Tentam por meio de um objeto que escapa as determina­
ções da função fálica, em termos de semblante, dar consistência ao 
gozo do Outro, como gozo no corpo, em um infinito que não 
podendo ser limitado pela função fálica, o é pela morte. A propos­
ta da psicanálise aqui é a de que o sujeito se dirija do fenômeno à 
estrutura, de onde se fez escapar, recusando-se a nela se encontrar. 
27 
O Brilho da l11Felicidade 
Diferentemente , o alcoolista não está fora da cadeia 
significante e de suas leis. Não rompe com o Outro, antes dirige-se 
a ele para que denuncie o gozo de sua posição fantasística, fazendo 
emergir a vergonha, a divisão e a culpa. Entretanto por estar na 
cadeia sign ificante de forma particular, ao mesmo tempo que pro­voca o Outro à denúncia, a desativa. Quando Freud referia-se ao 
"casamento feliz", denunciava a não necessidade da interdição so­
bre o objeto para alcançá-lo, o que sugere a evitação do supereu via 
desvanecimento subjetivo. Oferecer-se à interpretação injuriosa do 
Outro pode ou não propiciar a produção de sintomas e a divisão 
que torna presente a identificação ao desejo do Outro. Podemos 
aqui também afirmar a existência de um gozo que não curto-circuita 
a fantasia. Ao colocar-se como objeto para o Outro, faz entrar em 
jogo fantasias de triunfo e heroísmo que antecedem um gozo que, 
embora transgressor, faz laço social. 
Nas toxicomanias a ausência dessa identificação faz da nome­
ação do gozo uma forma de representar-se: "Sou toxicômano". 
Trata-se de um sujeito desaparecido, amnésico, com poucas chances 
de ser encontrado senão pelo fato de que ao ir ao an_alista, possa 
demandar encontrar outra identificação. 
O "Eu sou toxicômano'.', esta ficção do mestre moderno 
da morte, faz "Aufhebung' do gozo fálico. Diferente do mestre anti­
go que renunciando, em ato decisivo, ao gozo para se fazer sujeito 
da morte, se institui. A chave da passagem do discurso do mestre 
antigo está em Sócrates, ilustre histérico: "Por paradoxal que seja a 
asserção, a ciência toma seus impulsos do discurso histérico [ . . . ] o 
histérico é o sujeito dividido, dito de outra maneira, é o inconsciente 
em exercício que põe o mestre contra a parede para produzir um 
saber. Tal foi a ambição induzida no mestre grego sob o nome de 
Episteme. Aí onde a 'doxa' o guiava no essencial de sua conduta, 
foi intimado - e em especial por um Sócrates histérico confesso 
que disse não entender senão de assuntos de desejo, patente em seus 
28 
Nticleo de Pe.rq«i.ra e111 Toxico111ania.r e Alcooli.r1110 
sígnos patognomônicos - a fazer festa de alguma coisa que valesse 
como a 'techne" do escravo e justificasse seus poderes de mestre" 
(Lacan, 1 977, p. 61 ) . O ficcional esvazia o Outro, trans forma-o em 
pó, em inexistente, para que desta maneira a falta, a castração como 
real, não ocorra. É um puro agir segundo sua consciência. Sem um 
nome próprio, do sintoma neurótico, e sem ter como fazer-se um 
nome, como Joyce, o toxicômano ou alcoolista leva o nome do 
Outro, do produto. 
Retomando Lacan em "Radiofonia", 
A mais-valia é a cama do desefo da qual u111a economia .fez seu princípio: 
aquele da produção extensiva, portanto insadáve� da /alta de gozar. Ela se 
acumula por um lado para munentaros meios desta produção
a título do capital Por 
outro, estende o mnsumo, sem o qual esta produção seria vã, justamente de ma 
inépcia em promo/Jf!f" um gozo do qual ele pudesse desaalerar-se (1 970, p. 87) . 
Em "Por que a guerra?", Freud respondeu que é sempre 
com violência que o sujeito vai reagir ao ser desalojado do poder 
(imaginário) que ocupa, quer via opressão, quer por uma via mais 
romanesca, a religião. Neste sentido, Marx, Freud e Lacan formam 
uma série perfeitamente coerente com a ética frente ao saber. Outra 
resposta de Freud foi a existência de uma pulsão de ódio e destrui­
ção que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. O que 
diferenciaria os mercadores da guerra dos mercadores do capital? 
Para concluir: se existe a pulsão de destruição para a qual 
Freud encontrou duas saídas , o vínculo amoroso e o vínculo 
identificatório, recomendando contrapor a ela o seu antagonista Eros, 
então não há porque nos envergonharmos de falar de ámor, nos 
diz ele, e nunca se fala de outra coisa, diz Lacan. 
E por que a droga? Ou, com É. Laurent (1 995) , qual é a 
situação do gozo em nosso mundo? Ou por que a crença ou neces­
sidade da ciência moderna de ter apostado na clonagem química da 
felicidade? E a que preço? 
29 
O Brilho da InFelicidade 
Referêndas bibliográficas: 
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SOLER, C. "O retorno sobre a questão do sintoma e o FPS", OpfàO Lacaniana, 
n. 17, 1997. 
30 
CLÍNICA DO SUPEREU E AS TOXICOMANIAS 
Daniel Sillitti 
Membro da Escuela de la Orientación Lacar,.iana 
Na obra de Freud, o supereu nasce como uma instância 
normativizadora ligada à instauração da proibição do incesto e à 
repressão das tendências agressivas. Sob o nome de consciência 
moral, toma a forma de "percepção interna da repulsa de determi­
nados desej os" com a caracterís tica de não ter necessidade de invo­
car razões (Freud, 1 9 1 2) . Ou seja, ao mesmo tempo que introduz o 
sujeito nas normas que são o próprio sustento das civilizações, o 
supereu se apresenta como uma instância caprichosa, tirana, que 
prescinde de justificativas e razões para gerar esta repulsa. Neste 
sentido, é uma instância relacionada com o sentimento de culpa. 
Assim, se vincula ao Outro, exercendo de modo crítico sua 
representação. Freud inclusive chega a dizer que "a consciência moral 
foi primeiro uma encarnação da crítica parental" - exercida de 
viva voz pelos pais (1 9 1 4) . Viva voz que, na paranóia, retorna como 
alucinação na injúria ao suj eito. 
Como instância, se define então como aquilo que, pela via 
da repressão, instala o sujeito na cultura ao articular a proibição do 
incesto na representação do pai ligado à castração. Aqui o supereu é 
herdeiro do Complexo de Édipo no que representa a relação do 
sujeito com seus progenitores (Freud, 1 923) e sua forma depende 
diretamente dele: "o supereu conserva o caráter do pai e quanto 
O Biilho da InFeliddade 
maiores forem a intensidade do Complexo de Édipo e a rapidez 
de sua repressão, mais severamente reinará depois sobre o eu como 
consciência moral ou como sentimento inconsciente de culpa"(ibid.). 
Não obstante esta instância tem a possibilidade de adoecer. é 
o modo como Freud descreve em "Luto e Melancolia" (1 9 1 7) o 
particular enfurecimento do supereu visto que o eu permaneceu 
identificado ao objeto perdido. 
Na melancolia, o supereu se faz "ouvir" no tormento que 
infringe ao eu. Todavia há também uma forma de adoecer que 
emudece o supereu, uma forma oposta à melancolia e que não é a 
mania: é o enamoramento. Ali toda crítica possível ao objeto se 
desvanece, o eu carece de toda vontade e fica à mercê das disposi­
ções do objeto amado, até chegar - por aplacação desta instância 
- ao crime sem remorso. 
Vemos a s sim o sup ereu funcionar sob o imp ério da 
normativização, por um lado, ligado à cas tração e, por outro, em 
sua face patológica, tornar-se independente de sua função e adquirir 
um matiz martirizante para o sujeito. Neste ponto o supereu funci­
ona a serviço da pulsão de morte: sua hipermoralidade, a crueldade 
com que Freud o descreve na melancolia, o faz representante da 
pulsão de morte dirigida contra o eu e que, nos casos extremos, 
alcança a morte do sujeito. 
Entretanto não devemos equiparar a pulsão de morte com 
a morte. Para Freud, trata-se dos efeitos de des truição, mas ainda é 
pela relação com o sadismo e fundamentalmente com o masoquis­
mo que se pode definir o valor da pulsão de morte. 
Em "O Mal-estar na civilização" (1930) , o supereu adquire 
seu caráter paradoxal: já não só representa uma instância que vigia o 
cumprimento das normas morais, como também, além de exigi­
las, quanto mais se as cumpre, mais severo se torna e maior é a 
exigência. 
32 
Daniel Sillilli 
Neste texto em que Freud dá sua definição mais acabada 
da função dos tóxicos, como instrumentos que permitem aliviar o 
peso do encontro com a impossibilidade da felicidade, instrumen­
tos que, em sua rápida ação sobre o corpo, asseguram um efeito de 
satisfação e também "a ilusão de independência do mundo exteri­
or" (ibid.), ele atribui ao supereu a função do que proíbe a satisfa­
ção pulsional ao mesmo tempo que se satisfaz desta mesma proibi­
ção. Instaura então um paradoxo e um impossível: para aplacar o 
supereu é preciso desobedecê-lo, mas ao mesmo tempo, ao acatar 
sua ordem, é impossível aplacá-lo. 
Entende-se a definição de Lacan quando este dá ao supereu 
o caráter de um imperativo de gozo e o define como uma figura 
obscena e feroz; este empuxo a um gozo impossível constitui um 
dos eixos a respeito do supereu. 
Em sua conferência "Clínica do supereu" (1981) , Jacques­
Alain Miller articula esta figura do supereu ao desejo materno, tal 
como Lacan o define no interior da metáfora paterna, um desejo 
sem lei, caprichoso, antes de ser interpretado pelo significante do 
Nome-do-Pai, significante que, na estabilização das significações entre 
o sign ificante e o sign ificado, abre à instância fálica como esta outra coisa que deseja a mãe. 
Neste ponto se produz o giro da dialética de ser o que satis­
faz
o desejo do Outro para ter o que poderia satisfazê-lo. É no não 
introduzido pela instância paterna no discurso da mãe que o falo se 
impõe como o que se tem ou não. Não obstante Lacan, no Seminá­
rio, livro 21 : ús non dupes e"ent (1973-4), introduz uma variante a esta 
fórmula: nesta o desejo da mãe situaria o sujeito em uma dimensão, 
a do ser nomeado para, que substituiria o Nome-do-Pai e o colocaria 
em um projeto ligado à demanda do Outro. Ali define esta fórmula 
como significando existências, provocando catástrofes, sobretudo no 
ponto em que o social ganha relevo e se apropria deste nomear para. 
33 
O Brilho da I11Felicidade 
Em outros trabalhos (Sillitti, 1995) , consideramos a im­
portância que tem o Outro que nomeia para a configuração da 
categoria da toxicomania, no que este faz consistir uma categoria (o 
toxicômano) à qual vemos se identificar fil\1 certo número de sujeitos. 
A formalização feita por Éric Laurent em seu trabalho "Tres 
observaciones sobre la toxicomania" (1995) , no qual propõe o 
materna <j> 
0 
para escrever a ruptura com o falo implicada na fór­
mula que Lacan dá em 1975, nos abre uma perspectiva para enten­
der a incidência do supereu na toxicomania. Se aceitamos a mesma 
escritura proposta por Miller para o supereu em sua conferência de 
1 981 , vemos a incidência desta ins tância operando pela via de um 
empuxo ao gozo, um gozo que, prescindindo da passagem pelo 
corpo do Outro, evitando a castração, retorna sobre o corpo do 
sujeito "na ilusão de independência do mundo exterior". 
Assim, a alienação no ser nomeado para se nos apresenta como 
uma via de sujeição à demanda do Outro, consentimento do sujeito 
que, desde o ponto de vista da ética, faz uma eleição de goz? que suprime a palavra, obtura a falta, e só aceita e crê no gozo possível 
de ser obtido no próprio corpo, assegurado pelo efeito tóxico. 
Gozo cínico (Sinatra, 1995) . 
Podemos pensar o gozo implicado nas adicções como es­
tando ligado ao supereu; o que está em jogo aí é o "Goza!" -
estado puro da demanda. 
Assim, a função do tóxico se situa no impasse que produz 
em relação ao desejo do Outro. A droga opera no sentido da recu­
peração de gozo eludindo o semblante fálico, que implica a castra­
ção, isto é, a falta no Outro. 
É necessário precisar que neste ponto o que entra em jogo 
em relação ao desejo da mãe não é o "amor de mãe"; ali opera a 
relação à sexualidade feminina; é a mãe como mulher, no sentido 
de um sujeito em relação à falta estrutural (Miller, s/ d). 
34 
Da11iel Sillilli 
O catastrófico é a colocação do sujeito no lugar do que 
falta à mãe como mulher. O sujeito identificado a este lugar não 
deixa brechas para que o inconsciente possa operar. É então no 
fracasso da droga ou na quebra desta identificação que se abre a 
perspectiva para uma análise que conduza o sujeito na via de seu 
desejo "vivido por fora do registro da culpa" (Laurent, 1994) . 
* Tradução: Sara Fux 
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Editora Biblioteca Nueva, 1 983. 
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Tomo II. Op. cit. 
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Op. cit. 
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_____ . "O malestar en la cultura" (1 930) . Em: Obras completas, Tomo 
III. Op. cit. 
LACAN, J. O Seminário, lillT'O 2 1 : les non dupes errent (1 973-4) . Inédito. 
LAURENT, É. "Tres observaciones sobre la toxicomanía". Em: Sl!feto, !fJZ.º 
e modernidade II. Buenos Aires, Editora Atuel-TyA, 1995. 
_____ . "Estado, sociedad e psicoanálisis", Uno por Uno, n. 40, Eolia, 
1 994. 
MILLER, J-A. "lntroducción a la lógica de la cura dei Pequeiio Hans". Con­
ferência de Abertura às II Jornadas Anuais da EOL, Buenos Aires, s/d. 
_____ . Seminário "Clínica do supereu", 1 981 . 
SILLITTI, D. "La eficacia dei nombre: los llamados adictos". Em: Sl!feito, 
!PZ.º y modernidade I. Buenos Aires, Atuel-Tya, 1 995. 
SINATRA, E. "Variantes dei argumento ontológico en la modernidad". 
Em: Sl!feto, gozo y modernidad I. Op. cit. 
35 
OS NOVOS OBJETOS DE GOZO 
Gleuza Maria M. Salomon 
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise 
Hoje nos surpreende que o ensaio freudiano sobre a sexu­
alidade infantil tenha causado certo horror na comunidade científi­
ca. A disposição polimorfa infantil subsiste sob o recalcamento da 
vida adulta. Esse conceito é formulado de outro modo por Jacques 
Lacan: ''A criança nasce como objeto". 
O avanço do discurso da ciência produz o fenômeno da 
"infância generalizada", caracterizado em 1 967 por Lacan como as 
respostas segregativas relativas ao tempo do "Outro que não exis­
te", tema do curso de Jacques-Alain Miller e Éric Laurent. 
Trata-se do real, tendo em vis ta que, segundo Lacan, ele 
não tem sentido: "Tudo implica uma noção de real, que devemos 
distinguir do simbólico e do imaginário. O único aborrecimento é 
o real fazer sentido neste assunto, j á que o real s e funda no próprio 
fato de não ter sentido, que exclui o sentido, ou precisamente por se 
dispor a ser excluído". 
O real contemporâneo se verifica na forma do gozo; goza­
se diretamente do objeto. 
Ainda em 1 967, Lacan, em seu "Discurso de encerramento 
das Jornadas sobre as psicoses na infância", anunciava que a criança 
es taria, num futuro próximo, literalmente no lugar de objeto de 
gozo. Alertava-nos Lacan: ' 'Pelo fato da ignorância com que este 
O Brilho da lnFeli&idade 
corpo é tomado como sujeito da ciência, vai se chegar justamente a 
recortá-lo para troca". 
Hoje, suspeita-se que o tráfico de órgãos es.teja ligado com 
o desaparecimento de crianças . Por outro lado, vemos a exploração 
da disposição polimorfa infantil, crianças-mercadoria submetidas à 
extração de um gozo anônimo, tanto pelos pais como pelos trafi­
cantes na exploração do trabalho e da prostituição infantis. O modo 
contemporâneo de gozo vem situar a criança como um novo ob­
jeto de gozo. 
Pedaços de real, novos sintomas que encontramos princi­
palmente nas toxicomanias - o uso freqüente da cola, que atual­
mente substitui o uso do cra,-k. É um sintoma social, sem dúvida. 
Seria, porém, um sintoma na criança? 
O gozo obtido pela criança no objeto droga é um gozo 
autista, sustentado por sua recusa em es tabelecer laço social, man­
tendo-se fechada em si mesma. Encontramos a possibilidade do 
gozo autista no exemplo pulsional freudiano: a boca que se beija a si 
mesma, particularidade da pulsão que propicia a exis tência de um 
gozo autis ta. 
Penso no relato de um educador de rua. Após horas a fio 
fumando ,rack alternadamente, dois jovens se deparam com uma 
nova quantidade da droga no mocó. Essa quantidade é suficiente 
para os dois, porém qual deles fará uso primeiro? 
A não possibilidade de escolha - ou um ou outro - leva 
a um esfaqueamento. O que comete o ato de violência sai correndo 
em busca de socorro, chama a ambulância e acompanha de longe o 
atendimento do colega. Quando aquele se res tabele, continuam 
amigos. 
Só podemos pensar esse Outro, se nos remetermos ao en­
smo de Jacques Lacan, não só sobre o objeto a como também 
sobre a geometria do sintoma: o nó borromeano. 
3 8 
G/e11za Maria M. Salomon 
corpo 
(Im,gin;,icobôlico 
-º 
Aproximamo-nos do conceito de "furo estrutural" das úl­
timas elaborações de Lacan, no qual ele nos mostra que o simbólico 
comporta um furo que corresponde ao recalcamento originário 
freudiano. 
Conseqüentemente, deparamo-nos com o conceito de 
"foraclusão generalizada" proposto por J acques-Alain Miller, 
paradigma do furo estrutural lacaniano. 
No dia 2 de dezembro de 1975, em con ferência no 
Massachusetts Institute of Technology, Lacan, respondendo a Roman 
Jakobson
sobre e a inibição e sua localização no nó borromeano, 
diz: ''A inibição: o imaginário se formaria de inibição mental. O 
significante não é o fenômeno. O significante é a letra. Não há senão 
a letra que faz buraco" (1976, p. 60). 
Queremos nós romper a inibição? Sim, certamente. Então 
é o que tentamos fazer ao nos aproximarmos do Lacan lógico, 
para quem não existe o espaço em si: é em função dos nós que 
pensamos o espaço. Para ele, os nós representam a coisa que do 
espírito é a mais rebelde. 
Vemos, em ''A Terceira" (1 975), como Lacan situa o objeto 
a: como nó que se agarra à fixação do simbólico, do imaginário e 
do real. É do lugar de objeto a que o analista responde àquilo que é 
sua função: oferecê-lo como causa de desejo aos seus analisantes. 
39 
O Brilho da InFelicidade 
Esse objeto a, Lacan o cria relacionando-o à lógica. Isso 
significa que assim o torna operante no real. Se o torna operante no 
real, o que é o real? A definição primeira do real efetuada por Lacan 
é: "o que retorna sempre ao mesmo lugar". A ênfase nessa frase 
recai sobre "retorna". Como comenta Miller, é o lugar do sem­
blante. Num segundo tempo, o real é relacionado à lógica modal, 
remete-se ao impossível. Por outro lado, é somente pela psicanálise 
que o objeto a constrói o cerne elaborável de gozo. Porém só se 
sustenta com a existência do nó, com três de círculos de barbante 
que o constituem (ver figura) . 
Em seu Seminário "O Outro que não existe e seus comitês 
de ética", Miller pergunta o que se inscreve no real, no lugar do real, 
pois, como vimos, isso não é o saber, mas talvez seja um significante 
"um". E é por isso que Lacan define o sintoma como aquilo que 
do inconsciente se traduz por uma letra. 
Eventualmente o S 1 no real é o que Freud chamaria de fixa­
ção, fixação de gozo. Na psicanálise lacaniana o que faz junção entre 
o sentido e o real é precisamente esta fixação de gozo. 
Lacan aponta para uma disjunção entre Real, Simbólico e 
Imaginário, que se mostra claramente no nó borromeano, ao mes­
mo tempo em que os pensa como três, pois apenas dois não se 
anelam. A seguir, considera uma variante: se três não se enlaçam, 
talvez quatro o façam. Junta então o sintoma como quarto nó. 
Podemos pensar a toxicomania na infância a partir da droga 
como objeto a, que fixaria um gozo, o da própria exclusão estrutu­
ral? Terá o objeto droga a função de sintoma que virá então amar­
rar os três registros, Imaginário, Simbólico e Real? 
Por outro lado, a criança, dada a recusa ao Outro, no tem­
po do Outro que não existe, está posta como objeto de gozo. Essa 
posição de objeto será reforçada através da universalização do gozo 
ao ser designada como toxicômana. O tratamento que assim no-
Gle11za Maria M. Salomon 
meia a criança e que a ela se oferece só viria a fixá-la ainda mais na 
posição de exclusão e de gozo, como no exemplo citado. 
É a alienação à droga que faz surgir a separação sob a for­
ma de "acting-ouf' em que o gozo fálico está ausente. Resta a aposta 
no discurso analítico a partir do ensino de Lacan, oferecendo a 
possibilidade de um vazio, um lugar para o surgimento de um sujei­
to que antes identificava-se ao objeto de consumo. 
Referências bibliográficas 
FREUD, S. "Três ensaios para uma teoria sexual" (1905) . Em: Obras Comple­
tas, Tomo II. Madrid, Biblioteca Nueva, 1973. 
LACAN, J. ''Verdades primeiras". Em: O Seminário, livro 23: o sinthoma. Inédi­
to. Aula de 13 de janeiro de 1976. 
____ . "Discurso de encerramento das Jornadas sobre as psicoses na 
infància" (1967). Inédito. 
____ . "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines" 
Em: Sei/icei, n. 6/7. Paris, Seuil, 1976. 
____ . O Seminário, livro 22: RS.J. (1974-5) . Inédito. 
____ . "La troisiême" (197 5). Em: Lettres de I' École Freudienne, . n. 16, 
1975. 
MILLER, J-A & LAURENT, É. "O Outro que não existe e seus comitês de 
ética" (1996-7). Inédito. 
SOBRE A SEGREGAÇÃ0 1 
Colette Soler 
Membro de la Érole de la Cause Freudienne e da Esrola Brasileira de Psicanálise 
Boa tarde. Penso que não tenho nada de especial para �nsi­
nar a respeito do tema da segregação. Então, apresentarei algumas 
cons iderações. Nada para ensinar, mas talvez algo a dizer-lhes. 
É um fato que hoje o tema da segregação esteja na moda. 
Não somente no que diz respeito aos psicanalistas, mas em todas as 
partes. E não era esse o caso há vinte e cinco anos atrás quando, em 
1 967, Lacan fez sua predição a respeito daquilo que chamava de 
"uma extensão sempre mais intensa dos fenômenos de segrega­
ção". Nessa época, o tema não estava na moda por uma simples 
razão. Especialmente na França, na 'época da revolta estudantil de 
maio de 1 968, funcionava a ilusão, a espera de que talvez houvesse 
uma poss ibilidade de subverter o capitalismo. Parece-me que agora 
ninguém, ao menos em nossos países ditos civilizados, acredita nisso. 
Temos uma tese: a tese de Lacan de 1 967, que faz da segre­
gação, de seu desenvolvimento recente, um efeito, ou melhor, uma 
conseqüência inevitável daquilo que caracterizamos como sendo a 
universalização introduzida na civilização pela ciência. É uma tese 
s imples, forte: segregação, efeito de, conseqüência da universalização. 
Deter-me-ei um momento sobre a universalização. De que 
se trata? Evidentemente trata-se de fazer funcionar um "para to­
dos", ou seja, como se depreende imediatamente, supressão das 
diferenças. E é claro que as diferenças que nos importam são, em 
O Brilho da InFelicidade 
última ins tância, as diferenças ao nível do desejo e do gozo. Tam­
bém é um fato que a universalização que denominamos de "cientifica" 
consiste em uma redução, em uma homogeneização dos modos de 
gozar da civilização. 
Bem, não é de hoje que podemos afirmar que a civilização 
manda no gozo; desde sempre. Mas é verdade que existiram civili­
zações nas quais o arranjo dos modos de gozo passava por outras 
vias. Podemos dizer que passava pelas vias do que Lacan chamou 
de significante mestre. A civilização científica inaugurou a crise do 
significante mestre, a crise deste significante único e unificador, em 
p rove i to da fragmen tação, p o deria quase dizer , d e uma 
esquizofrenização do significante mestre, e isto muda muitas coisas. 
Podemos nos perguntar como se tratavam as diferenças 
antes ou fora da civilização da ciência. Observo que, ao contrário 
do que se diz, às vezes rapidamente, segregação e discriminação 
não são sinônimos. Podemos encontrar civilizações discriminatórias 
mas não segregativas. Sem entrar em detalhes, se pensamos na soci­
edade do Antigo Regime do Ocidente, vemos uma sociedade per­
feitamente discriminatória, ou seja, que definia lugares, espaços di­
ferenciados ou tipos de indivíduos; por exemplo, os nobres e os 
demais, cada um com seus direitos, seus deveres e seus privilégios. 
Se digo cada um com seus privilégios, então era uma sociedade 
com uma discriminação potente, inclusive supostamente fundada em 
um Direito Divino. O Direito Divino não pode se sustentar senão no 
significante mestre, mas não era uma sociedade segregativa. Todos 
juntos, vivendo juntos, inclusive nas mesmas casas. Não somente no 
mesmo país, no mesmo bairro, como também nas mesmas casas. 
Podemos evocar ainda a sociedade escrayista da Antigüida­
de, discriminatória, mas não segregativa. Assim como a sociedade 
da Índia, as castas na Índia, mescladas e discriminadas. Então ve­
mos que quando o significante mestre se encontra potente, permite 
em última instância tratar as diferenças dos gozos (porque as dife-
44 
Colette S oler 
renças dos gozos claramente implicam muitas outras diferenças), 
permite tratar as diferenças dos gozos sem a segregação. 
E por que na civilização científica a única via para tratar as 
diferenças parece ser a segregação? Podemos
entendê-lo, pois a 
universalização é uma universalização que não passa pelo significante 
mestre; é uma universalização que passa pelo que denominamos, 
um pouco apressadamente, de o mercado. Ou seja, que passa por um 
dever que não o da proliferação dos valores dos ideais, mas um 
dever real do manejo dos meios econômicos e, em nossos dias, nos 
deparamos finalmente com zonas cada vez mais extensas nas quais 
a gente, como se diz, vive como os demais (mesmas casas, mesmos 
vestidos, mesmos objetos, mesmos carros etc.). Então, quando se 
manifestam diferenças resistentes, diferenças que não são passíveis 
de redução, ou seja, sujeitos que não entram na distribuição dos 
bens da civilização atual, qual o meio para tratar tais diferenças? É 
um meio que quase podemos denominar de espacial: cada um em 
seu devido lugar, ou seja, uma solução que poderíamos caracterizar 
como sendo pela via da repartição territorial. 
Como podemos acompanhar pelas reportagens, em Zuri­
que, por exemplo, foi demarcada uma zona para os toxicômanos 
em que eles podem fazer o que quiserem, se picarem, ingerirem sejá 
lá o que for, enfün, uma zona em que não há nenhuma proibição e 
na qual os toxicômanos são deixados em paz. Evidentemente é 
aterrorizante ver o que se passa nestas zonas quando as câmeras de 
televisão mostram o lugar. Por isso é qµe Lacan pode dizer essa 
palavra, tão impactante em 1967, ao abordar o nazismo e seus cam­
pos de concentração: precursores. Uma palavra em geral tão posi­
tiva usada para eles: precursores. E, anos depois, veremos o que 
vemos. Efetivamente, começamos a ver. 
Agora, -quero lhes fazer observar outra coisa. Tomamos a 
segregação em geral como um fenômeno negativo. Mas cuidado; 
existe a segregação voluntária. Podem tentar, a fim de se divertirem, 
45 
O Brilho da I nFelicidade 
fazer uma coleção de alguns modos de segregação voluntária. Não 
a segregação suportada apesar de si, mas a segregação eleita. 
Consideremos, por exemplo, a prática que existe em al­
guns países, na França certamente, talvez também na Argentina, 
daquilo que se chama country-dubs. De que se trata senão de um 
modo tranqüilo de segregar-se de uma massa qualquer, certamente 
em nome da idéia da elite. 
Podemos evocar também uma segregação desapercebida, 
a dos es tudantes nos Estados Unidos, sob a maneira de constituir 
parques, parques nacionais de estudantes: os mesmos, com a mes­
ma idade, no mesmo lugar. Podemos evocar ainda as reservas indí­
genas na América, es ta, é claro, um caso de segregação imposta. 
Portanto, deve-se observar que a segregação se apresenta 
como uma via de tratar o insuportável, o impossível de suportar. 
E talvez a pergunta que se imponha seja a de saber se todo 
discurso, digo todo discurso, não seria uma fonte de segregação, 
uma vez que todo discurso é, esta é a tese de Lacan, racista. Lacan 
fala do racismo dos discursos em ação, e temos que entender o que 
ele quer dizer. É 1 ógico que cada discurso é uma ordenação, uma 
ordem de gozo. Todos, inclusive o discurso analítico. Cada discurso 
então procura se instituir, fazer funcionar, captar indivíduos em sua 
ordem, de modo que entre eles há uma rivalidade, uma polêmica, 
uma intolerância. Vê-se muito bem o racismo dos discursos, não sei 
se do discurso analítico. Mas, em todo caso, é evidente no que se 
refere ao discurso do Mestre, ao discurso universitário e ao díscur­
so da ciência. Falamos verdadeiramente de uma maneira às vezes 
pouco recomendável, devo dizer. 
A pergunta de saber se o discurso analítico pode ser não 
segregativo se impõe a mim nos seguintes termos. Ele é, como os 
demais discursos, um discurso discriminatório. Então como esse 
discurso pode evitar a segregação? 
Colei/e S oler 
Quero evocar também, teria sido melhor evocá-lo antes, 
um tratamento da diferença segregativa e positiva. O que é a cultura 
do pitoresco? O que se visa, quando se busca o pitoresco? Busca-se 
um Outro, um Outro com letra maiúscula que não tenha o mesmo 
modo de gozo. E cada uma pega sua câmera e tira fotografias ou 
faz safaris na África. Darei uma volta no lugar do gozo do Outro, 
para assegurar-me de que ele talvez exista sempre. Depois cada um 
sonha com o outro lado do planeta, onde há uma goz.o mais pací­
fico e frutífero. A civilização atual comercia com o pitoresco, há 
todo um comércio que inclusive chega a conservar artificialmente 
as insígnias do gozo Outro para os turistas. Entre a cultura do pito­resco e a segregação eleita ou imposta não há tantas vias para tratar 
as diferenças. E também hi em nossos dias uma crise do pitoresco. 
Não se sabe aonde ir para encontrar um Outro que seja verdadeira­
mente o Outro. 
Devemos investigar também um correlato desapercebido 
da segregação: a ascensão da religião. Lacan afirmou em Televisão 
(1 97 4) que não podemos continuar mais o que ele chama de 
"humanismo obrigado" nos países do Outro, entre aspas, pois daí 
Deus recobrará suas forças. O que isto significa? Significa que Deus 
cada vez mais resta como a única figura, o único nome do lugar do 
gozo Outro. Outro distinto do nosso fragmentado e que se conso­
me nos pequenos mais-de-gozar que conhecemos. O que fazer en­
tão com os processos de segregação? 
Começamos a perceber que protestar não muda muito as 
coisas. Pode inclusive reforçá-las. Não protestar tampouco parece 
ser muito satisfatório; seria uma forma de resignação. Observo que a universalização produz, ao lado dos processos de segregação, ide­
ologias próprias, correlativas da universalização. E à qual cada um 
de nós adere. 
A ideologia dos Direitos Humanos é uma secreção dos 
processos de segregação, um protesto em um mundo no qual cada 
47 
O Brilho da lnFe/icidade 
indivíduo começou a ser um instrumento do mercado; neste ponto, 
podemos sempre nos referir a Karl Marx. O muro de Berlim caiu, 
o comunismo foi um fracasso, mas a análise de Karl Marx não esta 
totalmente invalidada por isso. Não só a instrumentalização genera­
lizada dos indivíduos de nossa civilização parece hoje patente, como 
a distribuição não igualitária dos benefícios do progresso - supos­
to progresso da ciência-também o é. Dessa forma, temos não só 
mais segregação como também um discurso de igualdade dos di­
reitos e a reivindicação pela justiça distributiva. Todos podem apro­
veitar do pouco de satisfação, podem desfrutar do que a civilização 
permite. Não tento explicar-lhes que devemos pensar de outro 
modo, mas lhes faço observar que essas ideologias de justiça 
distributiva poderiam ser descritas como uma função, se escrevo a 
função com um P, não para evocar o pai, porém para evocar o que 
mais ou menos se chamou desde o século XVIII de progresso, para 
evocar todos os bens que a civilização tem que distribuir a cada um. 
A ideologia comum para todos é P função do progresso. 
Como o discurso psicanalítico poderia ser não segregativo 
uma vez que, como todo discurso, institui uma ordem do gozo e 
da falta de gozo? E uma vez que de todos os discursos que conhe­
cemos, ele o único que não preconiza a justiça distributiva? Não 
sei . . . devemos entender bem o que Lacan diz quando sustenta que o 
analista não é o Cervantes da justiça distributiva, ou seja, da justiça 
que distribui de maneira igual para cada um. Há aqui um pequeno 
problema teórico para ser resolvido. 
Temos a civilização que certa vez chamei de unissex. Ou 
seja, que todos são parecidos e o 'todos' inclui homens e mulheres. 
Uma civilização unissex e que funciona. É divertido ver até que 
ponto funciona o unissex em todas as partes. Homens e mulheres 
podem agora fazer as mesmas coisas. Evidentemente, quase tudo. 
Vamos deixar de lado a zona de exceção que faz -1 ao todo: a zona 
da relação sexual. Mas o espaço que do todo não pertence à relação 
48 
Colette S oler 
sexual é aparentemente
o da igualdade. Por exemplo, acabamos de 
ver pela televisão Isabel Ortiz ganhar sozinha pela primeira vez a 
corrida da volta ao mundo com uma diferença de vinte e quatro 
horas sobre o segundo colocado. Em todos os campos vemos que 
as performances, que outrora pertenciam à parte da população cha­
mada de masculina, aparentemente se misturam. 
Então, como situar a civilização unissex e o discurso analíti­
co? Fazemo-lo evidentemente dedicando-nos ao "quase", daquilo 
que chamava de "quase todos são iguais". O discurso analítico se 
dedica a curar os sintomas renegados da esfera sexual. Dessa for­
ma, tem a peculiaridade de resistir mais que os demais discursos à 
ideologia igualitária. O discurso analítico pretende escapar à segre­
gação pela via do um por um, o que é astuto. Ou seja, é um discur­
so que aparentemente não segrega ninguém, salvo o fato de que 
todos não entram, que todos não podem entrar. Assim, o psicana­
lista sabe que o pitoresco, cada vez mais raro no planeta, agora se 
encontra unicamente em casa, no domicilio, ou seja, entre os sexos. 
Lacan afirmou que Deus se sustentará novamente sob o 
fundo dos processes de segregação. E também evocou a mulher 
como uma figura de Deus . . . Então talvez não seja do outro lado do 
planeta que para o discurso analítico ocorra a discriminação maior. 
Esta encontra-se em casa, mais precisamente na cama. 
Há tentativas de tratar no mundo esta discriminação que a 
psicanálise cultiva, a discriminação sexual. Discriminação quer dizer: 
diferença afirmada e mantida. Portanto temos que seguir o que os 
termos querem dizer, quando Lacan escreve as fórmulas da sexuação; 
ele escreve fórmulas de discriminação, no sentido de diferença, pre­
cisarrl:ente situadas e definidas. Digo que esta discriminação sexual é 
talvez um dos últimos pontos que o discurso universalizante da 
ciência não logra reduzir; ele tenta, mas não o consegue completa­
mente. Devemos observar que em algumas partes se tenta tratar 
esta discriminação em termos de segregação. Os "lobl?J gcry'' nos 
49 
O Brilho da InFeliddade 
Estados Unidos são tentativas de segregar os sexos discriminados. 
E certo que es ta não é a linha da psicanálise. E ainda que não possa 
muito sobre esse ponto, ela não vai nesta direção. 
Até agora, não falei dos toxicômanos. Por que se segregam 
os toxicômanos? Na realidade, teríamos que pensar sobre a toxico­
mania e seus correlatos, as condutas correlativas que não são toxi­
cômanas, mas em geral de delinqüência. o fato de que o toxicôma­
no, para obter a droga, deve ter dinheiro, já que, como toxicômano, 
não é um grande trabalhador, não é rico - se fosse rico, isto seria 
uma solução para ele - e cai na delinqüência quase automatica­
mente. E por isso que agora começa com intensidade, ao menos na 
França, não sei se aqui, o tema das drogas substitutivas. Todo o 
tema da Metadona ou da venda livre das drogas está em discussão, 
mas podemos tratar o elemento delinqüência separadamente, per­
manecendo o problema do toxicômano. 
É verdade que se trata de uma pergunta saber se podemos 
tratar a toxicomania como um sintoma. Podemos fazê-lo, se toma­
mos o sintoma no sentido mais amplo da palavra. Ou seja, um 
tratamento de gozo. Quando dizemos o toxicômano, falamos de 
uma figura de gozo. Há muitas figuras de gozo, entre elas o cínico. 
Lacan evocou que se tratava de uma figura completamente diferen­
te. Direi, sem maiores explicações, qual é a minha idéia. O toxicômano 
é um insubmiuo ao gozo universalizado da civilização. Quer ele o saiba ou não. 
Ele não o sabe, ou seja, é alguém que se recusa a entrar no que 
chamamos de o gozo fálico, visto que o gozo fálico não é apenas o 
gozo do órgão, mas também o gozo que sustenta toda competição 
social, toda a circulação da competição no mundo social. Ele se 
põe de lado, não entra, não aceita correr como todos os demais 
para fazer uma carreira, para afirmar-se e alcançar algo na vida, ou 
seja, tudo o que em geral alguém sonha para seus filhos: uma reali­
zação social. O toxicômano se recusa a entrar na carreira. Curiosa­
mente é a mesma palavra que se encontra em "carreira universitá­
ria"; é um equivoco excelente." E, evidentemente, inclusive se subtra-
5 0 
Colette Soler 
únos as conseqüências da delinqüência que a toxicomania implica 
em si mesma; como insubmissão ao gozo fálico competitivo ( o que 
alguns chamam, em publicidade, de agressividade comercial neces­
sária aos chefes para seguir carreira), ele é um perigo para a civiliza­
ção da ciência, para o mercado etc. A toxicomania é um perigo 
porque se ela é reduzida, é possível criar mais áreas como as de 
Zurique. Mas se ela começa a se multiplicar . . . Ou seja, o toxicôma­
no faz greve, a greve do falo. Neste sentido, eu me perguntava acerca do 
que ele tem em comum com o cínico. 
O cínico moderno é uma figura bas tante difícil de situar. O 
cinismo de Diógenes era um cinismo de exceção. Diógenes é a 
figura emblemática da filosofia que se chamou Cinismo. Em minha opiniã�. o cinismo de Diógenes era completamente diferente do 
cinismo moderno; era um cinismo que tinha um interlocutor: o 
mestre antigo, Alexandre. Podemos dizer que Diógenes não se con­
tentava somente com gozar de seu órgão em seu tonel; ele contes­
tava Alexandre, ou seja, era uma figura de protesto e de opos ição 
ao mestre antigo. 
O cinismo moderno é definido por um cada um cultiva 
seu pequeno gozo pessoal. Este nada tem de subversivo. Trata-se 
de um todos como os demais e talvez . . . cada um esperando ter um 
pouco mais que o vizinho. E por isso crê que o vizinho tem o 
pequeno "mais", porque ele próprio quer tê-lo. 
O cinismo moderno não tem qualquer virtude subversiva. 
Em minha opinião, é uma figura do homem moderno que não tem 
mais significantes ideais consistentes. É ao mesmo tempo divertido 
e bastante triste ver o que se passa hoje com os escândalos na Itália, 
na França e suponho que também aqui . Escândalos, escândalos, 
escândalos . . . e no fim a gente pede alguém que sirva de exceção. 
Vamos buscar finalmente alguém que seria íntegro. Buscamos, bus­
camos, como dizia Diógenes com sua lanterna: "Busco um ho­
mem". Nós buscamos um que não seria um cínico abusivo. 
5 1 
O Biilho do I nFe/icidade 
Temos uma crise dos canalhas. Há uma crise ao nível dos 
canalhas na civilização da ciência. Porém cuidado: o cínico e o cana­
lha não são a mesma coisa. São duas figuras opostas, ao menos na definição de Lacan. Lacan tem uma definição muito precisa do 
canalha, que não é uma figura do gozo. Ele chama de canalha a posição de alguém que tenta se fazer de Outro, que tenta dividir o desejo e mandar no gozo do Outro. Por isso chama os filósofos, 
por exemplo, de canalhas. Parece um pouco surpreendente, figuras tão nobres. Lacan fala da canalhice filosófica e, às vezes, também 
do mestre como canalha. Ou seja, aquele que tenta mandar no desejo, 
aquele que diz fazer-se de Outro para - alguém. 
Há uma crise agora a respeito da sustentação dos canalhas; 
eles necessitam do significante mestre para dirigir, para assegurar seu poder de direção. E. uma vez que os ideais já não são consisten­
tes, há uma crise neste nível. Quando todos se tornam cínicos, é 
difícil para os canalhas dominarem. Porque o cínico não se domina, 
o cínico é dominado pelo seu próprio gozo. 
Então o toxicômano tem em comum com o cínico sua 
oposição ao regime generalizado do gozo fálico; ele é o elemento 
de oposição, de objeção. O que mais há de comum entre o cínico e 
o toxicômano? Não é o tipo de gozo. E é verdade que o horizonte 
do toxicômano, o mestre último do toxicômano, é a morte. Um 
gozo mortífero. Às vezes é possível descrever os estados produzi­
dos pela droga como paraísos. Seja ou não o inferno, de todo modo 
inferno com algumas drogas ou paraíso com outras, o horizonte é 
sempre a morte. Então é uma figura não somente

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