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Introdução Crítica à Criminologia Brasileira

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Prévia do material em texto

VERA MALAGUTI BATISTA
Professora Visitante de criminologia da Faculdade de Direito da UERJ
Secretária-Geral do Instituto Carioca de criminologia
INTRODUçãO CRíTICA
À CRIMINOLOGIA BRASILEIRA
Editora Revan
Copyright © 2011 by Vera Malaguti Batista
Todos os direitos reservados no Brasil pela lEditora Revan Ltda. Nenhuma parte
desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrónicos
via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da editora.
ou
Revisão
Roberto Teixeira
Vanessa Salustiano
impressão
(Hm papel off-set 75g. após paginação eletrónica, em ripo Garamond, c. '11/13)
Divisão Gráfica da Rditora Revan
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Rdi tores de Livros, RJ.
à memória viva
de Simon, Lygia e AbadiaB337i
Batista, Vera Malaguti, 1955-
Introdução crítica à criminologia brasileira / Vera Malaguti Batista. - Rio de Janeiro
Revan, 2011, 2a edição, julho de 2012, 2' reimpressão, 2015.
128 p. ; 21 cm
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7106-420-1
1. Criminologia - Brasil. 2. Direito penal - Brasil. I. Título.
CDU: 343.9CDD: 36411-6136.
02984226.09.1119.09.11
SUMÁRIO
Prefácio insubstituível /9
Introdução /13
Capítulo I -Pensando a questão criminal /15
Capítulo II- Criminologia e política criminal /2
Capítulo III — Genealogia da criminologia /3
Capítulo IY-Positivismos /41
Capítulo V — A criminologia e os saberes psi /51
Capítulo VI — A sociologia na criminologia /65
Capítulo YII — O rotulacionismo e a criminologia liberal /73
Capítulo VIII — O marxismo e a questão criminal /79
Capítulo IX — Enfim, a criminologia crítica /89
Capítulo X — O grande encarceramento /99
Epílogo: histórias tristes /113
Referências bibliográficas /116
PREFáCIO INSUBSTITUíVEL
Relutei em aceitar o convite da Prof Verinha Malaguti Batista
para que fizesse uma apresentação deste seu novo trabalho. Dentro
da lógica dos impedimentos e suspeições processuais, parecia-me que
eu seria o último entre os inúmeros colegas habilitados a prefaciar a
Introdução crítica à criminologia brasileira que ela escrevera para seus alu¬
nos de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -
UERJ. Contudo, após iniciar a leitura, aquela relutância inicial foi subs¬
tituída por uma convicção radicalmente oposta, no sentido de que eu
seria o único apresentador legitimado do livro. Deixo para mais tarde
as razões que tornam este breve prefácio insubstituível. Tratarei, por
ora, de ressaltar — e isto muitos colegas poderiam, sim, fazer melhor
do que eu — os múltiplos merecimentos do trabalho.
Em primeiro lugar, é muito bem-vinda essa síntese apaixonante
do “curso dos discursos” criminológicos que a autora elaborou, por¬
que pode contribuir para qualificar o debate entre nós. É diocante o
nível de desinformação (quase escrevi ignorância) com oqual a crónica
midiática trata a questão criminal. Pior ainda é a nada inocente simpli¬
ficação das posições teóricas que, segundo tal crónica, se digladiam.
Ouçam um debate no rádio, pela manhã, ou leiam um colunista
criminólogo no jornal: haveria dois campos, o daqueles que, pela “es¬
querda”, acreditam que o crime se deve a causas sociais, e o daqueles
(os “realistas”, de “esquerda” ou de “direita” — a mesma coalizão “cida¬
dã” cujos representantes inventaram em 1988 os crimes hediondos)
que envolveriam no assunto uma causalidade, sem trocadilhos, moral e
cívica. Esse senso comum criminológico midiático não percebe que
sua grosseira classificação opõe duas tendências submetidas ao mesmo
paradigma etiológico, que recebe como dado (dogma) um delito assim
quase naturalizado, em busca de cujas causas caberia à criminologia
empenhar-se . Esse é olimite desse saber criminológico: o direito posi¬
tivo. Para a criminologia dos noticiários, está interditado o debate sobre
a própria lei penal e sobre o desempenho histórico real das agências
estatais encarregadas de sua aplicação e da execução das penas aplica-
9
das. O formidável processo de criminalização da massa empobrecida
transição do capitalismo industrial, a saga cruel dos sistemas peni¬
tenciários neoliberais [supermax, privatizações, RDD [Regime Discipli¬
nar Diferenciado] etc), os avanços de dispositivos invasivos típicos do
estado de polícia, a beatificação da tortura, a policização da vida públi¬
ca, a “indústria do controle do crime”, tudo isto está fora da criminolo¬
gia da grande mídia. A questão permitida, aquela que pode ser resolvi¬
da nos programas policialescos, é: por quê?! Por que Fulano matou?
Por que Beltrano roubou? Por que Sicrano falsificou? Essa é a primeira
virtude deste livro. Aí está, numa centena de páginas, uma síntese ex¬
pressiva e didática da reflexão e das lutas criminológicas. Então, rapazi¬
ada, vamos ler para não ficarem repetindo que a pobreza é (ou não)
causa do crime ou que os pobres procuram o crime (quando ocorre
exatamente o contrário: o crime-enquanto criminalização secundária— é que procura os pobres).
A segunda virtude desta Introdução está na coerência - quase
escrevi sinceridade — teórico-metodológica. O leitor não encontrará
aqui aquele texto cujo autor esconde ciosamente suas inclinações e
preferências, refugiado numa suposta “neutralidade científica”, ou numa
confraternização ecuménica de opiniões. Aliás, perante os processos
contemporâneos de criminalização massiva, que se resolvem no
encarceramento ou na vigilância, vizinhos tantas vezes do genocídio, o
que significaria “neutralidade científica”? Neste pequeno grande livro,
cujas fontes inspiradoras são lisamente declaradas a cada passagem, a
autora fala o tempo todo a partir do modelo teórico que abraça, e do
qual provém o fio condutor que lhe permite descer pela torrente dos
discursos criminológicos sem se perder em algum igarapé positivista,
sem encalhar num banco de areia fúncionalista.
E isto é feito-chegamos à terceira virtude-através de uma escrita
primorosa que cativa o leitor, que o atrai às vezes para o cinema, para um
filme de Scorsese, às vezes para a tragédia dos criminólogos críticos per¬
seguidos pelo nazismo. As urgências postas pela brutalidade dos siste¬
mas penais contemporâneos fazem do presente o centro de gravidade
do trabalho, e isso deixa sinais na predominância do presente histórico
na narrativa. Pouco dessa história “foi”, quase tudo ainda “é”.
Especial referência merece o fato de ser um trabalho destinado
a estudantes de direito (muito embora as demais ciências sociais, par¬
ticularmente entre nós, andem bem necessitadas de uma arejada nes¬
se campo). Houve na América Latina, há três décadas, um debate
sobre a importância da criminologia para o direito penal; é fácil en¬
contrar os artigos da polêmica em revistas especializadas (Capítulo
Criminolôgico, Doutrina Penal). Entre os tantos privilégios que me bene¬
ficiaram na vida acadêmica, pude estar perto desse debate, que opu¬
nha, de um lado, a liderança intelectual tão frutuosa de Lola Aniyar de
Castro e, deoutro, o fino penalista Eduardo Novoa Monreal, oheroico
ministro daJustiça de Salvador Allende. Naquela ocasião, lembro-me
de que Lolita o registrou num artigo, fiquei ao lado da criminologia:
para mim, era não apenas um jardim ao lado do direito penal, mas o
jardim, a rota de fuga por onde os penafistas poderiam libertar-se dos
ferrolhos metodológicos que, desde o neokantismo, os impediam de
olhar para a realidade histórica e as funções políticas dos sistemas
penais. '
na
Eu poderia protelar um pouco mais o prazer do leitor, mas que¬
ro chegar logo ao ponto do prefácio insubstituível. É que,
Introdução, a autora sugere que nossos amigos e nossos alunos guar¬
dem este livro perto de um outro, de um livrinho que escrevi há um
quarto de século, chamado Introdução crítica ao direito penal brasileiro, e
que talvez tenha ajudado a se iniciarem nessa disciplina jurídica al¬
guns milhares de estudantes de direito, pela generosidade de tantos
colegas que o recomendaram. Quero enfaticamente subscrever a su¬
gestão da Prof Verinha Malaguti Batista. Não consigo ver melhor
lugar na estante para seu novo livro doque bem ao lado do meu. E
quando, na prateleira onde estarão para sempre juntos os dois livros,
o tempo os consumir, num mundo no qual talvez o papel seja um
produto raro, as traças que de um passarem para o outro serão como
aquela vinha e aquela roseira plantadas nos túmulos de Tristão e de
Isolda, cujas folhas insistiam em entrelaçar-se, como a sinalizar que,
ao contrário da vida, os amores podem ser eternos.
em sua
Nilo Batista
1110
INTRODUçãO
“Uma teoria é uma hipótese de trabalho, apenas, e nesse sentido tanto é
útil o método histórico-cultural como o psicanalítico ou qualquer outro.
O que vale é a fecundidade dos resultados. O que vale são os fatos”
Arthur Ramos
Foi difícil escrever este livro. Imaginava mais um livro de cri¬
minologia, mais um manual, repetição em série de uma perspectiva
linear de “escolas” teóricas produzidas no Hemisfério Norte. Ten¬
tei em vão fugir desse modelo, mas, de certa maneira, era impossí¬
vel não adentrar nesse território comum. Este livro é então uma
aproximação polídca e pessoal da criminologia a pardr dos cursos
que tenho ministrado na academia, nos movimentos sociais, em
seminários políticos. Quis fazê-lo na linha que minha mestra Gizlene
Neder me ensinou: a partir da história social da ideias.
Este livro é marcado por algumas influências definitivas: a
primeira é Nilo Batista. Daí o título, Introdução crítica à criminologia
brasileira. É uma homenagem em si, inspirada que foi na sua funda¬
mental Introdução crítica ao direito penal brasileiro (peço a quem curte e
gosta de nossa história particular que, ao guardar este livro, bote-o
na estante ao lado dele...). O livro de Alessandro Baratta, Criminolo¬
gia crítica e crítica do direito penal, foi o meu grande lastro, meu
sistematizador crítico e denso. A releitura do magistral Criminologia:
aproximación desde un margen me reinspirou a aprofundar e levar adi¬
ante o realismo marginal de Zaffaroni. Minha outra grande mestra,
Rosa Del Olmo, aparece como referência de uma criminologia que
possa servir às lutas da América Latina, às quais pertenço. Lola Aniyar
de Castro fulgura como um estandarte latino-americano na conten¬
ção do poder punitivo. A leitura recente do monumental livro do
professor argentino Gabriel Ignácio Anitua me aprofundou sabe¬
res e a perspectiva de que lidamos com histórias (no plural) dos
13
pensamentos criminológicos. Rusche, Foucault, Melossi e Pavarini
são escolas: estão dentro disso tudo que falei, dando direção, atua¬
lizando a obra de Marx na questão criminal. Aliás, é em Marx que
tudo começa. Só os tolos podem achar que a obra marxista está
superada; ela só será superada quando derrotarmos o capitalismo.
E, modestamente, gostaria de contribuir para isso ao desconstruir
as relações entre a pena e o capital.
Por falar em desconstrução, venho também, ao longo do tem¬
po, desconstruindo a metodologia sociológica e o mal que ela tem
imposto aos saberes/poderes ao longo do tempo: positivismo, fun¬
cionalismo, teorias dos sistemas etc., todas essas tentativas de clas¬
sificar e hierarquizar, desistoricizar, despolitizar as lutas dos pobres
no mundo: são eles, sempre, o alvo dos sistemas penais capitalistas.
Tenho chamado a atenção, também, sobre a sociologia colabora¬
cionista que empresta sua energia ao eficientismo acrítico dos mer¬
cados contemporâneos de “segurança pública” e “direitos huma¬
nos”. Como disse Darcy Ribeiro, na luta ideológica contra a antro¬
pologia americanófila, querem discutir o barroco alemão durante o
bombardeio de Dresden. Darcy tentou, com Getúlio,Jango e Brizola,
salvar os índios, os pobres brasileiros e seus meninos. Não se ilu¬
dam: este livrinho tolo está dedicado a essas mesmas querelas, à
mesma paixão pelo Brasil e pelo povo brasileiro. Esta introdução é
só o começo de um mergulho na questão criminal na História do
Brasil. Peço ao leitor, assim, perdão e paciência.
CAPíTULO I
PENSANDO A QUESTãO CRIMINAL
Comecemos por situar o marco em que vamos trabalhar; esse
território de fronteiras confusas, transdisciplinar por excelência, mo¬
vendo-se do direito penal para a história, a sociologia, a psicanálise, a
economia política, a literatura, a comunicação, a geografia. Areias
movediças. Nosso objeto não é ontológico, não está dado pela natu¬
reza como o mar e os peixes, é uma construção histórico-social por¬
tadora de medos e perigos concretos, o principal deles naquele dile¬
ma que o urbanista Carlos Nelson dos Santos1 enunciava ao analisar
a metodologia do trabalho de campo: o problema consiste em inven¬
tar um instrumento de observação que não seja uma parafernália tão
complexa que afaste o objeto em vez de aproximá-lo.
A criminologia aparece como tal, historicamente, na conflu¬
ência de um discurso médico-jurídico na virada do século XIX na
Europa Ocidental. Vamos trabalhar com um conjunto de defini¬
ções. Para Lola Aniyar de Castro, é a “atividade intelectual que estu¬
da os processos de criação das normas penais e das normas sociais
que estão relacionadas com o comportamento desviante dessas
normas; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas infra¬
ções ou desvios tenham provocado: o seu processo de criação, a
sua forma e os seus efeitos”.2
Essa definição abrangente e crítica já se contrapõe à definição
positivista dos manuais jurídicos: exame causal-explicativo do cri¬
me e dos criminosos.
Cf. SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentosurbanos no Rio deJaneiro. Rio de
A cidade como um jogo de cartas. Niterói: Universitária,
,;SEGAWA, Hugo. Arquiteturas do Brasil 1900-1990. São Paulo: Editora
et al.Quando arua vira casa. São Paulo: Projeto Arquitetos
Janeiro: Zahar, 1981.;
1988;
da USP, 2" ed. 1999.;
Associados, 1985.
2 CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense,
1983, p. 52.
14 15
Raúl Zaffaroni me encantam: a criminologia seria “saber e arte de
despejar discursos peiigosistas” e nada mais do que o “curso dos
discursos sobre a questão criminal”.5
Todos esses marcos teóricos e definições nos conduzem a tra¬
balhar a criminologia na perspecdva da história social das ideias,
através daquilo que Zaffaroni chamou de aproximações marginais. No
curso dos discursos, falamos da margem brasileira. O caudaloso rio
criminológico segue seu curso. A nossa história não é linear, nem
evolutiva; ela é feita de rupturas e permanências. Se a história da
criminologia é uma acumulação de discursos,'1 podemos ver o
positivismo como uma grande permanência: transfigurado em fun¬
cionalismos, estruturaismos e outros ismos, mas sempre lá, como
um corpo teórico, umt maneira de pensar e pesquisar que sempre
nos afastou do nosso povo. Aliás, a pergunta de Zaffaroni (como
pôde Lombroso florescer na Bahia?) é atual: que dispositivos fo¬
ram necessários para inculcar tão profundamente um corpo teórico
que é contra nós mesnos?
nossa perspecliva é oswaldianamente antropofágica: como
recebemos e digerimos as teorias do centro hegemónico. É
dilema da reconstrução das criminologias críticas, suas traduções trai¬
doras, seus objetos transplantados, suas metodologias reinventadas.7
De que maneira a criminologia faz parte da grande incorporação
colonial no processo civilizatório? Quantas rupturas criminológicas
serão necessárias para reconstruir nosso objeto, nossa metodologia,
a nosso favor?
Na genealogia dossaberes/poderes, Michel Foucault foi um divisor
de águas. Trabalhamos as histórias dos pensamentos criminológicos
Anitua apresenta a tradução simples e cabal do grande
criminólogo estadunidense Edwin Sutherland: a criminologia seria
o corpo de conhecimentos que observa o delito como fenômeno
social. Sua singela locução em inglês é mais expressiva ainda. O
objeto da criminologia seria “making the law, breaking the law and the
social reaction to it”? Alessandro Baratta trabalha com o enfoque
macrossociológico, que historiciza a realidade comportamental, ilu¬
minando as relações com a estrutura.4 Para Baratta, a tarefa funda¬
mental da criminologia é realizar a teoria crítica da realidade social
do direito, na perspeclivade um modelo integrado de ciência penal.
Para ele, o jurista seria um cientista social que domina uma
técnica jurídica. Ele convida seus leitores a levantar os olhos de sua
mesa de trabalho, na torre de marfim, e olhar pela janela. Na forma¬
ção jurídica acadêmica do Brasil, os alunos são privados dessa mira¬
da de longo alcance: são convencidos de que essa técnica é ciência e
são privados de conhecer história, filosofia ou sociologia. Conhe¬
cem, no máximo, a história do direito, a filosofia do direito e a
sociologia do direito. A proximidade e o acesso ao poder resolvem,
na prática, as limitações decorrentes desse saber compartimentado.
Griminólogos críticos fundamentais como Dario Melossi,
Massimo Pavarini e Roberto Bergalli afastaram-se dos desvãos
criminológicos positivistas para trabalhar o objeto na perspectiva
do controle social.
O grande jurista brasileiro Heleno Fragoso trabalhou o direi¬
to penal como parte da política social: a criminologia seria a
interlocução entre a parte e o todo. Enfim, não faltarão definições
simples ou complexas da criminologia. Mas duas aproximações de
A
esse o
5 ZAFFARONI, Eugenio llaúl. Criminologia: aproximación desde
Temis, 1988.
6 Cf. a interessante dissertação de mestrado de André Magalhães Barros (A acumulação
dopoderpunitivo no Brasil. |Meítrado cm Direito Penal, Processo Penal e criminologia]
- Programa de Mestrado em Direito da UCAM-Ccntro, 2006).
SOZZO, Máximo. “Rcconstruycndo las criminologias críticas”. In: Cuadernos de
DoutrinayJurisprudência Penal ano VII, n"13. Buenos Aires: Ad I Ioc/Villela Editor,
2006.
margen. Bogotá:un
3 Pretendo fugir das citações sistemáticas c dos enormes pés de páginas dos manuais
c, com toda a honestidade acadêmica, peço t]ue consultem e mergulhem, como eu
fiz, no livro de Gabriel Ignácio Anitua, Historiados Pensamentos Criminológicos.Tradução
de Sérgio Lamarão. Rio deJaneiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2008.
4 Cf., sempre, BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e critica do direito penal:
introdução à sociologia do direito penal Tradução deJuarez Cirino dos Santos, 3’ ed. Rio
deJaneiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2002.
1716
classes”. O capital precisou sempre de um grande projeto de
assujeitamento coletivo, de corpo e alma. A culpa e a culpabilidade,
propostas pela Igreja Católica e pelo Estado, constituíram-se nos
alicerces fundamentais da subjetividade e das práticas da pena.
É por isso que todas as definições da criminologia são atos
discursivos, atos de poder com efeitos concretos, não são neutros:
dos objetivos aos métodos, dos paradigmas às políticas criminais.
Aqui reside o enigma central da questão criminal. Talvez seja essa a
lição principal do inspirador livro de Pavarini10: para entender o
objeto da criminologia, temos de entender a demanda por ordem
de nossa formação económica e social. A criminologia se relaciona
com a luta pelo poder e pela necessidade de ordem. A marcha do
capital e a construção do grande Ocidente colonizador do mundo e
empreendedor da barbárie precisaram da operacionalização do po¬
der punitivo para assegurar uma densa necessidade de ordem. Es¬
peramos tentar aprofundar essa reflexão daqui do lado selvagem.
como ideologias, teorias, discursos sob intenso e constante risco de
se constituírem em racionalizações justificadoras da repressão ili¬
mitada e da morte, como nos ensinou Zaffaroni.
Para Marc Bloch, o demónio dò historiador é a angústia pela
origem.8 É também Zaffaroni quem afirma que a criminologia não
“começa” na virada do século XIX para o XX, mas no saber/poder
médico-jurídico introduzido pela Inquisição. Para ele, O martelo das
feiticeiras seria o primeiro livro de criminologia, os demonólogos
seriam os primeiros teóricos e os exorcistas, os primeiros clínicos.
O cenário erguido naquele então, com seus dispositivos, não dei¬
xou mais de se instaurar ao longo dos séculos: estabeleceu-se um
tipo de procedimento que iria criar uma demanda por uma cena
judiciária que necessitava de um saber complementar: o saber mé¬
dico. Era o cirurgião que comprovaria o punctum diabolicum, evidên¬
cia pioneira e necessária para legitimar e comprovar a existência e a
etiologia do mal.9 A criminologia não se esboçaria, então, no
iluminismo, mas já naquele século XIII, nos primórdios da
Inquisição, no estabelecimento da confissão, com a implantação
dos procedimentos do poder punitivo. Enfim, uma questão política
ligada ao movimento de centralização do poder da Igreja Católica,
às estruturas nascentes do Estado e à gestação lenta e constante do
capital.
Quando escolhemos percorrer a questão criminal através da
história das ideias, nos alinhamos à grande ruptura epistemológica
realizada por Karl Marx. Tanto em O Capital, como na Ideologia ale¬
mã ou na Crítica ao Programa de Gotha, Marx acusava o caráter formal
da igualdade proposta histórica e materialmente pelo processo de
acumulação do capital. Na prática, a questão sempre foi simbiótica
à conflitividade social presente no que ele definiu como “luta de
8 BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América,
Apologia da História: ou o ofício de historiador, 1“ ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
9 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Etcurso de la criminologia. Aula proferida no Programa
de Mestrado em Direito/UCAM-Centro. Rio de Janeiro: mimeo, 2000.
s.d.;_
10 PAVARINI, Massimo. Controly Domination: teorias criminológicas burguesasy prcyecto
hegemónico. México: Siglo Veinteuno Editores, 1983.
1918
CAPíTULO II
CRIMINOLOGIA E POLíTICA CRIMINAL
Sempre começo meus cursos de criminologia tentando
desconstruir o conceito de crime como algo ontológico, que teria
aparecido na natureza como os peixes, os abacates e as esmeraldas.
Entender o crime como um constructo social, um dispositivo, é o
primeiro passo para adentrarmos mais além da superfície da ques¬
tão criminal.
Nilo Batista, ao falar sobre “a grande criminalidade económi¬
co-financeira”, propõe um giro axial no objeto de reflexão:
Promoverei, intencionalmente, uma alteração no objeto da re¬
flexão, proposto como “a grande criminalidade econômico-fi-
nanceira”. Há diversos motivos para efetuar tal alteração. Em
primeiro lugar, há muito tempo — sob o influxo das tendências
criminológicas críticas de algum modo enraizadas no
rotulacionismo — desconfio das pretensões de objetividade da
expressão “criminalidade”. E, de fato, se considerarmos a
seletividade operativa dos sistemas penais e seu reflexo na cha¬
mada cifra oculta, a “criminalidade” — entendida como o so¬
matório das condutas infracionais que se manifestam na reali¬
dade social — é sempre um incognoscível, do qual não temos
como nos aproximar segundo critérios metodologicamente
confiáveis. Nossa possibilidade de conhecer a “criminalidade”
económico-financeira, nesse sentido, é a mesma de conhecer¬
mos a “criminalidade” dos abortamentos ilícitos ou talvez, não
fora a abolitio criminis de um ano e meio atrás, a dos adultérios.
Se alguém, desprezando os arquivamentos e as absolvições que
tornam a incorporação dos dados dos inquéritos um
contrassenso em colisão direta com a presunção de inocência,
argumentasse que poderíamos nos satisfazer com os indicado¬
res das estatísticas policiais, eu lhe responderia desde logo que
21
■Li
então já estaríamos tratando da “criminalidade registrada”, e
não da “criminalidade” simplesmente, esse conceito sugestivo
de uma falsa totalidade que, não obstante, cumpre no discurso
político-criminal tarefas ideologicamente importantes. Mas,
sobretudo, eu tentaria convencê-lo de que é muito mais verda¬
deiro chamarmos a “criminalidade registrada” de criminalibação,
porque a seletividade operativa do sistema penal, modelando
qualitativa e quantitativamente o resultado final da criminaliza-
ção secundária — isto é, quem e quantos ingressarão nos regis-
faz dele um procedimento configurador da realidade
social. Podemos acreditar ou não que o número de carros que
ultrapassaram a velocidade permitida (“criminalidade”) é idên¬
tico ao número de multasimpostas, sob esse motivo, pelas au¬
toridades do trânsito (criminalitçação); mas é apenas neste segun¬
do número, em verdade um construto humano (na dependên¬
cia de fatores tão distintos quanto os humores do guarda, a
localização da câmera de vigilância etc.) que poderemos estu¬
dar a incidência das transgressões. Por que afastá-lo das condi¬
ções sociais concretas nas quais é produzido (criminalitçação), para
atribuir-lhe uma pretensão de objetividade tão falsa quanto a
totalidade que tenta representar?"
ordem que vão mudando no processo de acumulação de capital.
Para compreender o seu léxico, seu vocabulário, sua linguagem, te¬
mos de ter a compreensão da demanda por ordem.
A política criminal também está historicamente subordinada a
essa demanda. Nilo Batista trabalha a política criminal como o con¬
junto de princípios e recomendações para a reforma ou transfor¬
mação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua apli¬
cação.13 O conceito de política criminal abrangeria a política de se¬
gurança pública, a política judiciária e a política penitenciária, mas
estaria intrinsecamente conectado à ciência política.
A partir da crítica das exposições globais articuladas entre crimi¬
nologia, direito penal e política criminal em von Liszt, a criminologia já
não estaria em busca das causas da delinquência e dos meios para pre-
veni-la, e a política criminal não se reduziria à função de “conselheira
da sanção legal” lastreada na aceitação legitimante da ordem legal.
A partir de Foucault, Zaffaroni trabalha a criminologia como
uma questão política que provém do século XIII, da conjuntura do
início do processo de centralização do poder da Igreja Católica e do
Estado, do processo de acumulação de capital e de poder punitivo
que começa operar a tradução da conflitividade e da violência no
sentido “do criminal”.14
A questão criminal se relaciona então com a posição de poder
e as necessidades de ordem de uma determinada classe social. As¬
sim, a criminologia e a política criminal surgem como um eixo es¬
pecífico de racionalização, um saber/poder a serviço da acumula¬
ção de capital. A história da criminologia está, assim, intimamente
ligada à história do desenvolvimento do capitalismo.
É nessa cadência, nesse baião de Marx com Foucault, que a
criminologia crítica, em especial a de Zaffaroni, trabalha o século
XIII como um marco na mudança das relações de poder.15 A inven-
13 BATISTA, Nila Introdução críticaao direitopenalbrasileiro.Rio deJaneiro:Revan,1990.
14 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
Graal, 1977.
15 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo etal. Direito PenalBrasileiro I:Teoria
geral do direito penal, Ia ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
tros
Comecemos, então, pela observação fundamental de Massimo
Pavarini: neguemos que o nosso objeto, a criminologia, tenha senti¬
do por si mesmo.12 O problema comum da criminologia está na
necessidade de ordem numa perspectiva de luta de classes. Embora
tenha a União Europeia proscrito o conceito de luta de classes, a
verdade é que nunca ela foi tão visível e palpável como na dura
conflitividade social do dia a dia do capitalismo de barbárie: garotos
morrendo ou matando por um boné de marca. A criminologia como
racionalidade positiva é uma resposta política às necessidades de
11 BATISTA, Nilo. Intervenção no XIII Congresso International de Direito Comparado. Rio
deJaneiro, 27 de setembro dc 2006. mimeo, p. 1.
12 PAVARINI, Massimo. Control j Domination, cit.
22 23
ção da pena pública supõe o confisco do conflito da vítima, que se
torna apenas uma figura secundária na reconfiguração do poder
punitivo. Esse processo político institui um método para a busca da
verdade, que se constituirá numa permanência subjetiva do Oci¬
dente. Este método pressupõe uma averiguação, numa relação de
força entre quem exerce o poder e o objeto estudado. Esse eixo
racionalizante é composto pela articulação entre um discurso médi¬
co e um discurso jurídico desenvolvidos através de técnicas de do¬
mínio sobre o objeto “averiguado”. Os manuais dos inquisidores
são testemunhos dessas técnicas de apuração da “verdade”.
Estamos pensando, historicamente, na categoria da longa du¬
ração da escola francesa dos Annales. Quando pensamos, dos séculos
XIII ao XVIII, até chegar ao XIX, queremos entender as projeções
para o futuro, a permanência histórica desse método de busca da
verdade. A objetificação do “herege” ou da “bruxa” pressupunha
uma possibilidade técnica de domínio: técnicas de interrogatório, di¬
agnóstico, construções da identidade “criminal” e incorporação de
identidades “criminosas”. Foi o historiador italiano Cario Ginzburg
quem propôs o método indiciário para desvelar entre os discursos
dos vencidos, dos perseguidos pelos processos inquisitoriais, os frag¬
mentos de uma outra verdade: a dos ritos pagãos demonizados pelos
movimentos de centralização do poder da Igreja Católica.16
Também na categoria da longa duração, do século XIV ao
XVIII Jean Delumeau vai trabalhar a utilização do medo para a
construção de uma mentalidade obsidional na Europa cristã, cerca¬
da pelas pestes, na conjuntura da expulsão dos mouros e judeus e
nos movimentos do cisma e das reformas na Igreja Católica.17 Se a
criminologia corre o risco de ser “saber e arte de despejar discursos
perigosistas”, conhecer o eixo dos medos é traçar o caminho das
criminalizações e identificar os criminalizáveis.
Então, entre os séculos XIII e XVIII, articulam-se as técnicas
da Inquisição com o surgimento das cidades, a aparição da ideia de
contrato, o fortalecimento da burguesia e o absolutismo, configuran¬
do o Estado moderno e suas estruturas penais. Mais especificamente
entre o século XIV e o XVIII, a acumulação de capital que impulsio¬
nará o mercantilismo, a manufatura e, logo, a Revolução Industrial
forjará uma sociedade de classes através da luta para o disciplinamento
de contingentes de mão de obra para o trabalho.18 O disciplinamento
dos pobres para a extração de mais-valia, energia viva do capital, vai
precisar da ideologia, da racionalidade utilitarista a legitimar as rela¬
ções e as técnicas de domínio dos homens e da natureza. A violência
e a barbárie fazem parte desse cenário, produzidas pelo excesso de
civilização, e não pela sua antítese.19
A partir do século XVIII, o processo histórico de fortalecimen¬
to do contrato social determina outras necessidades de ordem. As
execuções públicas vão se tornando perigosas com o protagonismo
da multidão que vai produzir a crítica do absolutismo. A revolução
bate às portas da Europa, com suas multidões de pobres a produzir o
Grande Medo: cabeças cortadas, diria Glauber Rocha.20
O poder punitivo vai precisar de novas propostas e novas
técnicas para dar conta da concentração de pobres que o processo
de acumulação do capital provocou. E pobres, agora, com uma pers-
pectiva revolucionária.
É nessa conjuntura que na crítica do absolutismo surge o
discurso jurídico de princípios. Ressalta Nilo Batista que, historica¬
mente, o direito penal surge para limitar o poder punitivo do Anti¬
go Regime. Aparecem as ideias de legalidade e de outras garantias, e
18 Sugiro aos criminólogos que se interessam pelo tema que aprofundem as leituras
de Karl Marx sobre a produção de mais-valia e de Edward Thompson sobre o
surgimento das classes sociais a partir da luta de classes.
19 Cf. MKNEGAT, Marildo. Depois do Fim do Mundo:a crise damodernidade e a barbárie.
Rio deJaneiro: Faperj/llelume Dumará, 2003.
20 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977; RUDE, Georges.
A multidão na história: estudos dos movimentos populares na França e na Inglaterra (1730-
1848). Rio de Janeiro: Campus, 1991.
16 GINZBURG, Cario. História noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
17DELUMEAU,Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800).São Paulo: Companhia
das Letras, 1983.
2524
os conceitos chave de delito e pena. São estabelecidos limites para o
método moderno de organização da verdade: punir em vez de vin¬
gare estabelecer uma gestão seletiva das ilegalidades populares. A
ascensão da burguesia contra a figura do monarca absoluto vai
ensejar novos discursos criminológicos, novas instituições, novas
políticas, a partir do enquadramento cartesiano e iluminista do
mundo. A prisão, subordinada à fábrica, se converte na principal
pena do mundo ocidental. O delito passa a ser definido juridica¬
mente. A Revolução industrial precisa de novos dispositivos de con¬
trole social para o disciplinamento e o assujeitamento dos contin¬
gentes miseráveis que produziu. Não é por acaso que Karl Marx
cita Charles Dickens em 0 capital: sua literatura narra as histórias de
fome e exploração sem limites da mão de obra na velha Londres. É
nesse sentido que as luzes produzem um aprofundamento da
racionalidade das técnicas de domínio do capital: como diria Marildo
os perigos revolucionários da ideia de igualdade, nada melhor do que
uma legitimação “científica” da desigualdade. O criminoso, agora bi¬
ologicamente ontológico, vai demandar mais pena, mais poder puni¬
tivo indeterminado: corrigir a natureza demanda tempo.
Enquanto isso, o capital vai intensificando o domínio utilitário
da natureza, produzindo novas tecnologias e novos dispositivos. No
século XX, as guerras vão incrementar as crises cíclicas com as práti¬
cas de destruição do outro. Enquanto o nazifascismo vai ocupando a
Europa ocidental de corpo e alma, os Estados Unidos produzem,
junto com a crítica ao Jaisseÿfam, uma nova ruptura na criminologia.
A luta contra a depressão económica, a aliança de Roosevelt
comunistas e a construção do Welfare Systemvai repolitizar a “questão
criminal”. A sociologia e as ciências humanas vão avançar do
positivismo segregador para um funcionalismo integrador. A crimi¬
nologia estadunidense vai se apoderar do conceito de anomia de
Durkheim, reciclado na perspectiva de Merton. O comportamento
desviante passa a fazer parte da estrutura social, cumpre funções
integradoras. O limite do desvio é a anomia, a ruptura da coesão
“pactuada”. Os intelectuais estadunidenses da sociologia e da crimi¬
nologia estão buscando saídas para a profunda conflitividade social
decorrente da concentração urbana heterogénea, composta de gru¬
pos de migrantes e imigrantes culturalmente diferenciados. O delito,
ou desvio, não é mais um fenômeno natural, é uma definição, uma
construção do sistema de controle. A criminologia levanta os olhos
da prisão e consegue enxergar as relações entre o gueto e a “crimina¬
lidade”. As instituições de controle social passam a ser objeto de es¬
tudo, bem como as áreas segregadas com concentração de imigrantes
pobres, e as formas de controle social. Surge uma criminologia
funcionalista, funcional às novas demandas do capital, mas que se
distingue do correcionalismo positivista europeu.
Foi essa criminologia estadunidense, revigorada pela constru¬
ção do Welfare System, que conduziu à ruptura do rotulacionismo
( labeling approach), que no cruzamento com a teoria psicanalítica e o
marxismo pôde produzir, junto com a ebulição política dos anos 60
e 70, a criminologia crítica como teoria de longo alcance. Embora
com os
Menegat, o olho da barbárie espreita a Europa.
No século XIX, a Europa já pôde produzir teoria acerca do
grande internamento iniciado no
troços do exército industrial de reserva. A sociedade disciplinar cria
rede de prisões, manicômios, internatos e asilos. É nesse mo-
XVIII sobre os indesejáveis des-
a sua
mento que o pensamento criminológico dá o seu grande salto à
frente, com uma reflexão “científica”, autónoma, do discurso jurí¬
dico e, por isso, sem o embaraço das garantias e dos limites.
Esse pensamento tenebroso e tautológico se alimenta da clien¬
tela seletivamente estocada nas instituições totais. É um discurso que
surge das próprias agências do poder sobre o “objeto” estudado. Se a
maioria dos presos é pobre, o paradigma etiológico irá concluir,
vés da legitimação do discurso médico, que a causalidade criminal
está reduzida à figura do autor do delito. A própria descrição/classi¬
ficação biológica do sujeito criminalizável será a explicação do seu
crime e de sua “tendência” à “criminalidade”. Passa a reinar uma
atra-
racionalidade falsamente autonomizada do político que produzirá um
recuo do iluminismo, que se imaginava haver superado o absolutis-
punitivo. Na criminologia, o positivismo transfere o objeto do
delito demarcado juridicamente para a pessoa do delinquente. Contra
mo
26 27
Os novos tempos produzem níveis de encarceramento nunca
vistos na história da humanidade. O disciplinamento do tempo li¬
vre, da concorrência desumana e da conflitividade social
despolitizada vai requerer novos argumentos “científicos”: surge o
neolombrosianismo determinista com as neurociências e as desco¬
bertas de novos “criminosos natos”. É importante ressaltar que os
negócios do crime e da criminalidade vão fazer parte da “nova econo¬
mia” e as ações das empresas que os exploram integram o índice
Nasdaq. A indústria do controle do crime, a quie se referiu Nils
Christie, é um dos setores mais dinâmicos do capitalismo de barbárie.
São essas questões que se colocam para nós, criminólogos, no
século XXI. A que ordem servir? Na periferia do capitalismo, e no
Brasil em particular, tudo isso vai se agregar ao genocídio coloniza-
dor, às marcas da escravidão, à república nunca consolidada, ao es¬
tado previdenciário já malhado antes de nascer, aos paradoxos da
cidadania. Devemos ser os criminólogos que formularemos a polí¬
tica criminal da ordem necessária à reprodução do capital video-
financeiro, ou estaremos na trincheira da resistência à barbárie?
Para os que estão na nossa trincheira, lembremo-nos das indi¬
cações estratégicas de política criminal do imprescindível Alessandro
Baratta23:
não tenha sido um pensamento hegemónico no século XX, produ¬
ziu avanços generosos não só na produção acadêmica, como tam¬
bém na busca de paradigmas e práticas de política criminal que não
apostavam na dor, na repressão e no dogma da pena.
O fim do século XX e os albores do XXI constituem cenário
de barbárie aprofundada. O tão festejado fim do socialismo (talvez
estejamos apenas começando) abriu espaço para uma hegemonia
do capital e do mercado que ampliou a pobreza, a desigualdade e a
violência no mundo. O domínio estadunidense parece não ter limi¬
tes, nem aqueles impostos pela natureza. Na esteira da queda do
socialismo, foram-se também o estado previdenciário e as redes
coletivas de segurança. Incêndio na floresta, diria Leonel Brizola.
Para conter as massas empobrecidas, sem trabalho e jogadas à pró¬
pria sorte, o neoliberalismo precisa de estratégias globais de crimi-
nalização e de políticas cada vez mais duras de controle social: mais
tortura, menos garantias, penas mais longas, emparedamento em
vida. .. A mídia, no seu processo de inculcação e utilização do medo,
produz cada vez mais subjetividades punitivas. A pena torna-se eixo
discursivo da direita e de grande parte da esquerda, para dar conta
da conflitividade socialque o modelo gera. Loi'c Wacquant demons¬
trou como o estado previdenciário nos Estados Unidos foi substi¬
tuído pelo estado penal. O vento punitivo que sopra dos EUA se
difunde junto com a verdade única do mercado.21 O capital precisa
cada vez mais da prisão, conjugada às estratégias de criminalização
de condutas cotidianas (juizados especiais, penas alternativas, justi¬
ça terapêutica etc.) e mais a transformação das favelas e periferias
do mundo em “campos de concentração”. O criminal e o bélico se
amalgamam no
migo.22 Os territórios não controlados são classificados como Eixo
do Mal, territórios a serem ocupados a partir da legitimação produ¬
zida por duas categorias fantasmáticas: o traficante e o terrorista.
1) não reduzir a política de transformação social à política penal;
2) entender que o sistema penal é ontologicamente desigual, a
seletividade faz parte da sua natureza;
3) lutar pela abolição da pena privativa de liberdade;
4) travar a batalha cultural e subjetiva contra a legitimaçãodo
direito desigual através das campanhas de lei e ordem.
Para terminar, não abandonar a defesa e a lut;a contra a prisão
à espera da revolução messiânica que vai resolver tuido: no dia a dia,
como estamos vendo, as coisas podem sempre piorar.
que Raúl Zaffaroni analisa como direito penal do ini-
gestão da miséria nos Estados Unidos.21 WACQUANT, 1,oi'c. Punir os Pobres: a nova
Tradução dc Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/
23 BARATTA, Alessandro. “Defesa dos direitos humanos e piolítica criminal”. In:
Discursos Sediciosos — Crime, Direito e Sociedade,Carioca de criminologia, 1997. 2, n° 3. Rio ide Janeiro: InstitutoanoRcvan, 2003.
22 ZAFFARONI, li. Raúl. 0 Inimigo no Direito Penal. Rio dc Janeiro: Rcvan, 2007.
29
28
CAPíTULO III
GENEALOGIA DA CRIMINOLOGIA
Retomemos, na companhia de Foucault, Zaffaroni e Anitua, a
importância do século XIII, com suas mudanças políticas e, princi¬
palmente, nos seus efeitos para a manufatura de uma “política cri¬
minal”, de um novo desenho de poder punitivo estabelecido atra¬
vés de uma relação entre as noções de delito e de castigo que ins¬
taurará os conceitos de infração e de pena pública.
Aquele método de investigação da verdade, a que já nos referi¬
mos, se depreende do acontecimento político da Inquisição. Teríamos
aí o primeiro modelo integrado de criminologia, política criminal, direi¬
to penal e processo penal. A confissão individual, tão estudada por
Foucault na História da sexualidade, instituída no 4o Concílio de Latrão,
produziu um eficiente dispositivo de controle social e assujeitamento
coletivo. O ano da sua instituição, 1215, era também o da perseguição
dos cátaros em Languedoc e da Carta Magna na Inglaterra.24
O novo modelo punitivo, inquisitorial, centralizado e burocrati¬
zado, articulando os saberes/poderes médico-jurídicos, produziu o
fenômeno (tão discutido na criminologia depois de Foucault) de ex¬
propriação do conflito em favor do Estado embrionário. A gestão
comunitária é banida e a “vítima” (que só recobrará importância no
século XX25) passa a ser figurante de um poder que se alimenta do
seu próprio método: não resolve o conflito, mas põe em funciona¬
mento o mecanismo que vai unir simbolicamente a culpa com o cas¬
tigo. Esse mecanismo irrefreável vai constituir, vai demandar um cor¬
po “profissional” permanente, formado na interseção do jurídico com
o religioso. Ninguém comenta melhor essa gestão do que Louk
Huslman ao afirmar que não há nada mais parecidocom a escolástica
24 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I,cit.
25 Cf. ELLACHEFF, Caroline; LARIVIÈRE, Daniel Soulez. Le Temps des Victimes.
Paris: Albin Michel, 2007.
31
do que o direito penal. A diferença perversa estaria no fato de não
haver possibilidade de paraíso no discurso punitivo.
É natural também que esse poder, agora exercido por expertos,
necessite de criar o seu “outro”, o objetificável, o corpo humano,
para o qual convergirá o método. As bruxas, representando as ten¬
tativas de controle dos ritos de fertilidade, os partos, enfim, o poder
feminino, estará no processo de objetificação, como estiveram as
“ideias erradas” dos hereges. As pugnas pela hegemonia e centrali¬
zação da Igreja Católica vão tratar de primeiro desumanizar os he¬
reges e as bruxas, para depois demonizá-los. É por isso que Zaffaroni
trabalha a Inquisição como o primeiro discurso criminológico mo¬
derno: serão estudadas as causas do mal, as formas em que se apre¬
senta e também o método para combatê-lo. O importante é seguir
o curso dos discursos para observar as permanências dessa manei¬
ra de pensar e agir até a criminologia dos dias de hoje. Nada mais
parecido com a figura do herege do que o traficante que quer dispor
da alma das nossas crianças, como disse Nilo Batista.26
Mas o poder punitivo em formação não é etéreo, nem
ontológico. Ele se relaciona intimamente com o processo de acu¬
mulação de capital em curso: a crise do sistema de exploração feu¬
dal, a expulsão dos camponeses, o crescimento das cidades e mer¬
cados, novas e crescentes necessidades de renda, de produtos espe¬
ciais, de armamentos e mercadorias para a empresa guerreira, buro¬
cracias nascentes, manufaturas, comércio. A ideia de controle dos
indesejáveis vai oscilar entre dois modelos, descritos por Foucault:
o do leprosário, segregativo e excludente; e o da peste, disciplinar e
inclusivo. Ao longo da história, iremos observar as oscilações em
torno desses dois modelos, bem como suas sincronias fortuitas.
Todo esse movimento material, magistralmente estudado por
Braudel,27 vai fazer emergir uma nova classe social, a burguesia, com-
26 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistemapenal brasileiro— I.Rio deJaneiro: Instituto
Carioca de criminologia/ltevan, 2000.
27 Cf. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, económica e capitalismo — séculos XV-
XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Mediterrâneo en la Época de Felipe II. México: Fondo Cultura Económica, 1987.
posta por todos aqueles setores nos interstícios entre o clero, a no¬
breza e os pobres. Esse setor emergente vai produzir saberes de¬
correntes de suas novas funções económicas, um saber monetário,
burocrático, a favor das racionalizações necessárias ao processo de
centralização do poder. A civilização e o progresso serão coautores,
causa e consequência de um novo método científico que vai empre¬
ender o domínio do homem pelo homem, e também da natureza.
Como diria Marildo Menegat, é aí que se vai espraiar o olho da
barbárie, no uso instrumental do saber científico, na expansão béli¬
ca das cruzadas, viagens, descobrimentos.28
Nós, na nossa margem, conhecemos essa empreitada, o imen¬
so genocídio iniciado na colonização, aprofundado no escravismo
e eternizado pelo capital. São as nossas veias abertas, homens ani¬
mais, mercadorias ou mercadorias animais. Está lá, em Galeano e
em Darcy Ribeiro: a cada ciclo económico da colonização corres¬
ponde um moinho de gastar gente. O capital precisa de corpos para
extrair mais-valia, que se realiza na expropriação da energia vital
que emana do trabalho do homem.
Tzvetan Todorov descreveu como, na conquista da Améri¬
ca, o encontro da civilização europeia com o “outro” exteri¬
or se dá no momento em que a Espanha repudia seu “ou¬
tro” interior, na vitória sobre os mouros e na expulsão dos
judeus. O genocídio da população nativa americana e a libe¬
ração total da crueldade obedecem a um duplo movimento
de desqualificação do “outro” e da subordinação de todos
os valores ao desejo de enriquecer, símbolo da modernidade,
o fetiche do ouro. Na Europa Ocidental, o alvo das campa¬
nhas e políticas de exclusão e controle são os grupos
minoritários, e na América o processo de exclusão é genera¬
lizado à população nativa. Com a descoberta da América, a
Europa expulsa a heterogeneidade e a introduz irremedia-
El Mediterreneo j el Mundo
28 MENEGAT, Marildo. Depois do Fim do Mundo, cit.
32 33
conseguida através da tortura, com o objetivo final da confissão.
Anitua cita uma passagem do diário de um dos componentes da
família dos verdugos da França. Em 1688, o verdugo dizia-se feliz e
estável, na única profissão certa: a de cortar cabeças. Muitos que
haviam condenado acabaram perdendo a própria cabeça: o impor¬
tante é que o mecanismo estivesse sempre funcionando.
A propriedade tornou-se o eixo central da teoria e da práxis
política na crise do estado absolutista. O pensamento liberal de Locke,
Hobbes, Rousseau e Spinoza vai engendrar o jusnaturalismo moder¬
no, que buscava produzir uma distinção entre moral e direito.
Ao engendrar novas relações sociais, novos conflitos e novas
necessidades de ordem, a acumulação de capital vai produzir, entre
os séculos XIV e XVII, a repressão à vadiagem, as leis de expropri¬
ação de terras comuns, as primeiras leis de pobres (como a de 1601, na
Inglaterra: Anitua trabalha com a assustadora cifra de 72.000 la¬
drões executados pela forca de Henrique VIII). É nesse momento
que Foucault situa a união das técnicas contra a lepra com as técni¬
cas contraa peste que constituirão a medicina social mais adiante:
expulsar internando e incluir disciplinando. Começa a surgir a figu¬
ra do “sequestro institucional”, que permitirá separar o pobre ino¬
cente do pobre culpado.
É Anitua também que nos apresenta a ideologia da Rasphuis
holandesa que, em 1612, instituía o trabalho obrigatório “para jo¬
vens que tenham escolhido o caminho equivocado, pelo que mar¬
cham até a forca, e para que possam ser salvos desse patíbulo e
tenham um ofício e trabalho honesto realizado em temor a Deus”.31
Nada mais parecido com a ideologia profissionalizante dos dias de
hoje, ou com a afirmação de um prefeito do Rio, em conjuntura
eleitoral, ao propor “cadeia ou vala” para a juventude em disputa
pelo mercado de drogas.
velmente. A pulsão do domínio e o sentimento de superiori¬
dade produzem doutrinas de desigualdade.29
Ou seja, o capital precisa do “lugar político do outro” para exer¬
cer a sua unidade política. O próprio Delumeau analisa como o medo
recaía sobre os mouros, judeus, os hereges, as bruxas, os leprosos, os
loucos, as mulheres em geral. O poder punitivo ia nessas pegadas
construindo dispositivos formais e informais de controle social, te¬
cendo discursos e práticas, diagnósticos e políticas criminais.
Anitua aponta como nesse percurso histórico veremos cami¬
nhos distintos, da ciência política do conflito em Maquiavel ao con¬
senso lupino de Hobbes. Mas as utopias estiveram sempre presen¬
tes em Campanella, Morus, Rabelais, Bacon e Descartes. O mundo
das ideias, depois do grande cisma, se dividiu entre os pensadores
da Reforma (Lutero, Calvino, Swingli) e os da Contrarreforma, como
Inácio de Loyola.30
O grande eixo ordenador será em torno da propriedade. Em
torno do pensamento liberal surgirá a noção moderna de lei e de
direitos individuais. O contrato transforma-se na grande metáfora
das relações sociais, como diria Pashukanis.
É natural que os pobres, despossuídos até do próprio corpo,
de sua força de trabalho, aparecessem como solução e como pro¬
blema. Solução por serem a fonte de geração de riquezas materiais,
e problema porque não podem fugir ou sair do controle, precisam
ser sujeitados de mil formas visíveis e invisíveis.
Os Estados absolutistas que aparecem nessa conjuntura raci¬
onalizaram o sistema de castigo e adestraram intelectuais e funcio¬
nários para esses misteres: aprimoraram o controle da população,
as técnicas de governo, o utilitarismo social e económico. No cam¬
po da criminologia, Anitua situa aí o começo da ideia de prevenção,
associada a uma averiguação da motivação culpável, que pode ser
31 Cf. ANITUA, op. cit., p. 66 — “as novas casas de trabalho manufatureiro recebiamo nome comum de Rasphuis — ou ‘casa de raspagem’- posto que a atividade que
desenvolviam era a de raspar madeira importada do Brasil...”
29 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de janeiro: dois tempos de uma
história. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2003, p. 31.
30 Cf. ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos Pensamentos Criminológicos, cit., p. 96.
3534
O certo é que até então o encerramento ou internamento não
constituía pena. E a partir do século XVI que isso começa a aconte¬
cer em larga escala. Junto com a sua
como o
construindo com sensações ideias cada vez mais complexas e
abstratas”. Para Darnton, numa mistura de ética com
utilitarismo, do homem hobbesiano em seu estado natural,
“D’Alembert tomara uma rota lockeana para um Deus
cartesiano”. Numa época de embates filosóficos entre as lin¬
guagens escolásticas, cartesianas e lockeanas, seu discurso des¬
lizava de uma linguagem para outra.
Os filósofos, para D’Alembert, analisariam a natureza, reduzi¬
riam seus fenômenosaos seus princípios, reconstruindo-os sis¬
tematicamente. Trabalhava assim as ciências cronologicamente
passando pela história, gramática, geografia etc., até construir
a árvore enciclopédica: uma visão geral, totalizante. O empre¬
endimento enciclopédico, “a moderna Summa, modelava o
conhecimento de tal maneira que o tirava do clero e colocava-
o nas mãos de intelectuais comprometidos com o iluminismo”.
Para Darnton,é no século XIX que essa estratégia triunfa, com
o surgimento das modernas disciplinas escolares e a seculariza-
ção da educação. Mas, para o autor, o grande embate deu-se na
década de 1750, “quando os enciclopedistas reconheceram que
conhecimento era poder e, mapeando o universo do saber, par¬
tiram para sua conquista”.35
É importante compreender a ideologia da razão que o absolu¬
tismo ilustrado e racionalista aplicaria às leis. A visão da lei transfor-
ma-se em algo racional e equitativo, estabelecendo limites do Esta¬
do ao poder punitivo ilimitado da soberania despótica. No bojo das
revoluções liberais da Europa e da América, surge a ideia da legali¬
dade, da proteção dos direitos, enfim, de uma teoria limitadora do
poder punitivo, embora justificadora dele, como é até hoje o libera¬
lismo garantista.
Por trás de tantas racionalizações estava o medo das massas
revolucionárias, da multidão, desse novo protagonista. Os princípi¬
os revolucionários iluministas — liberdade, igualdade e fraternidade
expansão, as primeiras críticas,
longo relatório Howard.32 Este documento vai demonstrar
que, historicamente, a prisão foi e sempre será depósito infecto de
pobres e indesejáveis.
A conjuntura revolucionária entre os séculos XVII e XVIII
pressupunha críticas e ações contra os rigores punitivos do absolu-
rupturas apresentadas no período, para
liberalismo jurídico, é fundamental
tismo. Para pensarmos nas
compreender o iluminismo e o
compreender a nova estratégia epistemológica fundada pela
Encyclopedic, aquela tempestade do século XVIII.33 A Encyclopedic
áquina de guerra estabeleceu uma racionalidade baseada nacomo m
necessidade da classificação como exercício de poder. Os esquemas
de classificação seriam ações sociais que fluiriam através de frontei-
“estabelecer categorias e policiá-las é, portanto, assunto sério”.34
Darnton afirma que foi no século XVI que o debate sobre o
método e a disposição correta na organização do conhecimen¬
to começa a acontecer, impondo uma tendência a mapear, de¬
linear e espacializar segmentos do conhecimento. Diderot e
D’Alembert, a partir da árvore do conhecimento de Bacon e
Chambers, aprimoram a versão iluminista da enciclopédia ou
“relato sistemático da ordem e concatenação do conhecimen¬
to humano”. D’Alembert descreveria a enciclopédia como uma
espécie de mapa do mundo. Os autores da enciclopédia sub¬
meteram a religião à filosofia, foi um processo de
con-descristianização. “As premissas soavam devotas, mas a
clusão tinha um sabor de heresia, porque parecia subordinar a
teologia à razão, o que eles descreviam de maneira lockeana,
alguém pudesse chegar ao conhecimento de Deuscomo se
32 HOWARD,John. The State of the Prisons. Londres: J. M. Dent & Sons, 1929.
33 DARNTON, Robert. Ogrande massacre degatos. Rio deJaneiro: Graal,1988.
34 Op. cit.,p. 251. 35 BA1ISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro, cit., p. 148.
36 37
bal e articulada entre política criminal, direito penal e processo pe¬
nal, em seu livro Dos delitos e daspenas. Tendo o contratualismo como
base ideológica, e o contrato social e o utilitarismo como pressu¬
postos, Beccaria faz uma defesa da coexistência, do Estado sem
conflito, presente na maneira de pensar de Hobbes, Locke e
Rousseau, com todas as suas nuances. A pena, aqui, se contrapõe
ao sacrifício da liberdade. O juiz deverá subordinar-se à lei, e não ao
soberano. A ideia de dano social e de defesa social (incólumes até
os dias de hoje) são elementos fundamentais dessa teoria.
É Foucault quem aponta a crítica das Luzes ao modelo
inquisitorial através dos conceitos de oficialidade, imparcialidade,
presteza e publicidade. O utilitarismo vai propor utilidade e eficiên¬
cia. As codificações deverão ser limitadoras e fundamentadoras, o
castigo vai ser racionalizado e o objetivo não é vingar, nem punir
menos, mas punir melhor. Bentham será o grande intelectual orgâ¬nico do poder punitivo burguês, militante em várias áreas do co¬
nhecimento, aplicando o industrialismo à prisão e ao castigo. O
Panopticum, analisado por Foucault, seria uma espécie de símbolo
máximo dessa maneira de pensar.
Mais adiante, em 1859, Carrara vai trabalhar com a ideia de
que o delito não é um ente de fato, mas um ente jurídico, caracteri-
zado pela “infração da lei do Estado, promulgada para proteger a
segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem,
positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente dano¬
so”. Talvez a ideia mais importante, que viria a ser desconstruída
pelo positivismo, fosse aquela em que a definição do delito seria o
limite e o fundamento para o legislador.36
Nessa visão da questão criminal, então, o objeto seria o cri¬
me, e não o criminoso. A questão criminal seria atravessada pela
ideia de livre-arbítrio e pelo consenso artificiosamente conduzido
pelo contrato social. A delimitação do crime pela definição do deli¬
to seria enfim uma desnaturalização e uma politização só possível
— seriam transportados, além dos seus limites, nas revoluções peri¬
féricas e mágicas, como a do Haiti, que tanto medo propagou entre
os senhores brancos das Américas.
Para Foucault, os séculos XVII e XVIII, a partir da estratégia
epistemológica da Encyclopedic e das demandas do capital, vão pro¬
duzir a tecnologia disciplinar: técnicas e dispositivos de poder,
centrados no corpo do homem, para enquadrá-lo e hierarquizá-lo.
No século XVIII, Foucault aponta a emergência de uma outra
tecnologia de poder dirigida ao homem espécie, a biopolítica. Esse
controle, agora demográfico, dirige-se às populações, às multidões
que deverão ser vigiadas, treinadas e punidas. Não podemos deixar
de imaginar, na nossa margem, que, entre os séculos XVI e XIX, o
processo civilizatório empreendeu o grande genocídio colonizador.
O capital começava a classificar povos inteiros, de acordo com a
sua incorporação periférica. Esse liberalismo “disciplinador” na
nossa margem convivia com a truculência escravocrata e o extermí¬
nio das civilizações indígenas. Fica a questão: seria o liberalismo
uma atualização requintada da Inquisição em confortável convivência
com o absolutismo? A objetificação do corpo do herege reaparece¬
ria na incapacidade das raças classificadas na base inferior da ordem
mercantil? A literatura de Alejo Carpentier empreende essa discus¬
são para a periferia do capitalismo em pelo menos três romances:
No reino desse mundo, 0 Século das Luges e Passos perdidos.
Voltando às marcas do liberalismo no mundo do direito, pen¬
semos naquilo que Alessandro Baratta denominou de Escola Clás¬
sica. Seus principais expoentes seriam Bentham, na Inglaterra,
Feuerbach, na Alemanha, e Beccaria, na Itália. O direito penal seria
um instrumento de defesa da sociedade, seu limite, sua necessidade
e utilidade, já que nesse momento não se trabalhava com a ideia de
que a pena fosse corretiva. O princípio da legalidade vai ser a linha
de força do iluminismo contra os excessos punitivos do Ancien Re¬
gime. Afinal, a Revolução Francesa começa com a queda da Bastilha,
a masmorra absolutista.
Foi o Marquês de Beccaria que em 1764 — nessa primeira edi¬
ção, sem subscrever sua obra — produziu a primeira exposição glo-
36 CARRARA, Francesco. Programma del Corso di Diritto Criminale. §§ 33, 36, 53 e
passim.
3938
pela compreensão das necessidades de ordem da passagem do
mercantilismo absolutista para os engenhos urbanos da Revolução
Industrial. A atitude crítica, de toda maneira, seria para relegitimar
o poder punitivo. E, em se tratando da história das ideias na ques¬
tão criminal, aí está o grande eixo: teorias legitimantes
deslegitimantes da pena. Afinal de contas, essa racionalização, esse
eficientismo utilitarista, acabou por produzir o que Foucault deno¬
minou de “o grande internamento”.
CAPíTULO IV
POSITIVISMOS
ou
O positivismo é uma grande permanência no pensamento
social brasileiro, seja na criminologia, na sociologia, na psicologia
ou no direito. Muito mais do que uma escola de pensamento, cons¬
titui-se numa cultura. Como veremos mais adiante, ele representa
algumas rupturas na questão criminal pensada pelos liberais
iluministas. No entanto, também representa uma atualização, um
continuum e até uma sofisticação dos esquemas classificatórios,
hierarquizantes, produzidos pela colonização do mundo pelo capi¬
tal. Na República brasileira, ele representou uma vanguarda laicizante
naquilo que Gizlene Neder denominou de liberalismo radical, na
contramão das oligarquias associadas ao poder da Igreja Católica.37
À esquerda e à direita encontram-se positivismos.
Uma das principais lições deAnitua foi compreender o positivismo
como uma ideologia surgida do medo das revoluções populares, dirigidas
à desqualificação da ideia de igualdade. As classificações hierarquizantes
serviam para ordenar os problemas locais (pobres e indesejáveis) e os
problemas gerais (nações e culturas periféricas). Pensamento do século
XIX, só poderia surgir do grande internamento. Todo o movimento
que descrevemos brevemente no capítulo anterior fez com que o siste¬
ma penal aparecesse como sistema. É nesse momento histórico que a
prisão converteu-se na pena mais importante do mundo ocidental.
A revolução industrial, a todo vapor, demandava a exploração
intensa da mão de obra. A prisão, a partir do modelo das casas de
correção, é o dispositivo disciplinador subalterno à fábrica, como
diriam Melossi e Pavarini.38 A prisão e a polícia se instituem, se
37 NEDER,Gizlcne. DiscursoJurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Poito Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 1995.
38 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema
penitenciário (séculos XV1-XIX).Tradução de Sérgio Lamarão. Rio dejaneiro: Instituto
Carioca de criminologia/Revan, 2006.
4140
Ill
constituem para o controle punitivo da mão de obra, contra as
movimentações, sedições e revoltas populares. A própria ideia de
polícia surge como polícia médica, na perspectiva biopolítica de
governabilidade das populações, que vai engendrar o higienismo. A
concentração de pobres na cidade vai ser lida por sua patologização,
pelas pretensões corretivas e curativas. O controle punitivo
estender da prevenção às reabilitações. O ideal reabilitador vai se
utilizar do trabalho como medida ressocializadora. Os tratamentos
vão dar conta dos seres humanos recuperáveis e tratar de neutrali¬
zar os irrecuperáveis. A humanidade divide-se agora entre os nor¬
mais e os anormais, a loucura e o crime serão alvo de terapêuticas
sociais. Se pensarmos que, hoje, a justiça terapêutica constitui-se
“novidade” para a questão das drogas, perceberemos quão pro¬
fundas são as permanências históricas do positivismo. Da caligrafia
à criminologia, o controle social das populações se dará através das
estratégias disciplinares.
Se o racismo foi uma invenção da colonização, segundo
Foucault,39 a partir do século XIX ele vira discurso científico. As
teorias de Darwin, que em 1830 buscavam o elo perdido em nosso
continente, naturalizavam a inferioridade, possibilitavam sua trans¬
posição para as ciências sociais como fez Spencer, inspirando o
evolucionismo social. O conceito de degenerescência é fundamen¬
tal para entendermos como nossa mestiçagem iria ocupar “natural¬
mente” os andares inferiores na evolução humana.
Entre 1812 e 1819, a frenologia de Gall e Spurtzheim já tinha
como objeto de estudo o “espírito” localizado no cérebro. Em seu
afã de observar, medir e comparar crânios, eles buscavam localizar
as funções físicas no cérebro, bem no paradigma metodológico ins¬
taurado pela Encyclopedic. Glauber Rocha nos mostrou as cabeças
cortadas que Tunga exporia na pirâmide do Louvre para
Luzes. Gall pesquisou a “anatomia” do centro da razão durante 20
anos, usando muitas cabeças, buscando a comprovação da superio¬
ridade da raça branca caucásica. Anitua expõe as 27 faculdades
contradas por Gall em suas pesquisas: amor físico, amizade, defesa,
astúcia etc. As deficiências cerebraispovoavam o sul da Europa, os
animais e o resto do mundo. Determinadas áreas das neurociências
retomam hoje, nesses tempos difíceis, a tarefa fundamental para o
capital de naturalizar o crime e o criminoso.
Na frenologia (como em certa medida nas neurociências) a
delinquência seria determinada biologicamente. Nesse ponto ela foi
precursora para a passagem do objeto da criminologia. Se o delito
era o centro das atenções no pensamento liberal, o objeto que se
impõe agora é o delinquente. As ciências naturais ajudariam a de-
tectar e corrigir os anormais. Esse grande discurso contra o
igualitarismo se baseava na demonstração científica das desigualda¬
des. E é óbvio que os incorrigíveis, os de natureza irrecuperável,
iriam provocar aumentos na demanda por pena, que se transforma¬
rão em penas indeterminadas pelas políticas criminais de inspiração
positivista.
uma
vai se
em
Em 1823,surge a sociedade frenológica na Inglaterra, em1832,
na França. Spurtzheim vai para os Estados Unidos prestar
viços para a construção do apartheid estadunidense, abrindo espa¬
ço para novos trabalhos como os de Samuel Morton {Crania Ameri¬
cana, 1839, e Breves comentários sobre as diferenças das raças humanas, em
1842)4H ou os de Josiah Clark Nolt, que em seu Das lições de História
Natural sobre as raças negras e caucásicas legitimava a ambiência racista
de que o escravismo e o pós-escravismo necessitavam na América
do Norte. A ideia do criminoso nato desenvolvida mais tarde por
Lombroso se nutre dessa ambiência científica e política.
A fisiognomia do suíço Johann Kaspar Lavater buscava
análise dos rostos a identificação da alma. É óbvio
impressionismo da superfície e da aparência vai aguçar e solidificar
os preconceitos. No nosso admirável mundo novo, essa técnica tem
sido explicitamente utilizada na segurança dos aeroportos. Em 1855,
foi instalada a primeira cátedra de antropologia física de Paris. Nes¬
se mesmo período,Joseph de Gobineau assessorava o Império bra-
seus ser-
na
que o
retratar as
en-
39 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ■to Cf. ANITUA, op. cit., pp. 270 ss.
42 43
sileiro para uma concepção eugenista da população brasileira. Efi¬
caz para o medo branco, “esse discurso do século XIX permitiria
que, na virada para o XX, o ex-escravo brasileiro fosse transforma¬
do de objeto de trabalho em objeto de ciência”.41
Enfim, esse saber constituiu-se a serviço da colonização, do
nega e se contrapõe a um dos pilares do iluminismo jurídico, o
conceito de livre-arbítrio. A novidade metodológica seria o caráter
científico, a individualização dos sinais antropológicos a partir da
observação dos indivíduos nas instituições totais produzidas pelo
grande internamento. O objeto desloca-se do delito para o delinquente,
e a delinquência tem causas individuais determinantes, atravessadas
pelo conceito de degenerescência. Esse determinismo pressupõe práti¬
cas para sua modificação ou correção; surgem as estratégias do
correcionalismo. Talvez uma das principais permanências dessa
racionalidade positivista esteja no paradigma etiológico, nessa ma¬
neira de pensar através das causas, estabelecendo uma mecanicidade
organicista e sem saída. Contra o conceito abstrato de indivíduo
surge um complexo de causas biopsicológicas.
Baratta aponta três vertentes europeias dessa criminologia
inaugural: Gabriel Tarde na Escola Sociológica francesa, von Liszt
na Escola Social alemã e Lombroso, Ferri e Garofalo da Escola
Positiva na Itália. O livro fundacional dessa corrente seria O homem
delinquente, escrito por Lombroso em 1876. Através de mensurações
e classificações realizadas com a população encarcerada nas rela¬
ções entre as testas, os narizes, queixos, lidas hoje até anedoticamente,
o médico italiano inaugura a tautologia do laboratório prisional: a
causalidade do comportamento criminal é atribuída à própria des¬
crição das caracteristicas físicas dos pobres e indesejáveis conduzi¬
dos às instituições totais de seu tempo.
No positivismo, o delito é um ente natural (paradigma atuali¬
zado pelas neurociências e suas publicações apologéticas). O
determinismo biológico se contrapõe à ideia liberal de responsabili¬
dade moral. O importante é “estudar” o autor do delito e classificá-lo,
já que o delito aparece aqui como sintoma da sua personalidade pato¬
lógica, causada pelos mesmos fatores que produzem a degenerescência.
Se o liberalismo revolucionário tratava de limitar o poder punitivo
absolutista, aqui a pena encontrará um caudal de razões para expan-
dir-se; as estratégias correcionalistas se revestirão de caracteristicas
curativas, reeducativas, ressocializadoras, as famigeradas ideologias
“re”. A natureza criminal fará com que elas também se expandam tem-
escravismo e da incorporação periférica ao processo de acumula¬
ção do capital. Ao contrário do liberalismo das revoluções burgue¬
sas, a ciência buscava a expansão e a legitimação do poder punitivo
contra os perigos do proletariado e do lumpen. Desses discursos
científicos surgiram as propostas de eliminação de Laponge e do
arianismo de Chamberlain. Os conceitos de degenerescência,
atavismo e eugenia justificavam os genocídios. Zaffaroni sempre
com frequência precedido de umnos lembra que o genocídio é
discurso legitimante da eliminação.
É aí que se funda a criminologia como disciplina, como “ciên¬
cia”. Esse saber se fundou na observação e medição dos encarcera¬
dos pelo grande internamento. O século dos manicômios era tam¬
bém o século das prisões e dos asilos. A criminologia transforma-se
num discurso autonomizado do jurídico, despolitizado e agora ge¬
rido pelo saber/poder médico. Como na Inquisição, o “criminoso”
será objetificado, agora, com o deslocamento do religioso para o
científico, no combate ao mal que ameaça. A criminologia seguirá
seu percurso acumulando e atualizando métodos.
Alessandro Baratta entende a escola positivista como aquela
que produz a explicação patológica da criminalidade.42 Essas teori¬
as patologizantes trabalham as caracteristicas biopsicológicas dos
“criminosos”; a humanidade passa a sofrer um grande corte entre
normais e anormais. Afinal, as classificações são operações políti¬
cas, “machines deguerre", instrumentos de conquista geopolítica para
o processo de acumulação do capital. Esse determinismo biológico
41 BATISTA, Vera Malaguti. 0 medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma
história., cit., p. 158.
42 Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, cit., pp. 38
ss.
44 45
poralmente, voltem a ser indeterminadas. Afinal, o fenômeno crimi¬
nal seria um dado ontológico pré-constituído. Apesar das rupturas
apresentadas com relação ao pensamento liberal que o antecedeu, o
positivismo também aposta na noção da pena como defesa social,
numa visão totalizante da sociedade, abstrata e a-histórica.
Raúl Zaffaroni nos fala da projeção da criminologia positivista:
“com fundamentos ou discursos parcialmente diversos, generalizou-se
um estereótipo que se estendeu pelo mundo central a partir de uma
perspectiva puramente etiológica, que teve um grande sentido racista e
que foi incorporando matizes plurifatoriais, sem nunca questionar a legi¬
timidade mais ou menos natural da seletividade do sistema penal”.43
A recepção dessas ideias na nossa margem latino-americana
foi um “assombroso transplante”,44 como diria Roberto Bergalli.
Ele analisa histórica e politicamente a conjuntura dessa recepção e
nos remete a uma pergunta básica: por que interiorizamos tão pro¬
fundamente uma ideologia tão destruidora de nossos povos, de nossa
cultura? Como nos deixamos aprisionar tão intensamente por um
quadro teórico que nos conduziu a nos constituirmos em território
degredo, campos de concentração, zonas de truculência e extermí¬
nio sem limite? O positivismo atualizou a configuração da América
Latina em gigantesca instituição de sequestro;45 concentração de povos
“degenerados” e indesejáveis: africanos, índios, judeus, mouros e
criminosos natos da Europa.
Máximo Sozzo analisao nascimento da criminologia na Amé¬
rica Latina como uma colossal tradução do positivismo, uma im¬
portação cultural que configuraria racionalidades, programas e
tecnologias governamentais sobre a questão criminal.46
Rosa Del Olmo trabalhou como ninguém a ideia de controle
social dos “resistentes à disciplina do sistema” na criminologia lati¬
no-americana. O positivismo aparece na esteira da difusão ideoló¬
gica dos países hegemónicos. Ela relaciona o positivismo italiano e
os primeiros esforços latino-americanos surgidos simultaneamente
na Argentina, no Brasil e no México.47
Lola Aniyar de Castro denuncia a metodologia positivista como
fundamental contribuição às presunções de “neutralidade científi¬
ca” na criminologia, pretendendo descobrir “leis gerais, que defini¬
riam a realidade do mundo físico e social”,48 produzindo
parcelamento da realidade, já que o seu objeto de estudo é apenas a
realidade oficial.
O importante é compreender como essa grande tradução,
denunciada por Sozzo, produziu uma matriz discursiva comum, uma
identidade, que gerou não só um determinado olhar sobre a ques¬
tão criminal, mas também uma determinada polícia e um determi¬
nado projeto penitenciário.49 Ou seja, o positivismo configurou,
modelou o poder punitivo e suas racionalidades, programas e
tecnologias governamentais na América Latina.
Nina Rodrigues funda não só a criminologia, como a medici-
na-legal e a antropologia no Brasil num processo profundamente
analisado por Mariza Correa.50 Raúl Zaffaroni sempre se pergunta
como a tradução de Lombroso pode florescer tão intensamente na
Bahia africana de Nina Rodrigues.
um
Nina Rodrigues escreveu
maometanos no Brasil”, no Jornaldo Commeráo do Rio deJanei¬
ro de 2 de novembro de 1900, em que se refere à rebelião es-
artigo intitulado “Os negrosum
43 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminologia: aproximadõn desde un margen. Bogotá:
Temis, 1988, p. 169.
44 BERGALLI, Roberto et al. El Pensamiento Critico y la Criminologia: et pensamiento
criminológico. Bogotá: Temis,1983.
45 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Rio deJaneiro: Revan,1991.
46 CF. SOZZO, Máximo. “Tradutore traditore”. Tradicción, importanción cultural e
história del presente de la criminologia en América Latina. In: Cuadernos de Doctrinay
Jusrisprudencia Penal. Ano VII, n°13. Buenos Aires: Ad. Hoc. Vilela Editor, 2006.
47 OLMO, Rosa Del. A América Patina
Instituto Carioca de criminologia, 2004.
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Reação Social. Rio de Janeiro: Forense,
1983, p. 3.
49 Cf. Projeto do Código Penitenàário da República, elaborado em 1933 por Cândido
Mendes, Lemos de Brito e Heitor Carrilho.
50 CORREA, Mariza. As Ilusões daUberdade. Bragança Paulista: Edusf, 1998.
criminologia. Rio de Janeiro: Revan/e sua
46 47
m
feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente
cinco mil soldados.52
crava na Bahia de 1835. O seu surpreendente trabalho revela a
profunda ambiguidade da sua produção intelectual: foi ele quem
fundou, ao lado da Medicina-Legal e da Antropologia brasilei¬
ra, a escola positivista, com suas traduções e incorporações do
lombrosianismo edo social-darwinismo. No entanto, tinha uma
espécie de curiosidade apaixonada pela vida africana no Brasil.
Sua trajetória reflete um pouco essa grande contradição brasi¬
leira com relação a sua africanidade: perceber intensamente a
sua presença e sua força, tratando sempre de dominá-la. No
seu caso, trabalhando a teoria da hierarquização das raças, es¬
tigmatizando a “raça negra” para que o fim da escravidão em si
não representasse uma ruptura social. O controle social e a
opressão se justificariam então pelo discurso científico.51
Sobre a descoberta do cadáver de Antônio Conselheiro:
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em
festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali
estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas es¬
senciais do crime e da loucura...53
Concluamos este capítulo, essa “página infeliz da nossa histó¬
ria”, com Zé Celso Martinez Corrêa:
O livro Ossertõesfoi o primeiro ataque ao escândalo de dois Brasis
desiguais, com a repressão do próprio Estado brasileiro, massa¬
crando, degolando seu próprio povo. Euclides foi inspirado por
todas as línguas de fogo do Espírito Santo. Escrito em todas as
línguas, linguagens, ciências, poesias, começou a interpretar atra¬
vés do crime praticado pela nacionalidade, o próprio Brasil, para
nós mesmos brasileiros e para todo mundo.54
Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar,
profundamente enraizada na intelligentsia e nas práticas sociais e po¬
líticas brasileiras;ele foi principalmente uma maneira de sentiro povo,
sempre inferiorizado, patologizado, discriminado e, por fim,
criminalizado. Funcionou, e funciona, como um grande catalisador
da violência e da desigualdade características do processo de incor¬
poração da nossa margem ao capitalismo central.
Todo brasileiro tem de ler Os sertões, de Euclides da Cunha (e se
puder, assistir aos Sertões de Zé Celso Martinez Corrêa). Euclides
começa sua viagem pelo Brasil profundo trabalhando com os ins¬
trumentos racistas do positivismo. Seu encontro com a chacina
fundacional da República não deixa pedra sobre pedra das etiologias
determinantes:
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História,
resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a
palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao
entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que
todos morreram. Eram quatro apenas; um velho, dois homens
52 CUNHA, Euclides da. OsSertões. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 392.
53 CUNHA, ibidem, p. 393.
54 Cf. CORRÊA, José Celso Martinez. In: Os Sertões irrigando gotejando Canudos,
programa do espetáculo da Associação Teatro Oficina, Uzyna Uzona, patrocinado
pela Petrobras e encenado em Canudos, na Bahia, de 28 de novembro a 2 de
dezembro de 2007.
51 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma
história., cit., pp. 225-226.
4948
CAPíTULO V
A CRIMINOLOGIA E OS SABERES PSI
A psicologia e a psiquiatria positivistas foram disciplinas fun¬
damentais para o controle social ao longo do século XIX.55 Como
vimos anteriormente, a própria criminologia surge, historicamente,
a partir da psiquiatria criminal, com seus antecedentes históricos de
estudos do cérebro. O importante é compreender a “individualização
dos sintomas” como momento do determinismo biológico que iria
fornecer argumentos para esse discurso legitimador de desigualda¬
de e neutralizador dos movimentos liberatórios e revolucionários
que assombraram o mundo das elites europeias. O positivismo
criminológico que se instaura na segunda metade do século XIX é
produto direto dos saberes psi desenvolvidos a partir do grande
internamento do século XVIII: aquele olhar que só poderia provir
do poder médico exercido dentro dos muros da prisão, do manicô-
mio e do asilo.
É por isso que a invenção freudiana da psicanálise representa
uma importante ruptura no pensamento criminológico. Essa rup-
tura epistemológica só poderia acontecer naquela ambiência frutuosa
da Viena fin-de-siède, que insinuava tanta riqueza intelectual e estéti¬
ca a ponto de eclipsar o ovo da serpente que se gestava silenciosa¬
mente na Europa.56 A obra de Freud, judeu na Áustria do ascen¬
dente nazismo, desenvolveu-se no momento hegemónico do
positivismo, o que nos conforta ao pensar que nem sempre o pen¬
samento hegemónico é-o que sobreviverá ao tempo: o positivismo
criminológico é hoje um argumento risível (embora reciclado pelas
55 Um pouco dessa história e seus efeitos na periferia estão cm meu estudo O medo
na cidade do Rio de Janeiro, cit., pp. 146 ss.
56 Para conhecer melhor essa ambiência ver SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-
siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das Lctras/Ed. Unicamp, 1988; e o
filme de Ingmar Bergman, 0 ovo da serpente (1977).
51
Birman, Zygmunt Bauman e Giorgio Agamben, para dar conta do
paradoxo civilizatório do Ocidente, entre a liberdade

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