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1 XIII Reunião de Antropologia do Mercosul 22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS) Grupo de Trabalho: 01 - (Re) Configuraciones identitarias y culturales afro/negras en el Mercosur: Nuevas perspectivas académicas Título do Trabalho Quilombolas e indígenas no Brasil: construções discursivas e disputas por direitos territoriais. Amanda Lacerda Jorge Universidade Federal Fluminense email: amandalacerda@id.uff.br André Augusto Pereira Brandão Universidade Federal Fluminense email: andre_brandao@id.uff.br 2 QUILOMBOLAS E INDÍGENAS NO BRASIL: CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS E DISPUTAS POR DIREITOS TERRITORIAIS. INTRODUÇÃO O direito ao território de povos e comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas está relacionado, entre outras variáveis de matriz econômica e política, a um quadro de elementos discursivos colocados em jogo por grupos de “intérpretes” que integram diferentes campos. Assim, é possível apontar a existência de um conjunto de discursividades que interagem entre si, cada qual com sua perspectiva de “verdade” e estratégias de legitimação que podem ser lidas, na perspectiva de Bourdieu (2003), como uma luta entre agentes e agências oriundos de diferentes campos de posição e conhecimento, dotados de capital simbólico1. Exatamente por isso, a definição da “verdade” seria o próprio lugar da luta pela imposição socialmente legitimada de categorias e classificações. O que nos coloca no cerne do conceito de “campo”, enquanto “universos sociais relativamente autônomos” (BOURDIEU, 1996, p. 83), os quais constituem espaço de poder, composto por relações de força, interesses, estratégias de mudança ou manutenção, interpretação, e imposição de princípios. A garantia de acesso ou permanência ao território pelos povos e comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas está diretamente relacionado ao campo do direito na medida em que a efetividade destes depende do reconhecimento jurídico e étnico-racial legitimado pelos interlocutores que constituem este campo de forças e de construção de “verdades”. Apesar da CF de 1988 ter significado um grande avanço na legislação brasileira no que diz respeito aos direitos territoriais de indígenas e quilombolas, este quadro tem ganhado um contorno preocupante – entre as ameaças de violação de direitos está a interpretação que vem sendo discutida e aplicada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) denominada “marco temporal”. Tal interpretação equivale a decisão do judiciário de reconhecer direitos territoriais somente de povos e 1 O capital simbólico, como explica Bourdieu (2003), pode ser caracterizado como qualquer tipo de capital, seja ele econômico, físico, cultural ou social, que seja percebido e reconhecido pelos sujeitos que passam a lhe atribuir valor. 3 comunidades tradicionais que estivessem ocupando as suas terras em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal). Neste âmbito, segundo Silva e Filho (2014) a tese do marco temporal, que aparece em decisão plenária no julgamento da Petição/STF nº. 3388, sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol tem sido aplicada em outras decisões do Supremo Tribunal Federal, tendo afetado processos de reconhecimento e demarcação de Terras Indígenas (TIs) de povos como os Terena, Guarani e Kaiowá. No que diz respeito à titulação de territórios quilombolas no julgamento final da ADI2 3239/2004 no ano de 2018 contra o Decreto nº 4887/2003, o posicionamento da aplicação do marco temporal se mostrou superado pelo STF, apesar de ter sido levantado na arena de debates por alguns ministros do STF. Ainda de acordo com Silva e Filho (2004) as decisões do judiciário têm tentado relativizar os direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais a partir de um conjunto de propostas e alterações da Constituição na esfera legislativa com vistas a reduzir o poder da administração do executivo de reconhecer e demarcar terras indígenas e quilombolas. Na busca por contribuir com as reflexões a respeito do direito territorial de povos e comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas, este artigo pretende apresentar a disputa interpretativa no campo do direito acerca da titulação e demarcação dos territórios que pertencem a estes dois grupos. O estudo aborda dois contextos interpretativos: o primeiro diz respeito à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/2004 (movida pelo Partido Democratas contra o Decreto nº 4887/2003) que regulamenta o processo de titulação territorial das comunidades quilombolas. E o segundo contexto está relacionado aos trâmites da Petição PET 3388, ajuizada em abril de 2005 pelo ex senador Augusto Botelho, cujo objeto era a anulação da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol localizada em Roraima. 2 De acordo com o Supremo Tribunal Federal (2019) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) tem por finalidade declarar que uma lei ou parte dela é inconstitucional, ou seja, contrária a Constituição Federal. Somente as seguintes pessoas/ entidades podem propor esta ação: Presidente da República; Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara dos Deputados; Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; Governador de Estado ou do Distrito Federal; Procurador-Geral da República; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Partido político com representação no Congresso Nacional; Confederação sindical ou entidade de classe no âmbito nacional. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2227157>. Acesso em 07-06-2019. http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2227157 4 Ao mobilizar um número elevado de agentes internos e externos no campo jurídico, a ADI 3239/2004 teve longa tramitação no Supremo Tribunal Federal, com alto grau de exposição de conflitos interpretativos, os quais chegaram a termo no julgamento final ocorrido no mês de fevereiro de 2018. Já a PET 3388 de 2005 foi encerrada pelo STF em 23 de outubro de 2013. Sabendo que novos desafios vêm sendo lançados à arena do direito, no que diz respeito à demarcação e titulação territorial de quilombolas e indígenas, estes dois julgamentos realizados no âmbito do STF serão analisados a fim de entendermos as categorias e discursos que construíram a orientação interpretativa neste âmbito. 1. COMUNIDADES QUILOMBOLAS E POVOS INDÍGENAS – IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE A história social da definição contemporânea do que são os “quilombos”, os “quilombolas” ou os “remanescentes das comunidades dos quilombos” é também a história social da produção do monopólio da antropologia sobre um objeto por ela própria construído. É possível verificar através de diversos estudos (Almeida,1989; Brandão et al, 2010; Jorge, 2016; Queiroz, 2006) como um objeto impreciso e fugidio, que nas ciências sociais carregava denominações variadas como “camponeses negros”, “caipiras negros” e “comunidades negras rurais”; foi ganhando unidade após o ano de 1988. A categoria “comunidades quilombolas” se consolida e conquista legitimidade, em 1994, a partir de uma interpretação específica, teoricamente informada pelos cânones da ciência antropológica. A partir daí ganha unidade, emitida pelo discurso científico que produz um importante “efeito simbólico” ao “consagrar um estado das visões e das divisões no mundo social” (BOURDIEU, 2003, p. 119). Neste contexto, é possível verificar a ocorrência de um duplo movimento. Por um lado, a disseminação da interpretação antropológica do que seriam os “quilombolas” no seio das comunidades que passam a se autodeclarar desta forma (o que em geral a literatura da área nomeia como “processo de etnogênese”) e entreos agentes externos que atuavam na mobilização destes grupos. O exemplo disto pode ser encontrado na prosaica entrevista transcrita em Oliveira (2009) com uma “irmã pastorinha” que atuava junto a comunidades ainda não “quilombolas” no Vale do Ribeira no estado de São Paulo. A 5 entrevistada narra como o movimento que assessorava as “comunidades negras” da região, procurava as mesmas para explicar o que “era uma comunidade quilombola” e verificar se havia disposição dos membros em se “identificarem como quilombolas”. Algumas comunidades aderiam de imediato, outras levavam anos até entenderem “esta história de quilombo” e achar “que vale a pena”. O interessante é que a “irmã”, participante de um movimento social denominado Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras – Vale do Ribeira (EAACONE), de fato acreditava que estava encontrando “quilombos”, pois em certo ponto afirmava que “(...) até hoje, a EAACONE, nunca errou! Todas as comunidades que a gente achou que era quilombo, no fim eram quilombos mesmo”. Esta atuação das “irmãs pastorinhas” no caso das comunidades do Vale do Ribeira é muito ilustrativa do processo que estamos narrando. Vale a pena reproduzir aqui um trecho da entrevista acima referida: Primeiro, o pessoal lá em Iguape dizia: ‘ah, eu acho que lá é quilombo, porque só tem negro’. Então a gente pegou o mapa, pegou o carro e foi lá ver (...). Então você chega, conversa, faz amizade, coloca a proposta da EAACONE; explica o que é uma comunidade quilombola. E a gente avalia se eles [moradores da comunidade visitada] estão mesmo dispostos a se identificarem como quilombolas (...). Tem comunidade que adere logo porque é bem organizada. Mas, tem comunidade que leva um ano, dois anos, tem outras que ficam sem se comunicar por anos e depois telefonam falando ‘ah, vocês vieram aqui há quatro anos, e só agora que a gente tá entendendo esta história de quilombo e estamos achando que vale a pena’. Este trabalho de identificação é demorado, porque é tudo muito novo pra todo mundo. Mas até hoje, a EAACONE, nunca errou! Todas as comunidades que a gente achou que era quilombo, no fim eram quilombos mesmo3 (OLIVEIRA, 2009, p. 147) No que tange ao reconhecimento legitimo das comunidades quilombolas como sujeitos de direitos segundo Leite (2008) o novo debate instalado após o Artigo 68 do ADCT que garantia o acesso destas coletividades diferenciadas ao território naquele momento evidenciava o aspecto contemporâneo, organizacional, relacional e dinâmico a ser abarcado pela ressemantização do “quilombo” na atualidade. Os antropólogos apontavam apoiados na perspectiva de Barth (2000), que tais coletividades deveriam ser vistas como uma entidade social que emerge da diferença subjetivamente produzida e sentida nas relações de contato com 3 Entrevista realizada por Oliveira (2009) em 27/07/2008. 6 grupos externos. Neste campo de estudos, duas categorias foram amplamente discutidas – a primeira é a de “uso comum” cunhada em Almeida (1989). Com esta era possível demarcar que, apesar da diversidade de características culturais e fenotípicas, apesar dos diferentes contextos de formação histórica das comunidades, etc.; havia algo em comum na organização social destas. E isto, consistia em uma forma específica de produzir, que se fazia fora dos parâmetros ocidentais da propriedade privada e do capital. Tratar-se-ia de formas de apropriação de recursos naturais e de territórios de produção baseadas no uso coletivo e comum4. A importância desta categoria se deve ao fato de se encontrar algo de homogêneo na diversidade empiricamente observada e ao mesmo tempo introduzir a noção de território. Este último, por sua vez, cumpria a função de afirmar cientificamente uma indissociabilidade radical (ou quem sabe uma “afinidade eletiva”) entre os “quilombolas” e “suas terras”. A segunda categoria que perfaz esta confluência é a de “etnicidade” tal como encontra-se na obra de Barth (2000). Com esta, foi possível argumentar que os “grupos étnicos” são construídos com base em características atributivas e identificadoras empregadas pelos próprios nativos. Tais grupos somente passam a existir a partir da interação com outros e do estabelecimento de “fronteiras étnicas”. O ponto culminante desta adequação é o Decreto nº 4.887/20035, que significou a grande inflexão no campo da “questão quilombola” até este momento. Esta alteração profunda na própria definição conceitual daqueles que seriam os possíveis beneficiários do direito previsto pela Constituição, levou o 4 Apesar de pesquisas empíricas realizadas a partir de 2006 (Brandão et al, 2010 e Brandão e Da Dalt, 2013), apontarem em direção contrária a esta hipótese, o fundamental é que o conceito de “uso comum”, forjado por Almeida (1989) foi inequivocamente disseminado no discurso antropológico e legitimado como a narrativa “verdadeira” do que seria a forma de apropriação de recursos e territórios entre os “quilombolas”. 5 O Decreto nº 4887/2003 trazia em seu segundo artigo a definição do que seriam os “quilombos” e como seria atestada a sua existência no tempo presente. Este dispositivo passou a afirmar a definição defendida pelos antropólogos já em 1994: Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. § 2º São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. 7 INCRA e Fundação Cultural Palmares à emissão de Portarias e Instruções Normativas com objetivo de normatizar os novos procedimentos de titulação. Entretanto, o direito territorial das comunidades quilombolas, vêm sofrendo ataques desde a Ação Direta de Inconstitucionalidade instituída por grupos contrários ao direito territorial quilombola no ano de 2004. A partir do ano de 2016 com a posse do presidente interino Michel Temer e posteriormente com o novo governo Bolsonaro este panorama vem se acentuando ainda mais. Um mapeamento analítico dos discursos que, em última instância, tem levado à desconstrução social dos direitos destes povos será melhor explicado no próximo tópico deste artigo. Para tanto, é preciso conhecer uma outra realidade antes disso – a questão indígena. Contextualizar a luta dos povos indígenas assim como a trajetória que vem sendo enfrentada por estas coletividades diferenciadas é um exercício de extrema importância. Principalmente quando levamos em consideração os contextos de conflitos fundiários – como encontrar soluções práticas e efetivas para estas questões? De acordo com Dodge (2018, p. 8): O marco regulatório do direito dos índios às terras de ocupação tradicional foi estável ao longo dos séculos, como consta do Alvará Régio de 1º de abril de 1680; da Lei de Terras de 1850 (Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850); e da Lei de Terras dos Índios de 1928 (Decreto n. 5.484, de 27 de junho de 1928, que regula a situação dos índios nascidos no território nacional). Posteriormente é a Constituição de 1934 (art. 129) que passa a agregar uma maior segurança jurídica ao direito territorial indígena, direito este que foi sendo fortalecido a partir das outras cartas magnas que foram sendo instituídas ao longo da história brasileira (CF 1937, art. 154; CF 1946, art. 216; CF 1967, art. 186). Mas foi a Constituição de 1988a responsável pela ampliação de direitos direcionados aos povos e comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas. A CF de 1988 reafirmou o direito secular dos povos indígenas ao seu território a partir do artigo 231: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 8 Neste sentido, a Constituição de 1988 legitimou e regulamentou os principais aspectos do direito à terra no que diz respeito as tribos indígenas, a fim de salvaguardar, recuperar, conservar e prevenir os direitos destas coletividades diferenciadas as terras tradicionalmente ocupadas. Assim como o território quilombolas, as terras indígenas são consideradas inalienáveis e indisponíveis, porque se destinam a esta e às futuras gerações, que são responsáveis pelos recursos naturais que tal território possui. A Constituição de 1988 declarou os direitos originários dos índios às terras de sua ocupação tradicional e atribuiu à Justiça Federal competência para processar e julgar as disputas sobre direitos indígenas (art. 109, XI), assim como ao Ministério Público “a função institucional de defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”. (DODGE, 2018, p. 9). Podemos afirmar que pesquisas antropológicas antes da Constituição de 1988, já despertavam a atenção de operadores de direitos e administradores das políticas públicas a respeito destas questões. Os primeiros laudos antropológicos produzidos no Brasil datam da década de 1970, e estavam relacionados à questão indígena. Neste momento, era notável a participação de professores universitários, movidos por seus objetos de pesquisa, como principais produtores destes documentos. No entanto, ainda não havia nenhum padrão específico ou critérios estabelecidos pela comunidade científica a serem seguidos pelo pesquisador. Foi na década de 1980, que o campo profissional dos antropólogos, como “peritos” legítimos da questão indígena se expandiu. Neste momento, a realização de perícias, emissão de laudos e relatórios por parte destes profissionais não passou a contar somente com professores e pesquisadores ligados às universidades e seus núcleos de pesquisas, mas, também com a criação de consultorias próprias, Ongs e com um quadro efetivo que estava se constituindo em alguns órgãos governamentais. A trajetória percorrida pelo atual reconhecimento do direito indígena ao território é ainda repleta de barreiras. Isto porque desde a colonização até os dias atuais, “a invasão, ocupação e exploração do solo brasileiro foram e são determinantes para as transformações radicais que os povos originários passam no decorrer de cinco séculos” (SILVA, 2018, p.481). 9 2. OS QUILOMBOLAS E O JUDICIÁRIO BRASILEIRO Tomamos aqui como escopo de análise um evento específico: a tramitação da Ação Direta de Inconstitucionalidade6 nº 3.239/2004 no Supremo Tribunal Federal, movida pelo atual Partido Político Democratas contra o Decreto nº 4887/2003. Este dispositivo marca um ponto de inflexão fundamental na breve história da “questão quilombola” e indica uma direta adesão do executivo federal às discursividades acerca do artigo 68 do ADCT que vinham sendo produzidas no campo das ciências sociais no Brasil (em especial da antropologia) e utilizadas pelo movimento “quilombola” nascente. O primeiro efeito do Decreto em tela é, portanto, desvincular os “quilombolas” da necessidade de uma comprovação que remeta a um passado de fuga de escravos. Indo mais longe, a caracterização destes sujeitos passa a ser atestada através da “autodefinição da própria comunidade” (§ 1º do Decreto nº 4.887/2003). O Decreto também amplia – potencialmente – a quantidade de hectares de terra que seriam utilizados para a titulação. Isto porque, define em seu § 2º que seriam consideradas “terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”. Bem diferente disto, no Decreto anterior que regulava a matéria (Decreto nº 3.912/2001), a possibilidade de titulação somente poderia englobar “terras que: I - eram ocupadas por quilombolas em 1888; e II – estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988.” A interpretação do artigo 68 do ADCT contida no Decreto nº 4.887/2003 promove, portanto, uma dupla ampliação – seja no rol de possíveis beneficiários, seja no montante de terras a serem tituladas. Acontece que este movimento vai gerar, quase imediatamente, uma resposta por parte daqueles que desde 1988, vinham buscando legitimar uma leitura mais restrita do dispositivo constitucional. De fato, temos aqui um embate direto entre duas concepções que estão contidas na chamada “sociedade aberta de intérpretes do texto constitucional” (HABERLE, 1997). Neste sentido a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), movida junto ao Supremo Tribunal Federal, pelo então Partido da Frente Liberal (atualmente denominado Democratas) marca um embate fundamental entre 10 duas interpretações do artigo 68 do ADCT no cerne do campo do direito – o quilombo histórico versus quilombo como grupo étnico identitário. Percebe-se que a necessidade de comprovação é fundamental no arcabouço intelectual que sustenta a Petição da ADI nº 3.239/2004. Se as comunidades quilombolas remetem ao período colonial e ao período imperial da história brasileira, será necessário comprovar que um determinado grupo “remanesce” de eventos ocorridos neste passado. Isto porque, na perspectiva dos autores da Petição, as comunidades quilombolas seriam aquelas “formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país” (PETIÇÃO INICIAL DA ADI Nº 3.239/2004, 2004, p. 10). Mas, o que a Petição Inicial do PFL não expõe, é o fato de que a necessidade de comprovação corresponde a uma criação pós- 1988, originada de uma forma específica de interpretar o Artigo 68 do ADCT, combinada com certa pressuposição do que seriam os “quilombos”. Isto porque, o artigo 68 do ADCT em nenhuma de suas breves vinte e três palavras, aponta a necessidade de que qualquer elemento seja comprovado. Estamos aqui, no terreno das interpretações e estas ganham ainda mais espaço frente à vacuidade que o artigo 68 do ADCT carrega. Nesta direção, a Petição trabalha com a perspectiva de que deixar de lado a comprovação, geraria uma ilegalidade, que corresponderia a reconhecer o direito a mais pessoas do que aquelas efetivamente beneficiadas pelo dispositivo. Neste contexto discursivo, a pretensa assepsia jurídica da Petição cai por terra. Produzido por grupo partidário diretamente vinculado aos interesses dos grandes proprietários rurais, o texto da Petição Inicial lembra que, com a autoatribuição (e por consequência sem necessidade de comprovação), estaria se realizando “por vias oblíquas uma reforma agrária”, atribuindo títulos de terras a pessoas que “efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão do país” (PETIÇÃO INICIAL DA ADI Nº 3.239/2004, 2004, p. 10). Como vemos a Petição que dá origem a ADI nº 3.239/2004 circula em torno do já antigo debate, vivido pela “sociedade aberta de intérpretes da constituição” (HABERLE, 1997). Neste debate, o fundamental seria consagrar socialmente uma caracterização das comunidades “quilombolas” que operaria uma maior, ou menor, restrição da quantidade de possíveis beneficiados pela propriedade da terra com base no artigo 68 do ADCT. 11 Iniciado o julgamento, o ponto inicial da argumentação do Ministro Cezar Peluso, relator da ação, foi que o Decreto nº 4.887/2003 seria inconstitucionalpor promover direta regulamentação do texto constitucional, o que não seria válido no ordenamento jurídico nacional. O relator mostra total concordância com a argumentação de matriz cronológica, que alicerça a Petição Inicial do PFL. Para o ministro Peluso, os “destinatários” do direito conferido pelo artigo 68 do ADCT: São aqueles que subsistiam nos locais tradicionalmente conhecidos como quilombos, entendidos estes na acepção histórica, em 05 de outubro de 1988. Noutras palavras: os que, tendo buscado abrigo nesses locais (quilombos), antes ou logo após a abolição, lá permaneceram até a promulgação da Constituição de 1988 (ADI Nº 3.239/2004, VOTO RELATOR 1, 2012, p. 38). O relator se preocupa em apurar esta demarcação histórica, livrando-a de possíveis questionamentos. Por isso, afirma que não é necessário precisar a data da extinção formal da escravidão como o limite para a constituição dos quilombos, uma vez que naquele momento o país era marcado por grandes problemas de comunicação (daí o limite ser o ano de 1888). De fato, podemos entender que o ministro deve estar se referindo a possibilidade de uma hipotética fuga de escravos e consequente formação de um quilombo, ter ocorrido, por exemplo, em 13 de junho de 1888, um mês após a abolição e sem que escravos ou os senhores soubessem que aquele instituto não mais existia. Neste caso, os remanescentes do “quilombo” formado estariam também cobertos pelo artigo 68 do ADCT? Mas, por esta via, o mesmo não ocorreria caso o “quilombo” tivesse início em primeiro de janeiro de 1889? Quantos dias estão compreendidos no limite “logo após a abolição” (ADI Nº 3.239/2004, VOTO RELATOR 1, 2012, p. 38) definido no voto de Peluso? Vemos que a convicção do ministro é fruto, também, de uma interpretação. E esta não se afasta daquela que a Petição Inicial do PFL já levantara. A categoria “quilombo” que o voto do relator aponta como a acertada para a interpretação do artigo 68 do ADCT é de fundo cronológico e, portanto, os sujeitos do direito garantidos pela Constituição de 1988 seriam “remanescentes” de eventos que deveriam ter efetivamente ocorrido até o período imperial. 12 Após a exposição do voto do relator, Ministro Cezar Peluso, em 18 de abril de 2012, imediatamente a ministra Rosa Weber solicitou vistas7 ao processo e este foi devolvido cinco dias depois, em 23 de abril de 2012. No entanto, o julgamento somente retornou a pauta em 25 de março de 2015, quando a ministra então fez a leitura de seu voto. De acordo com a interpretação da ministra existiria um objeto claro no artigo 68 do ADCT: o direito dos remanescentes das comunidades de “quilombos” ao reconhecimento, pelo Estado, das terras por eles ocupadas. Isto leva a ministra a apontar que o direito territorial das comunidades quilombolas é um direito fundamental, dotado de eficácia plena e aplicação imediata. Rosa Weber concorda que o Decreto nº 4887/2003 de fato regulamenta diretamente o artigo 68 do ADCT, mas, argumenta que este é o procedimento juridicamente correto, uma vez que tal artigo se refere a direito fundamental, que exige regulamentação imediata, e carrega elementos de autoaplicação. Em 25 de março de 2015, logo após a leitura do voto da ministra Rosa Weber, que “empatou” a votação da ADI nº 3.239/2004 no plenário do STF, o ministro Dias Toffoli pediu vistas ao processo. O voto deste ministro foi somente publicado no dia 09/11/2017. De acordo com este: Não há dúvida de que o preceito constitucional motivou-se na necessidade de se reparar uma dívida histórica decorrente da injustiça secularmente praticada contra os negros desde o período escravocrata brasileiro. Trata-se de reparação concretizada no reconhecimento dos direitos de descendentes das comunidades dos antigos escravos à propriedade das terras por eles historicamente ocupadas. Indo mais além, garantiu a Carta da República, agora em seu texto permanente, a proteção das manifestações culturais afro-brasileiras (art. 215, § 1º, CF) e o tombamento de todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (art. 216, § 5º, CF) (ADI Nº 3.239/2004, VOTO MINISTRO TOFFOLI, 2017, P. 147). De acordo com o Ministro Dias Toffoli (2017) a “questão quilombola” está diretamente relacionada à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira – trata-se, portanto, da obrigação do Estado em resguardar o patrimônio material e imaterial brasileiro ao reconhecer direitos territoriais a grupos étnicos e minoritários. Todavia, não se pode deixar de 7 O pedido de vista é regulamentado no STF, e equivale a um período que o ministro examina melhor o processo antes de emitir seu voto. O regulamento interno do STF determina que o processo deve ser devolvido ao plenário duas sessões após aquela em que foi feito o pedido. 13 reconhecer o caráter complexo deste panorama que tem suscitado interpretações divergentes “quanto ao alcance subjetivo e objetivo desse direito, bem como quanto às formas para sua aplicação, divergências essas das quais decorre, no meu sentir, o ajuizamento da presente ação direta de inconstitucionalidade” (ADI Nº 3.239/2004, VOTO MINISTRO TOFFOLI, 2017, P. 149). Tais questionamentos estão relacionados principalmente as seguintes questões: Quem será beneficiado pela norma constitucional? Quem são os “remanescentes das comunidades dos quilombos”? Quais critérios utilizar para identificá-los? Quais terras serão objeto de titulação? Para ser reconhecido o direito de propriedade, em que momento a comunidade deveria “estar ocupando suas terras”? Esses pontos coincidem exatamente com as impugnações formuladas pelo partido autor da presente ação direta de inconstitucionalidade em face do Decreto federal nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 (ADI Nº 3.239/2004, VOTO MINISTRO TOFFOLI, 2017, P. 149). Como se percebe, a interpretação construída pelo ministro deixou de lado a antiga definição de quilombo histórico, ao eleger critérios antropológicos para denominar quem seriam as comunidades quilombolas, e quais seriam os seus direitos na contemporaneamente. E esta foi também a posição da maioria dos ministros do STF no que diz respeito a ADI 3239/2004. O inteiro teor do acórdão final8 deste julgamento foi publicado um ano após o fechamento da ação, no dia 21/02/2019. Trata-se de um documento 353 páginas, que contém todos os votos dos ministros do STF. Para abordamos profundamente tal questão precisaríamos de mais páginas, já que se trata de um tema complexo. Podemos fechar este tópico informando ao leitor que a ADI 3239/2004 mobilizou um número elevado de agentes internos e externos ao campo jurídico com longa tramitação na Suprema Corte e com alto grau de exposição de conflitos interpretativos. No dia 8 de fevereiro de 2018 o julgamento terminou. O desfecho final desse embate foi desenhado com um placar de oito votos favoráveis ao direito territorial dos quilombolas e três votos contrários. Durante o julgamento as discussões foram posicionadas principalmente para a questão do marco temporal defendida pelo Partido Democratas e pela bancada ruralista durante todo o processo, além de considerações sobre a autodeclaração como 8 Disponível em:< https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2227157>. Acesso em 11-06-2019. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2227157 14 um critério para o reconhecimento de comunidades quilombolas. Mas esta tese foi claramente rechaçada pelos ministros do STF e não consta do acordão final. 3. OS INDÍGENAS E O JUDICIÁRIO BRASILEIRO A condição dos povos indígenas na realidade brasileira é conhecida histórica e socialmente como um processo que abarca vitórias e retrocessos,reconhecimento e invisibilidade, e principalmente violência. Estamos neste sentido, nos referindo a um bem que carrega tensões e disputas – o acesso a terra, ou no caso dos povos e comunidades tradicionais o direito ao território como fonte de reprodução não somente material, mas também simbólica. A Constituição de 1988 amplia e reafirmar dispositivos de proteção ao território indígena, sendo o resultado do fortalecimento da organização política e institucional de órgãos de defesa e da própria luta do movimento social indígena. Mas a Petição 3388/RR reúne questões complexas vocalizadas tanto pela sociedade quanto pelos juízes do Supremo Tribunal Federal que interpretaram e julgaram a ação popular ajuizada pelo Senador Affonso Botelho Neto (PT) e Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti (Arena, PFL, DEM). Trata-se da solicitação de nulidade da Portaria nº 534/2005 que passou a definir os limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol9 (TIRSS). Somente no ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) validou a demarcação contínua da reserva indígena e determinou a saída dos não índios da área. Como nos esclarece Lages (2004) a reserva já havia sido reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), demarcada no governo Fernando Henrique Cardoso (Decreto nº 1 775/96 e Portaria nº 820/1998) e homologada em 2005 pelo governo Lula (através da Portaria n º 534/2005). A partir desta última Portaria declarou-se a posse permanente dos grupos indígenas Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapixana sobre a Terra Indígena denominada Raposa Serra do Sol. Ainda de acordo com este dispositivo: Art. 4º Ficam excluídos da área da Terra Indígena Raposa Serra do Sol: I - a área do 6º Pelotão Especial de Fronteira (6º PEF), no Município de Uiramutã, Estado de Roraima; II - os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes; III - o núcleo urbano atualmente existente da sede do Município de Uiramutã, 9 A área que possui cerca de 1,7 milhão de hectares, também ficou conhecida pela disputa entre indígenas, fazendeiros, e produtores de arroz que ocuparam de maneira irregular tal reserva indígena. O Território está situado no estado brasileiro de Roraima, Norte do país, nos municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã e faz fronteira com a Venezuela. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=105036 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=105036 15 no Estado de Roraima; IV - as linhas de transmissão de energia elétrica; e V - os leitos das rodovias públicas federais e estaduais atualmente existentes. Art. 5º É proibido o ingresso, o trânsito e a permanência de pessoas ou grupos de não-índios dentro do perímetro ora especificado, ressalvadas a presença e a ação de autoridades federais, bem como a de particulares especialmente autorizados, desde que sua atividade não seja nociva, inconveniente ou danosa à vida, aos bens e ao processo de assistência aos índios. Parágrafo único. A extrusão dos ocupantes não-índios presentes na área da Terra Indígena Raposa Serra do Sol será realizada em prazo razoável, não superior a um ano, a partir da data de homologação da demarcação administrativa por decreto presidencial (Art 4º e 5º da Portaria n º 534/2005). De acordo com Lages (2014) a decisão proferida pelo STF sobre a TIRSS foi pensada como um marco regulatório nos casos de demarcação de terras indígenas fundamentadas juridicamente de maneira contínua - no entanto, no dia 23 de outubro de 2013, a Corte voltou atrás e decidiu que sua validade seria apenas para o caso específico julgado, não tendo, portanto, efeito vinculante, o que não nos espanta, afinal estamos falando de um bem valioso, escasso e disputado no país: a terra. Argumentos contrários até os dias atuais sobre a demarcação têm ainda como base apontamentos como: ameaça à soberania brasileira, já que a localização das terras é em áreas de fronteira, a necessidade de inserção dos índios à sociedade capitalista nacional, tomados até então como grupos isolados, e a busca pelo desenvolvimento econômico e social a partir da diversidade de recursos naturais da região. A partir destas questões iniciais vejamos alguns pontos importantes da decisão sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, proferida em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal. Ao analisar os autos que formam a PET nº 3388/RR estaremos aqui fazendo o exercício de compreender a manifestação de discursos, ideologias e interpretações que contornam o campo do direito – a leitura desta realidade é encenada pelos Ministros do STF. Já no documento inicial da PET nº 3388/RR os autores da petição apontam logo nas primeiras linhas que “o Supremo tem a guarda da Constituição e não pode despedir-se desse dever, imposto de forma expressa pelo Constituinte de 1988, sob pena de a história cobrar-lhe as consequências da omissão, de comprometimento da própria credibilidade” (AÇÃO POPULAR, PET. 3388/RR). Entretanto como aponta Lages (2014), apesar destas denominações que “sacralizam” estes agentes não podemos perder de vista os alicerces culturais, 16 sociais e simbólicos que constroem a identidade magistral destes e que acabam por dar viés as suas decisões. Por isso, nos é interessante refletir o campo do direito e os agentes que dele participam a partir de Bourdieu (2003) – já que a autonomia do direito não deve ser tomada como um dado a priori. O relator do processo foi o ministro, atualmente aposentado, Carlos Ayres Britto. O objeto do julgamento envolveu como afirmamos anteriormente, a nulidade do processo demarcatório da Reserva Raposa Serra do Sol, proferida em 2005. O autor principal da ação, o então senador Affonso Botelho Neto argumentou que a portaria apresentaria “vícios, quando da realização de perícia judicial determinada pelo juízo da 1ª Vara Federal de Roraima e representariam ofensa aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, legalidade e devido processo legal” (PET nº 3388/RR, p. 3). Isto porque: não houve a participação de todos os interessados durante o processo de demarcação da reserva, o estudo antropológico precisaria ser revisto já que foi assinado por um único antropólogo, a iminente insegurança para o país deveria ser considerada (tendo em vista que a região está localizada em área de fronteira), além do prejuízo econômico e ofensa ao equilíbrio federativo, haja vista que a área demarcada ocupava grande parte do território do Estado de Roraima. Durante o processo a Procuradoria Geral da República (PGR) apresentou contra-argumentos a estas acusações e não acolheu a argumentação desenvolvida pelos partidários da anulação dos atos demarcatório, por interpretar que tratava-se de argumentos genéricos “sem, no entanto, apontar, efetivamente, qualquer ilegitimidade com força para anulá-la” (PGR, PET nº 3388/RR, p. 4). Argumenta-se, portanto, a partir da “tradicional e inequívoca ocupação indígena na região” que existem documentos, e mapas históricos que comprovam a ocupação dos grupos indígenas naquele território, desde antes do início da colonização de Roraima. Diante do processo de colonização a instalação do Serviço de Proteção ao Índio foi até mesmo necessária com o crescimento do registro de conflitos que começaram a ocorrer com o povoamento do local através de colonos civis. A violência física, e desterro também estão documentados em livros e em outras referências. Percebe-se que ao contrário da “questão quilombola” e de inúmeras comunidades negras rurais que contam com a memória como prova da 17 ancestralidade do território onde vivem ou de onde foram expulsas, no caso específico da TIRSS a ocupação tradicional exercida pelos índios é atestada por diversos documentos que não podem deixar dúvidas para o observador externo.“Deste modo, resta evidente que não é o processo demarcatório que cria o direito à posse, pois este somente delimita a área indígena de ocupação tradicional” (PGR, PET nº 3388/RR, p. 10). Outro ponto apontado pela PGR é que mesmo diante do fato de os indígenas terem sido forçados a se retirar de parte de suas terras, por ação do poder público ou por violência de agentes privados, este acontecimento não descaracterizaria as terras como tradicionalmente indígenas. Percebe-se que as categorias território e tradicional são sempre apresentadas nos discursos que constroem as peças da PET 3388/RR. Afirma-se que o direito ao território pelos grupos indígenas está previsto na CF de 1988, que reconhece: Não apenas a ocupação física das áreas habitadas pelas tribos, mas, sim, a ocupação tradicional do território indígena, o que significa reconhecê-lo como toda a extensão de terra necessária à manutenção e preservação das particularidades culturais de cada grupo. São incorporadas não só as áreas de habitação permanente e de coleta, mas também todos os espaços necessários à manutenção das tradições do grupo. Assim, ao se garantir que a TIRSS fosse demarcada em uma faixa contínua de terras, procurou-se atender a todos os requisitos legais atinentes à matéria, preservando-se a identidade histórica e cultural dos silvícolas que lá habitam (PGR, PET nº 3388/RR p. 13). No ano de 2009, após relatados e discutidos os autos, os ministros do STF, sob a presidência do ministro Joaquim Barbosa votaram pela manutenção de Raposa Serra do Sol em território contínuo como condição imprescindível à vida social e cultural, à reprodução dos costumes, línguas, crenças, tradições indígenas. Estavam presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso. No acordão o STF esclareceu que: a) a decisão proferida na PET 3.388/RR não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos, relativos a terras indígenas diversas; b) com o trânsito em julgado do acórdão proferido na PET 3.388/RR, todos os processos relacionados à Terra Indígena Raposa Serra do Sol deverão adotar as seguintes premissas como necessárias: (i) são válidos a Portaria/MJ nº 534/2005 e o Decreto Presidencial de 15.4.2005, que demarcaram a área, observadas as condições indicadas no acórdão; e (ii) a caracterização da área como terra indígena, para os fins dos arts. 20, XI, e 231, da Constituição, importa em nela não poderem persistir pretensões possessórias ou 18 dominiais de particulares, salvo no tocante a benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF/88, art. 231, § 6º); c) o usufruto dos índios não lhes confere o direito exclusivo de explorar recursos minerais nas terras indígenas. Para fazê-lo, quais pessoas devem contar com autorização da União, nos termos de lei específica (CF/88, arts. 176, § 1º, e 231, § 3º). De toda forma, não se pode confundir a mineração, como atividade econômica, com as formas tradicionais de extrativismo, praticadas imemorialmente, nas quais a coleta constitui uma expressão cultural ou um elemento do modo de vida de determinadas comunidades indígenas. No primeiro caso, não há como afastarem-se as exigências previstas nos arts. 176, § 1º, e 231, § 3º, da Constituição. (...) O Tribunal, por unanimidade, resolveu as questões de ordem suscitadas pelo Relator para: a) declarar encerrada a supervisão judicial sobre os atos relacionados ao cumprimento da Portaria/MJ nº 534/2005 e do Decreto Presidencial de 15.4.2005; e b) declarar exaurida a eficácia do acórdão proferido na RCL 3.331/RR, pondo fim à presunção absoluta de competência desta Corte para as causas que versem sobre a referida Terra Indígena, sem prejuízo da possibilidade de que, em cada situação concreta, os interessados demonstrem ser esse o caso. (ACORDÃO PET 3388/RR, 2013, p. 93-94). Assim como no âmbito da questão quilombola, este julgamento mobilizou um número elevado de agentes internos e externos ao campo jurídico com longa tramitação na Suprema Corte e com alto grau de exposição de conflitos interpretativos, mas que resultou positivamente na salvaguarda do direito territorial dos grupos indígenas do estado de Roraima. Dessa forma impôs ao Estado a obrigação de garantir e proteger o pleno exercício do direito territorial de grupos indígenas, que infelizmente está, assim como o direito das comunidades quilombolas ao território, as margens de decisões da agenda governamental e do executivo, capazes de desmantelar o que lhes é atribuído por direito – restando mais uma vez, frente a este processo a palavra final dos juízes do STF sempre que são intimados a responder: quem tem direito? CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo foi possível verificar como as performances discursivas no campo do direito se articularam em torno de direitos territoriais de quilombolas e indígenas no Brasil. Tanto a ADI nº 3.239/2004, quanto a PET nº 3388/RR constituem um exemplo vivo de como os agentes do judiciário, na figura de ministros do Supremo Tribunal Federal interpretam e constroem o significado da categoria étnico e identitária de indígenas e quilombolas, assim como o direito ao território. Como aponta Bourdieu (2003) o campo do direito compartilha, produz ou contradiz afirmações de verdade com pretensão de legitimidade. Este seria o 19 lugar de agentes com competência técnica socialmente legitimada, que atuam como mandatários autorizados de uma coletividade, com a função de interpretar textos capazes de resolver conflitos e proceder às negociações no mundo social. A interpretação de textos jurídicos, feita pelos agentes autorizados, possui um caráter plural e, por isso, este contexto apresenta um “jogo de lutas, pois a leitura é uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial” (BOURDIEU, 2003, p. 213). Por fim, nos cabe aqui encerrar dando visibilidade ao desmantelamento ainda mais radical que vem sendo sofrido por povos e comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas no país no que diz respeito aos direitos territoriais e sociais. Em seu mandato atual o presidente eleito Jair Bolsonaro vem defendendo que a área da reserva indígena Raposa Serra do Sol seja explorada, a fim de garantir o desenvolvimento econômico do país e a integração do índio à sociedade (JORNAL BRASIL DE FATO10, 2018). No mês de abril de 2017, quando ainda era deputado federal, o presidente participou de um evento no qual afirmou que, após visitar comunidades quilombolas no município de Eldorado (SP), pôde perceber que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriar eles servem mais”. No ano de 2018, uma denúncia foi apresentada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que acusou Bolsonaro de usar e propagar discurso discriminatório. Entretanto, no dia 7 de junho de 2019, a denúncia foi arquivada. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio: uso comum e conflito. Belém: NAEA/UFPA, 1989. ALMEIDA, Regina Celestino de. 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