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A nossa identidade coletiva pode ser reconhecida, construída e fortalecida por meio da preservação de nossa história e memória que não estão registradas apenas em livros ou fotografias, mas também em nossos monumentos, arquitetura, obras de arte, enfim, em toda forma de expressão cultural, seja ela material ou imaterial. Nesta obra, você é convidado a construir e aprofundar seus conhecimentos sobre nossos patrimônios materiais e imateriais, as formas de proteção, os espaços de memória e o papel do profissional de História e dos projetos cidadãos. Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6558-5 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 5 8 5 Código Logístico 59040 R EN ATA C A R D O SO B ELLEB O N I R O D R IG U ES PATR IM Ô N IO H IS TÓ R IC O E C U LT U R A L N O B R A S IL Patrimônio histórico e cultural no Brasil IESDE BRASIL 2019 Renata Cardoso Belleboni Rodrigues © 2019 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: ESB Professional/lazyllama/Fred S. Pinheiro/Ksenia Ragozina/Renan Martelli da Rosa/Fabio Imhoff/VanjaO/Elysangela Freitas/Shutterstock.com CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R616p Rodrigues, Renata Cardoso Belleboni Patrimônio histórico e cultural no Brasil / Renata Cardoso Belleboni Rodrigues. - 1. ed. - Curitiba: IESDE, 2019. 102 p. : il. Inclui bibliografia IISBN 978-85-387-6558-5 1. Brasil - História. 2. Patrimônio cultural - Brasil. 3. Memória - Aspectos sociais - Brasil. I. Título. 19-60653 CDD: 981 CDU: 930.85(81) Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Renata Cardoso Belleboni Rodrigues Pós-doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Sorbonne, França. Doutora em História Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). Licenciada e bacharel em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Atua como professora de História há mais de 20 anos. É autora de artigos científicos e de livros destinados à modalidade de ensino a distância (EaD). É coordenadora institucional do Programa de Residência Pedagógica em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), professora adjunta e coordenadora do curso de História em uma instituição de ensino superior. Sumário Apresentação 7 1 Memória, história e identidade 9 1.1 Memória e história: conceitos indissociáveis 9 1.2 A noção de identidade: pertencimento e filiação histórica 21 1.3 Dever ou direito à memória 24 2 Patrimônio histórico e cultural: trajetória e legislação 31 2.1 A origem do patrimônio 31 2.2 O patrimônio no mundo e no Brasil 34 2.3 Patrimônio brasileiro: órgãos e legislações de preservação 43 3 Patrimônio material e imaterial no Brasil: formas de proteção 53 3.1 Patrimônio material ou tangível 53 3.2 Patrimônio imaterial ou intangível 59 3.3 Formas de proteção patrimoniais 68 4 Educação patrimonial e o papel do profissional de História 77 4.1 Educação patrimonial: um direito e um dever da nação e do cidadão 77 4.2 O profissional de História frente ao patrimônio: funções e ações 85 4.3 Patrimônio e projetos cidadãos no Brasil 91 Gabarito 101 Apresentação A sociedade atual, globalizada, nos traz a rica experiência das trocas culturais. Cada vez mais estamos nos habituando a diferentes tradições, costumes, visões de mundo, modos de pensar. Essa vivência com o outro, com aquele que é diferente, força-nos a pensarmos em quem somos, em como nos definimos. A nossa identidade coletiva pode ser reconhecida, construída e fortalecida por meio da preservação de nossa história e memória que não estão registradas apenas em livros ou fotografias, mas também em nossos monumentos, arquitetura, obras de arte, enfim, em toda forma de expressão cultural, seja ela material ou imaterial. Todos nós temos direito a essa expressão de cultura que chamamos de patrimônios, assim como temos deveres. Preservá-los, valorizá-los e divulgá-los é tarefa de todo e qualquer cidadão, assim como do Estado. No Brasil, o órgão responsável pelas questões patrimoniais é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mais conhecido como Iphan. É esse órgão que busca garantir que nossos bens culturais recebam a devida atenção dos cidadãos brasileiros. A união de todas as instâncias responsáveis pela preservação e divulgação somada à atuação das diferentes mídias, dos espaços de memória e o esforço coletivo das comunidades de preservarem seus patrimônios vêm evidenciando, cada vez mais, que nosso país possui uma cultura tão complexa que nos coloca frente a um questionamento: o Brasil tem apenas uma identidade ou é constituído de diversidades múltiplas? Vamos juntos refletir sobre esse questionamento e buscar uma resposta? Nesta obra, a cada página, você é convidado a construir e aprofundar seus conhecimentos sobre nossos patrimônios materiais e imateriais, as formas de proteção, os espaços de memória e o papel do profissional de História e dos projetos cidadãos. Bons estudos! 1 Memória, história e identidade O trabalho do professor e do pesquisador em História é inseparável das questões patrimoniais, uma vez que esses profissionais tomam como fontes de pesquisa os elementos culturais que fazem parte do patrimônio de um grupo, de uma dada nação ou da humanidade. Do mesmo modo, ao abordar essa temática, concomitantemente adentrarão no campo da memória. E como se não bastasse a complexidade desses temas, de modo inevitável, esses profissionais serão levados a se aproximarem das discussões a respeito de identidade. Resumidamente, falar de patrimônio é falar de história, de memória e de identidade. Vamos aprofundar nossos conhecimentos acerca desses conceitos? 1.1 Memória e história: conceitos indissociáveis Para compreendermos a estreita relação entre os conceitos de história e memória, vamos conhecê-los ou relembrá-los e analisá-los, a princípio, separadamente. Iniciemos pelos conceitos de história apresentados por pesquisadores dos centros acadêmicos estrangeiro e nacional. “A História dizia Michelet é a ressurreição do passado”. Bernheim nos fins do século definia a História como a ciência da evolução do homem considerado como ser social e Huizinga num ensaio sobre o conceito da História considerava-a como a forma espiritual pela qual uma cultura se dá conta de seu passado. (COSTA, 1963, p. 434) Pelas definições anteriores, podemos entender a História como algo a ser ressuscitado, uma ciência que estuda a evolução do ser humano na sociedade, História como forma espiritual. Esses modos de compreender a História derivam do século XIX, quando várias linhas historiográficas discutiam qual deveria ser o método da História, como tratar as fontes e que tipo de questionamentos dirigir a elas, além de divergências sobre a noção de fatos históricos: Eles seriam inventados pelo historiador ou apresentados pelas fontes? Em terreno francês, os debates a respeito das questões históricas ganharam nova roupagem com a Escola dos Annales. Embora a historiografia divida seus integrantes e suas visões da História em três gerações (1929-1946; 1946-1968; 1968-1989), é importante destacar que os estudos historiográficos ganharam novos objetos, novas abordagens e novos problemas. E, mais do que nunca, ganhou força a compreensão de que o passado passou e não pode ser recuperado, ou ressuscitado, tal como foi. Um dos representantes desse grupo, Bloch (2001, p. 79), definiu a História como a ciência que estuda “o homem no tempo”, afirmando que “tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele”. Patrimônio histórico e cultural no Brasil10Portanto, como vimos, o objeto da História é o ser humano no tempo, e não o próprio tempo. E mais, todas as obras produzidas por ele importam ao historiador, visto que foi adotada uma nova concepção de documento: tudo é documento. Entre os escritos: bilhetes, cartas, diários, inscrições parietais, notícias de jornais, revistas, letras de música, mensagens de e-mail ou WhatsApp, livros impressos, e-books, registros de cartórios, balancetes administrativos etc. Referentes à cultura material: ferramentas, armamentos, vasos, utensílios ritualísticos ou domésticos, brinquedos, fósseis, fotografias, vídeos, ruínas, vestimentas, moedas etc., além de todas as representações figuradas e suas simbologias. Na década de 1990, mais uma vez a historiografia se viu em meio a mudanças. A chamada História Cultural reforçou algumas questões que vinham sendo discutidas desde os anos 1960: a importância da interdisciplinaridade para os estudos históricos e as imagens como textos a serem lidos. Até o campo das sensibilidades (as emoções) tornou-se objeto de estudo do historiador que assumiu, definitivamente, que não existe a História, mas histórias; não existe o homem no tempo, mas os homens, em toda a sua diversidade, nos tempos sociais, econômicos, políticos etc. Um dos representantes dessa linha historiográfica é Keith Jenkins, para quem a História: constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo. Embora esses discursos não criem o mundo (aquela coisa física na qual aparentemente vivemos), eles se apropriam do mundo e lhe dão todos os significados que têm. O pedacinho do mundo que é o objeto (pretendido) de investigação da história é o passado. (JENKINS, 2007, p. 23) Em outras palavras, Jenkins afirmou que História é discurso, interpretação e construção do passado. Para ele, História e historiografia são praticamente sinônimas. No contexto nacional, Pedro Paulo Abreu Funari definiu a História como o “estudo do passado por meio de documentos” (FUNARI, 2014). No vídeo Por que gosto de História?, disse que a História é o veículo que permite às pessoas sonhar e viajar no tempo, em outros espaços, possibilita conhecer outras civilizações e outros costumes. A História é o que nos permite entender as pessoas de nossa época, respeitar e perceber o valor e a beleza que está nos outros, além de ser o meio pelo qual podemos conhecer a nós mesmos (FUNARI, 2013). Leandro Karnal, outro historiador brasileiro, afirma que a História é o que nos “mostra a desnaturalização de todas as coisas que antes considerávamos naturais; […] mostra a liberdade que os homens têm de construir e destruir todas as instituições”. Para ele, a História também é “a base da liberdade” (KARNAL, 2013). Portanto, ao retomar todas as definições apresentadas, vemos que a História é o passado, é ciência, vida e resgate de memórias, uma vez que nos permite revisitar outros tempos e espaços para conhecer os outros e nós mesmos. Memória, história e identidade 11 Observe a Figura 1 em que Clio está no carro alado da História representando a passagem do tempo. Figura 1 – Clio, a musa da História FRANZONI, C. Clio no carro da História. Mármore. 1819. Antiga Câmara do Senado no Capitólio, EUA. So ut hg ei st /W .C om m on s Essa estátua, por exemplo, é um documento a ser analisado e interpretado, visto que é uma obra de um homem em um dado tempo. Ela mescla elementos diversos, como a Clio da Antiguidade e o relógio da modernidade. Mesmo com simbologias tão distantes, o modo pelo qual foram associadas nos permite compreender a ideia do escultor. Essa é a tarefa da História: tomar uma fonte para pesquisa, analisá-la e interpretá-la. Quer fazer esse exercício? Se tomarmos para nós essa tarefa e dirigirmos nossa atenção para o livro que está nas mãos de Clio, musa da História, podemos afirmar que ela escreve a história enquanto acontecimentos e eventos que vivenciamos? Ou pelo fato de estar registrando por escrito esses acontecimentos, ela está escrevendo a História enquanto historiografia? Eis um trabalho complexo, todavia, que fascina. Do mesmo modo que a História, essas mesmas fontes ou documentos, como o exemplo da estátua, são utilizadas muitas vezes para que possamos pensar na questão da memória. É muito provável que você associe esse conceito ao de lembrança. Quantas vezes pediram para que você puxasse pela memória algum nome, fato ou data, letra de música ou cena de filme e você respondeu: “Lembro-me de que...” O cheiro de um bolo quentinho saindo do forno, por exemplo, faz com que você se lembre de sua avó, mãe ou tia? E aquela foto com os seus amigos ou primos traz a lembrança de algo especial? A memória, enquanto lembrança, é subjetiva; traz a marca de nossas experiências particulares. Já notou que, às vezes, quando você e outra pessoa estão recordando algum fato que presenciaram juntos nem sempre concordam com o que descrevem? É a subjetividade atuando. Patrimônio histórico e cultural no Brasil12 Observe este trecho da música composta por Belchior e brilhantemente interpretada por Elis Regina: Já faz tempo eu vi você na rua Cabelo ao vento, gente jovem reunida Na parede da memória Esta lembrança é o quadro que dói mais1. (COMO..., 1976) Ao iniciar a leitura, você se lembrou da melodia e começou a cantar, mesmo que mentalmente? Não estranhe caso isso tenha acontecido. É a sua memória mostrando que está viva. Aproveitando o contexto da canção, o da ditadura, será que todos os brasileiros que viveram naquele período têm os mesmos acontecimentos registrados na memória? Certamente, se pedir a alguém que foi torturado para que se lembre de algo para lhe contar, as emoções que se aflorarão e o que lhe contará não serão as mesmas situações lembradas por alguém que não viu tais ações de perto. Mas memória não é apenas lembrança ou recordação, esse conceito vem se transformando e sendo estudado desde a Antiguidade. E é na Antiguidade Grega que vamos resgatar o mito do nascimento da memória (como lembrança). O mito narra que o poeta Simônides de Céos foi convidado pelo rei de Tessália, Scopas, a fazer um poema em sua homenagem. Ao escrever tal poema, Simônides o dividiu em duas partes: na primeira, o rei foi louvado; e na segunda, o poeta fez o mesmo com os filhos de Zeus, os deuses Castor e Polux. Durante um banquete oferecido pelo rei, o poema foi lido e, ao ser cobrado pelos serviços, o rei respondeu que pagaria apenas a metade, pois nem todo o poema fora dedicado a ele, devendo a outra metade ser cobrada dos deuses. Pouco depois, um mensageiro informou ao poeta que havia dois jovens lhe aguardando do lado de fora do palácio. Ao sair, Simônides não encontrou ninguém e, ao procurar pelos rapazes, viu quando o palácio desabou desfigurando e matando todos. Sem poder reconhecer os seus entes, os familiares se desesperaram, mas o poeta se lembrou das roupas e dos lugares ocupados pelos convidados e ajudou na identificação dos corpos. Assim nascia a arte da memória (LEONARDELLI, 2008). Observe que Simônides fez uso do reconhecimento do toppoi (lugar) e de objetos (as roupas) para ativar a sua memória. Ela precisou de algo concreto para ser resgatada, embora a emoção do momento tenha contribuído para tal. Ainda no contexto da mitologia grega, a memória era uma deusa, Mnemosine (nome derivado do verbo mimnéskein, que significa lembrar-se de), que, em seu relacionamento com Zeus, gerou as nove musas: Calíope (poesia lírica), Clio (história), Polímnia (música), Euterpe (música para a flauta), Terpsícore (dança), Érato (música para lira), Melpómene (tragédia), Talia (comédia) e Urania (astronomia). O fato de a memória ser uma deusa evidencia a importância desse conceito para aquela cultura que tinha, a princípio, a oralidade como fonte de transmissão e perpetuação das tradições (BRANDÃO, 1991). O exercício do “lembrar” era de grande importância para o cidadão grego, e, de fato, para todo grupamento humano cujas tradições são transmitidas oralmente. Em umaépoca em que a escrita e os registros artísticos em geral eram restritos a 1 Disponível em: https://www.vagalume.com.br/elis-regina/como-nossos-pais.html. Acesso em: 7 out. 2019. https://www.vagalume.com.br/elis-regina/como-nossos-pais.html Memória, história e identidade 13 poucos, a imprensa e nenhuma outra forma de reprodução mecânica existiam, aquele que tivesse o dom da lembrança adquiria poderes especiais diante da coletividade: é o historiador, o poeta e, para Platão, o filósofo que acessa o mundo perdido do conhecimento das vidas passadas. O avanço da oratória a partir de Homero se alinha ao desenvolvimento dos estudos da mnemotécnica. (LEONARDELLI, 2008, p. 22) A memória também foi tema de estudo dos filósofos gregos Platão e Aristóteles. O primeiro fez a distinção entre a memória passiva (que não é voluntária e alimenta apenas a opinião) e a reminiscência (recordação voluntária que alimenta o conhecimento inteligível). Já para Aristóteles, a memória era a capacidade de conservar o passado trazido à tona, voluntariamente, por meio de um esforço intelectual (QUADROS; FONSECA-SILVA, 2016). Para finalizar nosso percurso em terreno grego, Heródoto, segundo Vidal-Naquet (2002, p. 37), escreveu a história para “impedir que o tempo elimine da memória tudo o que fizeram os homens” e Tucídides, bem ao contrário, rejeitava a ideia de memória. A escolha de Tucídides em escrever sobre o presente se dá pela incredibilidade no passado mítico e na fragilidade da memória, pois, para ele, somente aquilo que é visível (a audição e a oralidade são rejeitadas por Tucídides) e testemunhável é plausível de ser relatado. (DEVECHIO; SEIXAS, 2008, p. 6) No período medieval, esse tema também foi objeto de análise de São Tomás de Aquino. Para ele, é preciso que ativemos o intelecto para fazer uso da memória, portanto, ela não é um atributo natural ao homem. Ele complementou que a memória está relacionada à nossa capacidade de ligar os fatos (só lembramos daquilo que nos marcou, de modo particular, afetivamente). E, por último, o teólogo afirmou que se meditamos sobre algo, esse algo sempre estará em nossa memória (OLIVEIRA, 2007). Até agora a memória foi muito associada à recuperação, ao resgate e à preservação de informações. Mas temos sempre que atentar para uma assertiva de Detienne: “O ouvido é infiel e a boca é sua cúmplice. Frágil, a memória é igualmente enganadora: ela seleciona, interpreta, reconstrói” (DETIENNE, 1998, p. 226-227). Prosseguindo no tempo, já nos anos finais do século XVIII e início do século XIX, começamos a ver um movimento para a formação dos Estados-nação que se caracterizaria por um povo que partilhasse um território histórico, mito de ancestralidade, memórias históricas, economia, direito e cultura comuns (SMITH, 1997). É justamente com o desenvolvimento da noção de memórias comuns que teremos estudos que definirão a memória coletiva. Um dos principais autores dessa linha foi o sociólogo Maurice Halbwachs. Para esse autor, a memória coletiva é o “processo social de reconstrução do passado vivido e experimentado por um determinado grupo, comunidade ou sociedade” (HALBWACHS, 2013, p. 25). A memória coletiva existe porque estamos e somos inseridos em uma comunidade maior, em uma sociedade. Desse modo, a constituição da memória de um indivíduo resulta da combinação das memórias dos diferentes grupos nos quais está inserido e consequentemente é influenciado por eles, como por exemplo, a família, a escola, igreja, grupo de amigos ou ambiente de trabalho. Nessa ótica, o indivíduo participa de dois tipos de memória, a individual e a coletiva. (SILVA, 2016, p. 248) Patrimônio histórico e cultural no Brasil14 História e memória fazem uso do passado. História e memória precisam de suportes para serem ativadas, interpretadas e divulgadas e são construídas em torno da noção de tempo. Por isso, são indissociáveis. No entanto, há autores que colocam esses conceitos em um octógono: quem vencer levará o cinturão. Vamos nos debruçar um pouquinho sobre essa problemática? Observe o Quadro 1. Quadro 1 – Divergências entre história e memória História Memória É a reconstrução incompleta do que não existe mais (não é vida). É a vida, carregada por grupos vivos e, por isso, em permanente evolução, podendo ser lembrada, esquecida, deformada, manipulada ou revitalizada. Representação do passado. Fenômeno atual. É uma operação intelectual e demanda tanto uma análise quanto um discurso crítico. É afetiva, alimenta-se de lembranças vagas, gerais, simbólicas etc. Liberta a lembrança do campo do sagrado. Instala a lembrança no campo do sagrado. Pertence a todos e a ninguém, vocação para o universal. É coletiva (HALBWACHS, 2013), múltipla e, ao mesmo tempo, individual. Liga-se às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. Enraíza-se no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto. Só conhece o relativo. É um absoluto. Fonte: Elaborado pela autora com base em Nora, 1993, p. 9. Para Nora (1993), História e memória estão longe de serem sinônimas. No entanto, se tomarmos algumas de suas afirmativas para reflexão, principalmente aquelas relacionadas ao conceito de História, baseados no que dispõem os historiadores culturalistas, podemos apontar: 1. reconstrução incompleta do passado: não por opção, mas porque nem todos os passados nos deixaram fontes e mesmo que tenhamos uma quantidade enorme delas, os historiadores selecionam aquelas que estão relacionadas aos seus interesses teóricos, pessoais e atuais; 2. representação do passado: reconstrução, interpretação, uma dada visão do passado, mas baseada nos interesses do presente, contexto do historiador, por isso, também atual (como a memória); 3. liberta a lembrança do campo do sagrado: na atualidade, as sensibilidades também são estudadas e, por isso, a questão do sagrado é objeto da História; 4. pertence a todos e a ninguém: se pertence a todos, assim como a memória, é coletiva e, quanto ao ninguém, a História pertence sempre a alguém (mesmo que ao grupo de historiadores); 5. tempo, evolução, relação: esses não são os únicos campos da História, suas fontes também são os gestos, as imagens, os objetos; 6. só conhece o relativo: porque o absoluto não é alcançável, o passado já passou, mas a memória também não é, pois é subjetiva. Memória, história e identidade 15 Nora (1993) ainda complementa que, mesmo que diferenças cruciais possam ser apontadas, a memória não existe, pois foi apropriada pelo registro da História. O que existem são os espaços de memória, ou seja, são lugares em que ela se concretiza e se asila, como museus, arquivos, bibliotecas, entre outros espaços e tudo o que há em seus interiores, isso devido ao fato de que não se vive mais o que eles participam, informam e comunicam. Tomados como sinônimos ou como contrários, os conceitos de história e memória precisam ser assimilados para que nossa compreensão sobre o patrimônio histórico seja construída e aprofundada. Todo homem, pensado individual ou coletivamente, tem uma história e uma memória a ser resgatada, divulgada e defendida. 1.1.1 Os suportes da memória Os autores aqui citados, direta ou indiretamente, apesar das divergências nos conceitos de memória, afirmam que ela depende, também, de registros, de suportes materiais. Você saberia indicar alguns exemplos desses suportes? Se estiver lendo este material em forma de livro físico ou digital ou mesmo assistindo a um vídeo, está usando exemplos de suportes da memória. Para Seixas (2000, p. 81), “a memória inscreve-se nos objetos e apenas estes (através das sensações que despertam) podem fazê-la reaparecer”. Podemos fazer uma distinção em suportes de memórias individuais, como fotografias, diários pessoais, presentes, souvenirs de lugares turísticos, convites de aniversário ou casamento, por exemplo, assim como arquivos pessoais gravados em dispositivos como celulares, pen drives etc. Ao mesmo tempo, alguns dessesexemplos também podem ser inseridos no quadro dos suportes de memória coletiva, como as fotografias. Nesse grupo, ainda incluímos documentos e objetos que estão guardados em arquivos, museus ou bibliotecas que representam a memória de um grupo, de uma sociedade. Há um caso específico de suporte da memória (e da História) que merece ser destacado: o monumento. Acerca desse conceito, o sentido original do termo é o do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (“advertir”, “lembrar”), aquilo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas rememorem acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças. A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. (CHOAY, 2001, p. 17-18) No entanto, é preciso fazer uma distinção entre monumento como suporte de memória e monumento histórico. O segundo diz respeito a um tipo de construção que não foi feita com a intenção de perpetuar um acontecimento. Ele já estava construído quando algo importante para uma dada sociedade aconteceu. Vejamos um exemplo: é comum haver palacetes que foram habitados pelos fundadores de uma dada cidade, o mesmo pode acontecer com prédios públicos ou mesmo casas comuns que por sua arquitetura e seu tempo são considerados monumentos Patrimônio histórico e cultural no Brasil16 históricos. O Coliseu romano é um desses casos, assim como o prédio do Mercado Municipal de São Paulo e o Teatro Amazonas em Manaus. O conceito de monumento histórico pode ser encontrado na Carta de Veneza2, de 1964, em seu artigo 1º: A noção de monumento histórico engloba a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural. (IPHAN, 1964) Vejamos alguns monumentos históricos brasileiros, a seguir, nas Figuras 2, 3 e 4. São exemplos arquitetônicos que contam parte da História do Brasil, são lugares de memória. Figura 2 – Monumento histórico de Ouro Preto Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. 1705. Ouro Preto – MG. Lu iz R ob er to K ra us s/ W .C om m on s Um dos monumentos históricos brasileiros mais visitados de Minas Gerais é a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, em Ouro Preto (Figura 2). De relevância artística e religiosa, teve sua construção iniciada em 1705, sendo ampliada em 1727, cujas obras ainda perduraram no decorrer dos anos sob a direção dos mestres Manuel Francisco Lisboa e Aleijadinho. 2 Carta internacional sobre a conservação e o restauro de monumentos e sítios aprovada durante o II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, reunido em Veneza, de 25 a 31 de maio de 1964. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964.pdf. Acesso em: 7 out. 2019. http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964.pdf Memória, história e identidade 17 Figura 3 – Registro das Missões no Brasil H al le yp o/ W .C om m on s Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo. 1687-1750. São Miguel das Missões – RS. O Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo (Figura 3), mais conhecido por Ruínas de São Miguel das Missões, é o que restou de uma das reduções3 jesuíticas de São Miguel Arcanjo, que fazia parte dos Sete Povos das Missões4. Essa redução foi fundada enquanto essa parte do território estava sob o domínio espanhol. A construção de toda a estrutura teve início em 1687, mas apenas após a edificação da igreja, entre 1735 e 1750, é que o lugar ganhou força. Mais ou menos no mesmo período, disputas entre Portugal e Espanha geravam conflitos no local, como a Guerra Guaranítica, conflito armado que envolveu tribos Guarani das Missões contra tropas desses dois países. Sua primeira destruição aconteceu em 1756 e a derradeira, no início do século XIX. Figura 4 – Monumento do saber Biblioteca Pública do Estado do Amazonas. 1905-1910. Manaus – AM. Jo eh aw ki ns /W .C om m on s 3 Outro nome para missões jesuíticas. 4 Conjunto de sete aldeamentos indígenas construído pelos padres jesuítas na região do Rio Grande de São Pedro, atualmente, Rio Grande do Sul. Patrimônio histórico e cultural no Brasil18 Um incêndio em 1945 quase destruiu todo o prédio da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas construída entre 1905 e 1910 (Figura 4). Essa obra foi projetada pelo arquiteto paraense José Castro de Figueiredo e, em seu interior, existe uma escadaria de ferro forjado em rendilhado, vinda de Liverpool, na Inglaterra. Reforçando os conceitos abordados anteriormente, esses são exemplos de monumentos históricos que ganharam tal historicidade por conta de seu valor artístico e cultural. Foram escolhidos como marcos de uma parte da história local ou nacional. Quanto aos monumentos de memória, sua principal característica é serem construídos, intencionalmente, para rememorar, lembrar, perpetuar ou celebrar algum acontecimento em específico, como uma vitória em uma guerra, a chegada de imigrantes, uma dada atividade econômica, a morte de alguém etc. No Brasil e no mundo temos inúmeros exemplos. Comecemos com um dos monumentos de memória mais famosos do mundo, conforme a Figura 5 a seguir. Figura 5 – Relembrando Napoleão Arco do Triunfo. 1806-1836. Paris, França. Al ve sg as pa r/ W .C om m on s O Arco do Triunfo foi construído para comemorar as vitórias militares de Napoleão Bonaparte, especialmente aquela em Austerlitz. Localizado na praça Charles de Gaulle, é um dos pontos turísticos da avenida Champs-Élysées. O próprio Napoleão o encomendou ao arquiteto francês Jean Chalgrin. Para a sua edificação, o arquiteto se inspirou no Arco de Tito, que, por sua vez, foi construído para comemorar a vitória de Roma sobre Jerusalém, no século I d.C. Sua construção foi iniciada em 1806, no entanto a conclusão se deu apenas em 1836. Si lv ei ra N et o/ W .C om m on s Marco de Touros. 1501. Touros – RN. Figura 6 – O Brasil é dos portugueses Memória, história e identidade 19 Um incêndio em 1945 quase destruiu todo o prédio da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas construída entre 1905 e 1910 (Figura 4). Essa obra foi projetada pelo arquiteto paraense José Castro de Figueiredo e, em seu interior, existe uma escadaria de ferro forjado em rendilhado, vinda de Liverpool, na Inglaterra. Reforçando os conceitos abordados anteriormente, esses são exemplos de monumentos históricos que ganharam tal historicidade por conta de seu valor artístico e cultural. Foram escolhidos como marcos de uma parte da história local ou nacional. Quanto aos monumentos de memória, sua principal característica é serem construídos, intencionalmente, para rememorar, lembrar, perpetuar ou celebrar algum acontecimento em específico, como uma vitória em uma guerra, a chegada de imigrantes, uma dada atividade econômica, a morte de alguém etc. No Brasil e no mundo temos inúmeros exemplos. Comecemos com um dos monumentos de memória mais famosos do mundo, conforme a Figura 5 a seguir. Figura 5 – Relembrando Napoleão Arco do Triunfo. 1806-1836. Paris, França. Al ve sg as pa r/ W .C om m on s O Arco do Triunfo foi construído para comemorar as vitórias militares de Napoleão Bonaparte, especialmente aquela em Austerlitz. Localizado na praça Charles de Gaulle, é um dos pontos turísticos da avenida Champs-Élysées. O próprio Napoleão o encomendou ao arquiteto francês Jean Chalgrin. Para a sua edificação, o arquiteto se inspirou no Arco de Tito, que, por sua vez, foi construídopara comemorar a vitória de Roma sobre Jerusalém, no século I d.C. Sua construção foi iniciada em 1806, no entanto a conclusão se deu apenas em 1836. Si lv ei ra N et o/ W .C om m on s Marco de Touros. 1501. Touros – RN. Figura 6 – O Brasil é dos portugueses Em relação ao Brasil, podemos exemplificar com belos monumentos. Observe, a seguir, as Figuras 6 e 7. O Marco Colonial de Touros é um padrão5 (coluna) de 1,62 m de altura e 32,5 cm de largura, que foi fixado, em 1501, pelo reino de Portugal na atual Touros, cidade litorânea do Rio Grande do Norte. Seu objetivo era atestar e perpetuar que Portugal era o descobridor da terra que posteriormente seria chamada de Brasil. Ele é considerado o nosso monumento colonial mais antigo. Figura 7 – Descortinando o Brasil Monumento às Bandeiras. 1953. São Paulo – SP. D or ni ck e/ W .C om m on s Ci cl is ta SP /W .C om m on s Construído em homenagem aos bandeirantes, o Monumento às Bandeiras relembra e glorifica aqueles que desbravaram os sertões brasileiros entre os séculos XVII e XVIII. Ele se encontra no Parque do Ibirapuera, na cidade de São Paulo, e foi inaugurado durante as comemorações do IV Centenário dessa cidade. Embora seu escultor, Victor Brecheret, tenha iniciado os desenhos em 1920, devido às questões políticas do país, a obra só foi inaugurada em 1953. 5 Colunas de pedra marcadas com as armas portuguesas e mais alguma inscrição, cuja finalidade era afirmar a soberania de Portugal no local onde eram assentadas. Patrimônio histórico e cultural no Brasil20 Figura 8 – Homenagem à nossa literatura Te tr ak ty s/ W .C om m on s Grupo escultórico Dois poetas. Em pé está Carlos Drummond de Andrade e sentado, Mário Quintana. Porto Alegre – RS. Essa obra esculpida em bronze, conhecida como Monumento à Literatura, foi criada por Eloisa Tregnago e Xico Stockinger e inaugurada em 2001, na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, relembrando a origem gaúcha dos autores. O livro, também em bronze, que ficava nas mãos de Carlos Drummond, foi roubado. Desde então, frequentemente algumas pessoas colocam um exemplar impresso no lugar, como podemos observar na imagem (Figura 8). É importante ter em mente que há outras formas de se homenagear e perpetuar uma memória, além da inauguração de prédios e estátuas, podemos incluir construção de bibliotecas e igrejas, nomeação de ruas, exposições de arte, banquetes, bailes, festivais, concursos variados (monografias, literatura etc.), concertos de música e mesmo torneios esportivos. Memória é o vivido e História é o elaborado, interpretado. Memórias, lugares de memória, suportes de memória; histórias, lugares de histórias, suportes da história. A relação é intrínseca, mesmo que cada conceito possa ser tomado separadamente. E a ideia de patrimônio deve ser entendida como mais um elo entre história e memória. Por isso, os suportes da memória (e mesmo da história) devem ser preservados. Memória, história e identidade 21 1.2 A noção de identidade: pertencimento e filiação histórica Tomando os exemplos dos monumentos de memória, você pode perceber que para além de rememorar um acontecimento ou um nome, eles criaram ligação com o lugar, com uma história específica. O Marco de Touros nos diz que somos herdeiros dos portugueses, o Monumento às Bandeiras revela que somos herdeiros de homens que buscaram ampliar as terras brasileiras e os Dois Poetas glorificam o fato de aqueles escritores serem gaúchos. Esses exemplos nos permitem prosseguir em nossos estudos sobre as questões de identidade, de pertencimento e filiação histórica. Em outras palavras, os mesmos suportes da História e da memória podem ser utilizados para definirmos nossa identidade. Para começar a discutir esse conceito, vamos lembrar que no nosso dia a dia ele é recorrente. Quantas vezes, ao pagar uma compra, ao entrar em um estabelecimento, ao se registrar em um consultório médico ou mesmo ao se inscrever em um vestibular ou concurso, foi-lhe solicitado apresentar seu documento de identidade ou RG? Inúmeras vezes, não? Ele traz informações que o identificam, como nome completo, data de nascimento, naturalidade, nacionalidade, filiação, digital e mesmo CPF. Esse documento, portanto, informa o que temos de único, de autêntico, de singular. O mesmo ocorre com grupos familiares, comunidades ou países. Embora não tenham seu RG, possuem lugares, objetos, monumentos, histórias e memórias comuns. Em resumo, podemos dizer que a identidade pode ser definida pela posse de determinados bens (materiais ou imateriais, individuais ou coletivos, culturais). Vimos que nos séculos XVIII e XIX procurou-se formar a ideia de Estado-nação. É nesse contexto que as discussões sobre identidade coletiva nascem. Quando os historiadores buscavam na Antiguidade suas origens, seus antepassados traziam, juntamente, características culturais que os identificariam dali para frente. A segunda metade do século [XVIII] e as primeiras décadas do século XIX foram pródigas naquilo que Hobsbawm chamou de “tradições inventadas” (1983, p. 1-14). Monumentos, relíquias, locais de peregrinação cívica, cerimônias, festas, mitologias nacionais, folclore, mártires, heróis e heroínas nacionais, soldados mortos em batalhas, um vasto conjunto de tradições foi inventado com o objetivo de criar e comunicar identidades nacionais (Mosse, 1975; Koselleck, 1979; Augulhon, 1979; Herzfeld, 1982; Hutton, 1981; OzouC, 1976). Nesse contexto, o passado nacional é simbolicamente usado com o objetivo de fortalecer a identidade pessoal e coletiva presente. (GONÇALVES, 1988, p. 267-268) Complementando essa assertiva, Smith (1997, p. 14) afirma que a nação se constitui de “uma população humana identificada que partilha um território histórico, mitos comuns e memórias históricas, uma cultura pública comum e de massas, uma economia comum e direitos e deveres legais comuns para todos os seus membros”. Patrimônio histórico e cultural no Brasil22 No entanto, muitas vezes foi necessário “esquecer” passagens históricas que os nacionalistas acreditavam colocar em risco a identidade da nação. Em alguns livros de História desse período, as derrotas em batalhas e a miscigenação da população eram ignoradas, por exemplo. Isso foi o que aconteceu com o Brasil, quando buscou, no século XIX, criar suas origens e sua identidade. Para entendermos como se deu a busca pela formação da identidade brasileira precisamos recorrer às teorias raciais do século XIX. O oitocentos em sua busca pelas origens nacionais acaba por segregar algumas populações e aculturar determinadas práticas baseada nas características fenotípicas de seus defensores e praticantes. Para exemplificar melhor isso tomamos como exemplo Francisco Adolpho de Varnhagen, um conhecido teórico que se empenhou em escrever uma história das origens da cultura brasileira em seus dois volumes de História Geral do Brasil. Varnhagen privilegia a ação portuguesa na formação do povo brasileiro e banaliza os traços dos nativos e principalmente dos negros tão importantes dentro da miscigenação cultural. (AZEVEDO, 2014, p. 27, grifo do original) Varnhagen, como nos mostra Azevedo (2014), buscou criar uma identidade brasileira branca, europeia, superior. E complementando os argumentos de Azevedo, Sales (2015) afirma que a memória é fundamento tanto individual quanto coletivo. Sem memória ocorre a desorientação, a falta de referenciais, de conhecer, compreender e criar. Segundo Izquierdo, a memória compartilhada coletivamente, ou seja, a memória social resulta de uma necessidade de associação dos indivíduos, formada a partir de afinidades e transmitida pela comunicação. Não ter essa memória coletiva, instituidora de identidades, é certeza da desintegração do tecido social e da destruição de valores. (SALES, 2015, p. 163) A preocupação com a desintegração social brasileira fez com que outros autores, no início do século XX, resgatassem nossas raízes indígenas e negras, porém,nesse primeiro momento, ao destacar os problemas de nossa identidade, apontavam a culpa para essas etnias: se não somos superiores é porque temos o sangue do índio e do escravizado correndo em nossas veias. Somente a partir de 1960, e essencialmente depois de 1990, nossa multiculturalidade foi reconhecida como ponto positivo. Esse não foi um privilégio brasileiro. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os países se viram na obrigação de repensarem as questões nacionalistas. Será que era possível manter a ideia de uma identidade nacional única e imutável? Ou era necessário reconhecer que os países possuem identidades múltiplas porque são constituídos de diferentes identidades individuais, sociais, culturais, religiosas, étnicas, de gênero etc.? Os historiadores, sociólogos, antropólogos e demais cientistas sociais que tomaram, no final do século XX e início do XXI, a História e a memória para buscar essas múltiplas identidades, observaram que, mais do que monumentos históricos ou de memória nacionais, cada grupo tomava para si suportes de memória que o identificasse. Vejamos um exemplo: descendentes da cultura africana passaram a construir e a reconstruir suas identidades por meio do uso de roupas, acessórios e penteados típicos desse grupo. O cabelo cacheado ou crespo foi assumido como elemento identificador, não mais como algo a ser escondido ou modificado porque a mídia impôs. É claro que não podemos generalizar esse exemplo, mas as transformações na sociedade são visíveis. Memória, história e identidade 23 A nova realidade histórica impõe que é preciso ampliar os olhares sobre a questão do pertencimento ou da filiação histórica. Ainda tomando o Brasil como exemplo, não há como negar que todos os cidadãos nascidos aqui compartilham da identidade de brasileiros, mas o território é continental, imenso. O pertencimento deve ser considerado por novos ângulos: ele é brasileiro e capixaba, ela é brasileira e carioca, nós somos brasileiros e amazonenses, vós sois brasileiros e tocantinenses. E ainda podemos mostrar maiores complexidades nessa construção de identidades: eu, brasileira, paulista, parda, budista etc. Não é mais o Estado ou a nação que estabelece nossa identidade, mas os diferentes contextos e grupos nos quais estamos inseridos. Enfim, vivemos em um ambiente onde convivem e se relacionam múltiplas culturas, assim, para Valle (2000, p. 20), não há, pois, uma, mas várias “cidadanias”, ou vários graus de pertencimento, que correspondem a diferentes possibilidades de acesso ao poder e ao “patrimônio comum” construído pelo desenvolvimento. (LORENZON, 2015, p. 23) Estamos falando em identidades múltiplas e a divulgação e a afirmação das diferenças têm sido construídas cada vez mais com o aporte das mídias. Estas, de um forma geral, e de modo específico o jornalismo, no decorrer do século XX, começaram a buscar a objetividade, na qual a verdade dos fatos passou a ser uma grande preocupação. É comum ouvirmos que a mídia tem a função de informar para formar e não a função de opinar (ENNE, 2004). Uma vez que os jornais escolhem fatos a serem informados, eles criam lugares de memória e ao renegar outros ao esquecimento (temática que trabalharemos na próxima seção) eles contribuem para a seleção de memórias e histórias e, portanto, de identidades. Outra mídia que contribuiu bastante para a construção de identidades com base na recuperação da memória e da História é a televisão, como afirmam Strohschoen et al. (2004, p. 2): “na sociedade contemporânea, a atividade do ‘fazer lembrar’ também se faz através da tecnologia televisiva”. Para além de criar lugares de memória, a televisão torna-se, ela própria, um lugar de memória. Como exemplo, podemos citar a minissérie A casa das sete mulheres, exibida pela Rede Globo em 2003, que abordou a Guerra dos Farrapos, tema caro à construção da identidade gaúcha ou mesmo a novela Terra nostra, exibida entre 1999 e 2000, também pela Rede Globo, que tratava da identidade dos imigrantes italianos. Assim, mesmo com as licenças de adaptação e inspiração da realidade das quais as minisséries e novelas fazem uso, já que são obras ficcionais, há uma dinâmica de referências de memória e identidade. No entanto, há outros elementos culturais que afirmam a identidade de um sujeito ou grupo ao qual pertence, além da arquitetura, citamos receitas culinárias, atividades festivas (religiosas ou não), artesanato e estilos musicais. Se temos uma identidade múltipla, podemos tomar como nossos vários desses elementos ao mesmo tempo. História, memória e identidade são conceitos interligados e, por serem polissêmicos, favorecem o entendimento de que somos sujeitos múltiplos porque somos fruto do que preservamos. Patrimônio histórico e cultural no Brasil24 1.3 Dever ou direito à memória A expressão dever de memória foi tecida no decorrer dos anos 1990 na França. Nesse período havia um esforço de familiares e de vítimas francesas do holocausto em recuperar a memória de seus antepassados e de suas próprias histórias escritas nas celas dos campos de concentração. A ideia era lembrar para que não fossem repetidos os erros cometidos pelos governos nazistas responsáveis por torturas e genocídios e desarmar os governos seguintes que queriam propor o esquecimento desses fatos que maculavam as histórias nacionais. Ainda em terreno francês, a noção do dever de memória ganhou força no início dos anos 2000, quando um grupo de historiadores, ao todo dezenove, entre eles Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, lançou o manifesto Liberté pour l’Histoire (Liberdade para a História) evidenciando total desagravo a uma lei promulgada em fevereiro de 2004 pelo parlamento daquele país, que obrigava os currículos escolares a reconhecerem o papel positivo da colonização francesa no norte da África e em outras regiões. Tal proposta configurava o esquecimento das atrocidades praticadas contra os colonizados. Os autores do manifesto defendiam que não era função do Estado estabelecer verdades históricas que não poderiam ser comprovadas por fontes, bem pelo contrário, pois as fontes evidenciavam o quão negativa e devastadora foi a submissão. Esses movimentos, para além de criar a noção de dever à memória, geraram a ideia de direito à memória e à História que ganhou eco no Brasil. Vários grupos iniciaram suas lutas pelo reconhecimento de suas histórias e seus personagens. Um exemplo que podemos citar é a promulgação da Lei n. 10.639/03, que dispõe sobre o ensino da História da África e cultura afro-brasileira nos currículos do ensino fundamental e médio. Isso causou um aumento das pesquisas de mestrado e doutorado no país acarretando a publicação em massa de livros sobre a cultura africana e a abertura da disciplina História da África nos cursos superiores de História. Nesse contexto, figuras como a de Zumbi dos Palmares como herói nacional foram retomadas. Muito recentemente, outro movimento que ganhou força em território brasileiro foi aquele pelo dever e direito à memória e à história das vítimas da ditadura. Proposições de que ela não teria ocorrido vêm gerando desconforto em grupos de pesquisadores de várias áreas que lutam pelos direitos daqueles que são a prova viva de ações do Estado. Como podemos observar, o dever e o direito à memória e à história dentro de diferentes contextos, como nos exemplos francês e nacional, é assunto político. Rememorar e perpetuar nomes e acontecimentos não são ações que se referem apenas aos aspectos culturais, como resgate de tradições de Folias de Reis, Congadas etc., porque envolvem, também, o reconhecimento pelo dano sofrido e a necessidade de se pensar em estratégias de reparação. “Assim, a defesa ao direito à memória seria, antes de tudo, a defesa ao direito à identidade e à História, ao passado constituinte de cada povo, região, de cada pessoa” (SALES, 2015, p. 158). Ou ainda, como nos esclarece Ivano (2015), ao analisar as proposições de Paul Ricoeur sobre a memória, Odever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si. Memória, história e identidade 25 O dever de memória, em segundo lugar, é referente à dívida, que por sua vez é inseparável da de herança. “Somos devedores de parte do que somos aos que nos precederam”. Por fim, a memória possui dever para com as vítimas (RICOEUR, 2007, p. 101-103). É neste momento, de “prioridade moral” do dever de memória a quem sofreu derrotas e humilhações que se impõe as regras históricas e sociais que tensionam a memória coletiva, ou as memórias coletivas que se debatem por justiça. (IVANO, 2015, p. 127) Falar em identidade também é falar em cidadania. Por isso, é preciso que o Estado que se pretende e se afirma democrático proponha-se a reconhecer e a respeitar os direitos políticos, dentre eles o direito à memória, como também respeitar a cidadania: acreditamos que a memória pode interferir no exercício da cidadania no mundo atual e no local em que vivemos, porque atribui existência ao sujeito, fazendo-o sentir-se agente histórico e social, o que lhe garante poder nas relações, resgata sua identidade, cria valores sociais relacionados ao grupo e ao espaço de convivência. (GOULAR; FERREIRA PERAZZO; LEMOS, 2005, p. 160) Em suma, é certo que a prática da cidadania com base nas diferentes formas de resgatarmos e expressarmos nossas memórias torna-se mais evidente quando passamos a compreender que a memória é um direito e um dever de todos: meu, seu, nosso e do Estado. 1.3.1 O esquecimento Se memória e história são conceitos indissociáveis, devemos, mesmo que nos pareça estranho, relacionar a eles um novo conceito: o de esquecimento. Já dizia Nietzsche (2005, p. 77-78): “é possível viver quase sem se lembrar, e mesmo viver feliz […], mas é absolutamente impossível viver sem esquecer”. Mas se estamos falando em resgate da História e da memória, se vimos que temos dever e direito à memória, por que falar em esquecimento? Justamente porque não nos lembramos de tudo, porque a História passou e porque os temas tratados pelos estudiosos da História e do ser humano são recortados tanto pelos profissionais que “esquecem” alguns fatos e personagens quanto pela prática estatal de escolher o que deve ser memorado, resgatado. Para entendermos melhor o conceito de esquecimento, vejamos como ele foi definido por Ricoeur (2007) conforme é possível observar, a seguir, no Quadro 2. Quadro 2 – Paul Ricoeur e o esquecimento Esquecimento como memória impedida Esquecimento como memória manipulada Esquecimento comandado ou institucional Nosso inconsciente “escolhe” o que será lembrado. Reescrita do passado (historiografia) com vistas à construção de uma memória hegemônica. Imposto por grupos com interesses evidentes ou camuflados, por exemplo: anistia. Fonte: Elaborado pela autora com base em Ricoeur, 2007. Vejamos com mais atenção a questão do esquecimento comandado. O termo anistia vem do grego amnestía, cujo significado é “esquecimento” e, quando derivado do latim tardio, amnestia, Patrimônio histórico e cultural no Brasil26 passa a significar “perdão” (GUÉRIOS, 1985). Assim, a etimologia nos remete diretamente aos verbos esquecer e perdoar. Se lançarmos o conceito na web, encontraremos: “Sf. 1 – Perdão geral, esquecimento. 2 JUR Ato do poder público que declara impuníveis determinados delitos, em geral por motivos políticos e, ao mesmo tempo, suspende diligências persecutórias e anula condenações” (TREVISAN, 2015). No Brasil, por exemplo, a anistia foi utilizada desde o período colonial, no entanto, é com a Lei da Anistia promulgada em 1979 (Lei n. 6.683) que passamos a entender melhor o que é o esquecimento comandado ou controle da memória: o representante do Poder Executivo de um país seleciona, escolhe, elege os tipos de atos ilegais que lhe são convenientes para perdoar, anistiar. Estando ciente de que existem várias tipologias ou categorizações de esquecimento, você saberia indicar qual seria uma das primeiras formas encontradas pelos seres humanos para não permitir que tudo fosse apagado da memória? A escrita. Isso mesmo. Com ela, os gregos, por exemplo, objetivaram registrar as tradições para que não fossem esquecidas: o registro escrito da memória levava para longe o esquecimento. Conceito caro aos gregos e a nós. O helenista Jean-Pierre Vernant trata do esquecimento referindo-se a ele como “a segunda morte”. A primeira é aquela em que o sopro da vida foge ao corpo e a segunda é quando os nomes e feitos são esquecidos (VERNANT, 2002). Algo impensável para os helenos. Os nossos costumes de visitar o túmulo de entes queridos, de colocar nomes e fotos nas estelas funerárias, de rezarmos em datas específicas para os mortos não são recentes. São ecos da Antiguidade. Na religião católica, por exemplo, há o Dia de Finados, comemorado no dia 2 de novembro, enquanto na Grécia existiam as Genésias, culto anual em homenagem a todos os mortos, quando ocorriam as visitas aos túmulos com ofertas de flores. Nesses túmulos estavam escritos os nomes daqueles que não deveriam ser esquecidos. Mas não existe memória sem esquecimento. Mesmo que a escrita venha gravar nossa história em rochas, madeira, bronze, ferro, papiros, pergaminho, papel e até em dispositivos eletrônicos variados, não há a possibilidade do “tudo”. Porém, o que pode ser resgatado não pode ser enquadrado no bloco do “quase nada”. Se o nosso inconsciente escolhe o que deverá ser lembrado, juntemos o maior número de inconscientes para ao menos tentar resgatar o máximo de nossa história. Mesmo que historiadores ou outros profissionais façam escolhas de acontecimentos para analisar e interpretar, deixando outros de lado, essas lacunas estão sendo buscadas por estudiosos para tentar resgatar as histórias perdidas. Quanto ao esquecimento comandado, cabe a nós colocarmos em prática nossa cidadania reivindicando o nosso direito à História e à memória visto que são partes de nossa identidade. A luta pelo direito à memória e por uma nova História contra o forçoso esquecimento (uma luta por Mnemosine e por Clio contra Cronos) é lutar pelos devidos valores de uma sociedade. Aquela que esquece está abrindo espaço para violações; a que lembra e reconhece seus erros reencontra a si, pois respeita o coletivo e o diferente. Tal luta deve estar balizada pelo entendimento de que a memória é um direito fundamental, pois memória é aquisição e acesso ao passado, é o direito de reconhecer-se como indivíduo e como agente social, é, em suma, o direito à dignidade humana. (SALES, 2015, p. 163) Memória, história e identidade 27 O fantasma do esquecimento não deixará de existir. Temos que aprender a lidar com o que não foi resgatado ou que não pode ser, entretanto, não podemos nos conformar com os esquecimentos impostos. Talvez você esteja se perguntando: Falou-se tanto em História, memória, identidade, suportes de memória e de História, direito e dever de memória e até mesmo de esquecimento, em qual desses itens se encaixa o patrimônio? Em todos eles, como podemos observar na Figura 9 a seguir. Figura 9 – Um conceito polissêmico Faz memorar. É suporte da memória. Patrimônio É um direito. Constrói a identidade. Promove o pertencimento. É suporte da História. Traz História. Impede o esquecimento. Fonte: Elaborada pela autora. Patrimônio é História, é memória, é marca de cidadania e de identidade. Patrimônio é suporte de memória, é suporte da História e promove o pertencimento. Patrimônio é nosso direito e temos o dever de preservá-lo. O patrimônio é a arma contra o esquecimento. Considerações finais Você foi apresentado a alguns conceitos que precisam ser assimilados para que se compreendam todos os aspectos que envolvem a questão patrimonial. É importante refletir sobre como você se vê como um sujeito histórico, porque está na história e faz história, sua própria história e de todos que estão à sua volta e, consequentemente, contribui para a formação da identidadecoletiva que tem direito e dever à memória e à história. Ampliando seus conhecimentos • NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução de Yara A. Khoury. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. Disponível em: https:// revistas.pucsp.br/revph/article/viewFile/12101/8763. Acesso em: 7 out. 2019. Nesse artigo, Pierre Nora aborda a memória das sociedades e a memória obtida por meio de estudos historiográficos, tratando memória e História como versões diversas de um mesmo evento. Em seguida, discorre sobre a memória tomada como história e os lugares de memória. https://revistas.pucsp.br/revph/article/viewFile/12101/8763 https://revistas.pucsp.br/revph/article/viewFile/12101/8763 Patrimônio histórico e cultural no Brasil28 • SANTOS, T. H. N. A memória, a história, o esquecimento. RACIn, João Pessoa, v. 1, n. 1, p. 1-8, jan./jun. 2013. Disponível em: http://racin.arquivologiauepb.com.br/edicoes/ v1_n1/racin_v1_n1_resenha01.pdf. Acesso em: 7 out. 2019. Esse artigo é uma resenha da obra A memória, a história, o esquecimento do filósofo francês Paul Ricoeur, publicada no Brasil em 2007, que, de acordo com a autora, é “considerada uma ‘síntese’ de todas as […] obras [de Ricoeur]”. Na resenha, ela descreve e sintetiza todos os capítulos, apresentando o percurso realizado por Ricoeur para explicitar os três conceitos do título da obra. Atividades 1. Há autores que apontam uma estreita relação entre os conceitos de história e memória, outros, no entanto, afirmam que há um afastamento nítido entre eles. Pierre Nora foi um dos grandes estudiosos da memória que se posicionou do lado daqueles que defendem o afastamento. Com base em seus estudos, apresente um resumo das principais proposições de Nora acerca desse distanciamento conceitual. 2. Em que medida os conceitos de história, memória e identidade estão relacionados? 3. Pensar em memória implica pensar em esquecimento. Esse conceito foi trabalhado de várias formas por diferentes autores. Qual foi a distinção estabelecida por Jean-Pierre Vernant sobre as duas mortes? Referências AZEVEDO, P. L. T. A identidade nacional portuguesa no século XIX a partir de contos literários de Alexandre Herculano. São Luís, 2014. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Maranhão. Disponível em: https://www.academia. edu/11932596/A_Identidade_Nacional_Portuguesa_no_s%C3%A9culo_XIX_a_partir_de_contos_ liter%C3%A1rios_de_Alexandre_Herculano. Acesso em: 7 out. 2019. BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1991. CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Unesp, 2001. COMO nossos pais. Compositor: Belchior. In: Alucinação. Intérprete: Elis Regina. Rio de Janeiro: Philips/ CBD Phonogram, 1976. 1 disco vinil, faixa 3. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/elis-regina/ como-nossos-pais.html. Acesso em: 7 out. 2019. COSTA, E. V. O que é a História: considerações a propósito de uma obra de E.H. Carr. Revista de História, São Paulo, v. 27, n. 56, p. 433-445, dez. 1963. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/ view/122633/119141. 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Vamos entender como ele se materializou em nossa sociedade. Talvez você esteja familiarizado com as expressões patrimônio cultural, patrimônio histórico, patrimônio da humanidade, afinal, já há algum tempo, as diferentes mídias buscam valorizar esses lugares, mostrando seus potenciais turísticos ou nos informando sobre acontecimentos referentes a eles. No ano de 2018, por exemplo, a notícia do incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, provocou comoção na população pela destruição do prédio tombado em 1938 como patrimônio histórico e das milhares de peças que ali se encontravam. Mas será que todos entendemos nosso conjunto patrimonial como elemento vital da nossa identidade? Como é a relação dos amazonenses com Ouro Preto, em Minas Gerais? E a relação dos paranaenses com Olinda, em Pernambuco? Será que nós, brasileiros, temos ciência de que o patrimônio nacional nos pertence? Esse trabalho de construção de uma identidade tomando por base o reconhecimento de nosso patrimônio ainda é incipiente. Que tal iniciá-la ou dar prosseguimento a ela entendendo a questão da origem do patrimônio? 2.1 A origem do patrimônio Tudo o que consideramos patrimônio, seja ele cultural, histórico, natural, brasileiro ou da humanidade, nem sempre foi compreendido dessa maneira. Cada patrimônio tem sua data de nascimento e, assim como nós, para nascer, passou por um período de gestação. Em outras palavras, para que algo seja considerado patrimônio, é preciso que se crie um processo junto a órgãos específicos e que esse processo seja deferido. Alguns processos duram meses e outros, anos. Mesmo assim, hoje, essa possibilidade é concreta, real e garantida pela legislação dos países. O próprio termo patrimônio nos é familiar. E nós o utilizamos nos seus mais diferentes significados: “Aquela indústria viu seu patrimônio ser duplicado nos últimos anos”; “Minha família é o meu maior patrimônio”; “Este berço foi usado por cinco gerações, é patrimônio da nossa família”; “Ela trabalha aqui desde a fundação, já virou patrimônio da empresa”. Porém, isso nem sempre foi assim. Esses exemplos evidenciam que o uso do conceito em nosso cotidiano como sinônimo de bem econômico ou propriedade particular foi historicamente construído e, com o tempo, associado não somente às edificações, mas também a objetos, formas de expressão, lugares e celebrações que dão suporte à identidade coletiva. Patrimônio histórico e cultural no Brasil32 Você foi convidado a conhecer a origem do patrimônio e iniciará a jornada compreendendo a origem do conceito em terreno romano. A palavra patrimônio é resultado da junção de alguns termos do latim: pater, com seus múltiplos significados (chefe da família, fundador, bens de família, posses, herança), nomos (costume, uso, lei, valores) e moneo (lembrança). Desse modo, a palavra patrimonium, para os romanos, era tudo o que podia ser deixado a alguém por meio de testamento: de objetos a pessoas (escravizados, por exemplo) (FUNARI; PINSKY, 2005). Resumidamente, bem, riqueza e herança eram os três significados atribuídos à palavra. Esses significados atribuem certo valor ao patrimônio e, considerando que ele pertence a um grupo, o seu valor deve ser transmitido por gerações, tornando-se a nossa herança do passado que, por sua vez, atribuiu a nós a tarefa de continuar transmitindo às futuras gerações esses valores. A primeira vez que os homens tomaram ciência de que seus bens possuíam valor remonta à Antiguidade. Muitos dos povos antigos respeitavam os lugares sagrados de modo especial, a pontode procurarem preservar as edificações construídas ou mesmo o local onde um templo havia existido. Em terreno romano, por exemplo, a preservação de monumentos (como de arcos do triunfo e inúmeras colunas), erguidos para exaltar e perpetuar os triunfos dos imperadores, recebia atenção diferenciada (SOARES, 2018). Ao adentrar na Idade Média, o valor histórico das edificações e demais obras da Antiguidade passou a ter significação diferente. Não se pensava no valor histórico das heranças da Antiguidade, mas em seus fins utilitários e econômicos. As próprias construções, encomendadas pela Igreja ou doadas a ela, como catedrais, monastérios, capelas e mesmo cemitérios eram valoradas devido ao fato de serem locais onde a relação com Deus podia ser mediada e não devido aos seus aspectos históricos (SOARES, 2018). Ainda no medievo, em seu período tardio (a partir do século XIII), começaram a surgir os primeiros gabinetes de curiosidades nos quais a burguesia procurava expor objetos raros ou tidos como exóticos. É o início da revalorização não só de objetos como estátuas, por exemplo, mas dos monumentos greco-romanos, símbolos de uma civilização superior. Na Itália dos séculos XIV e XV, ainda que muitos edifícios do período do Império Romano tenham sido depredados para a retirada de materiais como o mármore, houve, em nome de um sentimento patriótico e de identidade, a recuperação de monumentos representativos da antiga arte do saber (SOARES, 2018). Observe o texto da bula papal de 28 de abril de 1462, na qual o Papa Pio II fala da preservação dos lugares santos da Antiguidade: Conservar “a Cidade-mãe em sua dignidade e seu esplendor” […], “empenhar-se com a atenção mais vigilante”, não apenas para a “manutenção e preservação” das basílicas, Igrejas e todos os outros lugares santos dessa cidade, mas também para que as gerações futuras encontrem intactos os edifícios da Antiguidade e seus vestígios. Com efeito, estes, a um só tempo, “conferem à Cidade sua mais bela vestimenta e seu maior encanto”, estimulam a seguir os exemplos gloriosos dos antigos e, “sobretudo, o que é mais importante, esses mesmos edifícios nos permitem perceber melhor a fragilidade das coisas humanas”. (CHOAY, 2001, p. 54) Patrimônio histórico e cultural: trajetória e legislação 33 Mas foi no século XVI, com o Renascimento italiano, que a ideia do colecionismo foi acentuada: De um lado, moedas, inscrições, esculturas e fragmentos diversos, colecionados pelos artistas, humanistas e príncipes italianos, são conservados nos studioli, nas antecâmaras, nas cortile e nos jardins de suas residências. A galeria, espaço específico, só aparece no século XVI, mas acontece de amantes da arte do século XV mandarem construir edifícios para abrigar suas antiguidades. (CHOAY, 2001, p. 51, grifos do original) Entre os séculos XVII e XVIII, os antiquários foram os responsáveis por atiçar a curiosidade de muitos colecionadores no tocante à história e à arte. Mais do que propiciar meros espaços de venda ou serem mercadores de objetos antigos, eles incitaram a necessidade de se preservar o passado (SANTOS, 2000). Podemos sintetizar, assim, o percurso da construção da noção de valor patrimonial: primeiro, a preservação de lugares sagrados ou de monumentos voltados para a perpetuação de feitos de imperadores; depois, a preservação para outros fins que não os de resgatar a história: fins econômicos e fins utilitários; na sequência, posse e exibição de bens da Antiguidade para promoção político-social; preservação como símbolo de identidade; e, por fim, preservação para resgatar o passado. É interessante observar que durante todos esses séculos, na cultura ocidental, a ênfase foi dada à preservação de edificações e outras obras móveis (joias, estátuas etc.). Em nenhum momento falou-se de manifestações culturais. O que podia ser tocado era o que deveria ser preservado: Esse quadro permaneceu basicamente inalterado até as vésperas da Segunda Guerra Mundial. Depois desta, como resultado da nova concepção de documento e dos avanços da antropologia, operou-se no campo grande expansão tipológica, passando a ser selecionadas como patrimônio todas as formas de arte e construção, eruditas ou populares, urbanas ou rurais, edifícios públicos ou privados, suntuosos ou utilitários. (SANT’A NNA, 2001, p. 151-152) No que se refere à cultura oriental, desde há muito tempo a ênfase se dá ao conhecimento cultural, ao patrimônio incorpóreo, ou seja, no Oriente, para que a tradição, a história e a memória sejam perpetuadas não é necessário um bem físico, tocável. O patrimônio é constituído pelo conhecimento das tradições e pelas formas de reproduzi-las (FEITOZA, 2006). Embora existam nas culturas ocidental e oriental diferenças significativas na forma de pensar e entender a questão da preservação, e mesmo o conceito de patrimônio, é imperativo que saibamos que essas noções foram construídas no decorrer da história. Conforme mudavam as visões que os homens tinham deles mesmos, dos espaços que habitavam, dos grupos que formavam ou dos quais queriam se distanciar, enfim, conforme mudavam as visões de mundo, os homens perceberam a necessidade de preservar seus patrimônios, mesmo que, a princípio, apenas os bens móveis e imóveis, excluindo-se as manifestações culturais. studioli: sala particular de um palácio ou prédio destinada a assuntos culturais. cortile: pátios internos. Patrimônio histórico e cultural no Brasil34 2.2 O patrimônio no mundo e no Brasil Desde que as questões patrimoniais entraram em pauta, as discussões e interesses limitavam-se a um grupo específico constituído por imperadores, reis, príncipes, clero, eruditos e artistas. Para que a noção de patrimônio ganhasse novos olhares, alguns acontecimentos decisivos na história do Ocidente foram basilares: na Europa, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial; e, no Brasil, a vinda da família real em 1808 e a Semana de Arte Moderna de 1922. 2.2.1 O patrimônio no mundo Apresentaremos a seguir um breve histórico do tratamento que se dava ao patrimônio antes que esse conceito fosse criado. Por volta de 1750, na Inglaterra, a Revolução Industrial trouxe modificações significativas na arquitetura das cidades que passaram a receber, de forma desordenada, novos habitantes à procura de emprego nas indústrias incipientes. Muitas famílias se alojaram nas antigas edificações (núcleo histórico), além de ocorrer a demolição de estruturas históricas para instalação dos novos prédios de concreto armado e vidro. O que se viu foi uma grande transformação e degradação do ambiente urbano (ABREU, 2009). Na França, a situação era de vandalismo, vivenciava-se a destruição de edifícios, parques e jardins, além de incêndios provocados em muitas igrejas, saques em castelos e derrubada ou decapitação de inúmeras estátuas. Esse era o cenário por volta de 1792, ano em que a França foi pioneira em promulgar uma legislação específica que compreendia o patrimônio como herança. Com a Revolução Francesa, nasceu o conceito de patrimônio público. Esse conceito estava ligado àquele de monumento histórico. A ideia era que os bens móveis e os imóveis representativos do Antigo Regime deveriam ser considerados e conservados como bens da nação e não destruídos com a intenção de apagar uma parte da história da nação que se formava. Segundo Abreu (2009, p. 31), opondo-se a sentimentos revolucionários que ameaçavam destruir todas as aquisições de épocas anteriores, alguns intelectuais insurgiram-se contra o vandalismo, fomentando o fervor patriótico. Assim, as heranças dos nobres eram apropriadas como heranças do povo de cada Estado-Nação, sendo relidas como sinais diacríticos. Uma nova história heroica das nações passou a ser construída, onde não mais os indivíduos – reis, líderes, heróis – eram os sujeitos. A partir de então, o novo sujeito da história era o povo. Devido à situação degradante pela qual passava na época, toda a Europa fora atingida
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