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A FICÇÃO FACTUAL DE DANIEL DEFOE Publicado em 1722, como relato de testemunha ocular só identificada no final do texto pelas iniciais H. F., A Journal of the Plague Year é uma narrativa ficcional sobre Londres durante o surto de peste bubônica no verão de 1665. Escrita na primeira pessoa por um narrador anônimo e imaginário (Daniel Defoe tinha quatro anos no ano da peste), o texto se apresenta como história verídica, reconstruída a partir de dados e fatos concretos. Um diário do ano da peste se diferencia de todas as demais abordagens da epidemia por se tratar de uma obra ficcional que reúne, organiza e contextualiza farta informação de credibilidade inquestionável. Nesta, mais do que em qualquer outra das suas novelas, Daniel Defoe trama a narrativa fundindo fato e ficção, através de minuciosa coleção de detalhes. Ou seja, o autor emprega métodos jornalísticos na ficção, criando um primeiro modelo de narrativa objetiva, com muitas das técnicas utilizadas até hoje na “reportagem jornalística”, a dita “primeira versão da História”. O narrador da história se limita a registrar as suas observações e comentários. O desenrolar da ação é determinado e conduzido pelo conflito entre as duas personagens centrais: a peste atacando Londres de um lado, a cidade e seus habitantes resistindo ao ataque do outro. O realismo e a preocupação informativa do texto tornam a obra, mesmo sendo ficcional, um instrumento da maior eficiência para o estudo da propagação e controle de doenças infecciosas no meio urbano. Um diário do ano da peste também é fonte de consulta obrigatória para se entender o comportamento coletivo diante de uma calamidade social que cria um pandemônio na comunidade e ameaça a vida de cada um dos seus integrantes. Neste sentido, Defoe empenha-se na exemplificação da irracionalidade dos homens frente a um inimigo incontrolável e invisível. No processo, o texto deixa evidente que os sentimentos e reações coletivas pouco mudaram do século XVIII para cá. Da peste bubônica para a AIDS ou o dengue – as epidemias mudaram, mas os povos continuam os mesmos. O Diário mapeia a disseminação da peste em Londres passo a passo, bairro a bairro, paróquia a paróquia, com contabilização semanal dos mortos e uma exposição do alto custo humano da epidemia. Descreve as valas comuns, abertas para enterrar as pequenas montanhas de mortos recolhidos pelas ruas da cidade, detalha os mais descabidos e grosseiros procedimentos médicos, as superstições, simpatias, benzeduras, talismãs, poções milagrosas e o vasto instrumental terapêutico, vindos tanto da sabedoria popular quanto da Cabala ou bruxaria. Ainda registra os mais diversos níveis de sofrimento, da morte horrenda das mães grávidas contaminadas à execução de 40 mil cães e 20 mil gatos, a fim de conter a transmissão da doença. Apesar da abundância de ponto-e-vírgulas subordinando longas frases e do moralismo excessivo característicos da escrita no início do século XVIII, o livro mantém o “prazer do texto” e o interesse do leitor, pela apurada manipulação dos fatos para surpreender e chocar. A acumulação de grande volume de dados e acontecimentos parece caótica e mal selecionada. A justaposição quase desconexa de estatísticas e incidentes mundanos, porém, é intencional. Tem por função aumentar a concretude da história e sua verossimilhança ao depoimento espontâneo e sincero de um autêntico observador comum. Estas sofisticadas artimanhas narrativas revestem o texto com o verniz da veracidade, despindo-o de qualquer pretensão literária. As anedotas e histórias de “interesse humano”, entremeadas com dados oficiais sobre o alastramento da epidemia nos quatro cantos de Londres, seriam apenas truques de imaginação para prender a atenção do leitor. Além de deixar a história mais convincente, o reaproveitamento de testemunhos verídicos dá um “valor acrescido de mercadoria” ao texto. Com este estilo simples e direto, aparentemente tosco e pouco elaborado, Defoe busca despertar o interesse de um novo tipo de leitor, o cidadão comum, que não freqüenta os círculos culturais, nem conhece os maneirismos intelectuais de seu tempo. Para isto, o texto instrui enquanto entretém, incluindo vulgaridades e exageros alarmistas, assim como informações de serventia prática ou educativa para “o homem da rua”. Desta forma, Defoe também antecipou os fundamentos da literatura popular moderna. Ficção factual ou narrativa semi-histórica, Um diário do ano da peste foi escrito em 1721-22. Dois anos antes, o sensacionalismo jornalístico que cercou um surto de peste em Marselha, na França, despertou o interesse de Defoe pelo apelo comercial do tema. Ainda em 1720, publicou um panfleto compilado de outros autores, com medidas preventivas contra a peste, chamado “Due Preparations for the Plague”. Em seguida, Defoe partiu para a criação do Diário, sendo “parcialmente inspirado” naquele folheto e outros livros da época, que lhe serviram de fonte: as estatísticas das mortes causadas pela epidemia saíram de London’s Dreadful Visitation, os procedimentos médicos e tratamentos da doença vieram de Necessary Directions for the Preventions and Cure of the Plague e Medela Pestilentiae. A PESTE BUBÔNICA Infecção altamente transmissível, causada pela bactéria Yersinia Pestis, também conhecida como Pausteurella Pestis, que ataca o sistema linfático. A peste bubônica era a doença mais temida na Europa renascentista. Cerca de dez dias após o contágio, dá-se o doloroso inchaço de gânglios linfáticos do pescoço, axilas e virilhas, aparecendo a primeira íngua, o “bubo” ou bubão. Esta primeira íngua sempre é a maior e mais proeminente de todas. Em seguida, surgem outros bubões menores pelo corpo. Os sintomas mais comumente associados à doença são dores de cabeça, calafrios, febrões, dores lombares, taquicardia, delírio e vômitos. Na Renascença, só três em cada dez contaminados conseguiam viver mais de uma semana depois da formação do primeiro “bubo”. Em Londres, a peste bubônica adquiriu proporções pandêmicas em 1665, matando 17.440 dos seus 93 mil habitantes. De forma endêmica, entretanto, a doença existia há mais tempo nas docas da cidade, trazida por ratos de porões de navios estrangeiros. A contaminação de seres humanos deu-se através destes ratos, de gatos e cachorros que comeram ratos infectados e pelas pulgas destes animais. Apesar da crença popular, a água e o ar não desempenharam qualquer papel na erupção ou disseminação da peste. Em Um diário do ano da peste, a doença deixa Londres súbita e inesperadamente, feito um milagre, no final de 1665. Na verdade, a epidemia continuou em 1666, causando mais duas mil mortes na capital da Inglaterra. O surto de peste só seria controlado por outra tragédia de semelhante dimensão social, o Great Fire – um incêndio iniciado na city de Londres que, em quatro dias, destruiu meia cidade. UM DIÁRIO DO ANO DA PESTE Daniel Defoe Tradução de Eduardo S. San Martim Foi lá pelo começo de setembro de 1664 que eu e os meus vizinhos ouvimos em conversa corrente que a peste estava de volta na Holanda mais uma vez, pois já fora bem violenta no ano de 1663, principalmente em Amsterdam e Rotterdam, onde, pelo que dizem, chegou entre mercadorias transportadas por navios da Turquia; uns diziam vindas da Itália, outros do Levante; também disseram que veio da Cândia, ou então do Chipre. De onde veio não interessava, todos estavam de acordo que a peste estava na Holanda outra vez. Naqueles dias, não tínhamos coisas que eu ainda viveria para ver em prática, como os jornais impressos para espalhar rumores e informar sobre os acontecimentos e para melhorar as coisas pela imaginação dos homens. Notícias como aquela chegavam nas cartasdos mercadores e de outros que se correspondiam com o exterior e depois as divulgavam somente em conversas. Assim, estas coisas não se espalhavam instantaneamente por toda a nação como acontece agora. Parece, porém, que o governo tinha recebido um relatório comprovando o fato e já promovera várias reuniões para estudar maneiras de impedir a vinda da peste, mas tudo era feito muito discretamente. Por isso, os rumores não demoraram a desaparecer e o povo foi esquecendo a coisa como algo que nos dizia muito pouco a respeito, e que esperávamos não ser verdade. Até o final de novembro, ou o início de dezembro de 1664, quando dois homens, ditos franceses, morreram de peste em Long Acre, ou mais exatamente, lá pelo fim de Drury Lane. A família com quem estavam hospedados tentou esconder o caso de todas as maneiras possíveis, mas como aquilo foi comentado pela vizinhança, os secretários de Estado tomaram conhecimento e se preocuparam em mandar investigar. A fim de estabelecer a verdade com segurança, dois médicos e um cirurgião receberam ordens de ir àquela casa fazer uma inspeção. Fizeram isto e, encontrando sinais evidentes da doença nos corpos dos dois mortos, manifestaram publicamente sua opinião de que tinham morrido de peste. Depois, o caso foi informado ao padre da paróquia que o transmitiu ao Hall.l No boletim semanal de mortalidade, foi registrado como de costume, desta forma; Peste, 2. Paróquias contaminadas, 1. O povo mostrou grande preocupação com isto e o alarme começou a se espalhar por toda a cidade, ainda mais porque, na última semana de dezembro de 1664, outro homem morreu na mesma casa, com a mesma doença. Então, ficamos tranqüilos cerca de mais seis semanas, pois ninguém morreu com sinais da infecção e foi dito que a doença desaparecera. Depois, acho que no dia 14 de fevereiro, morreu mais um em outra casa, mas na mesma paróquia e da mesma maneira. Esta morte chamou muito a atenção do povo para aquele canto da cidade. Embora cuidassem para manter isto o mais longe possível do conhecimento público, com os boletins semanais mostrando um aumento de óbitos acima do normal na paróquia de St Giles, surgiu a suspeita de que a peste estava entre os moradores daquela zona da cidade e que muitos morriam com ela. Isto tomou conta da cabeça das pessoas e poucas se arriscavam a atravessar Drury Lane ou outras ruas suspeitas, a não ser que negócios importantíssimos as obrigassem a ir até lá. O crescimento dos óbitos nos boletins foi assim: o número habitual de enterros em uma semana, nas paróquias de St Giles-in-the-fields e St Andrew Holborn, era entre doze e dezessete ou dezenove mais ou menos, em cada uma. No momento em que a peste surgiu na paróquia de St Giles, observou-se que o número de enterros comuns aumentou consideravelmente. Por exemplo: De 27 de dezembro a 3 de janeiro St Giles 16 St Andrew 17 De 3 a 10 de janeiro St Giles 12 St Andrew 25 De 10 a 17 de janeiro St Giles 18 St Andrew 18 De 17 a 24 de janeiro St Giles 23 St Andrew 16 De 24 a 31 de janeiro St Giles 24 St Andrew 15 De 30 de janeiro a 7 de fevereiro St Giles 21 St Andrew 23 De 6 a 14 de fevereiro St Giles 24 sendo um de peste. Aumentos semelhantes foram observados nos boletins de óbitos da paróquia de St Bride, que se une a um lado da paróquia de Holborn, e na paróquia de St James, Clarkenwell, que se une a Holborn pelo outro lado; em ambas, o número habitual de mortos por semana era entre quatro e seis ou oito, mas, naquele momento, aumentou como segue: De 20 de dezembro a 27 de dezembro St Bride 0 St James 8 De 27 de dezembro a 3 de janeiro St Bride 6 St James 9 De 3 a 10 de janeiro St Bride 11 St James 7 De 10 a 17 de janeiro St Bride 12 St James 9 De 17 a 24 de janeiro St Bride 9 St James 15 De 24 a 31 de janeiro St Bride 8 St James 12 De 31 de janeiro a 7 de fevereiro St Bride 13 St James 5 De 7 a 14 de fevereiro St Bride 12 St James 6 Além disso, o povo notou, com grande inquietação, que os boletins de óbitos em geral aumentaram muito durante aquelas semanas, embora fosse uma época do ano em que o número de mortos era normalmente moderado. O número habitual de enterros registrados nos boletins semanais era entre 240 e 300. O último era considerado muito alto, mas, depois disso, vimos os boletins aumentando constantemente, como segue: Enterros Aumento De 20 a 27 de dezembro 291 ... De 27 de dezembro a 3 de janeiro 349 58 De 3 a 10 de janeiro 394 45 De 10 a 17 de janeiro 415 21 De 17 a 24 de janeiro 474 59 O último boletim foi realmente assustador, sendo o de mais alto número de enterros por semanas desde a última epidemia, em 1656. Tudo isso, porém, passou novamente e, com o clima ficando frio e a geada que começara em dezembro continuando muito severa até perto do final de fevereiro, acompanhada por ventos cortantes mas moderados, os registros de óbitos voltaram a diminuir e a cidade cresceu com saúde e todo mundo começou a encarar o perigo como tão bom porque passou. Só que, em St Giles, o número de enterros ainda continuava elevado. No começo de abril, principalmente, estavam em vinte e cinco por semana até a semana de 18 a 25, quando trinta foram enterrados na paróquia de St Giles, sendo dois com peste e oito com febre tifóide, que era considerada a mesma coisa. O número de mortos com febre tifóide também aumentou, sendo oito na semana anterior e doze na semana indicada acima. Isto assustou a todos outra vez e temores terríveis assaltaram o povo, principalmente porque o clima estava mudando, aumentando o calor com a proximidade do verão. Na semana seguinte, no entanto, surgiram algumas esperanças. Os boletins diminuíram e o número de mortos ficou em 388 no total, nenhum com peste e apenas quatro com febre tifóide. Uma semana depois, porém, voltou novamente e a doença tinha se espalhado para duas ou três paróquias, a saber: St Andrews, Holborn, St Clement Danes e, para grande aflição da city2, morreu um dentro das suas muralhas, na paróquia de St Mary Woolchurch. Isto significa que foi em Bearbinder Lane, perto da Bolsa de Mercadorias. No total, foram nove mortos com peste e seis com febre tifóide. Através de uma investigação, entretanto, foi revelado que o francês que morreu em Bearbinder Lane tinha morado em Long Acre, perto das casas contaminadas e se mudara com medo da doença, sem saber que a tinha contraído. Isto foi no começo de maio, o clima ainda temperado, instável e bastante frio, e o povo ainda tinha algumas esperanças. O que os encorajava era que a city estava saudável: todas as noventa e sete paróquias enterraram apenas cinqüenta e quatro mortos e começamos a acreditar que a peste ficaria só naquele canto da cidade, sem avançar mais, pois na semana seguinte, de 9 a 16 de maio, morreram três, mas nenhum dentro de toda city ou liberties3. St James enterrou apenas quinze, o que era muito pouco. É verdade que St Giles enterrou trinta e dois, mas, mesmo assim, apenas um morrera com a peste e o povo voltou a se tranqüilizar. O registro geral de óbitos também estava bastante baixo, pois, na semana anterior, registraram-se 347 mortos e, na semana mencionada acima, apenas 343. Continuamos com esperanças por alguns dias, mas só alguns, pois o povo não podia mais ser enganado desta maneira. Inspecionaram as casas e descobriram que a peste realmente se espalhara por toda parte e que muitos morriam com ela todos os dias. Então, todo nosso entusiasmo diminuiu e não dava mais para esconder. Mais que isso, rapidamente transpareceu que a epidemia tinha se espalhado mais do que qualquer esperança de seu declínio. Na paróquia de St Giles, atingira várias ruas e várias famílias estavam de cama, com todos muito doentes e, conseqüentemente, no boletim de óbitos da semana seguinte, a coisa começou a se mostrar. É verdade que havia apenas quatorzeregistrados com peste, mas tudo não passava de fraude e enganação, porque na paróquia de St Giles enterraram quarenta no total e certamente a maioria morreu de peste, embora estivesse registrada com outras doenças. Mesmo o número de todos os enterros não aumentando para além de trinta e dois e sendo só 385 o total de mortos, havia quatorze com febre tifóide e quatorze com peste. Considerávamos óbvio que, no total, cinqüenta morreram de peste naquela semana. O boletim seguinte ia de 23 a 30 de maio, com dezessete casos de peste. Mas os enterros em St Giles chegaram a cinqüenta e três – um número assustador –, dos quais só nove registrados com peste. Numa inspeção mais rigorosa, porém, feita pelos juízes de paz a pedido do Lorde Prefeito, foi descoberto que mais vinte morreram realmente de peste naquela paróquia, mas foram registrados com febre tifóide ou outras doenças, além de outros escondidos. Estas coisas foram insignificantes perto do que aconteceria imediatamente depois. O clima esquentou e, a partir da primeira semana de junho, a epidemia se espalhou de uma maneira pavorosa e os boletins subiram às alturas. Os itens febre, febre tifóide e dentes começaram a inchar. Todos os que puderam esconder a doença o fizeram para evitar que os vizinhos se afastassem e se recusassem a conviver com eles. E também para evitar que as autoridades fechassem suas casas; mesmo que ainda não estivesse em prática, isto era ameaçado e o povo se aterrorizava só de pensar. Na segunda semana de julho, a paróquia de St Giles, onde mais se espalhava a epidemia, enterrou 120. Embora os registros indicassem só sessenta e oito com peste, todo mundo disse que foram pelo menos cem, calculando isso, como anteriormente, pelo número habitual de enterros naquela paróquia. Até esta semana, a city continuou livre, sem que ninguém morresse de peste, exceto aquele francês que mencionei antes, em todas as noventa e sete paróquias. Então, quatro morreram dentro da city, um em Wood Street, um em Fenchurch Street e dois em Crooked Lane. Southwark estava totalmente livre, ninguém tinha morrido naquela margem do rio. Eu vivia perto de Aldgate, a meio caminho entre Aldgate Church e Whitechappel Bars, no lado esquerdo ou norte da rua. Como a doença não tivesse chegado neste lado da city, nossa vizinhança continuava muito tranqüila. No outro extremo da cidade, as preocupações eram grandes: as pessoas mais ricas, principalmente a nobreza e o senhorio do oeste da city corriam para fora da cidade com suas famílias e criados de maneira incomum. Isto era melhor observado em Whitechapel, quer dizer, em Broad Street, onde eu vida. Na verdade, não dava para ver nada além de carretas e carroças com mercadorias, mulheres, criados, crianças etc. Carruagens cheias de gente melhor de vida, escoltada por homens a cavalo, todos com muita pressa. Depois, apareciam carretas e carroças vazias e cavalos de reserva com criados que, aparentemente, estavam voltando ou foram enviados do interior para buscar mais gente. Além de incontáveis homens a cavalo, alguns sozinhos, outros com criados, mas todos, em geral, carregados de bagagens e equipados para viajar, como qualquer um perceberia pela sua aparência. Isto foi uma coisa muito triste e terrível de se ver, e, sendo uma cena que eu não tinha como evitar a contemplação da manhã à noite (realmente, naquele momento não havia mais nada para se ver), encheu-me de reflexões sobre o tormento que se aproximava da city e a situação infeliz daqueles que ficassem lá dentro. A correria do povo foi tanta que durante algumas semanas não havia como chegar até a porta do Lorde Prefeito sem extrema dificuldade. Uma multidão se aglomerava lá para conseguir passes e atestados de saúde a fim de viajar, pois sem eles ninguém obteria permissão para cruzar as cidades à beira da estrada, nem para se hospedar em qualquer pensão. Como ninguém tinha morrido na city durante todo esse tempo, o Lorde Prefeito dava atestados de saúde sem qualquer dificuldade para todos que morassem nas noventa e sete paróquias e também nas liberties. Esta correria continuou por algumas semanas, quero dizer, todo o mês de maio, aumentando ainda mais em junho, porque foi comentado que o governo estava por baixar uma ordem de construção de postos e barreiras para impedir as pessoas de viajar e que as cidades junto às estradas não permitiriam a passagem de pessoas vindas de Londres por medo de que trouxessem a epidemia junto com elas. Logo no começo, nenhum destes rumores tinha qualquer fundamento, a não ser na imaginação. Então, comecei a me preocupar seriamente com minha própria situação e como eu deveria agir. Com isso, quero dizer que tinha que decidir entre ficar em Londres ou trancar minha casa e fugir, como fizeram muitos dos meus vizinhos. Exponho meu caso particular mais detidamente porque sei que isto poderá ser útil àqueles que vierem depois de mim, caso tenham que enfrentar a mesma desgraça e tenham que, da mesma maneira, fazer sua escolha. Por isso, desejo que este relato lhes sirva mais como uma orientação para seus atos do que como a história do meu comportamento, visto que saber o que aconteceu comigo poderá não ter o menor valor para eles. Tinha duas coisas importantes diante de mim: uma era levar em frente meus negócios e loja, que eram consideráveis e nos quais tinha investido todos os meus recursos neste mundo. A outra era a preservação de minha vida em tão terrível calamidade que, pelo que eu via, certamente atingiria toda a cidade. Por maior que ela fosse, no entanto, meus medos, talvez como os de outras pessoas, a apresentavam muito maior do que poderia ser. A primeira preocupação tinha grande importância para mim. Meu comércio era o de selas e como a maioria das minhas transações não eram em loja ou negócios casuais, mas junto a mercadores comerciando com as colônias inglesas na América, muito dos meus estoques se encontrava nas suas mãos. Era solteiro, é verdade, mas tinha uma família de criados que mantinha a meu serviço, tinha uma casa, loja e depósitos cheios de mercadorias. Encurtando, largar tudo como coisas que têm que ser abandonadas numa situação como esta (quer dizer, sem qualquer supervisor ou pessoa apta para ser encarregada delas) seria arriscar a perda não somente do meu comércio, mas das minhas mercadorias, e realmente de tudo que eu tinha no mundo. Tinha um irmão mais velho em Londres na mesma época, vindo não muitos anos antes de Portugal. Aconselhando-me com ele, sua resposta veio em três palavras, as mesmas que foram ditas em situação bastante diferente, a saber: “Mestre, salvai-vos!” Em suma, era a favor de que eu me retirasse para o interior, como ele mesmo se decidira fazer junto com a família; e ele me disse o que parece que ouvira no exterior: a melhor precaução contra a peste é fugir dela. Sobre meus argumentos de que perderia meu negócio, minhas mercadorias e créditos, ele me confundiu bastante, dizendo a mesma coisa que eu argumentava para ficar, ou seja, que entregar a Deus minha segurança e saúde seria a maior negação das minhas pretensões de não perder meus negócios e minhas mercadorias. “Mas – disse ele – não seria mais sensato entregar a Deus o risco de perder teus negócios em vez de ficar num momento de tanto perigo, encarregando tua vida a Ele?” Não podia argumentar que não tinha lugar algum para ir, com tantos amigos e parentes em Northamptonshire, de onde veio nossa família e, principalmente, porque tinha uma irmã única em Lincolnshire, querendo muito me receber e me cuidar. Meu irmão, que já tinha enviado sua esposa e as duas crianças para Bedfordshire e se decidira a imitá-los, me pressionou fervorosamente para que eu fosse embora. Terminei convencido a satisfazer sua vontade, mas naquele momento não tinha como conseguir um cavalo. Embora seja verdade quenem toda a população saiu da city de Londres, me arrisco a dizer que todos os cavalos o fizeram, porque, durante algumas semanas, dificilmente encontrou-se um cavalo à venda ou para alugar em toda city. Resolvi viajar a pé com um criado e, como muitos faziam, dormir ao relento. Levaríamos conosco uma barraca militar e, assim, ficaríamos pelos campos, o clima estava bastante quente e não havia perigo de sentirmos frio. Digo como muitos faziam porque, no fim, muita gente fez isso, principalmente aqueles que estiveram nos exércitos durante a guerra que terminara não fazia muito tempo. Preciso dizer que, falando de causas secundárias, se a maioria do povo tivesse viajado assim, a peste não seria levada para dentro de tantas casas e cidades do interior como foi, para grande prejuízo, a ruína, na verdade, de uma enormidade de gente. Foi então que meu criado, o que pretendia levar comigo, me abandonou. Assustado com o crescimento da peste e não sabendo quando eu partiria, tomou outras providências e me deixou. Assim, fiquei despreparado para aquela hora. E de uma maneira ou outra, sempre que estabelecia uma data para ir embora, era atrapalhado por um incidente ou outro, terminando em frustração e novo adiamento. Isto me leva a contar uma história que, de outra forma, poderia ser considerada uma digressão desnecessária sobre estes imprevistos virem do Céu. Menciono a história também como o melhor método que posso recomendar para qualquer um nesta situação, principalmente se for alguém com consciência de suas responsabilidades em busca de orientação sobre o que fazer. Objetivamente: manter os olhos atentos às predisposições peculiares do que ocorre a sua volta na época e examiná-las com profundidade, para saber como se relacionam entre si e como se relacionam todas juntas com a questão diante da pessoa. Então, acho que se pode tomá-las como intimações do Céu sobre o que é seu dever inquestionável fazer nesta situação. Refiro-me a ir embora ou ficar no lugar onde moramos quando visitados por uma doença contagiosa. Uma manhã, enquanto matutava sobre estas coisas particulares e sobre nada chegar até nós sem orientação e permissão do Poder Divino, veio bem claramente na minha mente que estes contratempos tinham alguma coisa extraordinária e fui obrigado a considerar se isto não indicava ou me intimava a crer que era a vontade do Céu que não fosse embora. Imediatamente, meu raciocínio prosseguiu: se realmente vinha de Deus que eu deveria ficar, Ele seria capaz de efetivamente me preservar no meio de toda a morte e perigo que me cercaria e, se eu tentasse me salvar fugindo de minha casa, agindo de modo contrário a estas intimações que acredito serem Divinas, seria como fugir de Deus, e assim Ele poderia aplicar Sua justiça em mim quando Ele achasse conveniente. Estas reflexões mais uma vez modificaram muito minhas decisões e, quando voltei a conversar com meu irmão, disse que me inclinava a ficar e assumir meu fardo no lugar que Deus me designou, o que, considerando tudo o que disse, parecia ser ainda mais especialmente o meu dever. Meu irmão, embora ele mesmo um homem muito religioso, riu de tudo que falei sobre uma intimação do Céu e contou várias histórias de pessoas imprudentes, como ele as chamou, como eu era; certamente, eu deveria me submeter a isto como uma obra do Céu se, de alguma maneira, estivesse incapacitado por males ou doenças e por isso não pudesse ir embora. Então, deveria aceitar a Sua orientação, pois, sendo meu Criador, tinha um direito indiscutível de soberania para dispor de mim. Só assim não haveria dificuldade em determinar qual era ou não era o chamado de Sua Providência. Aceitar uma intimação do Céu para não sair da cidade somente porque não conseguiu alugar um cavalo para viajar ou porque fugiu o acompanhante que levaria como empregado era ridículo, pois eu ainda tinha a minha saúde, meus membros, outros criados e poderia com facilidade andar a pé um ou dois dias. Tendo um bom atestado de que estava com saúde perfeita, conseguiria tanto alugar um cavalo quanto um lugar numa diligência dos correios já na estrada, conforme preferisse. Ele passou, então, a me falar das maléficas conseqüências decorrentes da presunção dos turcos e maometanos na Ásia e em outros lugares por onde andara (sendo um mercador, meu irmão tinha retornado do exterior há poucos anos, vivendo por último em Lisboa, como já mencionei). Baseando-se nas noções de predestinação que professam, crendo que o fim de todo o homem está predeterminado e definitivamente decretado de antemão, eles iam despreocupados em lugares contaminados e conversavam com pessoas contaminadas. E assim morriam em média entre dez e quinze mil por semana, enquanto os mercadores europeus ou cristãos se mantinham recolhidos e reservados, geralmente evitando o contágio. Com estes argumentos, meu irmão mudou minha decisão mais uma vez e resolvi ir embora, deixando todas as coisas prontas para isso. Em suma, a epidemia cresceu muito a meu redor, os registros de óbitos subiram para quase setecentos por semana e meu irmão me disse que ele não se arriscaria a ficar por mais tempo. Pedi que me desse mais um dia para pensar e eu me decidiria. Já tinha organizado todas as coisas da melhor maneira possível, tanto no meu comércio quanto à pessoa a quem confiaria meus negócios, e pouco me restava fazer, a não ser decidir. Naquela noite, fiquei em casa completamente só, com minha mente sob grande pressão, indeciso e sem saber o que fazer. Tirei a noite para pensar seriamente. De comum acordo, as pessoas já tinham abandonado o costume de sair depois do pôr-do-sol. Sobre as razões disso, terei oportunidade de falar mais adiante. No recolhimento da noite, empenhei-me em decidir, primeiro, qual era o meu dever e citei os argumentos com que meu irmão me pressionara a ir para o interior. Contrapus a eles a forte tendência da minha mente para que ficasse, um visível chamado que sentia vir das minhas circunstâncias particulares e do devido cuidado para a preservação dos meus bens que, devo dizer, eram o meu patrimônio. Para mim, as intimações que pensava ter recebido do Céu também significavam um tipo de orientação para me arriscar. Ocorreu-me que, se recebia o que devo chamar de uma orientação para ficar, também deveria supor que ela continha uma promessa de ser protegido, caso a acatasse. Isto continuou junto comigo e me sentia cada vez mais encorajado para ficar, estimulado pela confiança secreta de que seria salvo. Some-se a isto que, abrindo a Bíblia que se encontrava diante de mim e, no momento em que minhas reflexões sobre a questão ficaram mais sérias do que o costume, entre outras expressões, gritei: “Bem, não sei o que fazer; Deus, orientai-me!” E, naquele instante, parei de folhear o livro no Salmo 91, fixando os olhos no segundo verso. Li até o sétimo verso, excluindo-o, depois acrescentei o décimo. Assim: “Eu direi do Senhor, Ele é meu refúgio e minha fortaleza, Nele hei de crer; Ele seguramente te protegerá com Suas penas e sob as Suas asas tu hás de crer; Sua verdade há de ser teu escudo e proteção; não temerás o terror da noite, nem a flecha que vara o dia, nem a pestilência que caminha na escuridão, nem a destruição que devasta ao meio-dia; mil cairão a teu lado e dez mil à tua direita, mas não chegará perto de ti; verás somente com teus olhos e contemplarás a recompensa dos pervertidos; porque assim quis o Senhor, que é meu refúgio, o Altíssimo, a tua morada; e nenhum mal te atingirá nem peste alguma chegará perto de tua casa”, etc. Quase nem preciso dizer ao leitor que, a partir do momento em que resolvi ficar na cidade, entregando-me inteiramente à bondade e à proteção do Todo-Poderoso, deixei de procurar qualquer outra forma de defesa. Minha sorte estava nas Suas mãos e Ele seria capaz de me manter vivo tantoem tempo de epidemia quanto em tempo de saúde. Caso Ele não me considerasse digno de salvação, eu continuaria nas Suas mãos, aceitando que Ele fizesse de mim o que Lhe parecesse melhor. Com esta decisão, fui para a cama. Ela seria reconfirmada no dia seguinte, quando a mulher com quem eu pensava deixar minha casa e meus negócios ficou doente. Outro imperativo me conduziu na mesma direção. No dia seguinte, eu mesmo também fiquei passando muito mal, assim que não conseguiria ir embora ainda que tentasse. Fiquei doente três ou quatro dias, e isso me deixou completamente determinado a ficar. Então, dei adeus a meu irmão, que foi para Dorking, em Surrey, mais tarde se afastando ainda mais, em Buckinghamshire ou Bedfordshire, num refúgio que encontrou para sua família. Era um péssimo momento para ficar doente. Se alguém notasse, seria imediatamente comentado que estava com peste. Embora não tivesse sintoma algum daquela doença, me sentia muito mal na cabeça e no estômago e não fiquei sem medo de estar realmente contaminado. Em três dias, melhorei. Na terceira noite descansei bem, suei um pouco e acordei bastante refeito. O medo de que fosse a epidemia foi embora junto com a doença e retomei meus negócios como sempre. Essas coisas, no entanto, eliminaram todas minhas cogitações de ir para o interior. Como meu irmão já tinha partido, não tive mais com quem discutir o assunto, nem com ele nem comigo mesmo. Estávamos, então, em meados de junho e a peste, que atacava principalmente o outro extremo da cidade, como disse antes, nas paróquias de St Giles, St Andrew e Holborn, seguindo para Westminster, começou a se mover para o leste, na direção da zona onde eu morava. Observariam, porém, que ela não vinha diretamente para nós. Na city, digo dentro das muralhas, a vida continuava indiferente, ainda saudável. A peste também não avançava para além do rio, em Southwark. Embora, em todas as doenças, 1.268 tenham morrido naquela semana – de onde se pode imaginar que uns novecentos morreram com peste –, apenas vinte e oito morreram dentro dos muros da city e dezenove em Southwark, incluindo a paróquia de Lambeth, enquanto só nas paróquias de St Giles e St Martin-in-the-fields morreram 421. Percebemos que a epidemia continuava principalmente nas paróquias de fora que, por serem mais populosas e cheias de pobres, foi onde a doença encontrou melhores condições para se espalhar do que na cidade, conforme explicarei mais tarde. Eu dizia que percebemos a peste vir em nossa direção pelas paróquias de Clarkenwell, Cripplegate, Shoreditch e Bishopsgate. As duas últimas uniam-se a Aldgate, Whitechapel e Stepney; nestas zonas, a epidemia terminou por se espalhar com toda sua fúria e violência, mesmo quando diminuiu nas paróquias do oeste, onde começara. Foi muito estranho notar que, nesta semana específica de 4 a 11 de julho, quase quatrocentos morreram de peste só nas paróquias de St Martin e St Giles-in-the-fields, enquanto verifiquei que, em Aldgate, morreram quatro, em Whitechapel três e, na paróquia de Stepney, um. Da mesma forma, na semana seguinte, de 11 a 18 de julho, registraram-se 1.761 óbitos, mesmo assim, em todo outro lado do rio, em Southwark, não mais que dezesseis morreram de peste. Este estado de coisas mudou logo, começando a se agravar principalmente na paróquia de Cripplegate e Clarkenwell. Na segunda semana de agosto, só Cripplegate enterrou 886, e Clarkenwell, 155. Na primeira, deve-se admitir que 850 morreram com peste. Na última, o próprio boletim registrou que 145 tinham a peste. Durante o mês de julho, enquanto nossa zona da cidade parecia ser poupada em comparação com a zona oeste, como observei, eu andava normalmente pelas ruas, conforme exigissem meus negócios e, geralmente, uma vez por dia, às vezes duas, entrava na city para ir à casa de meu irmão, que ele tinha me encarregado de cuidar para ver se continuava segura. Trazendo as chaves no meu bolso, eu as utilizava para entrar na casa, percorrendo a maioria das salas para ver se tudo estava bem. Embora pudesse ser uma coisa maravilhosa dizer que ninguém teria um coração tão endurecido por tal calamidade para assaltar e roubar, a verdade é que todas as formas de vilanias, canalhices e libertinagens foram praticadas tão abertamente como sempre na cidade – não direi com a mesma freqüência porque a população estava muito reduzida. A city também começou a ser atingida dentro de suas muralhas, mas havia muito menos gente, porque uma grande multidão fora para o interior, continuando a fugir ainda todo o mês de julho, mas não mais em massa como anteriormente. Em agosto, é verdade, o povo fugiu de uma maneira que comecei a pensar que não sobraria realmente ninguém, só ficando na city oficiais de justiça e criados. Enquanto a população fugia da city, descobri que a corte se mudara mais cedo, a saber, no mês de junho, indo para Oxford, onde foi do agrado de Deus preservá-la. Ouvi dizer que a doença não a atingiu muito, mas não posso afirmar que tenha visto demonstrar maiores preocupações com a gratidão e o arrependimento, embora não quisesse ser acusada de ir longe demais em seus vícios gritantes que, pode-se dizer sem abuso de confiança, trouxeram aquele terrível castigo para toda a nação. A aparência de Londres ficou assim estranhamente alterada: refiro-me a toda a massa de prédios, city, liberties, subúrbios, Westminster e Southwark em conjunto, embora a zona específica chamada de city, ou dentro das muralhas, ainda não estivesse muito contaminada. Como um todo, a aparência das coisas estava muito diferente: dor e tristeza em todas as faces. Mesmo algumas zonas ainda não estando tomadas, todos pareciam muito preocupados. Como víamos a peste, aparentemente, se aproximando, cada um cuidava de si e de sua família como se corressem o maior perigo. Se fosse possível representar exatamente aqueles tempos para aqueles que não os viram, dando ao leitor a devida idéia do horror que se apresentava em toda parte, seria preciso criar imagens em suas mentes e enchê-las de pavor. Bem pode-se dizer que Londres estava toda em lágrimas. As carpideiras, na verdade, não saíam pelas ruas e ninguém se vestia de preto ou mandava fazer um traje formal de luto nem pelos amigos mais íntimos, mas as vozes das carpideiras eram claramente escutadas nas ruas. A choradeira das mulheres e crianças nas janelas e portas das casas onde seus parentes mais queridos talvez estivessem morrendo, ou recém- mortos, era tão freqüente quando se passava pelas ruas que bastava para cortar o mais insensível coração do mundo que a escutasse. Viam-se lágrimas e lamúrias em praticamente todas as casas, principalmente no início da epidemia, pois, quando se aproximou do fim, os corações dos homens estavam tão endurecidos e a morte era tão constante diante de seus olhos que já não se preocupavam tanto com a perda de seus amigos, esperando que também eles fossem chamados na hora seguinte. Meus negócios às vezes me levaram até o outro extremo da cidade, mesmo onde a doença estava predominante. Como a coisa era nova para mim, assim como para todos os outros, o mais impressionante foi ver aquelas ruas que normalmente eram tão movimentadas ficarem desertas, com tão pouca gente à vista que se eu fosse um estrangeiro e estivesse perdido em meu caminho, algumas vezes percorreria uma rua inteira (refiro-me às transversais) sem encontrar pessoa alguma para me orientar, exceto os vigias sentados nas portas das casas que estavam fechadas, sobre as quais falarei daqui a pouco. Um dia, estando naquela zona da cidade para fazer um negócio importante qualquer, a curiosidade me levou a observar as coisas mais do que o costume e, assim, percorri um longo trajeto por onde não tinha compromissos. Subi até Holborn e lá as ruasestavam cheias de gente, mas todos só caminhavam no meio da rua, nunca em qualquer um dos lados, porque, eu suponho, não queriam se misturar com qualquer pessoa vinda das casas ou sentir cheiros e odores das casas que deveriam estar contaminadas. Os tribunais da corte estavam totalmente fechados. Também não havia muitos advogados à vista em Temple ou em Lincoln’s Inn ou Gray’s Inn. Todo mundo estava em paz e não havia necessidade de advogados. E também porque, sendo tempo de férias, eles em geral iam para o interior. Em alguns lugares, as casas de quarteirões inteiros estavam fechadas e todos os moradores fugiram para o interior, deixando apenas um ou dois vigias. Quando digo quarteirões de casas fechadas, não me refiro a casas lacradas pelos oficiais de justiça. É que muita gente acompanhou a corte, por exigência de seus empregos ou outras necessidades. Outros realmente se retiraram apavorados com a doença e isso deixou algumas ruas simplesmente abandonadas. Na city, o medo não estava nem perto de ser tão grande, abstratamente falando, principalmente porque, embora tivessem se preocupado muitíssimo no início, a peste, como já disse, aparecia esporadicamente, de modo que todos ficaram alerta e se despreocuparam muitas vezes seguidas, até que isso se tornou algo cotidiano para eles. Mesmo quando a peste surgiu com violência, embora não tivesse se espalhado visivelmente dentro da city, ou nas zonas leste e sul, as pessoas começaram a sentir coragem e ficaram, diria eu, um pouco insensíveis. É verdade que uma grande quantidade de gente fugiu, mas já disse que estes viviam principalmente na zona oeste da cidade e do que chamamos de coração da city: vale dizer, os mais ricos, pessoas desvinculadas do comércio ou dos negócios. O resto, a maioria, ficou e parecia se submeter ao pior. Assim, nos lugares que chamamos de liberties e nos subúrbios, em Southwark e na zona leste, como Wapping, Ratcliff, Stepney, Rotherhithe e outros, a população em geral permaneceu, com exceção aqui e ali das poucas famílias ricas que, como as anteriores, não dependiam de seus negócios. É preciso não esquecer que a city e os subúrbios eram incrivelmente cheios de gente na época desta epidemia; quero dizer, na época em que começou. Embora tenha vivido para ver um crescimento ainda maior, com multidões se estabelecendo em Londres mais do que nunca, mesmo assim sempre fizemos idéia de que, depois do fim das guerras, da dissolução dos exércitos e da restauração da família real e da monarquia, a quantidade de gente que veio para Londres estabelecer negócios ou acompanhar as resoluções da corte sobre nomeações, gratificações por serviços prestados e outras foi tão grande que se computou haver na cidade mais de cem mil pessoas, além das que sempre houvera anteriormente. Não só isso, outros chegaram a dizer que foi o dobro porque todas as famílias arruinadas do partido do rei vieram para cá. Todos os velhos soldados se estabeleceram no comércio e muitíssimas famílias se fixaram aqui. A corte, mais uma vez, trouxe consigo uma grande onda de vaidade e novas modas. Todas as pessoas andavam faceiras e elegantes e o bem- estar da Restauração atraiu grande quantidade de famílias para Londres. Muitas vezes pensei nisso como Jerusalém cercada pelos romanos quando os judeus estavam reunidos para celebrar a Páscoa – assim, uma quantidade inacreditável de gente foi surpreendida quando, não fosse isso, estaria em outros países. Da mesma forma, a peste entrou em Londres quando, casualmente, pelas circunstâncias específicas acima mencionadas, ocorrera um grande crescimento da população. Este afluxo de gente a uma corte jovem e alegre gerou muito trabalho na city, principalmente para tudo que estivesse na moda ou fosse um refinamento. Conseqüentemente, isso atraiu grande número de trabalhadores, artesãos e semelhantes, que eram, essencialmente, gente pobre que dependia de seu trabalho braçal. Lembro de modo particular que, numa representação sobre as condições dos pobres encaminhada ao Lorde Prefeito, estimou-se haver não menos de cem mil tecelões manuais dentro e nas cercanias da city, vivendo a maioria deles nas paróquias de Shoreditch, Stepney, Whitechapel e Bishopsgate, ou seja, em torno de Spitalfields, mas do que Spitalfields era então, pois não passava de uma quinta parte do que é agora. Por isso, no entanto, pode-se supor a população total. E, de fato, muitas vezes cheguei a considerar que, mesmo depois de uma quantidade alarmante de gente ter ido embora no início, ainda havia uma multidão tão grande quanto parecia haver anteriormente. Devo retornar mais uma vez ao começo desses tempos assustadores. Enquanto os temores da população foram novos, eles cresceram estranhamente com diversos acidentes esquisitos que, reunidos, tornavam realmente surpreendente o povo não se levantar feito um único homem e abandonar suas casas, deixando o lugar como um território destinado pelo Céu para uma Akeldama4, condenada à destruição na face da Terra e tudo que lá fosse encontrado desapareceria com ela. Vou descrever apenas algumas destas coisas, mas elas certamente foram tantas, e tantos feiticeiros e gente velhaca as propagavam que seguidamente me perguntei se alguém (principalmente mulheres) permaneceria. Em primeiro lugar, uma estrela incandescente ou cometa apareceu durante vários meses antes da peste, como faria no ano seguinte, pouco antes do incêndio. As velhas e a porção fleumática hipocondríaca do outro sexo, a quem quase também poderíamos chamar de velhas, observaram (principalmente depois e não antes de acontecerem os flagelos) que dois cometas passaram exatamente sobre a city e chegaram tão perto das casas que ficou evidente que eles significavam algo peculiar só da city. O cometa anterior à peste tinha uma coloração pálida, débil e opaca, seu movimento era pesado, solene e lento. Já o cometa que apareceu antes do incêndio era brilhante e faiscante ou, como também disseram, em chamas, movendo-se com rapidez e fúria. Um prenunciava uma pesada condenação, lenta porém severa, terrível e apavorante como a peste. O outro anunciava uma explosão, súbita, rápida e ardente como o incêndio. Algumas pessoas foram tão peculiares que não apenas viram o cometa antes do incêndio, mas acreditavam que, além de ter acompanhado seu movimento rápido e violento com os olhos, também teriam escutado o cometa, que fazia um vigoroso ruído de atrito, forte e terrível, perceptível apesar da distância. Também vi estas duas estrelas e devo confessar que, tendo apenas uma noção leiga sobre estas coisas, as encarei como presságios e avisos de um castigo de Deus. Depois que a peste surgiu, antecedida pela primeira estrela, ainda vi outra do mesmo tipo e, então, não consegui pensar outra coisa, a não ser que Deus ainda não tinha castigado suficientemente a city. Não podia, porém, considerar estas coisas com a mesma importância dada por outros, pois sabia que os astrônomos indicam causas naturais para fenômenos como esses. Seu movimento e suas rotações são inclusive calculadas, ou pelo menos tentam calculá-las. De forma que não podiam ser tão simplesmente prenúncios ou anunciações e muito menos a causa de fenômenos como a peste, a guerra, um incêndio e outros do gênero. Se pensassem como eu ou como pensam os filósofos, essas coisas teriam pouca influência sobre a imaginação das pessoas comuns, que tinham uma melancolia quase absoluta, com medo de que alguma pavorosa calamidade ou castigo tomasse a city. Isso aconteceu principalmente com a visão deste cometa e com o pequeno alarme dado em dezembro pelas duas pessoas que morreram em St Giles, como já disse. As apreensões da população foram como que estranhamente aumentadas pelos erros da época, pois o povo – não consigo imaginar por que princípio – estava mais influenciável por profecias econjurações astrológicas, sonhos e contos da carochinha do que jamais estivera ou seria. Se este estado de espírito foi criado pelas maluquices de alguns que ganhavam dinheiro com isso – quer dizer, publicando previsões e profecias – eu não sei. Mas é certo que alguns livros amedrontaram terrivelmente a população, livros como o Almanack Lilly, As previsões astrológicas de Gadbury, o Almanack de Poor Robin e semelhantes. Muitos outros se anunciaram como livros religiosos. Um destes tinha como título Fuja dela, meu povo, a não ser que queiras tomar parte em suas pestes. Outro se chamava Bom conselho; outro, Curador da Grã-Bretanha e muitos iguais. Todos, ou a maior parte deles, previam, direta ou veladamente, a ruína da cidade. Alguns eram tão inflamados e atrevidos que percorriam as ruas pregando suas profecias, fingindo serem enviados para rezar pela cidade. Um deles, em particular, como Jonas para Nínive, gritava pelas ruas: “Daqui a quarenta dias Londres será destruída”. Não tenho certeza se dizia daqui a quarenta ou daqui a poucos dias. Outro corria quase nu, só com ceroulas na cintura, chorando noite e dia, como o homem mencionado por Josephus5, que gritava “Desgraça para Jerusalém”, pouco antes da destruição da cidade. Assim, aquela pobre e nua criatura gritava “oh grande e terrível Deus” e nada mais dizia, repetindo estas palavras continuamente, com uma voz e expressão cheias de horror e passos rápidos. Ninguém conseguia fazê-lo parar ou descansar ou ingerir qualquer alimento, pelo menos é o que ouvi dizer. Encontrei esta pobre criatura várias vezes nas ruas e eu teria conversado com ele, mas ele não conseguia falar comigo ou com quem quer que fosse, tomado por seus gritos contínuos e melancólicos. Estas coisas aterrorizaram o povo ao extremo, principalmente quando, duas ou três vezes como já mencionei, descobriram um ou dois mortos de peste no registro de St Giles. Ao lado destes casos públicos, estavam os sonhos das velhas ou, devo dizer, a interpretação que as velhas davam aos sonhos de outras pessoas. Isso deixou muita gente fora de seu juízo. Alguns ouviram vozes dizendo que fugissem porque haveria uma peste em Londres tão violenta que os vivos não conseguiriam enterrar os mortos. Outros viam aparições no ar e devo ter permissão para afirmar, sem abusar da confiança, que ouviam vozes que nunca falavam e viam imagens que nunca apareciam. A imaginação do povo estava realmente alterada e possuída. Não era de se estranhar que aqueles que ficaram constantemente observando as nuvens vissem formas e figuras, representações e aparições que nada tinham por dentro, apenas ar e vapor. Aqui, falavam de uma espada de fogo numa mão que saía de uma nuvem com a ponta voltada diretamente para a cidade. Viam carros fúnebres e caixões levados no ar para serem enterrados, pilhas de corpos de mortos abandonados sem sepulturas e outras visões semelhantes, conforme a imaginação dos pobres aterrorizados os alimentava de material para trabalharem. Assim hipocondríacas fantasias representam Navios, exércitos, batalhas no firmamento; Até que olhos firmes dissolvam as imagens, E tudo volte a sua primeira matéria, nuvem. Eu poderia preencher este relato com as estranhas versões que, todos os dias, as pessoas davam sobre o que tinham visto. Cada um ficava tão certo de ter visto o que supunha ver, que não dava para contradizê-lo sem perder um amigo ou ser considerado rude e mal-educado por um lado, profano e insensível por outro. Uma vez, antes de começar a peste (para além de St Giles, como já disse), acho que foi em março, vi uma aglomeração na rua e me juntei à multidão para satisfazer minha curiosidade. Descobri que todos estavam olhando para cima, tentando ver o que uma mulher dizia ter aparecido claramente para ela, um anjo vestido de branco, com uma grande espada na mão, que sacudia e brandia sobre sua cabeça. Ela descreveu cada detalhe da figura, mostrou seus movimentos e sua forma, e os pobres logo a reconheceram com muita avidez e prontidão: “Sim, eu vejo tudo claramente”, disse alguém, “lá está a espada, tão verdadeira quanto pode ser”. Outro viu o anjo. Um viu seu rosto e gritou que gloriosa criatura ele era! Um via uma coisa, outro via outra. Olhei tão interessado quanto os demais, mas talvez sem tanta vontade de ser sugestionado. Falei que, na verdade, não via nada além de uma nuvem branca, brilhante de um lado devido à luz do sol. A mulher esforçou-se para me mostrar o anjo, mas não conseguiu me fazer admitir que o tinha visto e, caso eu o fizesse, estaria mentindo. Voltando-se para mim, a mulher me olhou no rosto e imaginou que eu ria, o que era imaginação sua, porque realmente não estava rindo, mas refletia seriamente como os pobres são aterrorizados pela força de sua própria imaginação. Ela, no entanto, se afastou me chamando de sujeito profano e gozador e me disse que estávamos num tempo de ira de Deus e terríveis castigos se aproximavam e que menosprezadores como eu andariam a esmo e pereceriam. O povo a seu redor parecia tão incomodado quanto ela e achei que não havia como persuadi-los de que eu não ri deles, pois seria massacrado antes de conseguir convencê-los. Assim, deixei-os e aquela aparição foi considerada tão real quanto a própria estrela incandescente. Também vivi outro encontro como este em pleno dia. Aconteceu numa passagem estreita entre Petty France e o cemitério de Bishopsgate, num quarteirão de asilos. Há dois cemitérios na igreja ou paróquia de Bishopsgate. Um, a gente atravessa para passar do lugar chamado Petty France para a Bishopsgate Street, saindo bem na porta da igreja. O outro fica ao lado de um beco estreito, que tem os asilos à esquerda, uma mureta com paliçada à direita e, do outro lado, mais à direita, a muralha da city. Neste beco estreito, um homem estava parado, olhando para dentro do cemitério através das grades da paliçada e cercado por tanta gente quanto permitia a estreiteza do beco, sem impedir a passagem. O homem falava com veemente fervor, indicando ora um lugar, ora outro e afirmando que via um fantasma caminhando sobre determinado túmulo. Descreveu a forma, a postura e o movimento do fantasma com tamanha exatidão que reagiu com o maior espanto do mundo porque ninguém o via tão bem quanto ele. Subitamente, gritou: “Ali está ele, agora vem nesta direção”. Depois, “já foi embora”. Por insistência, persuadiu o povo com sua convicção e logo alguém imaginou ter visto o fantasma, em seguida outro também viu. O homem passou a vir todos os dias, provocando uma aglomeração de curiosos no beco estreito, até que o relógio de Bishopsgate batesse onze horas, quando, de repente, o fantasma desaparecia como se fosse chamado de longe. Olhei interessado para todos os lados e na direção exata que o homem indicava, mas não pude ver a menor aparição de coisa alguma. Este pobre homem estava tão convicto que incutia grandes pavores nas pessoas, que se afastavam tremendo de medo, até que poucas eram as que conheciam o caso e se arriscavam a cruzar aquele beco e dificilmente alguém, pelo motivo que fosse, o cruzaria à noite. Este fantasma, conforme dizia o pobre homem, fazia sinais para as casas, para o chão e para o povo, indicando claramente, ou pelo menos assim o entendia, que muita gente teria de ser enterrada naquele cemitério, o que realmente aconteceu. Devo reconhecer que nunca acreditei que o homem tenha visto isso, nem pude ver coisa alguma por mim mesmo, embora tenha olhado com interesse de, se possível, ver o fantasma. Essas coisas servem para mostrar até onde o povo estava realmente tomado por alucinações. Como se tivessem uma noção da proximidade da epidemia, todos os vaticínios se referiam à mais pavorosa peste que assolaria toda a cidade e até o reino,destruindo quase toda a nação, seus homens e animais. A isto, como disse antes, os astrólogos acrescentavam histórias de conjunções de planetas em angulações malignas e de perniciosas influências. Uma dessas conjunções estava por acontecer, e realmente aconteceu, em outubro, outra em novembro. Enchiam a cabeça do povo com previsões destes sinais dos céus, pois aquelas conjunções indicavam a vinda da seca, da fome e da peste. As duas profecias, porém, estavam totalmente erradas, porque não tivemos seca, mas uma forte geada no início do ano, indo de dezembro a março; depois, um clima moderado, mais morno do que quente, com ventos refrescantes e, em resumo, o clima bem típico da estação, e também grandes chuvaradas. Tentaram com algum empenho suprimir a publicação dos livros que apavoravam o povo e, para intimidá-los, alguns distribuidores foram presos. Não se fez mais nada, pelo que estou informado, porque o governo não queria exasperar o povo que já estava, como poderia dizer, totalmente fora do seu bom senso. Tampouco posso perdoar os sacerdotes que, com seus sermões, deprimiam mais do que aliviavam os corações de seus ouvintes. Muitos, sem dúvida, faziam isso para o fortalecimento da vontade do povo e, principalmente, para apressá-lo no caminho do arrependimento, mas não obtinham bons resultados, pelo menos na proporção do mal que, por outro lado, causavam. A verdade é que o próprio Deus, em todas as Escrituras, tenta atrair-nos para voltar a viver com ele através de convites e chamamentos, nunca nos guia pelo terror e pelo espanto. Assim, devo confessar que achei que os sacerdotes deveriam fazer do mesmo modo, imitando o nosso abençoado Senhor e Mestre, mostrando que Seu Evangelho está repleto de declarações sobre a santa misericórdia de Deus e que Ele está pronto para receber e perdoar os arrependidos. Chega a lamentar: “Não quereis vir a Mim que vos posso dar vida”, e é por isso que Seu Evangelho é chamado de Evangelho da Paz e de Evangelho da Graça. Mesmo assim, víamos alguns homens de bem, de todas as crenças e cultos, cujas pregações eram cheias de terror e não falavam de outra coisa que não fosse algo sombrio. Depois de irmanar as pessoas num tipo de horror, as dispersavam deixando todas em lágrimas, profetizando nada além de acontecimentos sinistros, apavorando o povo com o medo de ser sumariamente destruído, sem conduzi-lo pelo menos o suficiente, a suplicar ao Céu por misericórdia. Foi, de fato, um tempo de muitas e infelizes divergências sobre questões religiosas entre nós. Incontáveis seitas, divisões e credos isolados prevaleciam junto ao povo. A Igreja da Inglaterra fora restaurada com a monarquia, cerca de quatro anos antes. Os missionários e pregadores presbiterianos, independentes e de todos os outros tipos de cultos começaram a formar sociedades à parte e erguer altares sobre altares. Todas se reunindo separadamente para praticar seus cultos, como agora, mas em menor número, sem que os não-conformistas formassem um grupo como desde então, e estas congregações que se uniram ainda eram poucas. Mesmo as poucas que havia foram proibidas pelo governo, que se empenhou em suprimi-las e acabar com suas assembléias. A epidemia voltou a conciliá-los mais uma vez, pelo menos por algum tempo, com muitos dos melhores e mais valiosos missionários e pregadores não-conformistas recebendo permissão para freqüentar as igrejas cujos encarregados tinham fugido, e muitos o tinham, incapazes de suportar a situação. O povo se reunia sem distinções para escutar suas pregações, sem se perguntar muito quem eram ou qual era seu culto. Só depois que a doença passou, diminuiu o espírito caritativo. Toda a igreja foi novamente provida com seu próprio sacerdote ou por substitutos daqueles vigários que morreram e as coisas voltaram mais uma vez para seus antigos canais. Um mal sempre chama outro. Os terrores e medos do povo o conduziam a mil fraquezas, loucuras e atos perversos. Realmente, não faltava gente para encorajá-lo: isto se dava correndo atrás de cartomantes, bruxos e astrólogos para saber seu futuro ou, como se dizia vulgarmente, ler a sorte, calcular o horóscopo e semelhantes. Em pouco tempo, esta loucura fez da cidade uma colméia de uma nova geração de pervertidos que fingiam ser mágicos, da magia negra como diziam, e não sei mais o que, mil pactos com o diabo, muito piores do que aqueles pelos quais realmente eram culpados. Este comércio cresceu tão abertamente e tornou-se uma prática tão generalizada que era comum encontrar sinais e inscrições nas portas: “Aqui mora uma cartomante”, “aqui vive um astrólogo”, “aqui se calculam horóscopos” e assim por diante. A cabeça de bronze do frei Bacon6 diante da casa destas pessoas era tão comum que podia ser vista em quase todas as ruas; ou, então, o emblema da madre Shipton7 ou a cabeça de Merlin e semelhantes. Com que cegos, absurdos e ridículos truques estes oráculos do demônio agradavam e convenciam o povo, eu realmente não sei, mas é certo que inúmeros clientes se juntavam diariamente diante de suas portas. Se um sujeito soturno com uma jaqueta de veludo, um turbante e um casaco negro – como era costume daqueles charlatães andarem – fosse visto pelas ruas, o povo o seguiria numa multidão, fazendo perguntas enquanto caminhavam. Não preciso explicar o que era, ou tentava ser, esta horrenda enganação. Não haveria remédio para isto até que a própria peste pusesse um fim em tudo e, imagino, limpasse a cidade da maioria destes especuladores. Um de seus logros era quando gente humilde perguntava a estes falsos astrólogos se haveria ou não uma peste. Todos eles concordavam, em geral dizendo que “sim”, pois assim podiam continuar com seu comércio. Caso o povo não tivesse seu medo alimentado desta forma, os bruxos teriam se tornado inúteis e seus serviços chegariam ao fim. Então, eles sempre falavam sobre tais e tais influências dos astros, das conjunções de tais e tais planetas que, necessariamente, provocariam doença, mal-estar e, conseqüentemente, a peste. Chegavam a afirmar com segurança que a peste já chegara, o que era bem verdade, embora o dissessem sem nada saber a respeito. Para fazer justiça aos sacerdotes e pregadores, os sérios e compenetrados da maioria dos cultos condenavam estas e outras práticas pervertidas e expunham a loucura, assim como a maldade delas. As pessoas mais sóbrias e responsáveis as desprezavam e execravam. Era impossível exercer qualquer influência sobre o povo em geral e os trabalhadores pobres. Seus medos predominavam sobre todas suas emoções e eles jogavam fora seu dinheiro da maneira mais inútil nestas extravagâncias. Os criados, principalmente as mulheres, mas os homens também, eram seus clientes mais comuns e geralmente perguntavam, primeiro, “haverá uma peste?” Depois, a pergunta seguinte era “Oh Senhor! Pelo amor de Deus, o que será de mim? Minha patroa ficará comigo ou me mandará embora? Ela vai ficar na cidade ou vai para o interior? Se ela for para o interior, vai me levar junto ou me abandonará aqui, para morrer de fome e desgraçada?” E o mesmo com os homens. A verdade é que a situação desta pobre criadagem era desesperadora, como terei oportunidade de comentar novamente mais adiante. Era evidente que um grande número de criados seria deixado para trás, o que de fato aconteceu. Muitos morreram, principalmente aqueles que os falsos profetas iludiram com esperanças de que, continuando a prestar seus serviços, seriam levados para o interior por seus patrões e patroas. Se a caridade pública não as amparasse, estas pobres criaturas, que eram em número excessivamente grande como não pode deixar de ser em todas as situações desta natureza, teriam ficado em condições ainda piores do que qualquer outro morador da city. Estas coisas agitaram a mente das pessoas comunsdurante vários meses, enquanto surgiam nelas as primeiras apreensões e a peste ainda não tinha, posso dizer, aparecido. Também não devo esquecer que o segmento mais sério da população se comportou de outra maneira. O governo estimulou sua devoção, estabelecendo rezas públicas, dias de jejum e recolhimento moral para confissões públicas de pecados e súplicas à misericórdia de Deus para que afastasse a terrível punição que pairava sobre suas cabeças. Não dá para expressar o entusiasmo com que pessoas de todos os cultos aproveitaram a ocasião, como elas se congregaram nas igrejas e assembléias. Todas ficavam tão apinhadas de gente que muitas vezes não havia, de jeito nenhum, como chegar perto das portas das igrejas maiores. Também havia rezas diárias organizadas pela manhã e à noite em diversas igrejas e dias de orações particulares em outros lugares. Eu diria que o povo freqüentava todas com uma devoção incomum. Muitas famílias, tanto de um como de outro culto, também faziam jejuns privados, aos quais só admitiam seus parentes próximos. Assim que, em poucas palavras, aqueles que eram realmente sérios e religiosos dedicavam-se a atividades pertinentes ao arrependimento e à penitência de maneira verdadeiramente cristã, como um povo cristão deve fazer. Mais uma vez, a população mostrou que queria participar de todas essas coisas. A própria corte, que vivia contente e com luxo, assumiu uma justa preocupação com o perigo público. Todos os espetáculos e diversões que, assim como ocorriam na corte francesa, começavam a se multiplicar entre nós tiveram suas apresentações proibidas: as mesas de jogo, os salões de bailes públicos e as casas de música que, em número cada vez maior, alteravam os hábitos da população, foram fechados e proibidos. Todos os palhaços, bufões, equilibristas, espetáculos de marionetes e fazeres similares que enfeitiçavam o pobre povo simplório fecharam seus estabelecimentos, não encontrando qualquer trabalho. A mente do povo foi tomada por outras coisas e um tipo de tristeza e terror destas coisas estampou-se no semblante até mesmo de gente simples. A Morte estava diante de seus olhos e todo mundo começou a pensar em seu túmulo, não em festas e diversões. Mesmo estas saudáveis reflexões – que corretamente empregadas teriam conduzido mais generosamente o povo a cair de joelhos, confessar seus pecados, implorando Sua compaixão naquele momento de dor, no qual poderíamos nos tornar uma segunda Nínive – tiveram um efeito completamente ao contrário sobre o povo simples, ignorante e estúpido em suas reflexões tão brutalmente pervertidas e insensíveis como sempre, que foi então conduzido por seu medo a extremos de loucura. Como disse antes, as pessoas correram aos curandeiros, feiticeiros e a toda sorte de impostores para saber o que aconteceria com elas (com seus medos alimentados e mantidos sempre despertos por aqueles que as iludiam a fim de esvaziar seus bolsos). Assim, o povo andava feito louco atrás de curandeiros, charlatões e de toda velha benzedeira em busca de remédios e tratamentos, estocando tamanha quantidade de pílulas, poções e preservativos, como chamavam, que não apenas gastavam seu dinheiro, mas até se envenenavam antecipadamente. Com medo do veneno da infecção, preparavam seus corpos para a peste, em vez de se protegerem contra ela. Por outro lado, é incrível e difícil de se imaginar como os postes das casas e das esquinas ficaram recobertos de receitas de médicos e reclames de sujeitos ignorantes, práticos e amadores em medicina, convidando as pessoas a vir a eles atrás de remédios geralmente anunciados em floreios como estes: “pílulas preventivas, infalíveis contra a peste”, “elixir soberano contra a corrupção do ar”, “instruções precisas para o tratamento do corpo em caso de infecção”, “pílulas antipestilenciais”, “incomparável poção contra a peste, nunca descoberta antes”, “a cura universal da peste”, “a única verdadeira água da peste”, “o antídoto real contra todos os tipos de infecções” – e tantas outras que não consigo lembrar, e se conseguisse, encheria um livro só com elas. Outros fixavam cartazes chamando o povo para seu endereço, onde todos seriam aconselhados e orientados em caso de contaminação. Estes também tinham títulos enganadores, tais como: “Eminente médico da Alta Germânia, recém-vindo da Holanda, onde morava no tempo da grande peste do ano passado em Amsterdam. Curou multidões de pessoas realmente contaminadas.” “Uma senhora italiana recém-chegada de Nápoles, conhecedora de uma fórmula secreta para a prevenção do contágio, descoberta através de sua grande experiência, fazendo curas maravilhosas na última peste, lá, quando morreram vinte mil num único dia.” “Uma velha senhora, que testou seus conhecimentos com grande sucesso na última peste nesta cidade, anno 1636, oferece-se para aconselhar somente o sexo feminino. Pode ser contatada diretamente......”, etc. “Um experiente médico, que muito estudou a doutrina de antídotos contra todos os tipos de venenos e infecções, atingindo tal competência depois de quarenta anos de prática que, com a ajuda de Deus, pode orientar pessoas sobre como evitar o contato com qualquer tipo de doença. Atende os pobres gratuitamente.” Chamo a atenção para estes a título de exemplos. Poderia citar duas ou três dúzias de anúncios semelhantes e muitos ainda ficariam de fora. Estes bastam para deixar claro a qualquer um o estado de espírito daqueles tempos e como um grupo de ladrões e batedores de carteiras não apenas ludibriavam e roubavam o dinheiro dos pobres, mas envenenavam seus corpos com preparados repugnantes e fatais, alguns com mercúrio, outros com coisas igualmente maléficas, completamente opostas ao que se pretendiam ser, mais nocivas do que benéficas ao corpo, caso ocorresse o contágio. Não posso omitir a sutileza de um destes preparadores de poções com as quais enganava os pobres que se aglomeravam a seu redor, mas nada conseguiam sem dinheiro. Nos cartazes que distribuía pelas ruas, parece que acrescentara este anúncio com letras maiúsculas: “dá conselhos de graça aos pobres”. Conseqüentemente, uma multidão vinha atrás dele, para quem ele fazia longos e belos discursos, examinava o estado de saúde, a constituição de seus corpos e dizia muitas coisas que seria bom que fizessem, coisas impossíveis no momento. Mas toda questão levava à conclusão de que se tivessem uma poção e a tomassem numa quantidade determinada todas as manhãs, ele garantia com a própria vida que nunca contrairiam a peste, mesmo que vivessem numa casa onde houvesse gente contaminada. Isto levava o povo todo a querer a tal poção, mas o preço era muito alto, acho que custava meia coroa. “Senhor – disse uma pobre mulher –, sou uma pobre mendiga mantida pela paróquia e vosso anúncio diz que dá conselhos de graça aos pobres.” “Ai, bondosa senhora – disse o doutor –, é isto que eu faço, conforme anuncio. Dou conselhos de graça aos pobres, mas não meus medicamentos.” “Ai de mim, Senhor – disse a mulher –, então isto é uma arapuca armada para os pobres. Dar conselho de graça aos pobres. Isto quer dizer que o senhor os aconselhais de graça a comprar vossos medicamentos com dinheiro. É o mesmo que faz um balconista com suas mercadorias.” Aqui, a mulher começou a insultá-lo, ficando na porta da casa dele e contando sua história ao povo que aparecia. Até que o doutor descobriu que ela estava afastando seus clientes e foi obrigado a chamá-la no andar superior e dar-lhe uma caixa do seu remédio grátis, o que talvez também não valesse nada quando ela o tomasse. Voltando à população, cujas confusões a tornavam facilmente sugestionável por toda sorte de farsantes e qualquer tipo de curandeiro. Não há dúvidas de que estes charlatões fizeram grandes lucros com a miséria do povo, poisdiariamente víamos que as multidões correndo atrás deles eram cada vez maiores. Às portas de suas casas, se aglomerava mais gente do que diante das casas do dr. Brooks, dr. Upton, dr. Hodges, dr. Berwick ou qualquer outro, entre os mais famosos da época. E disseram-me que alguns deles ganhavam cinco libras por dia com sua medicina. Além de tudo isso, ainda havia outra maluquice que pode servir para dar uma idéia da perturbação do espírito dos pobres da época, que seguiam impostores ainda piores do que qualquer um destes. Estes ladrões baratos somente iludiam o povo para abrir seus bolsos e pegar seu dinheiro. Assim, qualquer que fosse a perversidade, ela vinha da parte dos impostores, não dos ludibriados. O aspecto que vou mencionar estava predominantemente nas pessoas enganadas, ou igualmente em ambos os lados: carregavam talismãs, filtros, praticavam exorcismos, carregavam amuletos e não sei mais que poção para fortalecer o corpo contra a peste; como se a peste não estivesse nas mãos de Deus, não fosse a maldição de um espírito diabólico; como se pudesse ser afastada com cruzes, signos zodiacais, papéis amarrados com muitos nós e algumas palavras ou desenhos, conforme aconteceu principalmente com a palavra Abracadabra formando um triângulo ou pirâmide como esta: ABRACADABRA Outros tinham a inscrição ABRACADABR dos jesuítas numa cruz: ABRACADAB ABRACADA IH ABRACAD S. ABRACA ABRACOutros, nada além de uma ABRA marca assim: ABR AB A Poderia consumir um bom tempo em minhas condenações às loucuras e verdadeira perversidade de coisas semelhantes numa época de tanto perigo, com um problema de conseqüências tão graves como este, uma epidemia nacional. Meus apontamentos dessas coisas são mais para chamar a atenção para o fato e somente registrar que foi assim. Como os pobres sofreram com a ineficácia daquelas coisas e como muitos terminaram carregados pelo carro dos mortos e atirados em valas comuns de todas as paróquias, com seus talismãs e escapulários diabólicos ao redor de seus pescoços, permanecerá um assunto para mais adiante. Tudo isso foi decorrência da precipitação das pessoas depois da primeira noção de que a peste já estava entre elas, o que se pode dizer que se deu a partir da aproximação de Michaelmas8, em 1664, mas principalmente depois que os dois homens morreram em St Giles, no começo de dezembro; acontecendo mais uma vez, depois de outro alarme, em fevereiro. Quando a peste se espalhou de modo evidente, logo começaram a ver a loucura que foi acreditar naquelas criaturas incompetentes que só lhes tiraram dinheiro. Então, seus medos reagiram de outra maneira, com espanto e estupidez, sem saber que direção seguir ou como agir para se socorrerem e se ajudarem. Corriam da casa de um vizinho para a de outro, ou percorriam a rua batendo de porta em porta, com repetidos gritos de “Senhor, tende misericórdia de nós! O que devemos fazer?” Realmente, era preciso sentir pena dos pobres numa coisa em particular, na qual contavam com pouca ou nenhuma ajuda. Desejo mencionar com grande respeito e consideração algo que, talvez, todo mundo que leia ache desagradável. Objetivamente, refiro-me à morte não mais se satisfazer em pairar, se podemos assim dizer, sobre a cabeça de cada um, entrando nas casas e nos quartos para contemplar a face das pessoas. Talvez houvesse alguma insensatez e inércia na mente delas (e havia em quantidade), mas também havia algo de muito justo no pânico soando nas profundezas da alma dos outros, se posso dizer isto. Muitas consciências despertaram, muitos corações endurecidos se derreteram em lágrimas, muitos penitentes confessaram crimes há muito tempo ocultos. Tocaria a alma de qualquer cristão ouvir os gemidos de agonia de tanta gente desenganada, de quem ninguém chegava perto para oferecer qualquer consolo. Muitos roubos, muitos assassinatos também, foram então confessados em voz alta, embora ninguém sobrevivesse para registrar suas confissões. Caminhando pelas ruas, podia-se ouvir gente implorando misericórdia a Deus, apelando para Jesus Cristo e dizendo “fui um ladrão”, “cometi o adultério”, “matei” e outras frases semelhantes. Ninguém ousava parar para fazer a menor investigação sobre essas coisas ou para oferecer consolo às pobres criaturas que gritavam dessa maneira, tomadas de corpo e alma pelo pânico. No princípio, e por pouco tempo, alguns sacerdotes visitavam os doentes, mas isso não deveria ser feito. Entrar em determinadas casas era morte certa. Mesmo os que sepultavam os mortos e eram as criaturas mais endurecidas da cidade, às vezes recuavam tão aterrorizados que não se arriscavam a entrar em casas onde famílias inteiras foram eliminadas juntas, em circunstâncias particularmente horripilantes, como algumas foram. Isso, é claro, no primeiro surto da doença. O tempo acostumou-os a tudo aquilo e pouco depois se arriscavam em toda parte sem hesitação, como terei oportunidade de descrever em detalhe mais adiante. Suponho que a peste começou nesse momento e, como já disse, as autoridades também começaram a refletir seriamente sobre as condições da população. Em seguida, contarei o que fizeram para controlar os habitantes contaminados e suas famílias. Sobre a questão da saúde, cabe mencionar apenas que, constatando o ânimo enlouquecido do povo, numa correria atrás de charlatões e curandeiros, mágicos e cartomantes, como as pessoas faziam até perder a lucidez, o Lorde Prefeito, um homem muito sóbrio e religioso, nomeou médicos e cirurgiões para atendimento dos pobres – refiro-me aos doentes pobres – e determinou que o Colégio de Médicos publicasse orientações sobre remédios baratos para os pobres em todos os estágios da doença. Esta foi uma das medidas mais piedosas e judiciosas que poderiam ser tomadas naquele tempo, pois afastou a população das concentrações diante das portas de qualquer fornecedor de receitas, evitando que as pessoas ingerissem, cegamente e sem qualquer consideração, veneno por remédio, encontrando a morte em vez da vida. Estas recomendações dos médicos foram estabelecidas por uma consulta a todo o Colégio. Concebidas especialmente para o uso de medicamentos baratos pelos pobres, estas recomendações tornaram-se públicas para que todos pudessem conhecê-las e todos os interessados podiam obter uma cópia gratuita. Como são informações públicas, que podem ser verificadas a qualquer momento, pouparei o leitor do trabalho de lê-las aqui. Não pretendo diminuir a autoridade ou a capacidade dos médicos quando digo que a violência da doença, ao atingir seus extremos, foi como o incêndio do ano seguinte. O fogo consumiu aquilo que a peste não conseguiu tocar, desafiando a aplicação de todos os remédios. Os carros de bombeiro se quebraram, os baldes foram jogados fora e o poder dos homens, fracassando, chegou ao fim. Também a peste desafiou todos os medicamentos. Os próprios médicos se contaminavam com seus preventivos na boca; os homens saíam por aí prescrevendo e dizendo aos outros o que fazer até que apresentassem os sintomas e caíssem mortos, destruídos pelo mesmo inimigo que ensinavam os outros a enfrentar. Este foi o caso de muitos médicos, mesmo alguns dos mais eminentes e vários dos cirurgiões mais habilidosos. Muitíssimos charlatões também morreram, aqueles que cometeram a loucura de acreditar em seus próprios remédios que, sendo conscientes de si mesmos, sabiam não servir para nada. Antes fizessem como outros tipos de ladrões que reconheciam sua culpa fugindo da justiça, pois não podiam esperar mais do que o castigo que sabiam merecer. Não há qualquer depreciação ao trabalho e à dedicação dos médicos em dizer que morreram na calamidade geral. Nem é esta minha intenção, pois é antes para louvá-los por terem arriscado suas vidas ao ponto de perdê-las a serviço da humanidade. Eles
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