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2012 Processos Historiográficos Prof. Evandro André de Souza Prof. Jó Klanovic Copyright © UNIASSELVI 2012 Elaboração: Prof. Evandro André de Souza Prof. Jó Klanovicz Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: 907.2 S729p Souza, Evandro André de Processos historiográficos / Evandro André de Souza e Jó Klanovicz. Indaial : Uniasselvi, 2012. 184 p. : il ISBN 978-85-7830- 558-1 1.Historiografia; 2. Estudos históricos. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título III APresentAção Caro acadêmico! Quando pensamos História, não podemos nos furtar à discussão sobre seu estatuto frente a outros campos do conhecimento humano. No final dos anos 1990, a discussão que começou a se colocar nos estudos de História parece ter forçado um retorno a preocupações iluministas sobre o conhecimento e as narrativas históricos. Voltamos a fazer perguntas sobre a existência ou possibilidade de existência de um conhecimento chamado histórico; sobre o que pode ou não ser denominado de fato histórico; quem é o historiador ou historiadora; sobre a possibilidade ou não de denominar a história de ciência; sobre os limites, encontros e desencontros da História com relação à Literatura; sobre a “História” com “H” maiúsculo ou as “histórias” com “h” minúsculos; sobre se é seu papel explicar ou interpretar, inventar ou resgatar um passado, ora entendido como entidade, ora como fragmento. No final do século XX, passamos a nos preocupar, também, com a relação entre pesquisa e ensino de História (ou de histórias), de uma maneira renovada, não meramente instrumental, capaz de rediscutir velhas práticas de ensino, velhas fragmentações e divisões artificiais entre didática, teoria da história, historiografia, ensino. Passamos a encarar, cada vez mais, manuais de ensino como produções que são fruto de intenções, de escolhas, de propostas e sentidos defendidos por quem os escrevem talhados, seguindo orientações socioculturais. Quem trabalha com História foi e está sendo compelido a pensar múltiplas dimensões sobre o próprio conhecimento histórico, e a tarefa de historicizar as leituras, as abordagens, as interpretações, os pontos de vista e as intenções de historiadores e historiadoras anteriores na hora de elaborar um plano de ensino, um plano de aula, uma intervenção didático-pedagógica ou, simplesmente (ou seria melhor, amplamente?) pensar quaisquer temas a partir de uma mirada histórica tem exigido, cada vez mais, interação de interesses pessoais dos profissionais da História com uma área específica chamada Historiografia. Durante algum tempo, tendemos a pensar a historiografia na acepção mais crua do termo: escrita da História. Contudo, à medida que esse campo foi se especializando, passamos a reposicionar a discussão na esfera da problematização das formas da escrita (estéticas, éticas, didáticas, científicas), das intencionalidades da escrita, dos seus sentidos, das disputas por espaços institucionalizados, de escolhas conceituais de historiadores e historiadoras, ou ainda, das implicações da adoção de determinados paradigmas de escrita da História para o ensino da História. IV Tornamos a análise da escrita da História algo mais complexo, mais profundo, mais produtivo, ligando-a com o mundo do ensino, com o mundo da sala de aula, principal espaço articulador da vivacidade da História e principal forma de reafirmar a importância da História para suprir nossas carências de orientação no tempo (RÜSEN, 2007). Alguém pode se perguntar sobre o porquê dessas observações que se voltam para a discussão de processos historiográficos em meio à formação acadêmica voltada ao ensino de História em sentido amplo, argumentando que preocupações de ordem historiográfica não fazem sentido para o âmbito que excede a pesquisa. Certamente, essa questão, antes de ser respondida, ainda que negativamente, também carece de uma leitura, de uma historicidade, uma vez que, por si só, imprime uma divisão tácita entre um mundo chamado “pesquisa” e um mundo chamado “ensino”, que poderíamos derivar para outras divisões artificiais como “ciência” e “difusão”, “conhecimento aprofundado” e “manual de formação”, ou tantos outros binômios. Acontece que, de um ponto de vista prático, não há, não se sustenta e, em certa medida ética, não pode haver uma divisão tão radical, abrupta ou artificialista entre ambas as esferas, uma vez que cabe ao professor e à professora de História, no processo de formação de seus e suas estudantes, comunicar um saber atualizado, informado, de qualidade, politicamente consciente, problematizador e crítico; enquanto que cabe ao pesquisador e à pesquisadora em História não perder de vista a dimensão motivadora, propedêutica, sedutora, informativa e didática de seus estudos. Historiadores da historiografia (mais uma especialidade no seio de nossa profissão), como Jörn Rüsen (2007) enfatizam, nesse sentido, a dupla dimensão da Historiografia, tanto como necessidade para pesquisa, como necessidade para o ensino de História, na medida em que ela não é um fim, mas um meio de permitir comunicar melhor os mundos científico, pragmático e de ensino da História (RÜSEN, 2007). Enfim, permitir que possamos, a partir, muitas vezes, do parco material que temos à mão na escola, criticar posturas e modelos, desconstruir propostas anteriores, aprimorar suas virtudes, identificar seus defeitos, e, principalmente, ESCOLHER e DECIDIR pelas abordagens que julgamos, com base em nossa formação de historiadores, mais apropriadas do ponto de vista da qualidade do conhecimento que buscamos coelaborar com nossos estudantes. O objetivo deste Caderno de Estudos é fazer com que possamos conhecer alguns dos meandros do processo de emergência da História como campo de conhecimento no mundo contemporâneo, partindo da própria historicidade do campo no mundo ocidental, desde uma antiguidade mediterrânea até o seu desenvolvimento em neo-Europas, as correntes ou estilos (muitas vezes autodenominações) historiográficos, sem perder de vista, a todo instante, o vínculo dessa discussão com o mundo da licenciatura. V Na Unidade 1, propomos discutir processos historiográficos e sua importância para a interpretação crítica da realidade sociocultural, para a determinação dos processos de escolha e tomada de decisões nas esferas pública e privada, para a melhoria das atividades profissionais de História. Para isso, elencamos alguns termos e conceitos que servem de baliza para a problematização do estatuto da História na atualidade, e da sua relação com outros campos do conhecimento. A Unidade 2 está totalmente voltada à apresentação e discussão de formas de escrita da história que, de uma maneira ou de outra, tiveram e têm ainda relevância e reconhecimento científico em diversos países. Em certa medida, não deixamos de refazer questões sobre as razões de se aprender, pesquisar e ensinar, ainda hoje, autores gregos e romanos no Brasil do século XXI, ou historiadores da fronteira dos EUA do século XIX e suas implicações para a leitura do processo de desenvolvimento econômico do Brasil moderno do século XX. Traçamos, assim, uma linha do tempo que vai do século V a.C., até agora, tangenciando estilos, propostas, padrões e protocolos da pesquisa histórica, mutáveis no tempo. Na Unidade 3, discutiremos a relação entre processos historiográficos e ensino de História, num sentido amplo, além de pontuarmos propostas de construção do conhecimento histórico em sala de aula a partir de pesquisas, de contato com textos históricos, com documentos primários e secundários. Desejamos a todos uma ótima leitura e boas reflexões! Prof. Evandro Andréde Souza Prof. Jó Klanovicz VI Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA VII VIII IX UNIDADE 1 – A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO .................................. 1 TÓPICO 1 – DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO ................................................. 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 QUANDO COMEÇA A HISTÓRIA? ................................................................................................ 6 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 9 3 RELATOS ................................................................................................................................................ 11 3.1 TIPOS DE RELATOS OU DOCUMENTOS .................................................................................. 16 3.1.1 Documentos escritos publicados e não publicados ........................................................... 17 3.1.2 Documentos visuais ............................................................................................................... 19 3.1.3 Documentos orais ................................................................................................................... 20 3.1.4 Documentos multimidiáticos ................................................................................................ 21 4 A HISTÓRIA E OS HISTORIADORES E HISTORIADORAS ................................................... 23 LEITURA COMPLEMENTAR II ........................................................................................................... 27 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 33 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 34 TÓPICO 2 – TEMPORALIDADES E HISTÓRIA .............................................................................. 35 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 35 2 TEMPORALIDADES E HISTÓRIA .................................................................................................. 36 3 HISTÓRIA E CONTEMPORANEIDADE ....................................................................................... 38 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 41 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 42 TÓPICO 3 – FUNÇÕES SOCIAIS DE HISTORIADORES E HISTORIADORAS ..................... 43 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 43 2 SOCIEDADES E AS FUNÇÕES DA HISTÓRIA ........................................................................... 44 3 O QUE ABRANGE A HISTÓRIA? .................................................................................................... 45 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 48 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 49 UNIDADE 2 – CONSTRUÇÕES DE DISCURSOS HISTORIOGRÁFICOS ............................... 51 TÓPICO 1 – ABORDAGENS HISTORIOGRÁFICAS ..................................................................... 53 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 53 2 O QUE SÃO ABORDAGENS HISTORIOGRÁFICAS ................................................................. 54 3 O IMPACTO DAS ABORDAGENS SOBRE A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA ................... 56 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 57 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 58 TÓPICO 2 – HISTORIOGRAFIAS ATÉ O SÉCULO XIX ............................................................... 59 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 59 2 HISTORIOGRAFIAS ANTERIORES AO SÉCULO XVIII ........................................................... 59 2.1 A HISTORIOGRAFIA GRECO-ROMANA .................................................................................. 60 sumário X 2.2 HISTORIOGRAFIAS ANTIGAS NO EXTREMO ORIENTE (CHINA E ÍNDIA) ................... 70 2.3 O MUNDO MEDIEVAL .................................................................................................................. 77 2.3.1 Historiografia medieval ......................................................................................................... 79 2.3.2 Reemergência da historiografia por meio do mundo islâmico ........................................ 81 2.4 O RENASCIMENTO E A HISTÓRIA ........................................................................................... 82 3 O SÉCULO XVIII .................................................................................................................................. 85 4 HISTORIOGRAFIAS EUROPEIAS DO SÉCULO XIX ................................................................. 87 4.1 HISTORICISMO ............................................................................................................................... 87 4.2 MATERIALISMO ............................................................................................................................. 88 4.3 POSITIVISMO .................................................................................................................................. 91 4.4 CORRENTES SOCIAIS, CULTURAIS, ECONÔMICAS ............................................................ 92 4.5 NO BRASIL ....................................................................................................................................... 94 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................99 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................100 TÓPICO 3 – HISTORIOGRAFIAS A PARTIR DO SÉCULO XX .................................................101 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................101 2 A ESCOLA DOS ANNALES .............................................................................................................101 2.1 DESDOBRAMENTO DA ESCOLA DOS ANNALES 1: FERNAND BRAUDEL .................103 2.2 A TERCEIRA GERAÇÃO DOS ANNALES ...............................................................................105 3 HISTÓRIA SOCIAL INGLESA .......................................................................................................106 4 HISTÓRIA CULTURAL ....................................................................................................................107 4.1 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL ...............................................................................................109 4.2 OUTRAS HISTÓRIAS ...................................................................................................................110 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................118 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................120 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................121 TÓPICO 4 – HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA NO SÉCULO XX .............................................123 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................123 2 A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA DO INÍCIO DO SÉCULO XX .......................................123 3 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA RECENTE .............................................................................128 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................130 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................131 UNIDADE 3 – A PESQUISA HISTÓRICA E SUA RELAÇÃO COM O ENSINO DA HISTÓRIA ....................................................................................................................133 TÓPICO 1 – O ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DE PROJETOS DE PESQUISA .............135 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................135 2 O ENSINO DE HISTÓRIA NA CONTEMPORANEIDADE: DESAFIOS ..............................135 3 A IMPORTÂNCIA DOS PROJETOS DE PESQUISA .................................................................137 4 A PESQUISA HISTÓRICA E A DEFINIÇÃO DO OBJETO ......................................................138 5 AS FONTES HISTÓRICAS E A METODOLOGIA DA PESQUISA HISTÓRICA ...............141 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................144 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................146 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................147 TÓPICO 2 – A PESQUISA HISTÓRICA NA SALA DE AULA ....................................................149 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................149 2 A HISTÓRIA ESTÁ EM TODOS OS LUGARES .........................................................................149 3 A PESQUISA HISTÓRICA ESCOLAR ..........................................................................................151 XI 4 A FORMAÇÃO DO ALUNO PESQUISADOR.............................................................................154 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................155 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................158 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................159 TÓPICO 3 – CONSTRUINDO PROJETOS DE PESQUISA .........................................................161 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................161 2 A CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE PESQUISA HISTÓRICA PASSO A PASSO ......161 3 SUGESTÕES DE PROJETOS DE PESQUISA...............................................................................164 4 SUGESTÕES DE PROJETOS DE PESQUISA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL ...........165 4.1 RECORTES DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA DA NOSSA ESCOLA ...................................165 4.2 SUGESTÕES DE PROJETOS DE PESQUISA PARA O ENSINO MÉDIO .............................169 4.2.1 A história da cidadania no contexto da redemocratização do Brasil ............................169 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................175 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................177 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................178 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................179 XII 1 UNIDADE 1 A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Ao final desta unidade, você será capaz de: • entender o conhecimento histórico de forma crítica; • relacionar a noção de tempo com o conhecimento histórico; • refletir acerca da importância da História, bem como da função social do historiador. Esta unidade está dividida em três tópicos, no decorrer dos estudos, você encontrará atividades que o ajudarão a fixar os conteúdos adquiridos. TÓPICO 1 – DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO TÓPICO 2 – TEMPORALIDADES E HISTÓRIA TÓPICO 3 – FUNÇÕES SOCIAIS DE HISTORIADORES E HISTORIADORAS 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 1 INTRODUÇÃO No mundo ocidental, seguindo a denominação dada à Europa e às neo-Europas da América pelos europeus desde o século XV, a História, com esse nome, emergiu na Grécia do período clássico. Heródoto escreveu nove livros intitulados Histórias, cada um deles levando o título de musas helênicas, e repletos de feitos e comportamentos tanto gregos, quanto bárbaros de um período não tão distante do autor. Mas a História não pode ser resumida a livros escritos por alguns de seus pretensos e disputados pais. Ninguém pode negar a Heródoto seus méritos, mas há que se destacar que Tucídides também se apresenta como genitor do que hoje é esse campo institucionalizado, isso sem pensarmos em outros historiadores mais a leste, contemporâneos aos gregos do período clássico, tais como os chineses Confúcio (VI a.C.), Sima Qian (II a.C.) ou Ban Gu (I d.C.). Ela emerge não de livros, mas de uma necessidade mais existencial, que impele os humanos de diversas regiões do globo a querer buscar interpretações sobre sua orientação, seu sentido, no tempo (RÜSEN, 2007). A esse aspecto, Rüsen (2007) designou como a utilidade do conhecimento histórico:suprir a carência que os humanos têm de orientar-se no tempo. Em outras palavras, de identificar mudanças e continuidades e permitir perceber-se no papel crítico de agente dessas escolhas. A História, assim, engendra-se como prática cotidiana nos “causos”, nas anedotas, nas prosas ou em outros processos que apresentam a referencialidade como elemento aglutinador da necessidade de se organizar a narrativa, de hierarquizá-la (MUNSLOW, 2009); mas ela também e uma história como ciência, que impulsiona quem a conta ou replica a ter cuidado com a forma, com a cronologia, com alguns fatos ou ficções, com a ideia de origem e sentido (RÜSEN, 2007; MUNSLOW, 2009). Ela é história como ciência na medida em que ordenamos nossas narrativas, para encadear uma explicação lógica do passado individual ou grupal. Por último, especialmente ao longo do século XIX, passamos a pensar a Ciência Histórica, marcada, aí sim, por protocolos de pesquisa, por uma racionalização institucionalizada, por cadeiras, por especialidades, por teorias e métodos, uma história metódica (RÜSEN, 2007). UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 4 Em pouco mais de 200 anos, deixamos de racionalizar a História de um ponto de vista filosófico, para adentrar ao regime acadêmico desse campo de conhecimento, com o surgimento e expansão de faculdades, institutos de pesquisa, laboratórios, todos eles nas mais refinadas áreas da História, divididas por abordagens, por períodos, por localização geográfica. Já no final do século XIX, o filólogo Friedrich Nietzsche, escrevendo na Suíça, traçou pesadas críticas à História, qualificando-a como um fardo e um excesso para a Europa daquele momento. Para aquele autor, um dos males do final do século XIX europeu seria a sobra de História ou, em outros termos, a obsessão por esse conhecimento, os abusos e apropriações feitas sobre ele no período, quer fosse pela classe operária, pelos nobres ou pela burguesia. Certamente Nietzsche escrevia em meio ao surgimento de uma série de revistas acadêmicas destinadas a discutir histórias políticas, histórias naturais, histórias econômicas que corroboravam ou negavam identidades nacionais, locais, moldavam comportamentos, justificavam o imperialismo europeu em outras regiões do globo, assustavam dirigentes de fábricas. Certamente o autor vislumbrava, com todos os seus preconceitos e problemas, um fim de século marcado pela luta incessante pela apropriação de um passado para a Europa, especialmente greco-romano (ideia que ele também compartilhava), percebendo que a História começava a incomodar nas esferas públicas e privadas, especialmente quando se pensa em manutenções ou reordenações do status quo econômico, político, social ou cultural. A História do final do século XIX não era mais aquela baseada no ouvir contar ou no ver, tão característicos a Heródoto. E também não era mais apenas aquela baseada em narrativas de guerras amparadas em documentos dispostos cronologicamente, de Tucídides. Muito menos ela continuava sendo a narração da vida dos santos, marca de um mundo medieval. Por fim, ela também já estava apartada das preocupações filosóficas propostas por iluministas dos séculos XVII e XVIII. Agora ela era uma disciplina autônoma, com seus próprios recursos, modelos, autoridades, perspectivas, prerrogativas e abordagens. E foi nesse processo de separação ou independência perante outros campos de conhecimento que a História passou a nomear-se como campo autônomo do conhecimento, como ciência, como domínio. Foi nesse período, também, que podemos dizer que a figura do historiador (depois, mais tarde, a de historiadora), emergiu. A História passou, então, a dizer que tinha uma origem grega, com Heródoto e Tucídides; passou a dizer que começou a ser melhor racionalizada por um italiano do século XVII, chamado Giambattista Vico; que foi reforçada por iluministas como Immanuel Kant ou Voltaire. Consolidou-se no início do século XIX com Leopold von Ranke a partir de sua insistência em metodizar o campo por meio da premissa de que a História deveria contar o “que realmente aconteceu”; por fim, começou a derivar-se no final do século XIX em História Política, História TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 5 Econômica, História da Arte, História Social, História Cultural, grande parte delas entremeadas por uma racionalidade científica inerente àquele tempo, com influências materialistas (de Charles Darwin ou de Karl Marx) (FOSTER, 2006), realistas e empiricistas (de Leopold von Ranke ou Auguste Comte), ou ainda de outras vertentes que acabaram por influenciar a História, tais como as escolas geográficas da França ou da Alemanha, ou os estudos da Fronteira Oeste, nos EUA (MUNSLOW, 2009). Digamos, então, que a História espraiou-se no final do século XIX. No Brasil, uma das principais influências advinha, naquele momento, do positivismo francês, e do darwinismo social amplamente difundido na Europa, ao passo em que convivia com posturas objetivistas que tinham a finalidade de estabelecer preceitos e uma explicação coerente da origem e da situação contemporânea do país. Se entre os séculos XVIII e XIX há toda uma gama de inversões, contestações, emergências de novas posições em torno do conhecimento histórico; se, na virada do século XIX para o XX há diversas reelaborações conceituais que vão separando, cada vez mais, a História de outros campos, buscando estabelecer algumas fronteiras entre os campos, processo inerente ao realismo científico típico da naturalização das ciências na sociedade contemporânea, é impossível buscar determinar caminhos gerais ou modelos específicos para o que acontecerá no século XX, embora possamos identificar algumas perspectivas amplamente reconhecidas mundialmente na comunidade de historiadores e historiadoras. O processo de transformação do conhecimento histórico posto nesse período amplia-se ao longo do século XX e está em curso. Ele é impulsionado, simultaneamente, por mudanças nas concepções gerais de história, nos procedimentos de pesquisa e de ensino, na multiplicação de formas de escrita, na reelaboração de narrativas, nas mais variadas especializações da História, no debate sobre o que é e o que não é história, no conceito de documento, de periodização, nos jogos de escala, na ideia de arquivo e patrimônio, no uso de tecnologias. Isso implica uma atitude paradoxal por parte de quaisquer profissionais da História: parece que, quanto mais especializado, mais ele ou ela está dependente das áreas de pesquisa histórica vizinhas ao seu campo; quanto mais ligado ao ensino, mais dependente da pesquisa, e vice-versa. Quanto mais imbuído da crítica documental, mais escolhas individuais sobre documentos, sobre o que falar, estão em jogo. Parafraseando Alun Munslow, se os cientistas leem artigos uns dos outros “para testar fórmulas e dados”, historiadores leem os livros uns dos outros “para melhorar a sua escolha de objeto de pesquisa e de ensino”. (MUNLOW, 2009, p. 29). Então, o que seria, a partir de todas as derivações apresentadas, o conhecimento histórico? O que é a História? Peter Burke (1995), em A escrita da História, afirma que qualquer tentativa de delimitação categórica sobre a História implica problemas, e que poderíamos pensá-la mais a partir de uma descrição negativa, ou seja, poderíamos explicá-la a partir do que ela não pode ser. UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 6 Essa obra, embora amplamente utilizada no Brasil, não nos auxilia muito no que diz respeito a pensar a História em sentido amplo, uma vez que o autor apenas organiza outros autores e autoras que discutem algumas formas de se fazer história a partir de capítulos individualizados. Uma definição positiva do conceito poderia advir da recente profissionalização do Historiador, aprovada pela Câmara dos Deputados em 3 de março de 2011. Contudo, o texto legal não expõe, também, quais seriam os elementos fundamentais da História,e que perpassam por quaisquer de suas especialidades. Sobra apelar para a Teoria da História, com o objetivo de vislumbrar alguns elementos, características e processos “gerais” ou, pelo menos, circulantes entre historiadores e historiadoras, para dizer o que seria esse tipo de conhecimento. Ponderamos, contudo, que a todo o momento eles estão sendo debatidos, desconstruídos e reconstruídos, especialmente por meio de um recurso inerente ao profissional, que é sua autocrítica. Veja o que Jörn Rüsen (2007, p. 169) nos fala sobre o que ele chamou de “plenitude da pesquisa na historiografia”, enfatizando o papel da autocrítica e da necessidade de exercitarmos, a todo o momento, o deslocamento entre o particular e o geral na História, visando à busca de um conhecimento histórico o mais completo possível: A pesquisa histórica não é um fim em si mesmo, mas está determinada por critérios de constituição histórica (narrativa) de sentido, que orientam a pesquisa e que a conduzem, para além do trabalho com as fontes, à prática comunicativa do presente em que está em jogo a identidade histórica como fator da socialização humana. A pesquisa não está vinculada apenas externamente a essa comunicação formadora da identidade, não é apenas instrumentalizada por ela, mas insere-se nela por inteiro. Ela se transforma de pesquisa (e não poderia ser de outra forma) em historiografia (2007, p. 169). Rüsen (2007) não perde de vista a característica não apenas complementar, mas integradora, que une e transforma o papel da pesquisa em historiografia, e poderíamos pensar, como ele, na aglutinação, também, entre as preocupações que se desenham no mundo da sala de aula (didática), e a função, o papel, as marcas e características do conhecimento histórico como um todo. 2 QUANDO COMEÇA A HISTÓRIA? Convencionalmente, até a metade do século XX havia um consenso, na comunidade historiográfica, que a História surge a partir do momento em que os humanos inventaram a escrita. Daí a divisão entre História Natural (a sucessão de organismos na natureza) e História Humana (reiterada pelas esferas do cultural, do social, do econômico). TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 7 Por meio dessa premissa, gerações e gerações de escolares em diversas partes do globo, ontem e hoje, ainda usam termos consagrados como Pré-História e História, o que significava, no mundo ideal das divisões entre ciências, um domínio para arqueólogos e outro para historiadores, um para uma história da presença humana na Terra antes da escrita, outro para a leitura e interpretação de grupos sociais que contavam e, especialmente, registravam histórias. Para contrapor essa percepção de que a História surgiu apenas quando os humanos estabeleceram códigos verbais e escritos que tinham a intenção de transmitir algumas informações para o futuro (SOUZA, 2007, p. 3), há vários historiadores que sugerem a substituição dos termos historicamente construídos de Pré-História e História para História Ágrafa e História Escrita, haja vista a quantidade de grupos sociais que vivem, na atualidade, sem escrita ou comunicam sua história por meio de “outras escritas”, tais como tranças, nós, tatuagens, pinturas corporais, totens ou homens-memória. Isso significa que há abordagens históricas que consideram outros registros para a interpretação das ações, das escolhas e dos legados humanos. FIGURA 1 – PEDRAS DE CALLANISH, na Ilha Lewis, na Escócia, instaladas por volta de 2600 a.C, são exemplo de uma forma de registro histórico, em época anterior à escrita na Europa FONTE: Autores Em muitos trabalhos de História Ambiental (uma dessas tantas abordagens recentes), por exemplo, a história humana e seu legado é estudada a partir de outra escrita, tirada de empréstimo de áreas como a Biologia, da Ecologia ou a Economia, que vão desde a intervenção no mundo natural, até a “pegada ecológica” ou ecological footprint (BRANCO, 1999, p. 12). Desde que os humanos interagem com o mundo natural, fazendo parte e uso contínuo dele, a história se desenvolve a partir da ideia de transformação e mudança. É o caso da abordagem utilizada pelo historiador Warren Dean (2000), em A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 8 Souza (2007, p. 3) enfatiza que o homem, desde seu surgimento no planeta, é um ser histórico e o é, na medida em que promove modificações, “sofre influências do ambiente, estabelece-se como um ser bio-histórico capaz de produzir cultura ao mesmo tempo em que troca energia e matéria com o mundo exterior.” (BUELL, 2002). Resta considerar, então, que a autoimagem europeia especialmente da segunda metade do século XIX reforçou a presença da escrita convencional como o marco inicial da História no Ocidente, como um processo de consolidação do eurocentrismo, marcado por recortes políticos, econômicos e socioculturais inerentes à época do capitalismo industrial, depois imperialista, que se apropriou de noções como o darwinismo social para empreender a sujeição de povos não europeus, especialmente nas regiões coloniais. (SHOHAT; STAM, 2006). Coube à História científica do final do século XIX estabelecer cientificamente as divisões entre Pré-História, Proto-História e História, reafirmando essa visão de mundo, e elaborando um percurso de interpretação convencional do “ocidente” a partir da invenção da escrita no oriente médio (Suméria), que havia retransmitido tal herança, agora aperfeiçoada no mundo helênico, que seguiu fértil no mundo romano, instalando-se depois, no mundo medieval, chegando ao mundo contemporâneo, sempre por via “civilizadora”. (SHOHAT; STAM, 2006). No entanto, para toda e qualquer força de história tradicional, que ainda insiste, muitas vezes, em afirmar categoricamente o surgimento da escrita como o marco inicial da História, não é apenas a história ambiental que tem proposto interpretações diversas, mas a própria arqueologia tem trabalhado no sentido de redimensionar o limite entre o que seria e o que não seria escrita. O conhecimento histórico prescinde, contudo, de textos, de evidências, de escritas, para constituir-se, para transformar o feito em fato, para organizar fragmentos, indícios, discursos. Se há múltiplas dimensões sobre a escrita, outro elemento fundamental para os estudos históricos também é multifacetado, que é o documento. TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 9 SOBRE AS ORIGENS DA ESCRITA Origens mitológicas Entre várias sociedades antigas, a escrita teve um papel extremamente importante. Frequentemente, ela esteve tão presente que mitos e deidades foram criados para explicar sua origem. No Egito antigo, por exemplo, a invenção da escrita é atribuída ao deus Thoth (Dhwty, em egípcio), que não apenas era escriba, como também historiador dos deuses, mas também criou o calendário e inventou as artes e as ciências. Em alguns mitos egípcios, Thoth é também retratado como o criador dos discursos e tinha o poder de transformar palavras em coisas. Essa qualidade estava intimamente presa à crença egípcia de que a pessoa, para adquirir imortalidade, precisa que seu nome seja falado e inscrito em algum lugar para sempre. Na Mesopotâmia, entre os sumérios, o deus Enlil foi o criador da escrita. Depois, durante os períodos babilônico e assírio, o deus Nabu teve o crédito de inventor da escrita e era o escriba dos deuses. Similar a Thoth, os deuses escribas mesopotâmicos também tinham o poder da criação por meio da palavra divina. Entre os maias, Itzamna, a deidade suprema, foi a criadora, a xamã e a fonte do mundo (de fato, a raiz do seu nome itz pode ser traduzida como “substância mágica, usualmente secretada por algum objeto, que sustenta os deuses”). Itzamna foi também responsável pela criação da escrita e da medida do tempo. Estranhamente, não era escriba. Essa função recaía sobre um par de deuses macacos, como relata o livro épico maia Popol Vuh.Na China, a invenção da escrita não foi atribuída a um deus, mas a um ancestral mitológico chamado Ts’ang Chieh, que foi o ministro da corte do lendário Huang Ti (Imperador Amarelo). Não sendo divina, essa invenção ocorreu em tempos mitológicos, e serviu como uma ferramenta de comunicação entre o céu (lugar dos deuses e ancestrais) e a terra (local dos humanos), como foi demonstrado por inscrições oraculares em ossos usados para devoção durante os tempos históricos. Quer seja como meio de comunicação com os deuses ou como um poder sobrenatural e mágico, a escrita tinha claramente uma natureza dividida em sociedades antigas. Por essa razão, a escrita tornou-se não apenas um modo de estender a memória, mas também um instrumento para que elites pudessem justificar seu controle sobre populações comuns, não letradas. LEITURA COMPLEMENTAR UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 10 Monogenia? Evolução? Pulando para o século XIX, estamos numa época de florescência das Ciências Sociais. Muito zelosos e eurocêntricos, pesquisadores europeus acreditavam que a escrita foi inventada na Mesopotâmia, e todos os sistemas subsequentes foram derivações do original. Eles sustentavam que os sistemas chineses e indianos tinham alguma ligação com os protótipos do Oriente Médio, e também que os maias não tinham necessariamente um sistema de escrita, e sim um sistema calêndrico e de memória. Muito dessa concepção está vinculada ao uso e abuso da teoria da Evolução de Charles Darwin. Os cientistas começaram a separar os sistemas escritos pela função, o que ainda é um conceito validado cientificamente. Entretanto, eles passaram a acreditar que o sistema alfabético era o melhor. Sistemas logográficos, tais como o chinês, foram considerados primitivos, arcaicos, muito inferiores, enquanto que sistemas silábicos ficavam no meio caminho entre a logografia e o alfabeto. O argumento era o de que os alfabetos têm um pequeno número de símbolos (facilmente apreendidos na memória), e que permitem ao escritor especificar cada valor fonético na linguagem. O grande problema com a teoria monogenética dos sistemas de escrita e sua subsequente difusão é que não se deixa levar por visões culturais. Ela está localizada na Europa como pilar da civilização, e relegou o resto do mundo à natureza “primitiva” de todos os outros continentes do mundo, o que ajudou a justificar o imperialismo europeu. Essa teoria começou a ser quebrada quando evidências de origens indígenas do sistema chinês começaram a ter força com a descoberta de ossos oraculares e com o vácuo existente (em termos de escrita), entre o planalto do Irã e o Rio Amarelo. Outro ponto foi o deciframento dos hieróglifos maias que revelaram não só um sistema tão sofisticado como aqueles encontrados no Velho Mundo. Visões atuais Atualmente, há mais ou menos um consenso sobre alguns pontos ligados à origem da escrita. Primeiro, a escrita foi inventada independentemente no mínimo em três espaços: Mesopotâmia, China e América Central. Descobertas recentes podem ainda apresentar evidências de que a escrita foi inventada no Egito e no Indo, independentemente da Mesopotâmia. O conceito prevalecente na teoria monogenética é refutado na atualidade. Não há tipos superiores ou inferiores de escrita, bem como o tipo é frequentemente dependente da linguagem que eles apresentam. Por exemplo, os sistemas silábicos funcionam perfeitamente bem no Japão porque podem reproduzir todas as palavras japonesas, mas não funcionaria no Inglês, porque na língua inglesa há mais encontros consonantais. TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 11 A premissa de que o alfabeto é mais eficiente também não se sustenta. Sim, o número de letras é menor, mas quando você lê uma sentença em Inglês, você realmente pronuncia todas as letras para formar uma palavra? A resposta é não. Você lê a palavra inteira como um logograma. E, finalmente, o sistema escrito não é uma marca de civilização. Há muitas culturas urbanas no mundo que não empregam sistemas escritos, tais como as culturas andinas (Moche, Chimu, Inca etc.), mas isso não os privou de construírem estados impressionantes e estados que rivalizariam, em termos de complexidade, com aqueles do Velho Mundo. FONTE: Disponível em: ANCIENT SCRIPTS. <http://www.ancientscripts.com/ws_origins.html>. Acesso em: 10 abr. 2011. UNI Nas diversas regiões do mundo, as formas de escrita são diferentes. Visite o endereço <http://www.ancientscripts.com/ws_timeline.html>, para visualizar a linha do tempo dos sistemas de escrita, e observe quais são os sistemas mais antigos, os que se sustentaram por mais tempo, ou ainda, os mais recentes. Eles servem para relativizarmos, justamente, o papel da escrita convencionalmente construído pela história. 3 RELATOS François Dosse lembra que, “se a história é, antes de tudo, relato, ela é também [...] uma prática que se refere ao lugar da enunciação, a uma técnica de saber ligada à instituição histórica” (DOSSE, 2003, p. 137). Nesse sentido, profissionais da História não podem sobreviver sem o “relato”, que é inerente a sua própria função em pesquisa e ensino, mas também é o elemento fundamental para problematizar sua prática. Desde Heródoto, Sima Qian ou Tudícides, passando por Cícero, Marx ou Fernand Braudel, trabalhamos com o relato, oriundo de diversos tipos de documentos. Eles podem ser ouvidos, vistos, escritos, inscritos. Eles podem estar presentes numa anedota, num discurso, num documento escrito, numa pedra, na forma de arremesso de um objeto, na sensibilidade com relação a aromas, em tabelas de números. Histórias são construídas por meio da articulação entre documentos, intenções do historiador ou da historiadora, escolhas de narrativas, e seleção, catalogação, reunião, organização e exposição dos fragmentos de um passado de forma a comunicar uma pretensão de verdade, reapresentando os pequenos trechos de passado impressos em registros diversos num todo orgânico e lógico, a ser UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 12 denominado de passado propriamente dito. David Lowenthal (1998) afirmou, certa vez, que o “passado é um país estrangeiro”; essa metáfora é muito feliz na medida em que nos leva a uma premissa básica da pesquisa histórica sobre o passado, que é a limitação do profissional de História perante os documentos que ele pode dispor sobre esse mesmo passado, ou seja, geralmente são poucos fragmentos. A expressão de Lowenthal reforça, nada mais nada menos, a observação de Fernand Braudel, de que a História se faz com documentos, mas que os sentidos e ideias de documentos mudam, também, no tempo histórico (BRAUDEL, 1992). Em definitivo, é claro que a História se faz com documentos. Mas, quais documentos? No mundo antigo greco-romano, os documentos utilizados por Heródoto assemelhavam-se mais aos exercícios etnográficos da Antropologia emergente do século XIX, ou às fontes orais, trabalhadas desde o século XVIII em estudos folclóricos e históricos. No período de plena cientifização do trabalho do historiador (no século XIX), esses dados arrolados por Heródoto certamente não teriam espaço em correntes como o historicismo alemão, uma vez que houve um reforço significativo da ideia de que só teria valor histórico o documento oriundo de arquivos oficiais, e que, por conseguinte, também fosse oficial (DOSSE, 2003). Tucídides é quem começa a estabelecer a necessidade, para o pensamento histórico, de documentos escritos e relatos oficiais para dar organicidade à narrativa da História. Na A Guerra do Peloponeso, escrita pelo autor, notamos a emergência do uso de documentos escritos na constituição das histórias propostas. Ressaltamos, contudo, que esse processo é peculiar do mundo grego clássico, e não devemos generalizá-lo para período semelhante. Na Ásia, especialmente na China, o processo é diferente (vamos relatá-lo depois). Devemos utilizar, também, precaução ao tratar das histórias escritaspor gregos no mundo antigo. Tucídides é uma exceção à regra das histórias daquele período, em sua insistência por documentos escritos. Com os romanos é diferente, mas com os gregos, devemos levar em conta que a escrita, em certa medida, e por um bom tempo, era considerada “negócio de bárbaros”, no caso, especialmente os egípcios (DOSSE, 2003). Eram os egípcios, por exemplo, que tinham uma fixação por documentar as suas realizações, em pedras, estelas, estátuas e, especialmente, documentos. Dos gregos, herdamos mais monumentos e textos filosóficos do que históricos, e sua história é mais estudada a partir de cultura material do que textual. Outra sociedade antiga que produzirá, sim, muitos documentos, será a romana, desde a república até o império. Diferentemente dos gregos, a história adquirirá papel didático, moral e de registro oficial de realizações militares e políticas, por meio de historiadores oficiais, com acesso a arquivos também oficiais ou privados. Se Heródoto estava mais interessado em relatar o que ouviu ou viu, num período não maior do que uma ou duas gerações anteriores a ele, Políbio, um escravo grego na função de historiador oficial romano, construirá narrativa de outra espécie, mais detalhada, datada, vinculada a um registro oficial para servir de exemplo, guia ou propedêutica para o futuro. TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 13 A partir de Políbio, Roma inaugurará no ocidente algo que já havia, no mesmo período, na China, que é a figura que poderíamos chamar de “historiador oficial de estado” (que, no ocidente, será o historiador analista, aquele que, a cada ano, escreverá sobre as realizações do período). Tito Lívio é um dos exemplos desse tipo de historiador, ao escrever as vidas dos césares, com função educativa e moral, mas também com a função senatorial de registrar os procedimentos legais e a história político-administrativa romana. Documentos, para Roma, teriam, então, outro sentido e outras qualidades e propriedades. O ouvir contar perderia força, substituído pelos atos oficiais, não necessariamente escritos, porém chancelados por notáveis da sociedade. É claro que para a História escrita na época romana, porque hoje, ao escrevermos história do mundo romano, nos aproveitamos de uma infinidade de documentos deixados em todo esse mundo, que vão desde grafite em paredes de antigos prédios, bilhetes pessoais, contratos de casamento, até monumentos e instrumentos de trabalho. Nem substituição, nem continuidade, nem declínio, apenas outra forma de entender a História ocorre a partir da emergência do cristianismo e de sua expansão dentro desse mundo romano que se espalha desde a África, passado por parte do Oriente Médio e abraçando todo o Mediterrâneo, adentrando, também o continente europeu. Para os cristãos, a História dos homens e mulheres é tão somente a revelação proposta pelo único documento verdadeiramente importante: a Bíblia, que vai, também, se formulando em sua versão latina ao longo da Pax Romana e da insustentabilidade da sociedade militarista romana. O cristianismo irá propor, a partir da leitura da vida de Jesus Cristo, o fim da História, e a proposta de desprendimento humano com relação a virtudes e morais pagãs, o que vai desarticular a ideia e a importância social da História, desde o fim da Idade Antiga, alcançando quase que a totalidade da época medieval (CAMBI, 1999). Por isso é que é possível dizer, em certa medida, que os estudos históricos não terão relevância no mundo medieval, na medida em que documentos produzidos com intenções humanas nada seriam em comparação com o único documento importante para o entendimento da existência humana. Haverá, sim, documentos relevantes no mundo medieval, que serão usados em hagiografias, as escritas das vidas dos santos. Não significa, também, que o mundo medieval europeu não produziu documentos que hoje são utilizados por historiadores; o mundo medieval produziu uma quantidade extremamente volumosa de documentos dos mais variados gêneros, cobrindo os mais diferentes campos especulativos, desde aspectos comezinhos da vida cotidiana até tratados políticos, elementos que, no século XX, redundaram em histórias interessantíssimas das vidas pública e privada, e dos mundos urbano e não urbano medievais que seriam difíceis de serem estruturados levando-se apenas poucos fragmentos, como é o caso de algumas regiões do mundo antigo. No mundo medieval, contudo, devemos levar em consideração a reemergência do uso de fontes orais em combinação com documentos escritos e imagéticos, quando pensamos nos historiadores muçulmanos que trafegavam entre o Oriente Médio, o Norte e o Centro da África, e partes da Europa. Ibn Kaldum, Ibn Batuta, Ibn Sina são alguns dos exemplos de historiadores importantes do período. UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 14 São esses historiadores que irão influenciar, em certa medida, um retorno da História no mundo medieval europeu. Ibn Kaldum, por exemplo, reintroduzirá o modelo de relato escrito que leva em conta rigor de datação e cronologia, critérios claros para a escolha de documentos, método para a organização lógica do argumento e da narrativa históricos, além de preocupação com didatismo e comunicabilidade textuais. Grande parte da História do continente africano deve-se, também, à coleta de relatos por esses historiadores muçulmanos, caracterizados pela captação, análise e crítica de documentos oriundos de diferentes espaços públicos e privados, e dotados de características diferenciadas entre si. Até aqui estamos expondo, de maneira generalista, a multiplicidade do conceito de documento a partir de exemplos dispostos cronologicamente, do mundo antigo ocidental, para o mundo moderno. Percebe-se que o documento assume diferentes formas e usos segundo as abordagens escolhidas, e essas especificidades serão melhor discutidas quando adentrarmos a unidade que apresenta as principais abordagens históricas reconhecidas, na atualidade. Nos alvores do mundo moderno, a partir de eventos inerentes à Revolução Científica, ou ao descobrimento da América, e o refinar das navegações, o encontro da Europa com seus “outros”, marcadamente no que os europeus dos séculos XV e XVI passaram a chamar de Novo Mundo, a necessidade de se construir narrativas históricas desses processos passou a orientar um retorno da imperiosidade do divino medieval, para a imperiosidade do mundano. Descobertas, viagens, aventuras, ambientes, eram cada vez mais registrados por documentos verbais e visuais, textos seguidos de desenhos, muitas vezes identificados como crônicas, histórias, relações ou cartas. Muitas vezes, o conhecimento histórico utilizou-se do termo “fonte” para designar documento (e ainda o utiliza, dependendo da abordagem). Não há termo mais preso a sua época do que esse, quando pensamos na discussão do estatuto do documento na pesquisa e no ensino de História. A fonte emerge com esse designativo durante a apropriação e discussão da História pelos iluministas, entre os séculos XVII e XVIII. O termo fonte ajudou, inclusive, a produzir uma falsa impressão de que os documentos jamais seriam manipulados, apropriados ou interpretados de maneira diferente do que seus objetivos iniciais. Fonte é alegoria da pureza, da fluidez, da limpidez, da saciedade do historiador. Os iluministas salientaram e reafirmaram o papel dos documentos históricos como “fontes”, na medida em que seria por meio de documentos “puros”, “imaculados”, “claros”, que a História poderia emergir matando a sede de curiosidade e, especialmente, de verdade dos acontecimentos passados. TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 15 No início do século XIX, com arquivos públicos em processo de expansão e consolidação, as fontes históricas tiveram papel importante para o surgimento de um esforço crescente de uso de documentos para escrever histórias “do que realmente aconteceu”. Para escrever o que realmente aconteceu,alguns historiadores, como é o caso de Leopold Von Ranke, recorreram à legitimação da História por meio do uso de protocolos de pesquisa advindos da heurística documental e de uma racionalização objetiva, na qual a ideia de bom historiador estaria intimamente ligada com a sua capacidade de isentar-se das intenções discursivas dos documentos, na sua habilidade em apresentar-se por meio da imparcialidade e da neutralidade frente às fontes utilizadas. Uma boa história seria aquela capaz de ser contada pelo historiador, a partir das fontes em si. No final do século XIX, com o projeto de objetivação do conhecimento histórico de vento em poupa, Charles Langlois e Charles Seignobos lançam, em 1898, a obra Introdução aos estudos históricos. Um dos aspectos essenciais no livro de Langlois e de Seignobos é a teorização sobre o documento e seus usos pela História. Entre as proposições desses dois autores estava a reafirmação de algumas qualidades do que seria ou não um documento histórico, a utilidade deles para a História, a sua localização, e sua validação. (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946). Para Langlois e Seignobos (1946), documento histórico seria oriundo, especialmente, da instituição chamada arquivo público. Esse documento, portanto, já seria fruto de um processo de seleção, catalogação e inventário por parte de arquivólogos e, desde sempre, sua vitalidade e importância seria ditada, numa primeira instância pelas autoridades. Os documentos oficiais de arquivo seriam a máxima expressão da objetividade dos interesses de estado, e das realizações político-administrativo-burocráticas, reafirmando, também, sua importância na vida pública de nações ou de grupos sociais. A esses documentos, caberia proceder a inquéritos de ordem interna e externa, para averiguação da sua autenticidade e validade (elementos positivos que permanecem na prática da História). Na Heurística interna, o historiador deveria buscar analisar pormenorizadamente a constituição do documento por si, sua forma, sua estética, seu discurso, sua construção em sentido restrito. Na Heurística Externa, a sua validade levando-se em conta a relação existente com outros documentos, com as instituições originárias, com a época e local de formulação. O que o Positivismo de Langlois e Seignobos propunha então, não seria de todo um procedimento ruim; pelo contrário, buscaria reverter certo desleixo propugnado por formas de se fazer história que não se detinham, antes deles, a desenvolver uma série de procedimentos de verificação da “fonte”. Contudo, não podemos nos deixar, também, embriagar pela máxima objetividade da verificação documental proposta por essa história quase ligada às Ciências Naturais do final do século XIX; as verificações são importantes, não por si, mas para depreendermos dos documentos os interesses, quem fala, de onde fala, para quem fala e o que pretende, UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 16 em termos de exercício de uma relação de poder. Os documentos, dessa maneira, articulam uma vontade de veracidade, uma potencialidade de refutabilidade. (RÜSEN, 2007). A história, nesse sentido, é uma narrativa verídica, como Paul Veyne a descreveu, na obra Como se escreve a História. Se Ranke tentou objetivar ao máximo a narrativa histórica, atribuindo uma capacidade autoexplicativa aos documentos com os quais o historiador poderia construir a história, e se Seignobos e Langlois propugnaram protocolos científicos para a História, todos eles dentro de uma tradição de uso e de favorecimento da documentação de arquivos públicos e oficiais, no entanto não se pode dizer que apenas essa forma de construção do conhecimento histórico era reconhecida no período. Julles Michelet, por exemplo, fez amplo uso de documentos não oficiais para discutir e reposicionar o mundo medieval no centro de uma cultura europeia cosmopolita e burguesa. Karl Marx, em capítulos de O Capital, tais como A Jornada de Trabalho não poupou análise sobre documentos públicos e privados, laudos médicos, denúncias de trabalhadores, manifestos e outros textos não necessariamente enquadrados no rol de documentos que iriam para arquivos públicos oficiais. Entre o final do século XIX e as primeiras três décadas do século XX, a noção de História foi sacudida, construída e reconstruída a partir de preocupações teórico-metodológicas e temáticas. Frente ao objetivismo e à defesa exacerbada da história política, voltada à exaltação de indivíduos e laudatória, alguns pensadores como François Simiand, Marc Bloch, Lucien Febvre pejorativizavam a história que era baseada em três ídolos (expressão de Simiad): o indivíduo, a data e o fato. Foram eles que, lançando uma revista nova de história, intitulada Annales d’Histoire Économique et Social, acabaram por articular uma nova forma de se fazer história, a ser difundida pelo grupo designado, posteriormente, de Escola dos Annales. As críticas sobre o documento, dentro desse grupo, seriam feitas por Fernand Braudel, que propunha a expansão ou dilatação do conceito, afirmando que o historiador não deveria apenas se pautar por documentos oficiais para construir seus enredos, mas por documentos diversos que emergiam do todo social. Civilização material, economia e capitalismo, uma coleção de três livros produzia por Braudel representa, certamente, um bom exemplo do que é o historiador, a partir dos Annales. Nela, Braudel faz isso de receitas, de anotações, mapas, croquis. Nada muito distante do que já outro historiador posteriormente inserido no clube da História Cultural, Gilberto Freyre, havia feito em Casa-Grande e Senzala (1936). 3.1 TIPOS DE RELATOS OU DOCUMENTOS Quando profissionais da História utilizam relatos intermediados por documentos, passam a considerar qual é o tipo de documento que estão usando. Diferentes tipos de documentos existem por diferentes razões e conhecer a diferença de tipos de documentos pode nos auxiliar na melhor construção da crítica à história, bem como aos próprios documentos. TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 17 Isso se deve ao uso de uma ampla quantidade de documentos para responder a questões que colocamos com relação ao passado. Para uma grande parte de historiadores e historiadoras empiricistas, há uma divisão básica entre fontes primárias e fontes secundárias, ou documentos primários e documentos secundários, que podem servir como arquivos e registros daquilo que sobreviveu do passado, tais como cartas, fotografias, artigos, roupas... Já fontes ou documentos secundários são aqueles que tratam do passado, mas criados por pessoas escrevendo sobre esses eventos em algum momento posterior a sua ocorrência. Um exemplo disso é a apostila que ora vocês tem em mãos. Ela é uma fonte secundária sobre processos historiográficos, ao passo que também é uma das formas de documento que está registrando um momento de se fazer história, uma forma, uma perspectiva, nascida num lugar e tempo específicos, e pela mão de historiadores particulares. 3.1.1 Documentos escritos publicados e não publicados Pessoas vivendo no passado deixaram muitas pistas sobre suas vidas. Essas pistas envolvem documentos primários e secundários na forma de livros, de artigos pessoais, de documentos governamentais, cartas, oralidade, diários, mapas, fotos, relatórios, romances e contos, artefatos, moedas, selos e outros. Muitos desses documentos foram publicados, o que significa que poderiam ter audiência e distribuição, como é o caso de livros, jornais, revistas, documentos governamentais e não governamentais, literatura de toda espécie, panfletos, mapas, anúncios, pôsteres, leis e processos. Ao se trabalhar com documentos publicados, devemos lembrar que não é pelo simples fato de estarem publicados que os documentos podem ser confiáveis e acurados. Todo documento tem um ou vários criadores, e todo criador ou criadora tem um ponto de vista, visões de mundo e preconceitos. Também devemos levar em consideração que todae qualquer evidência documental que é intermediada por preconceitos ou opiniões contam-nos coisas importantes sobre o passado. UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 18 FIGURA 2 – EXEMPLO DE DOCUMENTO NÃO PUBLICADO É O DIÁRIO, QUE ACABOU POR SE TORNAR UM DOS PRINCIPAIS DOCUMENTOS DE UMA ORDEM SOCIAL QUE PASSOU A VALORIZAR A INTIMIDADE E A VIDA PRIVADA, COM A EMERGÊNCIA DA BURGUESIA FONTE: CORBIS, 2011. Há, também, muitos tipos de documentos não publicados. Nesse rol encontramos cartas pessoais, diários, documentos familiares contendo histórias da família, boletins escolares, agendas, entre outros. Arquivos empresariais, tais como correspondências, boletins financeiros, informação sobre consumidores, pautas de reunião de direções, arquivos de desenvolvimento de produtos também nos servem como pistas do passado. Documentos não publicados frequentemente advêm de organizações da comunidade, de igrejas, de clubes de serviço, partidos políticos, sindicados de trabalhadores. Governos em todos os seus níveis também criam uma série de documentos que não são publicados. Isso inclui relatórios de política, listas de taxas e votantes, além de documentos sigilosos. Ao contrário dos documentos publicados, os registros não publicados são difíceis de serem encontrados e utilizados, especialmente porque têm poucas cópias. Por exemplo, cartas pessoais podem ser encontradas facilmente na posse de uma pessoa que foi a destinatária, desde que tenha interesse em arquivar tais evidências. Às vezes, as cartas de pessoas famosas podem ser arquivadas e publicadas. No entanto, devemos também pensar que, muitas vezes, o autor ou autora da carta nunca teria a intenção de publicá-la no futuro, ou que alguém pudesse lê-la não sendo o destinatário. TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 19 3.1.2 Documentos visuais Os documentos visuais incluem fotografias, filmes, pinturas e outras construções culturais. Devido ao fato de que esse tipo de documento captura momentos no tempo, eles podem, principalmente, fornecer evidências das transformações que ocorrem ao longo da história. Documentos visuais incluem evidências sobre a cultura em momentos específicos, tais como seus costumes, preferências, estilos, ocasiões especiais, trabalho e lazer. FIGURA 3 – UM DOS ITENS MAIS COMUNS QUE ENCONTRAMOS COMO FONTES VISUAIS SÃO AS FOTOS DE FAMÍLIA, QUE OCUPAM LUGAR DE DESTAQUE NO MUNDO COTIDIANO FONTE: CORBIS, 2011. Esses documentos também têm um criador ou criadora, um ponto de vista (como o do pintor, do escultor, do diretor do filme). Mesmo fotografias foram criadas por fotógrafos usando filme e câmeras para criar os efeitos desejados. Pensem sobre o ponto de vista do criador quando você visualiza esse tipo de documento. Qual é sua proposta? Qual a razão daquela pose mostrada no documento? Quais são as perspectivas? Qual é o enquadramento? Quais são as distâncias utilizadas? Qual é o assunto? O que foi incluído sobre o assunto? O que foi excluído? Esses questionamentos são fundamentais, uma vez que a imagem, especialmente a fotografia, por exemplo, cumprem uma das funções essenciais que é a contiguidade com a realidade fotografada (NÖRTH; SANTAELLA, 1999). Essa característica essencial da fotografia muitas vezes sugere que esse tipo de documento retrate ou colete ou informe elementos fundamentais da realidade ou dos “fatos reais”. Contudo, devemos sempre mencionar que há um filtro fundamental ao pensarmos fotos, que é o dedo do fotógrafo, o tipo de máquina que ele usa, as técnicas de revelação ou digitalização, os softwares que são incorporados nesse processo, o momento do dia ou da noite, entre outros. UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 20 Em Testemunha ocular, o historiador Peter Burke (2004) trabalha fundamentalmente com a problematização do uso de imagens pela História, relembrando a todo o momento que, entre o produtor e o receptor da imagem há um caminho totalmente historicizável, que precisa ser criticado e analisado com acuidade pelos profissionais da História. Em certa medida, ele sugere que tenhamos filtros específicos para ler as imagens não apenas como ilustrações de textos, mas como textos em si, dotados, portanto, de todas as características inerentes a outros documentos, tais como o enunciado, o criador do enunciado, o sentido escolhido e dado a ele, a quem está direcionado etc. 3.1.3 Documentos orais A oralidade é, sem dúvida, muito instigante do ponto de vista do seu uso como documento para fins históricos. Tradições orais e histórias orais proporcionam outro meio de aprender sobre o passado de pessoas que vivenciaram muitos eventos ou mudanças. Esse tipo de documento começou a ganhar forma semelhante à atual nos anos 1930, quando uma série de medidas que envolviam história oral foi tomada para registrar a crise ocasionada pelas tempestades de terra no meio-oeste dos Estados Unidos, o fenômeno que ficou conhecido como Dust Bowl. Esse processo de migração forçada, pauperização da população de classe media rural que foi forçada a fugir da fome em direção à Califórnia acabou sendo retratada em um livro intitulado Vinhas da Ira, que também recebeu uma versão fílmica com o mesmo nome em 1941. A História Oral, como campo do conhecimento, reforçou-se ainda mais na segunda metade do século XX, especialmente quando pensamos nos estudos históricos de minorias, tais como indígenas, ou outros grupos étnicos, que são, muitas vezes, excluídos dos principais produtos culturais e historiográficos. Há inúmeras formas de se encarar a História Oral, bem como de se obter um depoimento que possa ser utilizado historicamente. Até a década de 1970, vigorava uma perspectiva de História Oral que preconizava a recorrência a ela somente quando o historiador não conseguia obter determinada informação em fontes escritas. Os documentos históricos orais seriam necessários, então, para “preencher lacunas” deixadas por outros tipos de registro. Contudo, essa forma de encarar a História Oral sofreu inúmeros ataques, o que repercutiu positivamente em tempos posteriores, e a trajetória particular desse campo é interessante, por mesclar teoria e método, bem como uso de novas tecnologias numa velocidade maior do que outros campos de estudo histórico. TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 21 FIGURA 4 – O PROCESSO MAIS COMUM PARA A REALIZAÇÃO DE ENTREVISTAS É O USO DE GRAVADOR E DE UMA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA FONTE: CORBIS, 2011. No Brasil, acostumamo-nos, durante muito tempo, em utilizar um saber manualístico e técnico de História oral, especialmente a partir de obras como Manual de História Oral, de Sebe Bom Meihy (1998). A partir desse manual, muitos historiadores e historiadoras ainda utilizam uma forma de fazer História Oral que compreende entrevista semiestruturada, a sua gravação, especialmente em áudio, a posterior transcrição da entrevista, e, então, um processo chamado de transcriação, ou seja, uma reelaboração do documento para fins científicos. Mas há outros métodos, especialmente de coleta de informações, que não precisam, necessariamente, estar gravadas em áudio, mas registradas em vídeo ou caderno de campo. Nesse sentido, outros elementos entram em cena quando pensamos a História Oral, como é o caso dos critérios éticos na pesquisa histórica, a saber: até que ponto se pode utilizar um depoimento, sem manter anonimato ou garantias a sigilo e confidencialidade, entre outros. 3.1.4 Documentos multimidiáticos Raphael Samuel (1996) enfatizou que a sua geração de historiadores representava uma geração não educada e não preparada para discutir imagens, e apenas textos. Não apenas esse autor pode servir de exemplo da autocrítica de historiadores. Desde o final do século XIX, um importante documento entrou para a arena da História, não gerando preocupações teórico-metodológicas num primeiro momento, mas estabelecendo-se como uma realidade inexorável e indiscutível no que diz respeitoaos usos e à atração por parte de um público também moderno. UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 22 Foi desde o final do século XIX que passamos a conviver com outras formas midiáticas de documentos, que rapidamente passaram a envolver não apenas uma ou duas dimensões textuais (como as palavras e as fotografias), mas três ou mais (texto, imagem e som). Levy (2000) foi um dos primeiros pesquisadores a discutir o uso de documentos multimídia para a História. Para ele, os documentos desse trio carregavam em si as identificações com os meios (aparelhos) usados para apresentar a mensagem, os modos de apresentação, e os sentidos implicados à recepção da imagem, que deveriam envolver dois ou mais sentidos para a decodificação. Nesse sentido, esse tipo de documento tira partido de mais de um formato para sua apresentação, e, quando pensamos em discuti-los de um ponto de vista histórico devemos pensar que foram os filmes os primeiros exemplos desse tipo a serem trabalhados histórica e historiograficamente, ainda nos anos 1960. Mas esses documentos não são apenas filmes, são vídeos que combinam formatos como os de hoje, os informáticos, e, nesse sentido, profissionais de história não podem desconsiderar, para fins de pesquisa e de ensino, relatos como aqueles que são postados em redes como o YOUTUBE, por exemplo. Muitos desses documentos apresentam hoje não apenas a característica de serem decodificados a partir do uso de dois ou mais sentidos, mas de serem direcionados, repensados por meio de um conceito que emergiu no final dos anos 1980, que é a interatividade. Um documento interativo é aquele que dá ao seu usuário o poder de controlar o tema, em certos sentidos, e isso também precisa ser pensado, por historiadores e historiadoras, do ponto de vista da pesquisa histórica. Documentos multimídias têm alguns formatos. Um deles, denominado de unimídia modal apresenta-se como um documento que tem dois ou mais tipos de mídia envolvidos numa mesma produção. São exemplos disso alguns documentos que envolvem áudio, vídeo, animação, histórias em quadrinhos, gráficos e tabelas. Quanto à organização desse tipo de documento, devemos pensar características topológicas, que condicionam o leitor ou usuário, e que podem construir um relato que pode variar entre sequencial, linear, hierárquico ou disposto em rede. Documentos lineares apresentam uma organização da informação que tem uma sequência no modelo “anterior-próximo”. Há documentos dispostos na forma de grelha, ou documentos ortogonais, que apresentam dois níveis, e geralmente esses documentos permitem comparações, que são importantes para o trabalho da História. Outros documentos multimídia são construídos na forma de árvores, ou hierárquicos, nos quais os nós podem ter antecedentes e descendentes, mas sem apresentar, muitas vezes, ramificações. Já documentos dispostos em rede apresentam nós interconectados. TÓPICO 1 | DISCUTINDO O CONHECIMENTO HISTÓRICO 23 Cabe a historiadores e historiadoras tecer perguntas sobre os componentes de um multimídia, ou seja, sobre o armazenamento, sobre o tipo de interatividade possível, entre outros problemas característicos de qualquer outro tipo de documento. 4 A HISTÓRIA E OS HISTORIADORES E HISTORIADORAS Jörn Rüsen (2007, p. 11) afirma que a expressão “histórica” não se limita à ciência da história, mas “designa igualmente as operações elementares e gerais da consciência histórica humana”. A escrita da história, ou melhor, uma escrita histórica, “não necessariamente partiria do historiador, uma vez que está incluída no rol de preocupações de qualquer ser humano no que diz respeito à sua orientação no tempo”. Contudo, a razão histórica está vinculada ao processo de escrita da história, essa, sim, com o nome de historiografia, ofício do historiador. (RÜSEN, 2007, p. 12). Nesse sentido, cada historiador ou historiadora tem características próprias, geralmente vinculadas a sua concepção específica de História, a sua forma de compreensão da historiografia ou a uma escola ou formação acadêmica que recebeu (SOUZA, 2007). As conclusões dos historiadores nunca são definitivas, podendo variar segundo a localização, a cultura e a época. Ela pode variar, também, segundo os documentos que são utilizados na construção da narrativa, e esse elemento é significativo quando pensamos em novas abordagens sobre os antigos temas. Em certa medida, é isso que explica o porquê de uma ideia do século XIX ser, num dado momento, desconstruída por uma nova teoria no século XX. Já dissemos que, enquanto um cientista lê artigos de outros cientistas para provar suas premissas e testar elementos publicados por outrem, os historiadores costumam escrever a partir da leitura de outros historiadores. Esse fundamento baliza a construção do conhecimento histórico e sua mutabilidade no tempo. A constatação, ou melhor, a inerente admissão, por parte da pesquisa, da mudança de perspectiva já havia sido observada pelo historiador francês Georges Duby (2001, p. 7-8), ao afirmar que: o campo de ação do historiador se desloca ao longo dos tempos, [...] a função da história na sociedade se transforma e temos absolutamente de ter em consideração, no trabalho dos historiadores que nos precederam, o meio em que viveram e a sua própria personalidade, para aproveitarmos ao máximo suas contribuições. Essas palavras marcam a visão atual que os historiadores têm da construção da História, pois as análises de um mesmo objeto de estudo podem diferenciar de época para época, de espaço para espaço. Se a “história é filha do tempo”, expressão típica do início do século XX, sua produção atende às demandas ligadas ao presente do qual ela emerge. É o que afirma Jean Glenisson (1991, p. 142), quando fala dos fatos históricos no tempo: UNIDADE 1 | A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 24 fatos históricos são os fenômenos, as coisas que acontecem aos homens: os acontecimentos. Ora, estes são dificilmente previsíveis, jamais idênticos em seus detalhes e de importância infinitamente variada: acontece-lhe afetar todos os homens, mas podem, também, reduzir-se a um simples gesto, a uma palavra. São estritamente localizados no tempo e no espaço e, se muitas vezes o homem é seu autor consciente, com muito maior frequência é ele sua vítima ou seu beneficiário involuntário. Os fatos se constituem na matéria-prima dos historiadores, na sua tarefa de reconstruir o passado, pois cada problemática investigativa deve ter como base a experiência em si. As informações utilizadas são peculiares, escolhidas e postas em locais e tempos peculiares. Muitas vezes elas têm caráter subjetivo e diverso, podendo beneficiar ou dificultar o trabalho de investigação (tarefa, também, baseada na oportunidade). É impossível reproduzir a experiência histórica em laboratório, e podemos apenas esperar da experiência, que ela se manifeste e venha a ser interpretada aos olhos da historiografia. Nesse sentido é que Rüsen (2007, p. 12) enfatiza que: o pensamento histórico só se torna especificamente científico quando segue os princípios da metodização, quando submete a regras todas as operações da consciência histórica, cujas pretensões de validade se baseiam nos argumentos das narrativas, nas quais tais fundamentos são ampliados sistematicamente. O que Rüsen (2007) pontua para a operação de reconstrução do passado serve, também, para pensarmos a história como um todo. Dessa forma, os historiadores contemporâneos tem o dever de valorizar as diversas fontes disponíveis para a condução de sua investigação. Pois a experiência histórica não pode e não deve ser vista e analisada apenas como um fenômeno isolado. A História é viva e ela se relaciona com as mais diversas formas de expressões temporais e espaciais. Nesse sentido, o contato e a análise do fato histórico exigem grande discernimento e postura ética. Devemos nos lembrar a todo o momento que as conclusões de historiadores e historiadoras
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