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A Sociedade Portuguesa e a Expansão Ultramarina - Gorender J..docx

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A Sociedade Portuguesa e a Expansão Ultramarina
J. Gorender
1 – Colonizadores e colonizações.
	O processo de expansão ultramarina iniciado na península ibérica e posteriormente estendido àquelas que se configurariam as potências européias, alterou de modo realmente significativo a configuração histórico-mundial. Em primeiro lugar, pela primeira vez era possível falar em um mercado mundial, entrelaçado por relações diferenciadas, mas pautadas pelo sistema colonial. A universalização da história da humanidade é, portanto, o seu reflexo mais marcante. 
	Apesar das diferenças, os resultados deste processo foram bastante análogos para as nações que aplicaram o sistema colonial nas colônias tropicais: escravismo colonial. Todavia, Gorender ressalta que “[...] o estudo sucinto empreendido neste capítulo não objetiva deduzir da formação social portuguesa, como premissa maior, o modo de produção escravista colonial [...]”.
	
2 – Um esclarecimento conceitual.
	Os termos feudalismo, mercantilismo e capitalismo foram criados a partir de críticos das proposições e características aventadas por estes diferentes modos de produção. Mercantilismo e capitalismo, no entanto, conservam em sua raiz semântica a característica essencial do modo de produção que os caracterizou, mas o mesmo não ocorre com feudalismo. Na realidade, o termo deriva da palavra “feudo”, que é apenas o resultado jurídico-político de uma forma de organização econômica, ou seja, utilizando-se termos marxistas, pode-se dizer que a palavra “feudalismo” expressa apenas a superestrutura de um tipo mais geral de modo de produção (marxistas precisam também da infra-estrutura). 
	Sob esta confusão semântica, surgiram diversos problemas interpretativos, sendo o principal aquele que passou a relacionar o feudalismo apenas à existência da estrutura do feudo e das relações aparentes de vassalagem e suserania a ele relacionados. Mas o feudalismo é de fato mais que isto: é um conjunto de relações econômico-sociais que se fundamenta em um tipo específico de exploração, a saber, a servidão. 
	A própria servidão, quando se pensa em feudalismo, não deve ser compreendida em um sentido estrito, ou seja, não deve ser encarada apenas como a servidão do camponês ligado à uma gleba de terra, mas pode, e deve, ser estendida a outros tipos de relação, como o do camponês que, apesar de não ligado a uma gleba específica, ainda conserva todos os muitos tipos de obrigação que caracterizam a servidão: corvéia, trabalho nas terras senhoriais etc. 
	O feudalismo caracteriza-se, portanto, pelas seguintes características: a) existência de uma classe senhorial dominante que detém a posse da terra e faz uso de força produtiva servil; b) extração de renda da terra por parte do senhor, que, detendo a força, é capaz de obter do servo o sobreproduto gerado na terra (a renda gerada a partir do trabalho do servo na terra); c) existência de terras comunais como complementares à produção nas terras senhoriais. 
3- O feudalismo em Portugal.
	Tendo-se a conceituação acima, seria absolutamente incorreto discorrer sobre a ausência de um feudalismo português, ou mesmo sobre um modo defeituoso de feudalismo em Portugal. Dadas as características peculiares desta nação, o mais correto é mesmo falar de uma “forma portuguesa de feudalismo”: trata-se de um feudalismo sem a superestrutura político-jurídico, com formas variadas de servidão, relação de força entre as classes, e com existência de lutas de classes.
	Além de ter sido Portugal a primeira nação européia a completar o processo de unificação nacional e consolidação do absolutismo, também observa-se ali a primeira extinção da servidão ligada a gleba, mas não uma extinção da servidão. Este ponto merece ser melhor explicado: o servo português não estava ligado a uma determinada propriedade senhorial específica, como ocorria hereditariamente nos países da Europa Ocidental com aquele feudalismo mais geral, mas ainda assim continuava a ser servo porque na terra onde trabalhava ainda devia toda a série de obrigações cabíveis a esta classe. Desse modo, ainda que não estivesse ligado estritamente à terra, o servo tinha o sobreproduto de seu trabalho transformado em diversos tipos de renda, a qual acaba expropriada ou pela classe senhorial dominante ou pela Igreja (em certos casos, calcula-se que 70% do sobreproduto do servo acabava nas mãos das classes superiores, enquanto que o número médio de rendimentos apropriados a partir de seu trabalho ficava entre 15% e 25%). “Em suma, o camponês vilão, independente na gestão de sua economia e pessoalmente livre, continuava submetido pela coação extra-econômica, sancionada na lei e nos costumes, à obrigação de entregar o sobreproduto do seu trabalho ao senhor eminente da terra”.
	As classes dominantes do feudalismo português caracterizam-se, como nas demais localidades européias, pela presença da Coroa, da nobreza e do clero, embora as relações que estabelecessem não fossem as comumente observadas: dada a centralização monárquica, não é exagerado falar em um poder muito mais limitado da nobreza portuguesa frente à Coroa, a despeito do que ocorria em outras regiões. Estas três classes dominantes sustentavam-se sobremaneira pela apropriação e redistribuição entre si das rendas geradas pelos servos; havia três formas de renda: a renda-produto derivava da produção obrigatoriamente fornecida ao senhor, a renda-trabalho decorria do trabalho obrigatório do servo no senhorio (geralmente uma vez por semana), e a renda-dinheiro decorria dos pagamentos de obrigações monetárias. 
	Duas outras peculiaridades do feudalismo português merecem destaque. O primeiro é o surgimento de uma burguesia rural, sobre a qual incidiam menores obrigações determinadas pela nobreza. A segunda é a existência relativamente consolidada de uma burguesa mercantil, sobretudo nas cidades portuárias. 
4 – Significação econômico-social da expansão ultramarina.
	A posição geográfica pode ser observada como um dos condicionantes que facilitou a expansão ultramarina portuguesa. No entanto, sendo a característica geográfica um fator imutável, cabe explicar as razões sociais que permitiram que o posicionamento físico de Portugal fosse um motivo adicional para a expansão. 
	Dispor de fronteiras bem definidas, não possuir querelas internas relevantes e ter um poder em vias rápidas de centralização foram todos fatores que permitiram à Portugal sair na frente, pois a empresa expansionista requeria um poder central canalizador de interesses e controlador, ao menos parcialmente, dos riscos. A revolução nacional de 1483-1485, ainda que não soerguesse a burguesia ao poder, fez com que a antiga nobreza fosse depurada e substituída por uma nova, esta advinda principalmente da burguesia comercial. 
	Apesar dos objetivos econômicos distintos, é também possível afirmar que a expansão para o ultramar ia de encontro tanto aos interesses da burguesia quanto da nobreza. Esses fatores combinados às inovações tecnológicas de vanguarda na navegação (muitas das quais decorrentes da experiência portuguesa no trato do mar) impulsionaram largamente a empresa ultramarina. 
	Os resultados, porém, levariam a uma espécie de paradoxo. O monopólio comercial de toda a extensão a que chegou o império marítimo português gerou lucros enormes à burguesia, mas, ao mesmo tempo, era algo controlado de modo bastante específico pela Coroa. Desse modo, buscando evitar o soerguimento da burguesia a partir de sua ascensão econômica, a nobreza fortaleceu os laços feudais predominantes. Ressalte-se, por exemplo, a utilização da Inquisição e a ligação que se fazia entre a burguesia comercial e os cristãos-novos perseguidos. 
	Assim, é fato que o sistema colonial contribuiu largamente para acumulação primitiva de capital que levaria ao estabelecimento do modo de produção capitalista, mas esta “evolução, por assim dizer, ocorreria apenas nos países em que as estruturas internas já estivessem sido maturadas para tanto, ou seja, a idéia de Novais, de que o sistema colonial era uma alavanca que demonstravao sentido profundo da colonização (ou seja, fomentar a acumulação primitiva), não é totalmente correta: o sistema colonial foi tal alavanca apenas onde internamente desenvolveram-se as ferramentas para que atuasse como tal. 
	O que ocorreu nos países ibéricos foi, no entanto, o inverso: “[...] a exploração colonialista não favoreceu, mas obstaculizou o desenvolvimento do modo de produção capitalista”.
	O mercantilismo praticado em Portugal não era voltado a um protecionismo que garantisse um fortalecimento da indústria (à época, manufatura) interna, mesmo porque isto não atendia aos interesses das duas principais classes e porque o setor manufatureiro era de fato pouco desenvolvido ali. Assim, nas palavras de A.J. Saraiva: “desta forma, se o Estado português no século XVI oferece exteriormente uma aparência ‘moderna’, na medida em que é uma grande empresa econômica, por outro lado, ele assegura, no interior do País, a persistência de uma sociedade arcaica, na medida em que garante o domínio de uma classe tradicionalmente dominante, cujo espírito está nos antípodas do burguês”.
5 – Primórdios da conexão de Portugal com a escravidão moderna. 
	Apesar da manutenção dos caracteres feudais, observou-se em Portugal um crescente afluxo de negros escravos decorrentes da expansão ultramarina para o sul. Aos poucos, foi-se especializando no tráfico dos negros, seja para a Espanha e Itália, seja para as grandes lavouras que começavam a surgir nas ilhas atlânticas. Além disso, muitos escravos seriam utilizados em Portugal; isto se devia a dois fatores: o primeiro, de caráter estrutural, observa no escravo um complemento à servidão: persistindo os laços servis, não se podia criar ali um mercado em que a força de trabalho fosse vendida, o que torna a escravidão plenamente possível como forma de exploração complementar; o segundo refere-se à conjuntura: a expansão ultramarina requereu grande quantidade de capital humano, retirado de uma nação que contava com pouco menos de um milhão e meio de habitantes; desse modo, os déficits demográficos dos que partiam nas empresas expansionistas tinham que ser compensados de alguma forma, e o trabalho escravo coadunava-se perfeitamente.
	O mais importante, no entanto, é observar que Portugal adquiria desta forma a experiência de unir o trabalho escravo à grande lavoura de plantagem, modelo a ser implantado na colonização brasileira.
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