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64 POVOS INDÍGENAS E A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA Antes da chegada dos europeus às terras americanas, e à terra que daria origem ao país chamado Brasil, já habitavam este território povos diversos em termos linguísticos, culturais, políticos e econômicos – nesse sentido, são considerados povos nativos e/ou originários. Contudo, não se sabe exatamente de onde vieram, algumas teorias não consensuais apontam para a Ásia de onde teriam vindo pelo Estreito de Bering (faixa de terra congelada que ligaria a Sibéria ao Alasca) e outras para a Polinésia ou Oceania a partir de possíveis navegações. De acordo com o Instituto Socioambiental, estima-se que hoje o Brasil possua cerca de 256 povos falantes de mais de 150 línguas diferentes. Contudo, apesar de toda sua história e importante presença na formação do Brasil, a grande maioria dos brasileiros ainda ignora a imensa diversidade desses povos nativos que vivem no país. Mesmo em termos historiográficos, a densidade histórica do Brasil indígena e sua profunda influência na formação do Brasil foi por muito tempo ignorada. Na disciplina, portanto, vamos compreender mais sobre a história e cultura desses diversos povos que povoaram e povoam o território brasileiro, além de conhecer um pouco das suas lutas e demandas por reconhecimento. • O Instituto Socioambiental (ISA) é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, fundada em 1994 com o objetivo de defender os bens e direitos humanos dos povos nativos. O portal do instituto é o: https://www.socioambiental.org/pt-br. Acesso em: 22 ago. 2020; • O programa Povos Indígenas no Brasil, por sua vez, é parte do portal do Instituto com oferece informações sobre os povos e a temática indígena. Para saber mais acesse: https://pib.socioambiental.org/pt/Página_principal. Acesso em: 22 ago. 2020. UNIDADE 05 65 5.1 A “QUARTA PARTE” DO MUNDO Quando os europeus chegaram no território que batizaram de América, por um equívoco histórico, toda a diversidade populacional que aqui já existia foi genericamente chamada de Índios e/ou Ameríndios. Mas por que o termo é considerado um equívoco histórico? Ao não reconhecerem as terras como um novo continente, julgaram ter chegada na região que almejavam alcançar para fins comerciais: a Índia. Expliquemos melhor isso. Para começarmos a compreender o contexto da época, é muito importante nos deslocarmos do nosso próprio. Como as pessoas daquela época pensavam? Como elas compreendiam o mundo? Pois bem, o mundo para os europeus medievais, de uma maneira geral, estava baseado nos ensinamentos bíblicos em função da importante e forte presença da Igreja Católica no cotidiano e na formação do conhecimento. Tendo a Bíblia como uma verdade absoluta, o mundo de então seguia sua narração. Assim, ele era dividido em três partes, que de acordo com a Bíblia, havia sido povoado, após o grande dilúvio, pelos três filhos de Noé: Sem, Jafé e Cam. Nesse sentido, de acordo com a interpretação bíblica da época, Sem teria povoado a Ásia, Jafé a Europa e Cam a África. Veja um esquema de mapa estilo T.O. comum na Idade Média para representar o mundo de então. Figura 4: Mapa Esquemático estilo T.O Fonte: Isidoro de Sevilha (1492) Não havia, nesse sentido, espaço para uma quarta parte do mundo. Por conta disso, em um primeiro momento, quando os navegadores europeus desembarcaram nessas longínquas terras acreditaram que haviam chegado nas Índias, região que 66 buscavam alcançar para comercializar. Conforme salienta Edmundo O’Gorman em seu livro A Invenção da América, Cristovão Colombo acreditou que havia chegada ao extremo oriente do mundo e todas observações que fazia eram provas empíricas de sua hipótese, respaldada, vale destacar, pela dimensão que a Ilha da Terra (como era chamado a parcela de terra habitada) possuía no imaginário de então. Somente com Américo Vespúcio que aquelas terras passaram a ser consideradas uma entidade geográfica desconhecida, um “Novo Mundo”. Apesar da posterior adequação da novidade, o termo genérico “índio” continuou a ser utilizado para denominar toda a diversidade populacional desse grande território que viria a ser chamado de América e é hoje adotado até por parte dos próprios nativos de maneira ressignificada. Contudo, não podemos desconsiderar a grande diversidade que eles possuem. Ou seja, apesar de usarmos um termo genérico para denominá-los não podemos unificar sua cultura, história, organização e língua. Apesar de ser muito comum falar-se em descobrimento da América, o historiador mexicano Edmundo O’Gorman, no livro citado de 1955, analisa que a América foi inventada e não descoberta. A América, nesse sentido, não existia antes da chegada do europeu, não possuía esse nome e nem os sentidos que ela representa. Ou seja, América não é algo natural, foi resultado da ação de agentes históricos. Para O’Gorman, ao se considerar que a América foi descoberta parte-se da noção de que a mesma já existia antes da chegada de Cristóvão Colombo e como já analisado anteriormente, nem mesmo Colombo considerou de imediato ter chegado na dita América. Considerar aquele território como uma nova parte do mundo, um novo continente chamado América foi um processo histórico. Disponível em: https://bit.ly/3eU2fB4. Acesso em: 22 ago. 2020. 67 5.2 A CHEGADA DOS EUROPEUS Ao chegarem ao território que viria ser o Brasil, os europeus logo perceberam que grande parte do litoral se encontrava ocupada por sociedades nativas, que compartilhavam, conforme ressalta Monteiro (1994), certas características básicas comuns à cultura tupi-guarani. No entanto, ainda assim, mantinham suas diversidades. Para enfrentar este problema, os europeus do século XVI resumiram o vasto panorama cultural em duas categorias genéricas: Tupi e Tapuia. Os Tupis seriam as sociedades litorâneas em contato direto com os europeus desde o Maranhão até Santa Catarina, incluindo os Guaranis. Já os Tapuias eram os grupos menos conhecidos dos europeus. Além dessas denominações, também havia outras comumente encontradas nas primeiras descrições acerca da terra e seus habitantes como: “gentios” (pagãos), “brasis”, “negros da terra” e “índios”. Com a intensificação da exploração, os portugueses buscaram impor diversas formas de organização do trabalho. Os nativos foram primeiramente utilizados para a extração do pau-brasil (madeira corante valorizada na Europa). Os nativos cortavam e transportavam a mercadoria até a feitoria, onde era trocada por artigos diversos a partir dos escambos. A mão de obra indígena também foi utilizada na extração das drogas do sertão (especiarias comercializadas com preços muitos elevados). Figura 5: Representação dos índios extraindo pau Brasil Fonte: Thévet (1575) Com a introdução da cultura da cana-de-açúcar, os colonos passaram a utilizar a mão de obra indígena escrava. Houve, na sequência, um declínio do 68 escambo em função das exigências que passaram a inviabilizar o mercado. A escravidão indígena foi utilizada em larga escala tanto para a produção comercial quanto de subsistência. E como se adquiria essa mão-de-obra? A partir do resgate, aprisionados em decorrência de guerras intertribais, e também a partir das chamadas “guerras justas”, que buscavam aprisionar os indígenas considerados “inimigos”. Nesse processo, combatia-se, inclusive, os missionários jesuítas (padres pertencentes a ordem religiosa Companhia Jesus ligada à Igreja Católica) que eram contrários a escravização dos índios aldeados (ver o próximo item). Muitos indígenas foram forçadamente deslocados de outras regiões para o litoral, onde concentravam as fazendas produtoras do açúcar. Estas diversasformas de exploração acabaram gerando uma desorganização social, que somada às mortes em decorrência das epidemias, fomes e guerras (entre tribos e com os europeus) causaram um extermínio de boa parte da população indígena. Observe o gráfico da Funai (Fundação Nacional do Índio) acerca da densidade populacional indígena no Brasil desde 1500. Lembrem-se que os dados dos séculos iniciais são baseados em descrições e podem variar, pois não há muita precisão no levantamento. Figura 6: Dados demográficos da população indígena no Brasil (Dados da FUNAI) 69 Ao observar a tabela e o gráfico (Figura 6) fica evidente a perda populacional dos povos indígenas entre 1500 e 1970. Vale ressaltar que somente em 1991 que o IBGE os incluiu no censo demográfico brasileiro e por isso tivemos um aumento de 150% dessa população na década de 1990. Contudo, devemos salientar que o processo acima descrito não pode ser resumido apenas pelo extermínio indígena. Muitas foram as resistências dessas sociedades frente aos avanços europeus. Diante da exploração de seu trabalho, muitos desertavam e fugiam para a floresta e passavam a adotar emboscadas para atacar governamentais e bandeiras. Outros chegaram a organizar e participar de importantes revoltas do século XIX como a Cabanagem e a Cabanada (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). • Para conhecer um pouco da história e realidade dos povos indígenas, com especial atenção para o papel da mulher, pela ótica nativa assista o episódio do documentário Vozes da Floresta realizado pelo Le Monde Diplomatique Brasil com Edna Shanenawa: https://bit.ly/3aVESoB. Acesso em: 22 ago. 2020; • Vídeo da antropóloga brasileira Lilian Schwarcz sobre o extermínio indígena nos primeiros contatos: https://bit.ly/2CXcUMK. Acesso em: 22 ago. 2020; • Vídeo da historiadora Maria Regina Celestino na Bienal do Livro de 2019 sobre seu livro Os Índios na História do Brasil. https://bit.ly/2YywtTe. Acesso em: 22 ago. 2020; • Livro Os Índios e o Brasil de Mércio Pereira Gomes disponível na Biblioteca virtual em: https://bit.ly/2Qo00dN. Acesso em: 22 ago. 2020; • Livro de Carlos Fausto, Os índios antes do Brasil, sobre a organização indígena antes da chegada dos europeus disponível na Minha Biblioteca Virtual Única em: https://bit.ly/2D39rfO. Acesso em: 22 ago. 2020. Para saber mais sobre as guerras e revoltas indígenas leia a Parte 2 do livro A presença indígena na formação do Brasil de João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire disponível em: https://bit.ly/3jcvdwN. Acesso em: 22 ago. 2020. 70 Também foi necessário aos europeus aliar-se à grupos indígenas como estratégia. No século XVI, os franceses e os portugueses em guerra aliaram-se aos Tamoios e Tupiniquins, respectivamente. Já no século XVII, os holandeses se aliaram a grupos “tapuias” contra os portugueses. Os grupos indígenas, por sua vez, tinham seus próprios interesses ao se aliarem aos europeus. Os grupos Canibos, por exemplo, se aliaram aos missionários espanhóis para contestar o monopólio piro (arawak) no comércio dos Andes. De uma forma ou de outra, os povos indígenas eram sujeitos ativos da história (CUNHA, 2012). No final do século XVI, o uso da mão-de-obra escravizada dos indígenas nos engenhos acabou declinando e passou a predominar a escravização dos africanos, que somente foi abolida no final do século XIX. Contudo, vale ressaltar que apesar de ter sido abolida a escravidão indígena, ainda é possível observar a sua existência na prática ao longo dos séculos seguintes até pelo menos 1850. 5.3 “CIVILIZANDO” OS ÍNDIOS? A catequese dos índios na colônia portuguesa foi iniciada tão logo iniciou-se a exploração e colonização estratégica do território. Os primeiros responsáveis pela conversão indígena foram os jesuítas, que eram missionários vinculados à ordem católica conhecida como Companhia de Jesus fundada por Inácio de Loyola no contexto da Contrarreforma Católica. Os primeiros missionários jesuítas desembarcaram em Salvador, na Bahia, já em meados do século XVI acompanhando o primeiro governador-geral, Tomé de Sousa. A sua função seria a de converter os pagãos da terra à fé cristã. Os missionários jesuítas, nesse sentido, foram os primeiros a adotar, conforme analisa Fabricio Santos, a prática de aldear ou reunir os índios com o objetivo de torná-los cristãos. A instalação do aldeamento podia se dar pela construção da igreja Nos relatos de época, os europeus chamavam pagãos e gentios povos que geralmente possuíam tradições religiosas politeístas (acreditavam na existência de vários deuses e não apenas um – monoteísmo – como o Cristianismo. Os gregos antigos, romanos antigos, povos africanos, indígenas eram considerados pagãos pela perspectiva cristã. 71 e da residência do missionário em uma aldeia indígena já existente ou em um outro sítio. Nesses aldeamentos, a catequese era iniciada com o ensinamento rudimentar da fé e com a preparação para o batismo. Novos grupos indígenas eram constantemente deslocados (“descimento”) para essas povoações, visando concentrar a catequese naqueles espaços (SANTOS, 2012). Para os jesuítas, os nativos deveriam abandonar características fundamentais de sua cultura e adotar os preceitos e estilo de vida cristão. Os índios, por sua vez, estavam dispostos a manter seus costumes, apesar de aceitarem, aparentemente, com facilidade a nova religião. Essa aparente contradição observada pelos missionários, fez com que o aldeamento se tornasse uma solução para que pudessem controlar cotidianamente os nativos. Assim, esta inserção na vida social indígena possibilitou aos missionários criar uma rotina de ensino e catequese que transformavam lentamente o modo de vida daqueles nativos aldeados (SANTOS, 2012). A conversão católica, dessa forma, operou no sentido de domesticar os considerados “selvagens” obtendo, além disso, trabalhadores para os empreendimentos missionários – o que gerou tensão com os interesses dos colonos e autoridades civis que também se interessavam por recrutar mão de obra indígena para suas atividades econômicas. O conflito de interesses ocasionados culminou com a expulsão dos jesuítas no século XVIII. No período, a política colonial buscava uma maior laicização (separação do Estado da Igreja) do Estado, incluindo o controle de todos os agentes em contato com as populações nativas. Nesse contexto, implantou-se uma política guiada pelo Diretório (um documento com 95 parágrafos com determinações sobre economia e administração dos aldeamentos), de 1757, que não só dispôs sobre a liberdade dos índios como também alterou a administração destes, reorganizando as aldeias após a expulsão dos missionários (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). Os novos diretores de índios, conforme o decreto real, deveriam, de maneira geral, expandir a fé católica, extinguir o gentilismo, civilizar os índios, introduzir o comércio e aumentar a agricultura. A língua portuguesa tornou-se uma exigência para os povos indígenas, que deveriam se comunicar exclusivamente por ela. A “civilização” dos índios, por sua vez, ficava a cargo das escolas públicas, que os ensinava ofícios domésticos dentre outras competências. Buscava-se também combater a suposta “ociosidade” com o uso do trabalho dos indígenas para fins 72 particulares. Os índios, dessa forma, passariam a ser governados por juízes e vereadores, e não mais pelos missionários. Vale ressaltar, por fim, que na prática o Diretório enfrentou muitas dificuldades como epidemias, mortes, fugas, desorganização social. Com o fim do Diretório em 1798, juízes de órfãos passaram a ser responsáveis pelos índios considerados “domésticos” e eles juntamente com o Estado velavam pelos bem índios, considerados incapazes(OLIVEIRA; FREIRE, 2006). Com a revogação do Diretório, criou-se um vazio administrativo acerca do governo povos indígenas que só foi preenchido em 1845, pelo “Regulamento acerca das Missões de catequese e civilização dos índios”. 5.4 DOS ESTEREÓTIPOS Como já estudado, quando os europeus desembarcaram no Novo Mundo, desconheciam sua existência e a seus habitantes. O processo de exploração e colonização também passou pela avaliação dos costumes e culturas desses povos sob a ótica da própria cultura europeia. Nesse item, portanto, vamos estudar como as diferenças culturais foram adaptadas e divulgadas pelos colonizadores a partir de pinturas e relatos de viagens, contribuindo para se criar uma imagem do índio que justificava a presença europeia. 5.4.1 Selvagens desordenados Para começar, os nativos foram considerados homens selvagens contrapostos ao ideal de civilidade ocidental por viveram, de acordo com os colonizadores, sem controle, sem o ordenamento do Estado e sem a salvação prometida pela Igreja. O cronista português, Pero Magalhães Gândavo, resume de forma canônica essa premissa: “A língua deste gentio toda pela Costa he huma: carece de três letras – scillet, não se acha nela f, nem l, nem r, cousa digna de espanto, por que assi não tem Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente” (GANDAVO, 1980, p. 52). Além disso, ao contrário dos europeus muito interessados em riquezas materiais, as sociedades indígenas não se importavam, de maneira geral, com coisas materiais como o ouro, por exemplo. 73 A partir do pensamento do francês Michel de Montaigne, por sua vez, a suposta selvageria aproximou-se ao tema do primitivismo no qual o selvagem viveria em um estado de pureza, sem as marcas do pecado original (lembrando que o pensamento da época era muito moldado pelos ensinamentos bíblicos, como ressaltado anteriormente). Na Carta de Pero Vaz de Caminha (primeira escrita sobre o Brasil e encaminhada ao el-rei dom Manuel em 1500), ainda é possível ver referências ao primitivismo ao endossar a inocência dos nativos e a boa vontade com que aceitavam a conversão, uma vez que seriam desprovidos, aos olhos de Caminha, de qualquer crença. Os nativos seriam, assim, uma espécie de papel em branco: Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo crista ̃os, porque eles, segundo parece, na ̃o te ̂m, nem entendem em nenhuma crenc ̧a. E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa (CAMINHA, 1500, 11-12) 5.4.2 Bárbaros canibais Bárbaro foi um termo utilizado na Grécia Antiga para denominar, de maneira geral, os povos estrangeiros destacando a superioridade grega. A partir de então, seu uso passou a ser mais diversificado e recorrente. Na Idade Média, bárbaro equivalia ao pagão como aquele que não havia convertido à fé cristã. O filósofo e etnólogo Pierre Clastres analisa a noção de sociedade e Estado em seu livro A sociedade contra o Estado para refutar a ideia de que a evolução das sociedades deve ser medida pela presença ou ausência da centralização do poder. Para ele, o poder coercitivo do Estado é somente apenas uma modalidade de poder dentre diversas outras. Ou seja, as sociedades ameríndias seriam, para Clastres, “essencialmente igualitárias” recusando qualquer força que impunha o enriquecimento de um pequeno grupo. A chefia indígena, nesse sentido, é esvaziada de poder coercitivo e considerada um importante mecanismo contra a concentração de poder. 74 A ideia do barbarismo, conforme demonstra Ronald Raminelli, atravessou o Oceano Atlântico e encontrou solo fértil nas narrativas de viagens acerca do continente americano. Bárbaros eram os índios de corpos nus, eram os “canibais” que devoravam a carne dos inimigos, os indivíduos que viviam em guerra (RAMINELLI, 1996). Figura 7: Canibais, século XVI Fonte: Theodor de Bry ([1596] 2015) O canibal também era uma figura que já permeava o imaginário europeu sem ter um ponto geográfico específico. Mas os Tupinambás, principais representantes desse canibalismo brasileiro, eram antropófagos e não canibais. Canibalismo apresenta-se a partir de uma noção bestial de indivíduos que consomem carne humana para saciar-se. É nesse sentido que o canibalismo se distancia da antropofagia, esta última mais praticada entre alguns grupos indígenas brasileiros como os Tupinambás à época da chegada dos europeus (não é mais uma prática ritual entre os povos atualmente). A antropofagia tinha um sentido mais social ritualístico. Ou seja, o ato de comer carne humana era realizado em cerimônias com diversos significados simbólicos a incluir vingança. 75 5.4.3 Luxuriosos e preguiçosos A sexualidade indígena também suscitou grande interesse. Por princípio cristão, os europeus defendiam a monogamia, ou seja, o casamento apenas entre um homem e uma mulher. Contudo, entre os povos indígenas, eram muito comum a poligamia e não possuíam, como os europeus, diversas regras matrimoniais e sexuais, o que fora visto como luxúria conforme ressalta o cronista português Gabriel Soares de Souza em 1597: “São os Tupinambos, tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam […] são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm por afronta; […] e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas (SOUZA, 1971, p. 308). No caso das relações de trabalho, os povos indígenas foram associados à indolência e preguiça em função da recusa destas populações em serem escravizados. Outro detalhe importante é que a cultura indígena não valoriza a produção de excedentes para acúmulo, como as sociedades europeias. De uma maneira geral, a produção era/é para a subsistência para que sobrasse tempo para dedicar-se a outras atividades consideradas importantes como rituais, cuidado com o corpo, convívio com a família e o lazer. Assim sendo, a difusão desses, e diversos outros, estereótipos constituiu uma forma de absorver a diversidade cultural encontrada no Novo Mundo tendo sempre como parâmetro a própria cultura europeia. Ou seja, não houve uma preocupação em compreender as culturas nativas pela sua própria organização. Os perfis traçados envolvendo guerra, canibalismo, nudez, hábitos alimentares distintos, habitação, • Para saber mais, leia o artigo “Antropofagia ritual e identidade cultural entre os Tupinambás” de Adone Agnoli. Disponível em: https://bit.ly/34weCQH. Acesso em: 22 ago. 2020. Um dos poucos relatos da antropofagia indígena no Brasil é o do mercenário alemão Hans Staden, que foi aprisionado pelos Tupinambás e a partir dessa experiência escreveu um relato. Baseado na descrição de Stade, na década de 1970 foi lançado o filme Como era gostoso o meu francês. A iconografia do filme foi baseada nos trabalhos do gravurista Theodore de Bry. 76 suposta ausência de uma legislação e de poder centralizado compunham as representações dos índios como seres inferiores, legitimando, assim, a guerra justa, a necessidade urgente de conversão. 5.4.4 Primitivos e “bons selvagens” Um pouco mais adiante no tempo, já no século XIX, passaram a circular na Europa imagens dos povos indígenas criadas por viajantes (dentreas quais podemos citar Spix e Martius, Rugendas, Debret dentre outros) que integravam missões científicas na América. Essas missões tinham como intuito observar, descrever e ilustrar as viagens de modo a registrar a natureza local do território. Esses relatos, por sua vez, contribuíram para divulgar informações acerca do continente para o público leigo e ainda serviu como fonte de pesquisa para muitos cientistas de então. A partir dessas observações, os índios acabaram sendo enquadrados em “estágios de desenvolvimento” correspondentes à ideia evolucionista que se impunha no século XIX. Nesse ínterim, as discussões acerca das raças e a classificação dos grupos em termos hierárquicos e evolutivos ganharam maiores contornos e consequências. Algumas sociedades, nesse discurso, acabaram sendo alocadas no início do processo evolutivo. Por não conceberem a ideia de Estado centralizado tal como a Europa (que se tinha como modelo ideal), elas foram concebidas como sociedades “primitivas”. Nessa vertente, alguns cientistas como Carl von Martius e Francisco Adolfo Varnhagen postularam a decadência dos povos da América. Varnhagen, ao se fundamentar em uma posição etnocêntrica, chegara a defender as guerras como No século XIX, circularam teorias que buscavam classificar os seres humanos. O darwinismo social (uma releitura da teoria de Charles Darwin) considerava, por exemplo, que os seres humanos eram desiguais por natureza e, portanto, alguns seriam superiores e outros inferiores. Nesse mesmo contexto, o racismo científico se funda dividindo os seres humanos em raças superiores (arianos) e inferiores (judeus, negros, indígenas, etc.). Para compreender melhor acerca dessas (e outras) teorias sociais que contribuíram para a circulação do conceito de raça e classificação dos seres humanos em escala evolutiva, leia mais em: https://bit.ly/3goWzhr. Acesso em: 22 ago. 2020. 77 forma de controlar os “vícios” indígenas, que, na sua concepção, seriam provenientes do nomadismo. Para ele, somente o sedentarismo poderia promover a civilização (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). Na contramão dessa visão, contudo, outras também surgiram no período. Políticos como José Bonifácio de Andrada e Silva, por exemplo, entraram em defesa da humanidade dos povos nativos influenciando, inclusive, a legislação indigenista do Brasil Imperial. Apesar do índio, no seu cotidiano, ser discriminado pela população de maneira geral e pela legislação imperial, muitos dirigentes políticos apropriaram- se da imagem do “bom selvagem” difundida pela Romantismo europeu no século XVIII com filósofos iluministas como Jean-Jacques Rousseau. A ideia do “bom selvagem”, por sua vez, encontrará expressão máxima no “indianismo” literário brasileiro. Na literatura brasileira, romancistas como José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Ledo (1823-1864) irão construir obras baseadas no imaginário romântico sobre os índios, distanciado da realidade. A natureza será valorizada pela sua intocabilidade e o índio eleito o herói nacional, nativo brasileiro legítimo que lutou heroicamente contra os colonizadores (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). Assista este vídeo explicando o que é Etnocentrismo. Disponível em: https://bit.ly/3htgUUr. Acesso em: 22 ago. 2020. Para compreender mais sobre a construção da imagem do índio na literatura, leia o artigo “Indianismo literário na cultura do Romantismo” de José Luís Jobim. Disponível em: https://bit.ly/2QqVeMO. Acesso em: 22 ago. 2020. 78 FIXANDO CONTEÚDO 1. Professor de História / SEDUC-MT (adaptada) Leia atentamente o trecho a seguir: “Os grupos do Brasil central, desde os princípios da colonização, foram enquadrados na categoria genéricas de tapuias (os de língua travada, que não falam o tupi – Guarani). Entre eles os Jê – que englobam uma grande parte das etnias nos cerrados do Centro-Oeste brasileiro...”. Considerando o trecho acima e seus conhecimentos sobre as culturas indígenas no Brasil assinale a alternativa correta. a) Podemos perceber que o Indígena no Brasil era e é pouco reconhecido de maneira geral, considerando que foram e são tratados por termos genéricos como “tapuias", sem muita preocupação em conhecer e perceber as diferenças culturais que cada etnia possui, e reflete de forma política na vida desses grupos. b) O indígena no Brasil há muito foi incorporado na sociedade branca, além das terras que lhes foram dadas, muitos fazem uso de tecnologias e da cultura ocidental, como internet, celulares, contas bancarias. c) Não se pode dizer que no Brasil ainda há indígenas, pois se no início da colonização os portugueses foram responsáveis pelo assassinato em massa desses grupos, posteriormente o império pouco ajudou aqueles que ainda viviam. A consequência disso é a não presença indígena na sociedade brasileira atual. d) A situação do indígena no Brasil se resolveu logo após o fim do período colonial, pois os europeus se preocuparam logo em compreender a realidade local e as necessidades específicas desses povos. e) Os indígenas brasileiros só sofreram grandes perdas demográficas com a chegada dos europeus porque não gostavam de trabalhar e resistiram violentamente a qualquer tipo de trabalho. 2. (Professor de História / IF-MT - adaptada) Por aqui lhe urdem os portugueses muitas brigas com que se desavêm umas nações com as outras, com o qual ardil os entramos e desbaratamos, que todos juntos ninguém pudera com eles [...] WEHLING, A.; WEHLING, M. J. Formação do Brasil Colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: 79 Nova Fronteira, 1999.) O trecho do documento acima faz referência a uma estratégia largamente utilizada pelos portugueses na conquista da América, tanto para a incorporação de terras como para a escravização dos indígenas. Assinale a alternativa que apresenta essa estratégia. a) Estímulo às rivalidades existentes entre grupos indígenas. b) Massacre sistemática das populações nativas. c) Aldeamento dos índios pelos jesuítas. d) Aliança política com as elites indígenas. e) Aliança econômica com outras nações europeias. 3. (INEP/História do Brasil) “Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito. Eram pardos, todos nus. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros. Os cabelos seus são corredios. CAMINHA, P. V. Carta. RIBEIRO, D. et al. Viagem pela história do Brasil: documentos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 (adaptado). O texto é parte da famosa Carta de Pero Vaz de Caminha, documento fundamental para a formação da identidade brasileira. Tratando da relação que, desde esse primeiro contato, se estabeleceu entre portugueses e indígenas, esse trecho da carta revela a a) preocupação em garantir a integridade do colonizador diante da resistência dos índios à ocupação da terra. b) postura etnocêntrica do europeu diante das características físicas e práticas culturais do indígena. c) orientação da política da Coroa Portuguesa quanto à utilização dos nativos como mão de obra para colonizar a nova terra. d) oposição de interesses entre portugueses e índios, que dificultava o trabalho catequético e exigia amplos recursos para a defesa da posse da nova terra. e) abundância da terra descoberta, o que possibilitou a sua incorporação aos interesses mercantis portugueses, por meio da exploração econômica dos índios. 80 4. (TJ-SC adaptada.) “ [...] Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E nãocomem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.” O trecho acima, retirado da Carta que Pero Vaz de Caminha redigiu ao Rei D. Manuel, é um exemplo do deslumbramento do europeu diante do Novo Mundo e das pessoas que por aqui eles encontraram. Quanto às sociedades indígenas do Brasil, leia as alternativas abaixo e marque Verdadeiro e Falso. (X) A antropofagia entre os indígenas tinha caráter ritual. Para alguns grupos a alimentação de carne humana era parte dos cultos religiosos e das tradições tribais. (X) As grandes nações indígenas estavam distribuídas por, praticamente, toda a extensão do território brasileiro. Os Tupis estavam espalhados pelo litoral e foram os primeiros a ter contato com os brancos. (X) Atualmente, estudos comprovam que a origem dos primeiros habitantes do Brasil é proveniente, unicamente, da corrente migratória asiática. (X) Diferentemente das demais sociedades indígenas americanas, os povos que viviam no território brasileiro possuíam uma característica homogeneidade cultural e linguística. (X) A chegada dos europeus não causou grandes impactos nas sociedades nativas do território americano. A sequência correta é a) F, F, V, F, V. b) V, V, F, F, F. c) F, V, F, V, V. d) V, V, F, V, F. e) V, F, V, V, F. 81 5. (Enade) Documento I E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram. Carta de Pero Vaz de Caminha. In: PEREIRA, Paulo Roberto (org). Os três únicos testemunhos do Descobrimento do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 54;57. Documento II [...] nenhuma fé têm, nem adoram a algum deus; nenhuma lei guardam ou preceitos, nem têm rei que lha dê e a quem obedeçam, senão é um capitão, mais pera a guerra que pera a paz. SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-1627). 6 ed. São Paulo: Edic ̧ões Melhoramentos, 1975. A partir da análise desses documentos conclui-se que, no período compreendido entre a produção do primeiro e do segundo: a) a administração portuguesa no Brasil orientou-se pelas observações dos autores dos documentos e optou pelo isolamento das populações indígenas por considerar que eram inúteis ao processo de colonização. b) a Coroa deixou integralmente a cargo da Igreja Católica a responsabilidade pela integraça ̃o das populações indígenas ao modo de vida europeu, conforme as sugestões dos autores dos documentos. c) a predominância das ações de natureza religiosa, por meio da catequese junto às populações indígenas, preservou sua cultura e impediu que elas fossem escravizadas. d) o entendimento dos portugueses acerca das populações indígenas e de seus 82 costumes favoreceu o seu processo de integração pela religião, finalizado no século XVII. e) os colonizadores empenharam-se em transplantar para o interior das comunidades indígenas as formas de organização da sociedade portuguesa, usando a religião e a presença de europeus entre eles.
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