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Resumo – Lícia Valladares – Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil. Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil O texto tem objetivo de recuperar as imagens e representações que a pobreza urbana vem suscitando no Brasil ao longo dos últimos cem anos, discorrer sobre a mudança constatada na maneira de se conceber e definir pobreza e seus sujeitos ao longo da constituição do país enquanto nação moderna e urbana. Como as categorias de "pobreza" e "pobre" evoluem e seus significados e associações mudam. • Há uma multiplicidade de discurso sobre a pobreza: sanitarista, jurídico, político, econômico. A autora os discute em 3 períodos onde a concepção de pobreza é diferente em cada: 1. Virada do século, virada para o capitalismo, urbanização embrionária, mercado de trabalho industrial e urbano, imigrantes e negros. 2. Décadas de 50 e 60, urbanização generalizada, desenvolvimento capitalista, mercado de trabalho urbano ampliado, segmentos marginalizados nas grandes cidades. 3. Décadas de 70 e 80, modelo de desenvolvimento em crise, expansão da economia informal, concentração de renda e aumento da pobreza nas regiões metropolitanas. • Hipótese: a evolução guarda estreita relação com a própria trajetória do processo de urbanização, transformações no mercado de trabalho urbano, inserção espacial/residencial da população pobre nas cidades e o papel de ator social e político atribuído às camadas populares ao longo do tempo. Virada do Século Trabalhadores X vadios Classes perigosas O cortiço (e a rua) Décadas de 50-60 População marginal Subemprego População de baixa renda Favela Décadas de 70-80 Setor informal Estratégias de sobrevivência Moradores Trabalhadores pobres X bandidos Periferia 1. Virada do século: descoberta da pobreza. • Foi quando a pobreza urbana emergiu como problema maior aos olhos da elite nacional. Transição para uma ordem capitalista (senhor-escravo; burguês-capitalista). • Discurso sobre a pobreza implicava considerar: questão da saúde, higienização da cidade, problemática da manutenção da ordem social e controle social da classe trabalhadora, discurso sobre necessidade de transformar o homem livre (escravo liberto e emigrante pobre) em trabalhador assalariado, submetido a uma sociedade ordenada pelo trabalho. a. Discurso higienista com ênfase no cortiço: • Condições precárias de vida de amplos segmentos da população nos centros urbanos impulsionados pela indústria. • Rio de Janeiro como metrópole crescente e tinha muitas epidemias. Muitas habitações coletivas precárias; condições habitacionais e de saneamento, congestionamento, insalubridade e penúria como em Engels. • Preocupados com a desodorização do espaço urbano os higienistas estabelecem estratégia de medicalização da cidade: desinfetando espaços públicos, drenando pântanos, alinhando ruas até o combate direto aos surtos epidêmicos (Rio e São Paulo). • A denúncia realizada pelos sanitaristas abriu caminho para a própria intervenção sobre a pobreza: suas sugestões foram incorporadas ao "Código de Posturas Municipais do Rio de Janeiro" e em 1851 a Junta Central de Higiene e Cirurgia foi criada. Combatem as habitações insalubres, e até proíbem criações de novos cortiços, fecham cortiços (demolem) como o Cabeça de Porco. Pauta da reforma urbana de Pereira Passos. Então o cortiço se tornou principal alvo, sendo que 1/4 da população do Rio vivia neles em 1890 (Silva, 1988:88), as condições materiais de vida deles eram propícias a propagação de epidemias. b. O temor das "classes perigosas": • O mesmo cortiço, que deveria ser eliminado para possibilitar o saneamento da cidade, também inspirou o discurso político relativo à necessidade de manutenção da ordem social. Elite política nacional os viam como o "berço do vício e do crime" onde se concentravam as "classes perigosas". Classes dominantes brasileiras pensavam como a Inglesa vitoriana. • O fato de ser pobre tornava o indivíduo perigoso para a sociedade. • Discurso dualista da classe dominante: mundo do trabalho, moral, ordem; mundo amoral vadio e caótico que deveria ser reprimido e controlado para não comprometer a ordem. E a cada mundo um espaço corresponderia: fábrica X cortiço e rua. • Classe perigosa: quem estava fora do universo fabril. • Rua como prolongamento do cortiço: seus personagens eram vistos como vadios cuja socialização ameaça a lei e os bons costumes. Confronto entre população e polícia. • Consideram vadios: todos que não possuíam ocupação honesta e útil de que pudessem subsistir. • As reformas sanitaristas desencadearam revoltas no fim do século, sedimentando a noção de que as camadas populares eram "classes perigosas". c. A construção ideológica da oposição Trabalhador X Vadio: • Ideia de moralizar o indivíduo através do trabalho para ordenar a sociedade: em quem desacatava a ordem era incutido o hábito e a obrigatoriedade do trabalho para regenerar a sociedade. • No Brasil, essas ideias estavam associadas as transformações ocorridas no mercado de trabalho nacional e local: o Abolição da escravatura: separa o trabalhador e sua força de trabalho: para vender seu trabalho, esse conceito deveria se desprender do caráter degradador da sociedade escravista. o Precisavam criar trabalhadores devido ao processo de industrialização e o recém-criado mercado de trabalho livre. o Rio tinha muita população, mas não vista como aptos às exigências do sistema fabril: procuravam quem "amasse" o trabalho e aceitassem entrar no sistema produtivo como trabalhador assalariado. Foi mais fácil integrar os imigrantes estrangeiros aos horários e regulamentos disciplinares do que os nacionais. • Além dos ex-escravos, outros preferiam trabalhos sem a figura do patrão: Rio de ilegalidades com ladrões, prostitutas, malandros, desertores do Exército, marinha e navios estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de repartições públicas, ratoeiros, recebedores de bondes, engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores, receptadores, pivetes e o capoeira. o Ganhos irregulares. o Não vistos como produto, mas sim como resíduo: mundo do não- trabalho (aos olhos das elites). • Nessa construção ideológica de trabalho que a noção de pobreza se consolida remetendo ao mundo do não-trabalho. Pobre era quem não se transformava em trabalhador. Mas a população se referia a eles como vadios, eram associados a uma série de atributos que os distanciava do posto de trabalhador. • Vadiagem, pobreza, ociosidade eram concebidas como de responsabilidade individual. Se recusavam a vender a força de trabalho no mercado capitalista e à ética do trabalho. • Essa lógica pressupunha que o trabalhador não era pobre. • Consolidou-se uma visão dual e polarizada da sociedade urbana: Fábrica / Mundo do Trabalho / Mundo da Ordem (imigrante branco) X Rua e Cortiço / Mundo do Não-Trabalho / Mundo da Desordem (liberto negro e mestiço) 2. Os anos 50-60: a eclosão da pobreza e seu reconhecimento enquanto questão social. • 5 décadas após virada do século: abriram caminhos e possibilitaram realização de vários dos ideais da República: passe de sociedade agrário- exportadora para mais moderna e urbano-industrial. • Aumento das taxas de crescimento populacional urbana com participação da indústria com a política de substituição de importações e depois foco na indústria pesada, bens de consumo duráveis e infraestrutura viária. • Migração intra-estadual e de regiões mais atrasadas levando a desequilíbrios regionais e setoriais reforçados pela desarticulação de algumas economias regionais e acentuação da urbanização em algumas regiões mais que em outras. • Urbanização mais acelerada do que o processo industrial. Sem empregos suficientes. crescimento do setor terciárioe difícil condição de vida nas cidades. a. Do cortiço à favela: da nação da vadiagem à nação de subemprego. • A pobreza urbana se torna questão social nos anos 50 e 60. A partir dos anos 30 começou a se estampar na forma de favela se impondo aos poucos no cenário das cidades em expansão (deixando o cortiço para trás). • Favela como expressão mesma do modelo de desenvolvimento econômico desigual, marcado por uma aceleradíssima urbanização, que prevaleceu no Brasil no pós-30. • O cientista social como novo porta voz do discurso sobre a pobreza. • As discussões remetem ao mercado de trabalho, passando agora pelo debate mais amplo da modernização, da marginalidade e dos obstáculos à mudança social. • Desenvolvimento econômico com ISI com mercado de trabalho dual: setor moderno, de capital intensivo, industrial, tecnologia avançada, mão de obra qualificada; setor tradicional, trabalho intensivo, tecnologia simples, atividades mais artesanais e ligadas ao pequeno comercio, baixa produtividade. • Setor moderno -> gerador de empregos. Tradicional -> refúgio para excedente (subemprego). • Subemprego como importante categoria definidora de pobreza nesse período. o Comércio ambulante o Produção familiar o Prestação de inúmeros serviços (biscateiro) o Atividades ilegais ou semi-ilegais. • Relativiza-se a ideia de pobreza como responsabilidade individual; pobre era quem tinha fraquezas morais que não haviam respondido ao "chamado do trabalho". São determinantes externos ao indivíduo que levam a pobreza colocando peso da responsabilidade sobre a sociedade. Literatura econômica vê o sistema como incapaz de gerar empregos suficientes. • Havia já aceitação da positividade do trabalho e do trabalho assalariado. Quem quer trabalhar quer fazer parte do sistema produtivo. Muitos fluxos migratórios. • Medidas oficiais institucionalizadoras do mercado de trabalho reafirmam a separação entre assalariados e não-assalariados; empregados e desempregados+subempregados. Valorização da figura do trabalhador. Discutia-se se o sistema teria capacidade de absorver essa força de trabalho. • Teoria da marginalidade social, marginalidade como inerente ao sistema capitalista e às sociedades dependentes; pobreza passou a ser considerada como fenômeno de natureza estrutural que escapava da esfera individual. • Pobres não são mais os ociosos e vadios, mas como massa dos excluídos e marginalizados pelo sistema econômico. Expressão máxima da marginalidade é a favela. Não integrados da sociedade urbana. "favelado" vira sinônimo de "pobre". b. A introdução do critério de renda na definição da pobreza: • A "população marginal" recebe, a partir dos anos 60, a denominação de "população de baixa renda". • Brasília começa a elaborar programas de atendimento à população pobre, "carente". Introduz-se a variável renda na definição de pobreza, para alocar melhor recursos governamentais. Toma salário mínimo como parâmetro. Pobreza como fenômeno de insuficiência de renda. É um princípio classificatório. • Política do BNH-Branco Nacional de Habitação (1964-1986) aplicação do "baixa renda" em uma política pública: COHAB ("distribuiu diferencialmente as famílias pobres por tipos de habitação e tipo de conjunto habitacional tomando a renda como marco decisório e divisor"). • Nova divisão da força de trabalho: quem tem renda elegível para os programas e quem não. • Esse recorte se juntou aos outros mencionados: o Trabalhador x vadio o Empregado x subempregado o Assalariado x não assalariado • Multiplicidade dos discursos se dá pois há heterogeneidade crescente das camadas populares, tanto na inserção no mercado de trabalho, quanto na posição na estrutura social e no papel de consumidor de bens e serviços. 3. As décadas de 70 e 80: generalização e sedimentação da pobreza. • A nomenclatura de pobreza mantém relação com as transformações que ocorreram na dinâmica da urbanização e do mercado de trabalho urbano. Mudanças dos anos 70: o Brasil como oitava economia mundial o Transformações na estrutura econômica social e urbana o Consolidação da industrialização, grande empresa monopolista o Aumento do setor de serviços o Urbanização segue acelerada o Acentuação da miséria e acumulação (grande desigualdade social) o Processos concomitantes de metropolização e periferização: novo processo de segregação espacial da classe trabalhadora para longe da área central da cidade. o Periferia alimentada pelos deslocamentos intrametropolitanos e como espaço de recepção dos migrantes que continuavam a acorrer às várias metrópoles brasileiras. a. Da favela à periferia: os "moradores", novos atores sociais: • Nova territorialidade da pobreza coloca em evidência o "morador de periferia" em detrimento do "favelado", que era até então o pobre urbano por excelência: morador implica nova forma de morar (diferente da favela) e dos indivíduos procederem como sujeitos e atores sociais. • Os moradores de periferia são os novos excluídos pelo capitalismo brasileiro contemporâneo. Tem papel político na luta da redemocratização do país. • Compreensão de que o atendimento a necessidades e carência é na realidade um direito social vem orientando a prática dos movimentos populares e é parte importante deste processo de "atualização" da cidadania. • No discurso econômico, para a concepção de pobreza, rompe-se com o discurso dualista do mercado de trabalho, substituindo pela abordagem do "setor informal". Há complementariedade, articulação e concorrência entre setores formal e informal. • A referência básica já não é o subemprego, pois o dinamismo informal absorve a população deixando poucos de fora. Fala-se agora em "trabalhador por conta própria" ou "independente"... • Entende-se que a economia urbana pode não oferecer emprego e salário para todos mas assegura trabalho (mesmo que irregular e mal pago). Os "por conta própria" são parte da divisão social do trabalho. b. Nasce uma nova oposição: Trabalhadores Pobres X Bandidos: • Todos que desempenham algum tipo de atividade econômica são considerados trabalhadores agora. E reconhece-se que alguns trabalhadores são trabalhadores pobres, muitos apelam para idosos e jovens tendo que trabalhar (quadro do menor de rua). • Também houve transformações econômicas na sociedade brasileira. Mas o discurso da pobreza também é fruto de base moral. • O oposto de "trabalhadores pores" virou a categoria de "bandido". Voltando a associar pobreza e criminalidade, alimentando ideia de desemprego, pobreza e crise estarem associados. • Fechou-se o ciclo de um século. Seria o bandido e não o trabalhador que teria consciência da ambiguidade que vem marcando a longa trajetória da constituição e transformação da força de trabalho urbana no Brasil.
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