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1SUDESTE
Organização | Edésio Fernandes
20 ANOS 
DO ESTATUTO DA 
CIDADE: experiências 
e reflexões
2 3SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
Organização | Edésio Fernandes
2 0 2 1
20 ANOS 
DO ESTATUTO DA 
CIDADE: experiências 
e reflexões
4 5SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
Fotos: Edésio Fernandes
6 7SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
Apresentação
0 50 100 500 1000
Lei-marco do Direito Urbanístico brasileiro, 
o Estatuto da Cidade - Lei Federal n.o 
10.257, de 10 de julho de 2001 - foi saudado 
nacional e internacionalmente quando 
foi aprovado, e desde então tem havido 
um enorme esforço de várias ordens para 
promover sua implementação, sobretudo 
por meio da aprovação e da revisão de 
Planos Diretores Municipais. Muitos 
têm sido os ganhos desse processo, 
mas igualmente numerosos têm sido os 
problemas resultantes e/ou enfrentados 
pelos diversos atores envolvidos. 
As dificuldades de aplicação da lei – um 
campo aberto de disputas - têm se tornado 
ainda maiores no atual contexto de 
desmonte da ordem jurídico-urbanístico-
ambiental do País, processo que já levou 
a inúmeras modificações do texto original 
da Lei Federal - e que pode se tornar ainda 
mais nefasto se aprovada a PEC 80/2019, 
de iniciativa do Senador Flávio Bolsonaro 
e outros, que se propõe a “regulamentar 
a função social da propriedade urbana” 
de forma a efetivamente inviabilizar a 
aplicação do Estatuto da Cidade. 
Avaliar criticamente a lei, então, torna-se 
ainda mais importante. 
A proposta deste projeto é simples: coletar 
depoimentos de vários atores, de várias 
partes do Brasil, que estão envolvidos de 
diversas formas nos processos de política, 
planejamento e gestão urbana - juristas, 
urbanistas, acadêmicos, defensores 
públicos, promotores, juízes, líderes de 
movimentos, ativistas, gestores urbanos, 
etc. -, sobre suas experiências e avaliações 
dessa lei-marco. 
Não se trata de uma publicação acadêmica 
no sentido estrito, mas tão somente de 
uma tentativa de organizar um conjunto 
significativo de reflexões, pessoais e críticas, 
sobre as experiências desses diversos atores 
ao longo das duas décadas de tentativas de 
implementação da lei. 
Meu único pedido foi que cada um escrevesse 
um texto livre sobre suas principais 
avaliações da lei - seu envolvimento pessoal 
com a lei, sua importância, as dificuldades 
de sua implementação, seus problemas 
originários e posteriores, os desafios à sua 
plena implementação, perspectivas para os 
próximos anos ou o que fosse do seu interesse. 
 
O resultado é um mosaico fascinante de 
ideias que, espero, possam contribuir 
para renovar a discussão crítica sobre a 
implementação do Estatuto da Cidade e da 
agenda da Reforma Urbana no Brasil.
Meus mais sinceros agradecimentos a todos 
os que aceitaram meu convite.
Edésio Fernandes
8 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
Assim como acontece com todos os contribuintes desta 
publicação - de formas variadas e em medidas distintas -, a 
trajetória do Estatuto da Cidade coincide em boa parte com 
minha trajetória profissional e mesmo pessoal. 
Por um dos acasos da vida, comecei a trabalhar com a chamada “questão 
urbana” em 1979, no Plambel - naquela época, Superintendência do 
Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte -, mesmo antes 
de me formar em Direito pela UFMG. Todo um mundo se descortinou e, 
desde então, as cidades e suas questões multidisciplinares me seduzem e me 
preocupam enquanto jurista, urbanista e cidadão. 
Ainda em 1979, foi aprovada a Lei Federal n.o 6.766, que colocou o Direito 
Urbanístico em outro patamar, e me vi envolvido com sua aplicação. Aprendi 
muito com os colegas do Plambel e com o Professor José Rubens Costa, 
meu primeiro mentor. Na busca por mais elementos que me permitissem 
compreender melhor a natureza do trabalho que estava fazendo, fiz uma 
Especialização em Urbanismo na EAU da UFMG e um Curso de Direito Urbano 
no IBAM, no Rio de Janeiro, onde tive aulas com o inesquecível Professor 
Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Devo em boa parte a ele a base de minha 
compreensão sociojurídica sobre o processo de urbanização. 
No começo dos anos 1980, participei de vários encontros nacionais que tinham 
por objeto a discussão do que se tornou o Projeto de Lei de Desenvolvimento 
EDÉSIO FERNANDES
Jurista e urbanista, Bacharel, Mestre e Doutor em Direito, Especialista em Urbanismo, 
Professor, Consultor e Ativista na área do Direito Urbanístico e do Direito à Cidade, Membro 
da DPU Associates e da Teaching Faculty of the Lincoln Institute of Land Policy, Fellow of 
the RSA - Royal Society of Arts, Manufactures and Commerce.
Urbano (PL n.o 775/1983) - que nunca decolou. 
Participei de muitas das discussões que levaram 
à formulação da Emenda Popular de Reforma 
Urbana que foi submetida ao Congresso 
Constituinte. Entre 1986 e 1988, trabalhei na 
assessoria do Congresso Constituinte, e nesta 
condição me envolvi com a formulação, o 
encaminhamento e a discussão de diversas 
propostas sobre questões urbanas, metropolitanas 
e fundiárias: nesse contexto, sinto-me um 
pouco presente no capítulo de Política Urbana 
introduzido na Constituição Federal de 1988. 
Mesmo morando fora do Brasil desde setembro 
de 1988, acompanhei de diversas maneiras as 
experiências municipais pioneiras de formulação 
de Planos Diretores nos anos 1990 e contribui um 
pouco para a discussão do Projeto de Lei que, em 
2001, foi aprovado como o Estatuto da Cidade. 
Em 2003, regressei ao Brasil a convite da querida 
Professora Raquel Rolnik – outra grande mentora 
- para contribuir juntamente com uma equipe 
excepcional para a consolidação do recém-criado 
Ministério das Cidades, que tinha por principal 
O ESTATUTO DA CIDADE,
20 ANOS MAIS TARDE
incumbência promover a implementação do 
Estatuto da Cidade pelo Brasil afora. Contribuí 
para a formulação do Programa Nacional de Apoio 
à Regularização Fundiária Sustentável e, nesta 
condição, pude viajar por muitas partes do País 
e conhecer melhor sua enorme diversidade. De 
especial significação para mim foi a participação 
na Primeira Conferência Nacional das Cidades, 
que aconteceu de 23 a 26 de outubro de 2003, em 
Brasília, evento emocionante que reuniu 2,5 mil 
delegados dos 27 estados. 
De volta a Londres desde então, de diversas 
maneiras ao longo dos últimos 17 nos tenho 
participado - no Brasil e em inúmeros países - de 
incontáveis discussões e diversas ações que visam 
a implementar o Estatuto da Cidade, ou a avaliar 
sua implementação. 
Antes de passar a palavra para meus colegas, vou 
me permitir dar meu próprio depoimento sobre 
esse processo que me é tão caro.
Mudanças de percepção e deslocamentos desde a 
aprovação do Estatuto da Cidade
A Lei Federal n.o 10.257/2001 - o Estatuto da 
Cidade – é a lei-marco do Direito Urbanístico, este 
ramo novo e ainda pouco conhecido do Direito 
Público brasileiro. 
A aprovação do Estatuto da Cidade - EC gerou 
uma enorme expectativa de que as experiências 
promissoras, mas até então limitadas, de 
promoção de reforma urbana pelos municípios 
nos anos 1990, através da aprovação de seus 
Planos Diretores Municipais - PDMs, ganhariam 
mais folego, dando assim sentido concreto ao 
princípio constitucional da função social da 
propriedade. Fruto da mobilização social, além da 
sua legitimidade sociopolítica, essa Lei Federal 
também tem outra característica especial no 
cenário jurídico brasileiro: o EC não apenas 
contém uma lista de princípios e diretrizes de 
política urbana e reconhece nominalmente 
diversos direitos sociais e coletivos, mas também 
estabelece uma série de processos, mecanismos, 
instrumentos e recursos a serem incorporados 
de alguma forma nos PDMs para possibilitar a 
materialização dos princípios declarados e dos 
direitos reconhecidos. Chamado por muitosde 
“caixa de ferramentas” — o EC contém mais 
de 30 instrumentos jurídicos, urbanísticos e 
financeiros —, a lei propôs uma articulação rara 
entre Direito, gestão pública e financiamento do 
desenvolvimento urbano. 
O aniversário de 20 anos da aprovação do EC 
coincide com o movimento de revisão, em 
diversos casos pela segunda vez, dos PDMs, tal 
como determinado pela própria lei. Contudo, se no 
primeiro momento havia um grande otimismo em 
torno da lei, atualmente há uma série de críticas 
aos PDMs e mesmo certo descrédito em relação 
a essa lei-marco. Refletindo sobre a trajetória do 
EC ao longo de 20 anos, identifiquei uma série de 
deslocamentos que têm acontecido no campo do 
Direito Urbanístico e da Política Urbana:
• do ideário da função social da propriedade 
para o ideário da liberdade econômica;
• da agenda da reforma urbana e do direito à 
cidade para o movimento de financeirização 
da cidade;
• da busca de regularização sustentável de 
assentamentos informais consolidados para a 
mera legalização formal dos lotes;
• da proposta de reconhecimento dos direitos 
coletivos e da posse ao domínio dos direitos 
individuais;
• da busca de gestão pública democrática às 
estratégias de privatização;
• do fortalecimento do Direito Público ao reforço 
do Direito Privado; e
• do regime das ZEIS – as Zonas Especiais de 
Interesse Social, que para muitos são a maior 
invenção do urbanismo brasileiro – ao pós-
ZEIS, com a pressão do mercado imobiliário 
pela abolição dos gravames.
Esses deslocamentos que têm acontecido no 
campo do Direito Urbanístico estão na base de três 
momentos que podemos identificar de maneira 
esquemática na evolução da aplicação do EC nos 
últimos 20 anos - e talvez pudesse também dizer 
que já estamos chegando a um quarto momento, 
quais sejam: otimismo; desconfiança; descrédito; e, 
quem sabe, certo abandono da Lei Federal. 
10 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1120 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
Um primeiro momento de otimismo começou 
quando o EC foi aprovado, saudado, celebrado e 
premiado: a aprovação do EC gerou um grande 
esforço nacional no Brasil de elaboração de uma 
nova geração de Planos Diretores Municipais 
(PDMs), inclusive pela ação do Ministério das 
Cidades na sua primeira versão. As primeiras 
Conferências Nacionais, Estaduais e Municipais 
das Cidades oxigenaram a discussão sobre a 
política urbana no País. O Brasil ganhou prêmios 
internacionais e entrou para o Rol de Honra 
da ONU por ter aprovado essa lei, que era e 
ainda é objeto de inveja e cobiça de ministros 
e primeiros-ministros em diversos países, bem 
como fonte de inspiração internacional. De fato, a 
literatura internacional sobre a lei é significativa, 
debates de todo tipo têm sido promovidos, 
e diversos países e cidades estrangeiras têm 
considerado como incorporar aspectos do EC 
em suas ordens jurídico-urbanísticas. Contudo 
um segundo momento de certa desconfiança em 
torno da lei começou alguns anos mais tarde, 
decorrente sobretudo de críticas crescentes dos 
movimentos sociais preocupados com o processo 
de mercantilização alarmante das cidades, 
especialmente face do avanço de operações 
urbanas e vendas de créditos, direitos e Cepacs 
promovidas no contexto jurídico da aplicação de 
PDMs tal como previsto pelo EC - porém fora de 
um contexto claro de governança da terra urbana 
que afirmasse os princípios e diretrizes de política 
urbana do próprio Estatuto da Cidade. 
Cerca de dez anos mais tarde talvez, começou 
um momento de descrédito do EC com diversas 
avaliações negativas dos novos PDMs e uma visão 
generalizada de inefetividade dos instrumentos 
para materializar os princípios de política urbana 
– apontando assim um descompasso entre os 
princípios e instrumentos da lei e sua aplicação, 
e isto em um contexto maior de agravamento 
da crise urbana no País. Parece que hoje em dia 
estamos caminhando na direção até mesmo de 
certo abandono da Lei Federal. Mesmo antes 
da pandemia de Covid 19, tenho percebido 
resistências municipais crescentes à atualização 
dos PDMs, enquanto novas Leis, Medidas 
Provisórias e Decretos têm sido sistematicamente 
aprovados pelo Governo Federal e, também, por 
alguns estados e municípios, propondo as bases 
de outra cultura jurídico-político-urbanística 
que não aquela do EC, uma cultura de orientação 
neoliberal, processo este confirmado e agravado 
por diversas decisões judiciais que também estão 
promovendo retrocessos.
É verdade que ao longo de todo esse período 
de 20 anos certamente tem havido muita falta 
de informação, e muita desinformação, acerca 
da Lei Federal no meio jurídico e na sociedade 
mais ampla. O fato é que a maioria dos juristas 
e juízes – e também dos cidadãos brasileiros – 
ainda não conhece o EC, a maioria das sentenças 
judiciais não incorpora os princípios desta Lei 
Federal, e a maioria das faculdades de Direito 
também não ensina Direito Urbanístico. Agora, 
é verdade também que tem havido disputas 
crescentes de interpretação e apropriação da 
lei entre juristas, urbanistas e atores diversos, 
com uma apropriação crescente e seletiva 
de certos instrumentos da lei pelas forças de 
mercado imobiliário e financeiro - proprietários, 
promotores imobiliários e investidores diversos -, 
a tal ponto que, ironicamente, hoje em dia é mais 
fácil falar da noção de mais-valias urbanísticas 
– tabu até poucos anos atrás - do que justificar 
um simples aumento do IPTU. Isso prova o 
que sempre afirmei: o Direito Urbanístico não é 
um mero instrumento como muitos urbanistas 
imaginam mas, sim, uma arena de conflitos. 
 
Mais do que nunca, o Estatuto da Cidade e 
o Direito Urbanístico são objeto de disputa 
sociopolítica renovada e acirrada.
A trajetória do Direito Urbanístico
É fundamental recuperar a trajetória do 
Direito Urbanístico para compreender melhor 
esse processo de disputas, tensões, avanços e 
retrocessos. 
A construção do Direito Urbanístico se deu 
muito tardiamente em relação ao fenômeno da 
urbanização no País. O processo sistemático 
de urbanização começou na década de 1930 e 
ganhou um enorme vigor a partir dos anos 1950: 
o Brasil passou a ser um país majoritariamente 
urbanizado a partir de meados desta década. A 
urbanização brasileira chegou ao seu pico no 
final dos anos 1970 e desde então as taxas são 
decrescentes, ainda que significativas, com a 
urbanização acontecendo em novas bases em 
relação ao período anterior: maior metropolização, 
maior crescimento de cidades de porte médio e de 
cidades pequenas, esvaziamento de áreas centrais, 
crescimento de áreas periurbanas, periferização 
da pobreza e aumento do crescimento informal e 
da precariedade habitacional, etc. Contudo esse 
processo de urbanização rápida e de enorme 
impacto, que mudou o País de ponta-cabeça – 
provocando mudanças estruturais em termos 
territoriais, sociais, econômicos, ambientais 
e culturais -, se deu sem uma base jurídica 
minimamente adequada. A pergunta necessária 
é: a quem se prestou esse descompasso histórico 
entre a ordem jurídica e a ordem urbanística?
O princípio central do Direito Urbanístico – 
que é a ideia da função social da propriedade 
– certamente existe nas Constituições desde a 
Constituição Federal de 1934, porém sem que 
tenha havido uma definição minimamente 
clara do seu conteúdo ao longo das décadas de 
urbanização intensiva, tendo assim sido sempre 
um princípio muito elusivo. A principal lei que 
vigorou ao longo desse processo de crescimento 
urbano até o final dos anos 1970 foi o Decreto-
Lei n.o 58, de 1937, que visava a regular aspectos 
do processo de loteamento do solo urbano, mas 
que, em que pese sua importância, era totalmente 
inadequado da perspectiva de uma política 
urbana - especialmente quando a urbanização 
no País se dava principalmente de maneira 
horizontal, pela agregação de novas áreas de 
expansão urbana e rurais. Nesse período, foram 
pouquíssimas as leis e decisões judiciais aplicáveis 
aocampo do urbanismo, dado o pleno domínio 
do civilismo isso é, das noções hegemônicas 
sobre o direito de propriedade que advinham 
do ideário privatista do Código Civil de 1916. A 
intervenção estatal no domínio da propriedade 
era admitida tão somente na forma do que um dia 
chamei de binômio usucapião–desapropriação. 
As leis municipais também eram muito limitadas, 
restringindo-se sobretudo à demarcação de 
Perímetros duvidosos e a Códigos de Obras e 
Códigos de Posturas tradicionais e obsoletos – 
fora os casos de algumas poucas grandes cidades 
e de algumas experiências malsucedidas de 
formulação de PDMs nos anos 1970. Mesmo 
assim, com todos os seus limites, por ação ou 
omissão, é inegável que essas leis municipais 
cumpriram papéis importantes na determinação 
do padrão segregador da urbanização brasileira 
- e especialmente da natureza estrutural e 
estruturante da informalidade urbana.
12 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1320 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
O que chamamos mais propriamente de Direito 
Urbanístico hoje em dia começou a se formar 
no Brasil a partir de meados da década de 1970, 
inicialmente com uma série de leis municipais de 
zoneamento e de uso/ocupação do solo – a de 
Belo Horizonte em 1976 sendo uma referência 
paradigmática por ter introduzido uma fórmula de 
planejamento territorial urbano que, na escala 1:1, 
articula diversas noções técnicas complexas como 
taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento, 
modelo de assentamento, índice construtivo, 
etc. -, fórmula esta que se tornou hegemônica 
no urbanismo brasileiro. Posteriormente, o 
Direito Urbanístico atingiu outro patamar através 
da aprovação de uma lei muito importante, 
que é a Lei Federal n.o 6.766/1979, que dispõe 
sobre o parcelamento do solo urbano – e que 
efetivamente se prestava ainda que muito 
tardiamente como instrumento de política urbana. 
Na esteira dessa lei, as primeiras experiências 
de regularização fundiária de favelas em Belo 
Horizonte (Pro-Favela) e logo depois no Recife 
(PREZEIS), em 1983, indicaram novos caminhos 
para o Direito Urbanístico do País. Nesse 
período, foram feitas algumas tentativas de 
formulação e de aprovação de uma lei federal de 
desenvolvimento urbano (o Anteprojeto de Lei 
n.o 755/1983 merecendo destaque), mas nada 
disso efetivamente aconteceu - diferentemente 
da ordem jurídico-ambiental, que, esta sim, se 
consolidou nos anos 1980 na esfera federal. 
Antes de avançar, cabe um comentário sobre esse 
descompasso entre as duas ordens jurídicas, a 
ambiental e a urbanística, que é muito revelador. 
Apesar do avanço representado pela Lei Federal 
n.o 6.766/1979, os esforços feitos desde o final 
da década de 1970 e especialmente na primeira 
metade da década de 1980 para aprovar uma lei 
federal de desenvolvimento urbano não lograram 
sucesso. Enquanto no começo da década de 1980 
toda a base de uma ordem jurídica ambiental 
se consolidou com a aprovação de uma série de 
leis federais, inclusive a da Ação Civil Pública, 
somente com a introdução de um breve capítulo 
sobre Política Urbana na Constituição Federal 
de 1988 a ordem jurídico-urbanística avançou – 
sendo que foram necessários 12 anos para que este 
capítulo fosse regulamentado. 
Há quem diga que o avanço da legislação 
ambiental se deu de forma artificial e tecnocrática 
naquele momento, já que não expressava 
uma verdadeira consciência ambiental e nem 
a realidade da mobilização social nesta área 
– enquanto no caso do Direito Urbanístico a 
legislação sempre esteve atrasada em relação 
aos processos sociopolíticos. Parte da razão 
disso, acredito, é que o Direito Urbanístico 
inevitavelmente confronta diretamente a questão 
sempre polêmica do direito de propriedade 
imobiliária, enquanto, por muito tempo, a 
agenda ambiental parecia afirmar uma visão 
naturalista de um meio ambiente abstrato – sem 
que maior atenção fosse dada aos conflitos em 
torno da questão da propriedade que também 
afetam intrinsecamente esse ramo do Direito. De 
certa maneira, vista dessa forma naturalizada, 
a “agenda verde” é de mais fácil aceitação pelas 
elites e classes médias do que a “agenda marrom”, 
suja e explosiva, das cidades – especialmente 
no que toca aos conflitos de posse e propriedade 
envolvendo os mais pobres e vulneráveis.
De qualquer forma, esse conflito entre urbano e 
ambiental – como de resto o conflito entre urbano 
e rural – é artificial, na sua maioria os conflitos 
apontados são falsos, e essa fragmentação do que 
é essencialmente um processo único somente 
gera imobilismo, quando não, retrocesso. Superar 
essas dicotomias e as respostas fragmentadas é 
fundamental para compreender a totalidade da 
questão territorial – e para afirmar o princípio da 
responsabilidade territorial do poder público.
Voltando à trajetória do Direito Urbanístico, nesse 
primeiro momento a ideia dominante que se tinha 
do objeto do Direito Urbanístico era como uma 
forma de promoção discricionária pelo Estado 
de alguma medida de ordenamento territorial e 
controle jurídico dos processos de uso e ocupação, 
parcelamento, construção e preservação do 
solo urbano. Não se admitia a separação entre 
direito de construir e direito de propriedade. A 
natureza do Planejamento Urbano nesse contexto 
seria meramente regulatória. Dessa perspectiva, 
o Direito Urbanístico era inicialmente muito 
associado a uma espécie de apêndice do Direito 
Administrativo – mais uma forma de Direito 
Estatal do que exatamente um verdadeiro 
Direito Público, mais ligado à ideia de imposição 
de “limites administrativos” ou de “restrições 
administrativas” externos à propriedade do que à 
ideia de se qualificar o princípio da função social 
da propriedade por dentro desse direito, além 
de ser totalmente dissociado dos mecanismos 
e processos existentes de gestão urbana e 
financiamento do desenvolvimento urbano.
A Constituição Federal de 1988, o Estatuto da 
Cidade e a nova ordem jurídico-urbanística
Foi com a Constituição Federal de 1988, quando se 
aprovou tardiamente um breve capítulo de Política 
Urbana na ordem jurídica nacional – resultado 
de um processo de mobilização social e de lutas 
populares que gerou a Emenda Popular de Política 
Urbana -, que se reconheceu a autonomia do 
Direito Urbanístico no Brasil: um ramo do Direito 
Público com objeto próprio, princípios próprios, 
leis próprias e instrumentos próprios. 
Dado o contexto político-institucional mais 
amplo de fortalecimento da autonomia 
municipal no País, a Constituição Federal 
atribuiu especialmente aos municípios a 
competência para promover o ordenamento 
territorial, especialmente através dos PDMs: 
na fórmula constitucional, resultado de fortes 
disputas entre grupos durante o processo 
constituinte, o direito de propriedade é 
reconhecido como direito fundamental 
desde que cumprida uma função social a ser 
determinada em processos participativos e 
descentralizados, sobretudo através dos PDMs. 
Em tese, não há direito de propriedade, mas, 
sim, direito à propriedade. Se a intenção dos 
setores conservadores era inviabilizar qualquer 
enfoque progressista da questão da propriedade 
imobiliária ao promover esse atrelamento 
burocrático e tecnocrático à aprovação de PDMs, 
confirmando especialmente os precedentes da 
incipiente prática urbanística nos anos 1970, 
o movimento social organizado se dispôs a 
subverter esta ordem através da afirmação 
da luta por Planos Diretores Municipais 
Participativos que efetivamente dessem funções 
sociais à propriedade imobiliária urbana. 
Na esteira do capítulo constitucional, mesmo 
na falta de sua regulamentação na década de 
1990, houve um avanço enorme do Direito 
Urbanístico, sobretudo por meio da aprovação 
de diversas leis e dos mencionados PDMs, que 
também geraram um movimento significativo 
14 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1520 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
de produção de doutrina e jurisprudência. A 
verdade,porém, é que o Direito Urbanístico 
ainda é muito pouco conhecido, muito pouco 
reconhecido e muito pouco ensinado nas 
faculdades de Direito do Brasil. 
É interessante notar que o movimento inicial de 
euforia em torno do EC vinha de antes mesmo 
de sua aprovação. Quando foi aprovada a 
Constituição Federal de 1988 – afirmando, como 
mencionado, a ideia original de que o direito de 
propriedade é reconhecido desde que cumprida 
uma função social que é aquela determinada pelos 
PDMs –, o Brasil virou um verdadeiro laboratório 
de experiências de gestão urbana e planejamento 
territorial. Em certo momento, diversos voos 
charter levaram para o Brasil urbanistas 
estrangeiros que queriam conhecer novidades 
promissoras, como o Orçamento Participativo, as 
Operações Interligadas, as ZEIS, os Programas de 
Regularização de Assentamentos, dentre outros 
– que eram avanços incontestes do movimento 
da Reforma Urbana e do movimento pelo Direito 
à Cidade, e que expressavam um compromisso 
claro com a inclusão na ordem urbanística dos 
pobres e daqueles que tradicionalmente haviam 
sido excluídos pela urbanização. 
Essa primeira leva dos PDMs, ainda na década 
de 1990, também sofreu críticas de diversos 
setores socioeconômicos conservadores, para os 
quais esses planos davam pouca consideração 
às demandas dos mercados imobiliários e de 
outros atores do setor privado. Essas resistências 
levaram a uma série de questionamentos jurídicos 
– por exemplo, se lei municipal podia tratar de 
temas de direito de propriedade imobiliária, e 
se lei municipal podia ser aprovada sem que 
houvesse uma regulamentação federal do 
capítulo constitucional. Muitos dos avanços que 
estavam sendo consolidados nos municípios 
foram minados por essas resistências crescentes, 
e por isso o Fórum Nacional da Reforma Urbana, 
dentre outros atores, defendeu a regulamentação 
do capítulo constitucional por lei federal – o que 
aconteceu 20 anos atrás com o Estatuto da Cidade 
- e a criação de um aparato institucional federal, 
o que se deu em 2003, com o surgimento do 
Ministério das Cidades.
A lei-marco do Direito Urbanístico é exatamente 
o Estatuto da Cidade, que depois de cerca de 
12 anos de discussões no Congresso Nacional 
foi aprovada para regulamentar o capítulo 
constitucional sobre Política Urbana. Como 
mencionado, também essa lei foi resultado de um 
processo dinâmico de mobilização social em prol 
da promoção de uma ampla Reforma Urbana no 
País, processo este liderado, dentre outros atores, 
pelas centenas de entidades reunidas no Fórum 
Nacional de Reforma Urbana. O EC, porém, o fez 
de outra forma fundamentalmente distinta em 
relação à visão anterior que se tinha do Direito 
Urbanístico. Ao regulamentar a Constituição 
Federal e reconhecendo os muitos direitos sociais 
e coletivos nela contidos, a Lei Federal propôs as 
bases de uma nova ordem jurídico-urbanística, 
conciliando no seu bojo um novo enfoque sobre 
propriedade imobiliária e um novo enfoque sobre 
gestão urbana, assim como abrindo um campo 
pioneiro de discussão sobre o financiamento do 
desenvolvimento urbano no País: quem paga 
e como pelo crescimento urbano, como se dá a 
distribuição dos ônus e benefícios da urbanização. 
A ideia dominante, então, passou a ser não 
mais tão somente a promoção de ordenamento 
territorial e de controle do uso do solo, mas também 
a de materialização na ordem urbanística de uma 
visão socioambiental e o reconhecimento de uma 
série de direitos sociais e coletivos: o bem-estar 
dos cidadãos passa a ser princípio fundamental 
da política urbana - função social da propriedade, 
mas também funções sociais da cidade.
 
Em outras palavras, o EC trouxe no seu bojo 
toda uma nova visão de planejamento territorial 
urbano, visão esta que determina não apenas 
“o que pode ser feito, onde, quando, como 
e por quem”, determinando assim, direta ou 
indiretamente, “quem vive onde e como” na 
cidade – elementos típicos do planejamento 
regulatório tradicional -, mas também a obrigação 
de fazer: a ideia de que a função social da 
propriedade está também na possibilidade de 
obrigar proprietários de imóveis a certas condutas. 
Outro elemento dessa nova ordem jurídica é a 
ideia da participação popular como condição de 
validade jurídica de planos, leis e projetos – e 
não apenas como um critério de verificação de 
sua legitimidade sociopolítica: estamos falando 
aqui, então, de um verdadeiro Direito Público, não 
apenas Estatal, não apenas Administrativo. 
O EC confirma a visão da cidade como uma 
criação coletiva e um bem comum – não apenas 
como resultado das ações de indivíduos e nem 
somente das ações do Estado -, e assim a ideia da 
recuperação para a comunidade da valorização 
imobiliária gerada por todos – através das 
obras e dos serviços públicos, assim como pelas 
mudanças da legislação urbanística - também foi 
imposta pela lei federal como princípio central 
dessa nova ordem jurídica. 
Na esteira da Constituição Federal de 1988, o 
EC reconhece o direito coletivo à regularização 
fundiária dos assentamentos informais 
consolidados. 
Além disso, o EC foi a primeira lei no cenário 
internacional que reconheceu a ideia do Direito à 
Cidade – na forma de “direito a cidades sustentáveis” 
-, conciliando a plataforma da Reforma Urbana com 
a perspectiva de promoções de transformações mais 
profundas na ordem urbanística.
Contudo, se o otimismo inicial em torno do EC 
era compreensível dada a natureza sociopolítica 
do processo de sua elaboração e aprovação, esse 
sentimento era também exagerado, pois vinha 
em boa parte da ideia generalizada da lei como 
solução mágica para os problemas urbanos 
historicamente acumulados do País – quando, 
em última análise, o que a lei propõe é um novo 
marco jurídico-político para a renovação dos 
movimentos sociais e das lutas urbanas. 
Avanços e limites dos PDMs
Ao longo dos últimos 20 anos, o EC certamente 
permitiu avanços importantes, começando com 
o fato de que, em que pesem seus problemas 
e limites, centenas de municípios aprovaram 
as bases de sua ordem territorial — quando 
anteriormente a enorme maioria quase nada tinha 
neste sentido. Antes de fazer qualquer crítica ao 
Estatuto da Cidade, acho fundamental reconhecer 
diversos avanços inegáveis: 
• dos aproximadamente 1.700 municípios 
brasileiros que tinham a obrigação legal de 
elaborar seus PDMs, cerca de 1.450 o fizeram 
em alguma medida e de alguma maneira – o 
que é em si um feito histórico, já que até então 
a maioria dos municípios não tinha quase 
nada de significativo em termos jurídicos e 
urbanísticos;
16 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1720 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
• da mesma forma, em que pesem as distintas 
qualidades sociopolíticas dos processos, houve 
uma série de avanços inegáveis em termos 
da participação popular nos PDMs, inclusive 
com a anulação judicial de alguns por falta de 
participação adequada;
• houve uma produção recorde de informações, 
dados, mapas e fotografias sobre as 
realidades municipais, até então amplamente 
desconhecidas; 
• áreas importantes da política urbana, 
como proteção jurídica do patrimônio e 
meio ambiente, ficaram um pouco mais 
consolidadas nos novos PDMs; 
• milhares de Zonas Especiais de Interesse 
Social - ZEIS foram demarcadas pelo País 
afora; de fato, para muitos analistas talvez seja 
esse o maior avanço dessa geração de PDMs, 
assim permitindo que centenas de milhares 
de pessoas pudessem continuar vivendo em 
assentamentos informais consolidados. 
Contudo a desconfiança em torno da lei que 
se formou ao longo da primeira década de sua 
aplicação decorreu em boa parte do fato de que 
os PDMs não mudaram automaticamente as 
realidades urbanas e sociais... Pelo contrário, a 
maneira seletiva como alguns dos instrumentos 
foram utilizados e apropriados por forças 
do mercado imobiliário certamente agravou 
problemas antigos de segregação, especulação e 
gentrificaçãodas cidades, especialmente como 
resultado do deslocamento recorde de bens e 
recursos do setor público para o setor privado – 
terras, créditos de construção, subsídios, anistias, 
benefícios, renúncias, etc. – principalmente 
através de programas de renovação urbana, 
revitalização, requalificação, etc. promovidos 
pelos municípios em processos opacos e em nome 
de um suposto interesse público.
A primeira avaliação dos novos PDMs também 
indicou um descrédito crescente da parte de 
diversos atores sociais porque muitos destes 
planos não estariam considerando as realidades 
urbanas e sociais do País, especialmente nas 
regiões Norte e Nordeste e nas cidades médias 
e pequenas; e que seriam em muitos casos 
cópias artificiais de modelos formais; que seriam 
excessivamente complicados e burocráticos, 
quando não ininteligíveis; que não conteriam uma 
definição clara das prioridades e sem considerar 
a pouca capacidade de gestão dos municípios. 
Muitas leis municipais foram mudadas sem 
participação popular adequada, e revisões parciais 
posteriores dos planos descaracterizaram muitos 
deles. A revisão dos PDMs na pandemia tem sido 
outro fator de conflito.
Para mim, porém, a questão central a ser 
discutida é que os urbanistas e gestores urbanos 
brasileiros, assim como os juristas em geral, não 
entenderam que a proposta do EC era mudar 
a natureza do planejamento territorial urbano 
- e como resultado ainda prevalece uma visão 
tradicional de planejamento regulatório que não 
se dispõe a interferir diretamente na estrutura 
da propriedade imobiliária. A enorme maioria 
dos PDMs e das leis urbanísticas que os apoiam 
ainda se limita a dizer “o que pode ser feito onde, 
como, quando e por quem”, mas, além de não 
dizer “não pode”, tampouco diz “tem de fazer” – e 
assim não impõe obrigações aos proprietários e 
não enfrenta diretamente a estrutura fundiária 
brasileira, que envolve um estoque gigantesco e 
perverso de imóveis e terrenos vazios – há quase 
seis milhões de imóveis e construções vazias 
e subutilizadas no País, convivendo com um 
déficit habitacional em torno de seis milhões de 
unidades, e isto sem falar do enorme estoque de 
lotes com serviços que são mantidos vazios pelos 
proprietários. Pela mesma razão, não separando 
direito de construção do direito de propriedade, 
há pouquíssima recuperação da valorização 
urbanística na enorme maioria dos PDMs. E o 
pior é que, quando há alguma recuperação dessa 
valorização imobiliária, ela tem se dado de forma 
que não promove a redistribuição socioespacial 
dos recursos gerados, e tudo isso em um contexto 
de crise generalizada de moradia, periferização da 
pobreza, crescimento da informalidade e aumento 
dos despejos e remoções. 
Ao mesmo tempo, esse descompasso entre os 
princípios da política urbana – a agenda da 
Reforma Urbana - e a aplicação seletiva de 
instrumentos do EC têm se dado em contexto de 
esvaziamento, repressão e mesmo criminalização 
crescentes da mobilização social. Os Conselhos 
e Conferências das Cidades foram esvaziados 
em todas as esferas governamentais. Não houve 
uma mudança da cultura urbanística do País: 
para mim, o maior problema da lei não é a lei em 
si, em que pesem seus limites, mas as condições 
de sua leitura, interpretação e aplicação. O EC 
foi abraçado pela metade, em especial pelos 
urbanistas, gestores, juízes, promotores e pela 
sociedade civil. O discurso de direitos nele 
contido não foi materializado, mesmo porque 
a sociedade brasileira tem demandado pouco 
esses direitos nominalmente reconhecidos pelo 
Estatuto da Cidade. A heroica ação da Defensoria 
Pública tem sido a grande revelação nesse 
contexto, já que a ação do Ministério Público 
se tornou ambivalente: no começo era bem 
mais promissora e, posteriormente, se mostrou 
mais sólida na área ambiental do que na área 
urbanística, especialmente quanto às questões de 
moradia social. 
Muito desse descrédito que hoje existe em 
diversos setores em torno da lei decorre da falta 
de compreensão da centralidade sociopolítica e 
socioeconômica da questão urbana e sobretudo 
da questão fundiária: é fundamental fazer essa 
articulação entre política urbana e política 
fundiária. O Ministério das Cidades foi o primeiro 
ministério a ser rifado pelo governo em busca de 
“governabilidade”, e desde então o que temos visto 
é a penetração cada vez mais agressiva de uma 
agenda neoliberal tosca no País. O governo Temer 
começou um desmonte sistemático da ordem 
jurídico-urbanístico-ambiental incipiente, e o 
governo Bolsonaro tem “arrombado as porteiras” 
para deixar “passar a boiada” – ambiental e 
urbanística. O ataque à própria noção da função 
social da propriedade está se dando através da 
PEC n.o 80/2019, que está sendo discutida no 
momento, e a resistência aos PDMs tem mostrado 
o quanto o neoliberalismo também foi abraçado 
por municípios - enquanto a agenda da Reforma 
Urbana tem sido esvaziada no contexto mais 
amplo de desmobilização social. 
A PEC no .80/2019, de iniciativa do Senador 
Flavio Bolsonaro, dentre outros, “Regulamenta a 
função social da propriedade urbana e condiciona 
a desapropriação da propriedade urbana e da 
rural à prévia autorização do Poder Legislativo 
ou de decisão judicial, observando-se em ambos 
os casos o valor de mercado da propriedade na 
indenização”. Ao fazê-lo, a proposta desconsidera 
a autonomia municipal e o papel central dos 
PDMs - que, como mencionado, têm a atribuição 
de definir como se dará o cumprimento da 
18 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1920 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
função social da propriedade -, além de ignorar a 
autonomia entre os Poderes de Estado – já que a 
aplicação dos instrumentos está condicionada à 
autorização legislativa ou judiciária. Se aprovada, 
a PEC vai efetivamente inviabilizar a aplicação 
dos instrumentos do EC que buscam punir a 
retenção especulativa de imóveis nas cidades. 
Trata-se do maior ataque neoliberal à nova ordem 
jurídico-urbanística proposta pela Constituição 
Federal de 1988 e consolidada pelo Estatuto da 
Cidade – e tem de ser derrotada a todo custo. 
Na verdade, diferentemente de outras formas de 
propriedade – industrial, financeira, intelectual, 
etc. -, quando se trata da propriedade imobiliária, 
falar de neoliberalismo é mesmo inadequado, 
já que o Brasil ainda não conseguiu reformar o 
liberalismo clássico do século XIX, e que está na 
base da tradição histórica da cultura privatista e 
patrimonialista hegemônica no País. 
O EC se propõe a reformar essa cultura – mas, ao 
tocar tão diretamente na ordem da propriedade 
imobiliária, a lei-marco tem renovado os 
ataques dos grupos conservadores às propostas e 
tentativas de promoção de ordenamento territorial 
sustentável, inclusivo, democrático, resiliente, 
eficiente, racional, saudável e justo.
É inegável que o EC tem seus muitos limites e 
problemas. Alguns são estruturais, o principal 
deles para mim sendo de base constitucional, 
que é o fato de a Constituição Federal de 1988 ter 
abraçado uma visão de autonomia municipal que 
me parece exacerbada e algo artificial, com pouco 
lugar para a União e para os estados na promoção 
do ordenamento territorial e na formulação da 
política urbana - especialmente quanto àquela 
marca central da urbanização brasileira que é a 
metropolização: a questão metropolitana não é 
tratada de maneira minimamente adequada pela 
ordem constitucional e não cabe adequadamente 
no pacto federativo. A ordem jurídico-urbanístico-
territorial municipal tampouco se articula com 
facilidade com a ordem ambiental estadual, 
especialmente quanto ao tratamento de temas 
fundamentais, como as bacias hidrográficas 
e as áreas de mineração. Parece que estamos 
trabalhando numa esfera territorial errada e com 
instituições inadequadas, confundindo o local 
com o municipal. Dito isso, a União e os estados 
não têm ocupado como deveriam os espaços que 
efetivamente lhes cabem naordem constitucional 
e no pacto federativo – ainda que limitados - 
quanto à promoção do ordenamento territorial.
Há outros limites da lei que são conjunturais, por 
exemplo, a ideia equivocada que ainda vigora em 
muitos contextos de que o EC se limitaria às zonas 
urbanas do município - e com isso muitas zonas 
rurais têm ficado abandonadas pelos PDMs. Esses 
são problemas, no entanto, relativamente menores 
que aos poucos têm sido resolvidos.
Perspectivas
Quais são, então, as perspectivas do Estatuto 
da Cidade nesse contexto de disputas, crise e 
desmonte? 
É fundamental lembrar que a aprovação do 
Estatuto da Cidade levou cerca de 12 anos – isso 
sem considerar as décadas de discussão do 
anteprojeto de lei de desenvolvimento urbano -, e 
nesse tempo a urbanização brasileira certamente 
mudou de natureza. Hoje o Brasil é um país pós-
industrial, metropolitano, com o crescimento 
de cidades médias e pequenas, e cada vez mais 
afetado pelo processo global de financeirização 
da terra, da propriedade, da moradia e da 
cidade, que envolve novos atores como fundos 
de investimento e fundos de pensão que ainda 
são amplamente desconhecidos. As formas de 
exclusão e segregação têm se renovado. 
O desafio que nos é colocado hoje é repensar 
profundamente formas, modelos e, principalmente, 
processos de planejamento territorial urbano e de 
gestão de cidades à luz dessas realidades, ampliando 
o espaço da participação popular sempre, mas 
sobretudo reconhecendo novos espaços de ação 
comunitária direta na gestão do território e das 
políticas públicas e, assim, afirmando uma ordem 
pública maior do que a ordem estatal.
Com todos os seus limites, ainda que possa e 
deva ser aprimorado, ainda que possa e deva 
ser articulado com outras leis especialmente 
urbanísticas e ambientais, o EC ainda é um 
marco fundamental que permite mudanças 
paradigmáticas e que merece ser louvado: nós 
é que temos que fazer por merecer o Estatuto 
da Cidade. Para tanto, temos que lutar por sua 
plena implementação, para o que é fundamental 
interpretá-lo à luz de seus princípios, para 
aplicar plena e consistentemente seus processos, 
mecanismos, instrumentos e recursos. 
Cabe destacar que o Estatuto da Metrópole – Lei 
Federal n.o 13.089/2015 - não tem a mesma origem 
sociopolítica do EC e nem o mesmo compromisso 
com o ideário da Reforma Urbana, expressando 
uma visão distinta de cidade, de gestão urbana e 
de ordenamento territorial. Trata-se certamente 
de legislação importante, já que tenta atacar em 
parte o principal limite estrutural do EC – qual 
seja, a redução do “local” ao “municipal” e a 
falta de uma compreensão sobre o fenômeno da 
metropolização -, mas, ainda que abra espaço 
para maior presença dos estados na promoção 
do ordenamento territorial, ainda esbarra na 
natureza municipalista do pacto federativo – e 
na dificuldade de territorialização de propostas e 
políticas por outros processos decisórios que não 
os municipais.
De qualquer forma, na falta de uma reforma 
constitucional sobre a questão do pacto 
federativo, o Estatuto da Metrópole oferece um 
balizamento para a ação conjunta dos municípios 
para a articulação intergovernamental. Longe de 
esvaziar o EC como alguns sugerem, acho que 
o Estatuto da Metrópole pode contribuir para 
seu fortalecimento. Com todos os seus limites, 
ainda que possa e deva ser aprimorado, ainda 
que possa e deva ser articulado com outras leis 
especialmente urbanísticas e ambientais, como, 
por exemplo, o Estatuto da Metrópole, o novo 
Código Florestal, a Lei Federal n.o 13.465/2017, 
além das leis sobre transporte e mobilidade, 
habitação, saneamento básico, etc., o EC merece 
ser apoiado – e aplicado. 
Os tempos requerem urgentemente que 
aprendamos as lições trágicas da pandemia 
para as cidades e para a sociedade urbana – de 
forma a prevenir futuras pandemias e pelo 
menos minimizar os impactos das mudanças 
climáticas em curso, bem como os efeitos dos 
desastres cada vez mais intensos. O Estatuto da 
Cidade permite isto: afirmar a centralidade da 
questão fundiária; repensar o modelo de cidade; 
romper com a cultura do urbanismo tradicional; 
enfatizar valores de uso, a esfera do comum 
e os direitos coletivos; destacar mais o valor 
social da terra e moradia e menos a defesa da 
20 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 2120 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
23SUDESTE
propriedade individual; articular política urbana 
e política ambiental; e buscar outras formas 
de ordenamento territorial que atendam às 
necessidades contemporâneas. 
Uma última palavra: para mim, na origem dessa 
desconfiança e do descrédito em relação ao 
Estatuto da Cidade há certa visão do Direito que 
urbanistas e juristas têm com muita frequência, 
isto é, a ideia de que o Direito seria um mero 
instrumento – que seria politicamente neutro, 
objetivo, natural, a-histórico –, quando, na 
verdade, o Direito é essencialmente uma arena 
sociopolítica de explicitação, confrontação e 
alguma resolução de conflitos. 
Quando a Constituição Federal de 1988 disse 
que cabe ao Plano Diretor Municipal determinar 
o que é a função social da propriedade – o que, 
por sua vez, é o que permite reconhecer o direito 
de propriedade –, a Constituição colocou o 
urbanismo no coração do processo sociopolítico 
do País. É a qualidade desse processo político que 
vai dizer quando e como se dá a função social. 
Muita gente fala que a lei “pega” ou “não pega”, 
e que o Estatuto não teria “pegado”. Eu diria o 
seguinte: a lei “pega” quando ela tem “pega” no 
processo sociopolítico. Más leis podem dificultar 
avanços sociais, mas boas leis por si só não 
mudam realidades. Criar esses novos processos 
e estruturas de governança da terra urbana é 
o enorme desafio colocado para todos nós, 
urbanistas, juristas, gestores urbanos e cidadãos 
do Brasil, nesse contexto tão dramático em que o 
país se encontra tomado pela combinação trágica 
das crises sanitária, social, urbana, habitacional, 
energética e ambiental. 
A pandemia já deixou claro que, mais do que 
nunca, a hora do Direito Urbanístico é agora: 
conhecê-lo, ensiná-lo e, sobretudo, aplicá-lo se 
tornou questão de sobrevivência social e humana. 
Fazer jus ao potencial de transformação das 
cidades intrínseco ao Estatuto da Cidade deveria 
ser o objetivo comum para a ação articulada 
de juristas, urbanistas, gestores, ativistas – e 
cidadãos.
22 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
24 25SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
26 27SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
Nordeste
0 50 100 500 1000
PARÁ | 28
Bruno Soeiro Vieira
José Júlio Lima
CEARÁ | 40
Clarissa Freitas
Olinda Maria Marques dos Santos
RIO GRANDE DO NORTE | 52
Márcio Moraes Valença
PERNAMBUCO | 62
Fernanda Carolina Costa
PARAIBA | 66
Demóstenes Moraes
José Herbert Luna Lisboa 
Talden Farias e Arícia Fernandes Correia
ALAGOAS | 90 
Débora Cavalcanti
Regina Dulce Lins 
SERGIPE | 104
Ricardo Soares Mascarello
BAHIA | 110
Adriana Nogueira Vieira Lima
Claudio Carvalho
Norte
0 50 100 500 1000
2828 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
BRUNO SOEIRO VIEIRA
Bacharel em Ciências Jurídicas (UFPA). Auditor Fiscal da Secretaria Municipal 
de Finanças do Município de Belém/PA. Especialista em Direito Tributário 
(PUC/Minas Gerais). Mestre em Direito do Estado (Universidade da Amazônia 
- UNAMA). Professor Titular Pós-Stricto Sensu I da Universidade da Amazônia 
- UNAMA. Doutor em Direito (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). 
Doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (NAEA/UFPA). 
Professor no Mestrado em Direitos Fundamentais (UNAMA). Professor no 
programa de Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente 
Urbano (UNAMA). Pesquisador CNPQ (Grupo de Estudo e Pesquisa em Direito 
à Cidade). Coordenador da Região Nortedo Instituto Brasileiro de Direito 
Urbanístico (IBDU), no biênio 2018/2019.
por todos como Estatuto da Cidade (Lei n.o 
10.257/2001).
Devo registrar que em 2001, de acordo com os 
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e 
Estatística (IBGE), a população brasileira estava 
em torno de 170 milhões de habitantes, em 
sua maioria vivendo nos perímetros urbanos. 
Logo, naquele momento, o Brasil já era um 
país eminentemente urbano, cujas cidades se 
caracterizavam pela segregação socioespacial e 
pela negação do Direito à Cidade.
Em 2015, de acordo com o IBGE, a população 
urbana era de 84,72% e, em 2020, eram 49 os 
municípios brasileiros com mais de 500 mil 
habitantes e, destes, 17 superavam a marca de 
1 milhão de habitantes. Portanto, atualmente, 
o Brasil tem 17 municípios “milionários” (em 
número de habitantes), mas, também, ricos em 
pobreza e desigualdade.
Duas décadas depois
Foram muitos e consideráveis os avanços na 
questão urbana promovidos após a vigência do 
Estatuto da Cidade, tais como: a formulação 
de políticas urbanas pautadas na participação 
social (fortalecimento do planejamento e da 
gestão democrática) e o aumento expressivo 
na aprovação do Plano Diretor por parte dos 
municípios brasileiros, pois, segundo a pesquisa 
MUNIC do IBGE, em 2018, o percentual de 
municípios brasileiros com Plano Diretor era 
próximo a 50% e aqueles com mais de 20.000 
habitantes chegavam a 90,1%. Logo, fica evidente 
que houve uma positiva evolução na consolidação 
de uma lógica institucional de construção da 
O ESTATUTO DA CIDADE E O 
PLANEJAMENTO MUNICIPAL 
INTEGRAL 
Uma aproximação ao tema proposto
Sabemos que a Constituição Federal de 1988 deixou patente que, 
em matéria urbanística e no âmbito da legislação concorrente, cabe 
à União editar norma geral. Tal competência legislativa foi exercida 
com a edição do Estatuto da Cidade (quase 12 anos após o advento 
da Carta de 1988). Entretanto, antes mesmo do texto constitucional 
vigente ter sido promulgado em 5 de outubro de 1988, o Movimento 
Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) já estava articulado para 
defender a adoção de um novo paradigma de planejamento do 
desenvolvimento urbano, no qual a cidade fosse acessível a todos, 
a cidadania – na acepção ampla defendida por Milton Santos (2014) 
– estivesse assegurada e o Direito à Cidade fosse universalizado 
àqueles que habitam as manchas urbanas no Brasil. Em outros 
termos, aquele conjunto de mulheres, homens e entidades almejava 
organizar a sociedade civil e criar as bases conceituais necessárias 
à implementação de uma ampla reforma urbana que fosse capaz 
de diminuir as desigualdades sociais, econômicas e espaciais tão 
flagrantes até os dias atuais.
As sementes daquela ampla articulação promovida pelo MNRU germinaram 
com a inclusão de um capítulo específico destinado à política urbana no 
corpo da Carta da República (algo inédito na história constitucional brasileira), 
bem como na edição da lei brasileira de desenvolvimento urbano, conhecida 
30 3130 31NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
política urbana se comparada com o cenário 
anterior ao Estatuto da Cidade.
No entanto, o poeta popular já dizia que nem 
tudo são flores e, neste caso, após a consolidação 
da ordem urbana normativa no País, resta 
ainda garantir que ela seja efetivada, afinal, 
não se pode admitir a existência de milhares de 
normas urbanísticas municipais, sem que elas 
produzam efeitos concretos no universo urbano 
e metropolitano e, portanto, não sejam capazes 
de auxiliar na construção de cidades nas quais o 
Direito à Cidade seja uma realidade. 
Infelizmente, após uma expressiva evolução no 
campo da política urbana, estamos diante de uma 
encruzilhada, tendo que admitir a existência de 
dois caminhos. O primeiro seria a continuidade 
do quadro atual, ou seja, a inefetividade flagrante 
da política urbana, quando as políticas setoriais e 
os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, 
nos planos diretores e demais leis urbanísticas 
não são aplicados ou, ainda, são utilizados de 
modo mitigado, a partir de estratégias políticas 
de determinados agentes que produzem o 
espaço urbano, sobretudo, os agentes do capital 
imobiliário que obstaculizam grandemente a 
implementação do arsenal de instrumentos 
previstos no Estatuto da Cidade. 
Nesse caminho indesejado e impróprio ao 
desenvolvimento sustentável das cidades, 
podemos observar a existência de um teatro da 
política urbana em que é encenada uma obra de 
ficção na qual a cidade tem regras e princípios 
de planejamento municipal que regulam o uso 
e a ocupação do solo e do espaço urbano de 
modo sustentável, equitativo e democrático, de 
modo que as funções sociais da cidade sejam 
a todos garantidas. Entretanto, como toda 
obra ficcional, essa encenação evidencia um 
descolamento da realidade urbana, neste caso, 
as cidades que dispõem de um conjunto de 
normas de cunho urbanístico não implementam, 
plena e concretamente, as políticas setoriais e 
os instrumentos urbanísticos contidos no citado 
conjunto normativo, implicando uma expressiva 
inefetividade daquelas ferramentas que podem 
reconfigurar o espaço urbano de modo a torná-lo 
acessível, sustentável, equitativo e democrático. 
A outra via seria aquela na qual a ordem urbana é 
resultado de um arranjo democrático e plural, na qual 
os instrumentos urbanísticos e as políticas setoriais são 
verdadeiramente construídas, aplicadas e geridas pela 
sociedade em toda a sua diversidade, transformando 
as urbes de espaços informais de segregação 
socioespacial em cidades justas, sustentáveis, plurais 
e acessíveis a todos, independentemente da renda, da 
cor ou do credo de seus habitantes.
Em resumo, minha impressão é de que a maior 
parte dos municípios brasileiros que dispõem 
de planos diretores e outras leis de natureza 
urbanística visam tão somente a cumprir 
superficialmente os comandos expressos no 
texto constitucional e no Estatuto da Cidade 
e, deste modo, evitar que os gestores sofram 
as sanções previstas no ordenamento jurídico 
nacional. Portanto, são leis para “inglês ver”, são 
leis de “perfumaria”, ou seja, ficções normativas 
que em nada ou quase nada contribuem com o 
planejamento do desenvolvimento dos municípios, 
mas que servem para eximir os prefeitos de 
punições ou de crime de improbidade, tal como 
determina o Art. 52 do Estatuto da Cidade.
O descompasso das leis de planejamento municipal
Tal como em uma dança na qual os casais de 
dançarinos precisam estar no mesmo compasso e 
ritmo, as leis de planejamento municipal precisam 
estar na mesma toada, ou seja, necessitam estar 
harmonizadas formando um processo normativo 
integrado e compatível com a Constituição 
Federal, com o Estatuto da Cidade e com o 
Estatuto da Metrópole.
O Estatuto da Cidade deixa bem evidente que 
as leis que compõem o planejamento municipal 
são: o plano diretor, o plano plurianual (PPA), as 
diretrizes orçamentárias (LDO) e o orçamento 
anual (LOA). Contudo o plano diretor ganhou 
ênfase no texto do Estatuto da Cidade ao dispor 
que o PPA, a LDO e a LOA devem incorporar as 
diretrizes e as prioridades contidas na lei do plano 
diretor (§1o do Art. 40). 
Faz todo o sentido a lógica normativa acima 
mencionada, pois, ao incluir o plano diretor no 
contexto das leis de planejamento municipal, 
permite que o instrumento básico da política 
de desenvolvimento e expansão urbana (plano 
diretor) esteja conectado e compatível com 
toda a perspectiva de planificação do futuro do 
município, afinal, como o título deste depoimento 
anuncia, não bastam apenas as boas intenções por 
parte dos gestores e técnicos municipais se não 
existir um planejamento de captação (receita) e de 
desembolso (despesa) dos recursos financeiros por 
parte das municipalidades que estejam em estreita 
harmonia com as diretrizes e as prioridades 
enunciadas no plano diretor municipal.
Sendo assim, na dança da configuração e da 
reconfiguração do espaço urbano, as leis quecompõem o processo de planejamento municipal 
devem estar no mesmo ritmo e compasso, ou 
seja, devem ser concebidas por meio de um 
processo integrado de modo que as diretrizes, 
os objetivos e metas da administração pública 
contidas no PPA (planejamento de longo prazo) 
estejam em conformidade com as metas e 
prioridades contidas na LDO, bem como com as 
regras existentes na lei de execução orçamentária 
(LOA) e, por sua vez, todas em consonância 
com as diretrizes e prioridades de natureza 
urbanística dispostas na lei do plano diretor, 
tais como: saneamento urbano, mobilidade 
urbana, preservação e recuperação do patrimônio 
cultural, habitação, regularização fundiária, 
desapropriações, etc.
Desde que comecei a estudar e, posteriormente, 
pesquisar sobre a questão urbana e metropolitana, 
o plexo normativo que a sustenta e sua necessária 
interdisciplinaridade, sempre tive a curiosidade 
de saber se o previsto §1o do Art. 40 do Estatuto 
da Cidade seria ou não respeitado, afinal, tal 
como acima dito, naquele momento estava em 
curso o processo de consolidação institucional na 
maioria dos municípios brasileiros. Portanto, era 
momento de lutar para que fosse maior o número 
de municípios com plano diretor. 
Contudo entendo que há algum tempo a 
ordem urbana já iniciou um novo estágio 
de aprimoramento, momento no qual as 
municipalidades precisam utilizar efetivamente 
todas as possibilidades contidas no plano diretor 
e nas demais leis urbanísticas, seja por meio da 
execução de políticas setoriais ou, ainda, através 
da aplicação integral dos diversos instrumentos 
urbanísticos, no intuito de transformar os municípios 
para que o desiderato previsto no caput do Art. 182 
da Constituição Federal seja alcançado e possamos 
testemunhar a existência e o gozo das funções 
sociais da cidade por todos os seus habitantes.
Assim, após este modesto diagnóstico conjuntural, 
indago-me: de que maneira as municipalidades 
32 3332 33NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
poderão avançar no campo da política urbana, de 
modo que as normas de planejamento municipal 
sejam construídas harmonicamente e, mais 
importante, sejam úteis ao planejamento do 
desenvolvimento urbano? Como as normas de 
natureza urbanística deixarão de ser apenas o 
invólucro e sejam o conteúdo da política urbana?
Os questionamentos que me faço, que agora amplio 
àqueles que lerem este depoimento, dizem respeito 
à profunda preocupação com a inefetividade dessa 
já consolidada ordem urbana, isto porque este 
conjunto de normas de direito não tem gerado a 
repercussão necessária à transformação urgente 
das cidades brasileiras e, como consequência, as 
urbes continuam a ser a fotografia mais verdadeira 
e cruel da injustiça social, da segregação espacial e 
da negação do Direito à Cidade.
Desse modo, como possíveis agentes capazes de 
alterar a rota da política urbana no Brasil estão: 
o ministério público, a defensoria pública e a 
sociedade civil.
É necessário lembrar o potencial papel 
institucional do ministério público, que tem o 
dever de defender a ordem jurídica, o regime 
democrático, bem como os interesses sociais e 
individuais indisponíveis, devendo empenhar-
se para que a ordem urbana seja cumprida 
integralmente. 
Na mesma toada, devo lembrar a missão 
institucional da defensoria pública, que deve 
atuar na promoção dos direitos humanos e, como 
o meio ambiente urbano é um direito humano, 
também deve a defensoria se empenhar para que 
a ordem urbana seja aplicada plenamente.
Outro agente importante é a sociedade civil, 
que, armada das regras e dos princípios jurídicos 
que evidenciam que a política urbana precisa 
ser concebida, executada e gerida por meio de 
um processo de gestão democrática, deverá 
contribuir neste novo caminho que entendo ser o 
mais apropriado à construção de cidades plurais, 
sustentáveis e justas.
Sem dúvida, todos os agentes citados têm 
sua importância e devem atuar em conjunto 
na construção e na efetivação da ordem 
urbana, objetivando garantir que a política de 
desenvolvimento urbano seja capaz de disciplinar 
o desenvolvimento das funções sociais da 
cidade e, em última análise, garantir que todas 
as mulheres e todos os homens que habitam nas 
cidades vivam com dignidade, tal como almejou 
o legislador constituinte ao redigir o Art. 182 da 
Constituição Federal.
Entretanto, sabe-se que a cidade é uma arena 
de lutas na qual os agentes que produzem o 
espaço urbano, por muitas vezes, têm valores e 
interesses antagônicos, por exemplo: 1) relativos à 
área que representa a história e a cultura de uma 
cidade; 2) relacionados ao uso e à ocupação dos 
leitos de rios e praias; e 3) sobre o coeficiente de 
aproveitamento. Nesse cenário, evidencia-se ser 
ainda mais necessário e urgente que as leis de 
planejamento municipal, o PPA, a LDO, a LOA 
estejam interligadas e incorporem as diretrizes e 
as prioridades contidas na lei do plano diretor.
Assim, em um ambiente conflituoso é 
fundamental que as leis de planejamento estejam 
soando a mesma melodia, estejam harmonizadas, 
permitindo que as prioridades, bem como as 
diretrizes dispostas no plano diretor sejam 
inseridas e estejam respaldadas nas regras típicas 
do planejamento orçamentário-financeiro. Caso 
contrário, não serão suficientes as boas intenções 
em realizar um planejamento do desenvolvimento 
útil a todos, se não houver uma previsão de receita 
(recursos financeiros) que seja suficiente para 
garantir que certa intervenção urbana aconteça. Em 
outros termos, as prioridades e as diretrizes contidas 
no plano diretor devem estar acompanhadas de 
uma estimativa de receita suficiente para sustentar 
o desembolso necessário (despesa) à realização de 
ações de intervenção urbana. 
Para que tal lógica de planejamento municipal 
seja implementada é fundamental que existam 
ações rotineiras de fiscalização por parte dos 
órgãos de controle externo, sobretudo, os 
tribunais de contas e o ministério público junto 
aos tribunais de contas. Afinal, existe uma 
determinação normativa expressa no §1o do Art. 
40 do Estatuto da Cidade que determina que as 
leis orçamentárias incorporem as diretrizes e as 
prioridades contidas no plano diretor. Logo, se 
tal dispositivo está em vigor, não foi considerado 
inconstitucional, deve ser cumprido e os tribunais 
de contas têm o poder-dever de fiscalizar o seu 
cumprimento.
Sendo assim, realizei uma brevíssima pesquisa 
exploratória por meio de um formulário 
eletrônico que enviei pelo WhatsApp para dois 
grupos de servidores que atuam em tribunais de 
contas brasileiros, visando a saber quais cortes 
de contas públicas já adotam sistematicamente 
a fiscalização da compatibilidade de todas as leis 
de planejamento municipal. Por consequência, 
obtive 15 (quinze) respostas, sendo que, destas, 
apenas 6 (seis) admitem que os tribunais 
realizam ações de fiscalização voltadas à 
verificação do atendimento ao previsto no §1o 
do Art. 40 do Estatuto da Cidade, por parte das 
municipalidades, ou seja, 40% dos tribunais 
já incluíram na sua rotina de fiscalização a 
análise da compatibilidade entre todas as leis de 
planejamento municipal. Confesso que fiquei até 
surpreso com o resultado obtido.
Contudo ainda é insuficiente, pois é crucial que 
todos os órgãos de controle externo (tribunais de 
contas, Controladoria Geral da União, ministério 
público junto aos tribunais de contas, Poder 
Legislativo municipal), bem como os órgãos 
de controle interno da administração pública 
exerçam, na medida de suas competências, 
ações necessárias à efetivação da lógica de 
planejamento municipal integrado proposta pelo 
legislador ao redigir o Estatuto da Cidade.
Enfim, dessa maneira teremos a chance de ter um 
processo de planejamento do desenvolvimento 
urbano que esteja em consonância com o 
paradigma expresso no Estatuto da Cidade, no 
qual as boas intenções dos gestores públicos e dos 
agentes que produzem o espaço urbano estejamrespaldadas em normas jurídicas que garantam 
verdadeiramente que as diretrizes e as prioridades 
(boas intenções) escolhidas democraticamente 
pela sociedade serão executadas. Caso contrário, 
continuaremos a ser meros espectadores da obra 
de ficção que tem sido a política urbana no Brasil.
3434 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
JOSÉ JÚLIO LIMA
José Júlio Lima, arquiteto formado na Universidade Federal do Pará (1986), 
mestre em arquitetura pela Universidade de Fukui, Japão (1991), e em Desenho 
Urbano (1994) pela Oxford Brookes University, onde concluiu o doutorado em 
Arquitetura em 2000. É professor titular da UFPA, bolsista de produtividade 2 do 
CNPq e pesquisador do Observatório das Metrópoles. Atuou como Secretário de 
Planejamento do Estado do Pará entre 2007 e 2010.
lado, há de se reconhecer que os instrumentos 
propostos pelo Estatuto têm limitações pela 
própria concepção de cidade nele contida e que 
não são condizentes com o que são as cidades na 
Amazônia – a experiência mostra a necessidade 
de adequação. O urbano amazônico é diverso do 
urbano das demais regiões. As peculiaridades 
ambientais, fundiárias e a interferência do Estado 
Central em projetos econômicos ao longo da 
história de ocupação da região têm produzido 
cidades caracterizadas pela existência de terras de 
várzea que, combinadas com a grande quantidade 
de terras federais, bem como com a grilagem 
de terras, dificultam a implementação dos 
instrumentos do Estatuto da Cidade.
Na Amazônia, onde os limites municipais 
incluem território urbano, vastas áreas rurais com 
absolutamente complexas situações de definição 
fundiária e territórios de ocupação periurbana, 
onde há comunidades ribeirinhas, quilombolas, 
assentamentos da reforma agrária vivendo 
em meio à exploração predatória de madeira, 
minerais e grandes projetos econômicos, ou seja, 
há uma agenda que, embora seja municipal, 
não cabe em um Plano Diretor e seu rol de 
problemas foge ao escopo de instrumentos do 
Estatuto. E mesmo que esforços sejam feitos 
para adequação ou inovações, como é o caso da 
aplicação de ações de regularização fundiária em 
áreas urbanas que vêm sendo repassadas para as 
prefeituras e exigem diretrizes urbanísticas para 
loteamentos e zoneamentos de uso e ocupação 
do solo. Nelas, os instrumentos de zoneamento 
de interesse social têm sido fundamentais para 
o encaminhamento de ações de reconhecimento 
da posse, embora estejam mais relacionados com 
a possibilidade de titulação, por vezes a qualquer 
custo, sem garantia de melhoria de padrões de 
urbanização condizentes com a realidade local.
VINTE ANOS DO ESTATUTO 
DA CIDADE 
Escrevo a partir de atuação na Região Norte, mais 
especificamente em municípios da Amazônia Oriental no 
Estado do Pará. Esta contribuição busca trazer reflexões 
sobre os 20 anos de aprovação do Estatuto da Cidade em 
situações que vão desde sua utilização como justificativa para 
o cumprimento de mera formalidade imposta pelo sistema 
de financiamento de políticas públicas com recursos federais, 
passa por tentativas de suas indicações, principalmente 
referentes à necessidade de articulação de seus instrumentos 
com regulações urbanísticas (zoneamento de uso e ocupação 
do solo), alcançando o que seria uma legitimação, mesmo 
que parcial, de alguns de seus instrumentos em ações de 
regularização fundiária, planejamento participativo na revisão 
e na implementação de planos diretores. 
Vinte anos não foi tempo suficiente para que o Estatuto da Cidade fosse 
incorporado pelo Estado e assumido pela sociedade como parte dos direitos 
garantidos pela Constituição. A identificação de razões para isso, por um lado, 
leva a certo ceticismo de que, em algum momento, será incorporado para 
uso corrente pela sociedade. Esse sentido talvez seja causado pelo excesso 
de “tecnicismo” que grupos formados por interessados no setor imobiliário 
e, portanto, conservadores e comprometidos com o patrimonialismo e a 
manutenção de status quo de elites urbanas aliam-se ao legislativo e a 
membros de gestões municipais deste perfil para que seja mantida uma espécie 
de “hermetismo” de procedimentos para o controle urbanístico. Por outro 
36 3736 37NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
As dificuldades decorrem ainda de outras 
situações constatadas a partir da inadequação dos 
instrumentos obrigatórios do Estatuto à realidade 
de gestão dos municípios na região, caracterizada 
pela falta de um corpo técnico com condições 
e capacidade de aplicá-los, pela falta de cultura 
de planejamento, pela existência de dinâmicas 
imobiliárias periurbanas predatórias e processos 
de expansão urbana desordenada, o que resulta 
em pouca efetividade. Embora seja fundamental 
que o município tenha seu cadastro imobiliário e 
sua planta genérica de valores (PGV) atualizados, 
assim como registros de modificações de usos do 
solo, infraestrutura urbana existente e indicadores 
de acompanhamento do mercado de terras, nada 
disso é comum nos municípios do Pará. 
Voltando ao plano regional, outra questão que foi 
tentada em função das peculiaridades em relação 
ao sistema ambiental hídrico, aptidão da terra para 
aproveitamento econômico, manejo consorciado 
de detritos, etc. foi relacionar o que o Estatuto 
propõe com outros instrumentos de planejamento 
no nível regional disponíveis, como é o caso do 
Zoneamento Econômico e Ecológico estadual. 
Macrozoneamentos foram elaborados em planos 
diretores municipais que buscaram incorporar a 
realidade de exploração da natureza na região.
A questão ambiental determina em grande 
medida a relação entre a legislação urbanística 
intraurbana e a regionalização de políticas 
públicas para as cidades da Amazônia. Isso 
foi experimentado quando da elaboração e da 
revisão de planos diretores como parte das 
ações de mitigação de impactos causados nos 
municípios localizados a jusante da Hidrelétrica 
de Tucuruí. Durante a Campanha dos Planos 
Diretores em 2004-2006, uma equipe de 
professores da Universidade Federal do Pará 
esteve envolvida no desenvolvimento de 
metodologia e acompanhamento na elaboração de 
planos diretores dos cinco municípios localizados 
na região denominada de Baixo Tocantins. O 
conjunto de municípios teve impactos severos 
devido à implantação da Usina Hidrelétrica 
de Tucuruí: redução da oxigenação da água e 
alteração na pesca com prejuízos econômicos 
e alimentícios para as populações, rearranjo 
da localização de comunidades nas sedes 
municipais e nas localidades ribeirinhas e ao 
longo das estradas, bem como uma mudança 
nas relações com a Eletronorte por meio de uma 
longa discussão para a aplicação de recursos 
de compensação. Diferente dos municípios 
localizados a montante, que tiveram porções 
alagadas, na parte a jusante não há sinais tão 
visíveis. Os planos diretores foram elaborados 
com participação de grupos sociais identificados 
pela equipe, sessões de discussão foram 
realizadas para tornar conhecidos da população 
o que eram os instrumentos obrigatórios do 
Estatuto e, embora tenham ocorrido avanços 
entre grupos que já tinham militância na região, 
pouco foi efetivamente implementado. 
Os resultados foram variados em função 
da dificuldade da falta de capacidade de as 
prefeituras implantarem os instrumentos 
propostos sob a inspiração do Estatuto da Cidade. 
Em algumas, houve esforço para garantir que os 
Conselhos da Cidade criados a partir dos Planos 
Diretores se tornassem fóruns de discussão e 
deliberação. Toma-se como referência aqui o 
caso do Município de Limoeiro do Ajuru. Trata-
se de um município ribeirinho, uma vez que está 
localizado na confluência do Rio Pará (tributário 
do Amazonas) e do Rio Tocantins, é 110.34 km, 
mas a distância de condução é 378 km. Na Figura 
1 apresenta-se a área de preservação permanente 
no território municipal, assim definida em função 
da existência de áreas de várzea, terra firme e 
sistema hídrico
Dos cinco municípios que tiveramos planos 
diretores desenvolvidos pela UFPA e as 
prefeituras em 2006, apenas Limoeiro do Ajuru 
teve seu plano revisto em 2018 a partir de uma 
nova aproximação com a universidade. A Figura 
2 mostra a proposta de oficialização de bairros 
constante do Plano Diretor aprovado pela Câmara 
Municipal em 2006.
Nessa nova oportunidade, foi visto que 
os instrumentos do Estatuto da Cidade 
regulamentados no Plano Diretor anterior foram 
praticamente ignorados pela gestão. Mesmo 
que tenha sido detectado que o crescimento 
da periferia da sede municipal tenha ocorrido 
trazendo mais população para os assentamentos 
que já haviam sido detectados e incluídos em 
Zonas de Interesse Social (na FIGURA 3 é 
possível observar um dos mapas de zoneamento 
proposto para a sede municipal de Limoeiro 
do Ajuru, no Pará). A despeito do regramento 
específico, a gestão municipal atuava construindo 
Figura 1: Delimitação de áreas de preservação permanente para o município de Limoeiro do Ajuru 
constante na minuta do projeto de lei de revisão do Plano Diretor, 2018.
Fonte: Minuta do projeto de lei de revisão do Plano Diretor, 2018.
38 3938 39NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
pontes, promovendo aterros e buscando captar 
recursos do Programa Minha Casa Minha Vida 
sem considerar os parâmetros urbanísticos 
diferenciados para habitação de interesse social.
Por último, ainda referenciando a experiência 
de Limoeiro do Ajuru, há de se relacionar 
alguns avanços na gestão ambiental municipal. 
Embora os instrumentos do Estatuto da Cidade 
não tenham sido diretamente implementados, 
é possível observar demandas para a resolução 
de problemas ambientais, como é o caso da 
destinação de resíduos sólidos e da gestão 
das áreas de várzea onde há ocupações por 
população de baixa renda. Observa-se que 
há uma aproximação entre as secretarias de 
meio ambiente municipais e o que poderia 
chamar de “espírito” do Estatuto, ou seja, um 
reconhecimento da existência e, em alguns 
casos, da implantação de medidas de controle de 
ocupação da várzea amazônica tanto nas regiões 
metropolitanas como em municípios menores.
Figura 2: Delimitação de bairros proposta para a sede de Limoeiro do Ajuru em 2006.
Fonte: Plano Diretor aprovado pela Câmara Municipal em 2006.
Figura 3; Mapa de Zonas especiais de interesse social e de interesse ambiental para a sede de 
Limoeiro do Ajuru proposta no projeto de lei da revisão do Plano Diretor de 2018.
Fonte: Minuta do projeto de lei de revisão do Plano Diretor, 2018.
4040 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
CLARISSA FREITAS
Clarissa Freitas é Doutora em Arquitetura e Urbanismo (UNB) e professora da 
Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza desde 2009. Suas pesquisas 
posicionam-se na intercessão entre a economia política da urbanização e o 
projeto urbanístico. Utiliza com frequência modelagem digital da forma urbana 
para informar suas reflexões sobre o significado da urbanização informal para o 
Planejamento Urbano. Foi professora visitante no Departamento de Planejamento 
Urbano e Regional da Universidade de Illinois em Urbana Champaign (UIUC) 
durante o ano acadêmico de 2015/2016, e desde 2018, é coordenadora do Programa 
de Pós-graduação em Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC. Ensina disciplinas 
de “Planejamento da Paisagem”, “Projeto Urbanístico” e “Remoções, Planejamento 
e Cidadania”, além de contribuir com os movimentos sociais urbanos pelo Direito 
à Cidade, em Fortaleza.
Assim, quando cheguei aos Estados Unidos, o 
Brasil vivia um contexto acadêmico de celebração 
da promulgação do Estatuto da Cidade e a 
possibilidade real de que o PT ganhasse as eleições 
federais, o que aprofundou minha curiosidade 
sobre a utopia coletiva que estava nascendo no 
Brasil. Enquanto nenhum de meus professores 
estrangeiros demonstrava familiaridade com o 
processo de urbanização brasileiro, percebia em 
vários deles um interesse genuíno em entender 
o meu contexto. Na disciplina de “planejamento 
internacional” todos tiveram que ler “Pedagogia 
do Oprimido” de Paulo Freire, pois isto era parte 
da abordagem decolonial da professora, que 
questionava o modelo de desenvolvimento que 
eu sempre havia sido ensinada a almejar. Em um 
diálogo de corredor, fui solicitada a opinar sobre o 
Orçamento Participativo de Porto Alegre, porém 
foi durante uma disciplina de “Introdução à Teoria 
do Planejamento”, lecionada pelo respeitado 
professor Lew Hopkins, que tive a oportunidade 
de dar uma aula sobre ZEIS em Fortaleza. 
É claro que ninguém lá sabia o que era ZEIS, nem 
onde ficava Fortaleza! Cheguei a essa situação 
porque, ao sermos solicitados para apresentar 
um dos livros-referência em urbanismo contidos 
numa lista previamente formatada, pedi para 
sair da lista e apresentar algo que era referência 
no meu contexto local. Assim, pude expor o livro 
“Labirintos da Habitação Popular”, da professora 
de Ciências Sociais da UFC Elza Braga, que eu 
tinha levado na mala comigo. Naquele contexto 
americano de ascensão do ideário do “Novo 
Urbanismo”, quando o livro da Jane Jacobs era 
o mais disputado pelos meus colegas, eu sentia 
que a fórmula pronta de “adensar, fomentar uso 
misto, arborizar, substituir carros por pedestres” 
20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: 
FLEXIBILIZAR OU RESPONSABILIZAR-SE 
PELO DESENVOLVIMENTO URBANO?
Quando o Estatuto da Cidade foi promulgado, em meados de 
2001, eu era uma arquiteta recém-formada que acabava de 
chegar a uma cidade universitária no meio-oeste americano 
para cursar mestrado em Planejamento Urbano e Regional. Eu 
já tinha ouvido falar na abordagem inovadora que a lei trazia, 
entretanto a minha atuação profissional no Ceará passava 
completamente ao largo das promessas trazidas pelo Estatuto da 
Cidade. Eu havia participado da elaboração de Planos Diretores 
nos polos de desenvolvimento urbano no interior do estado, 
por meio do PROURB-CE, uma cooperação entre o Governo 
do Ceará e o BIRD. O programa enfatizava a modernização 
administrativa e valorizava a participação, mas fazia muito 
pouco para garantir a incorporação das propostas pelos atores 
locais dos municípios atendidos, que possuíam baixíssima 
capacidade institucional. Por outro lado, os gestores urbanos 
se mostravam interessados apenas no financiamento de obras 
e viam as ações de planejamento como uma etapa burocrática 
a ser cumprida. Em uma época de incipiente difusão de 
informações pela Internet, meu primeiro contato com a noção 
de direito à cidade e sua ênfase em aprender com a experiência 
dos grupos vulneráveis havia chegado para mim através das 
revistas impressas do Instituto Pólis, que eu buscava mais por 
interesse acadêmico do que necessidade da prática profissional.
42 4342 43NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões
não dava conta dos problemas estruturais das 
cidades cearenses que eu havia tentado decifrar. 
O professor aceitou a minha sugestão e, durante 
a apresentação do livro, a turma se mostrou 
bastante interessada. 
Por algum fato relatado no livro, tive que 
explicar que o Estado brasileiro obrigava todo 
loteador a reservar uma porção mínima de 35% 
da gleba para área pública e ainda exigia que o 
loteador instalasse toda a infraestrutura básica. 
O professor comentou sobre como o Estado 
brasileiro tinha uma invejável capacidade 
regulatória. Se, por um lado, saí orgulhosa de ser 
brasileira, por outro lado, saí frustrada por não ter 
conseguido explicar que a facilidade de aprovação 
de tais dispositivos legais se devia exatamente à 
ausência de mecanismos eficientes de controle 
social da sua aplicação. Nem sei se entendia isso 
naquele momento! Outro aspecto que despertou 
muito interesse dos colegas foi a noção de 
limitar o potencial construtivo de um terreno em 
ZEIS para evitar usos do solo que atendessem 
aos interesses do mercado imobiliário. Hoje eu 
entendo que, numa sociedade capitalista como os 
EUA, eles provavelmente nunca tinham

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