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1SUDESTE Organização | Edésio Fernandes 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 2 3SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões Organização | Edésio Fernandes 2 0 2 1 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 4 5SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões Fotos: Edésio Fernandes 6 7SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões Apresentação 0 50 100 500 1000 Lei-marco do Direito Urbanístico brasileiro, o Estatuto da Cidade - Lei Federal n.o 10.257, de 10 de julho de 2001 - foi saudado nacional e internacionalmente quando foi aprovado, e desde então tem havido um enorme esforço de várias ordens para promover sua implementação, sobretudo por meio da aprovação e da revisão de Planos Diretores Municipais. Muitos têm sido os ganhos desse processo, mas igualmente numerosos têm sido os problemas resultantes e/ou enfrentados pelos diversos atores envolvidos. As dificuldades de aplicação da lei – um campo aberto de disputas - têm se tornado ainda maiores no atual contexto de desmonte da ordem jurídico-urbanístico- ambiental do País, processo que já levou a inúmeras modificações do texto original da Lei Federal - e que pode se tornar ainda mais nefasto se aprovada a PEC 80/2019, de iniciativa do Senador Flávio Bolsonaro e outros, que se propõe a “regulamentar a função social da propriedade urbana” de forma a efetivamente inviabilizar a aplicação do Estatuto da Cidade. Avaliar criticamente a lei, então, torna-se ainda mais importante. A proposta deste projeto é simples: coletar depoimentos de vários atores, de várias partes do Brasil, que estão envolvidos de diversas formas nos processos de política, planejamento e gestão urbana - juristas, urbanistas, acadêmicos, defensores públicos, promotores, juízes, líderes de movimentos, ativistas, gestores urbanos, etc. -, sobre suas experiências e avaliações dessa lei-marco. Não se trata de uma publicação acadêmica no sentido estrito, mas tão somente de uma tentativa de organizar um conjunto significativo de reflexões, pessoais e críticas, sobre as experiências desses diversos atores ao longo das duas décadas de tentativas de implementação da lei. Meu único pedido foi que cada um escrevesse um texto livre sobre suas principais avaliações da lei - seu envolvimento pessoal com a lei, sua importância, as dificuldades de sua implementação, seus problemas originários e posteriores, os desafios à sua plena implementação, perspectivas para os próximos anos ou o que fosse do seu interesse. O resultado é um mosaico fascinante de ideias que, espero, possam contribuir para renovar a discussão crítica sobre a implementação do Estatuto da Cidade e da agenda da Reforma Urbana no Brasil. Meus mais sinceros agradecimentos a todos os que aceitaram meu convite. Edésio Fernandes 8 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões Assim como acontece com todos os contribuintes desta publicação - de formas variadas e em medidas distintas -, a trajetória do Estatuto da Cidade coincide em boa parte com minha trajetória profissional e mesmo pessoal. Por um dos acasos da vida, comecei a trabalhar com a chamada “questão urbana” em 1979, no Plambel - naquela época, Superintendência do Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte -, mesmo antes de me formar em Direito pela UFMG. Todo um mundo se descortinou e, desde então, as cidades e suas questões multidisciplinares me seduzem e me preocupam enquanto jurista, urbanista e cidadão. Ainda em 1979, foi aprovada a Lei Federal n.o 6.766, que colocou o Direito Urbanístico em outro patamar, e me vi envolvido com sua aplicação. Aprendi muito com os colegas do Plambel e com o Professor José Rubens Costa, meu primeiro mentor. Na busca por mais elementos que me permitissem compreender melhor a natureza do trabalho que estava fazendo, fiz uma Especialização em Urbanismo na EAU da UFMG e um Curso de Direito Urbano no IBAM, no Rio de Janeiro, onde tive aulas com o inesquecível Professor Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Devo em boa parte a ele a base de minha compreensão sociojurídica sobre o processo de urbanização. No começo dos anos 1980, participei de vários encontros nacionais que tinham por objeto a discussão do que se tornou o Projeto de Lei de Desenvolvimento EDÉSIO FERNANDES Jurista e urbanista, Bacharel, Mestre e Doutor em Direito, Especialista em Urbanismo, Professor, Consultor e Ativista na área do Direito Urbanístico e do Direito à Cidade, Membro da DPU Associates e da Teaching Faculty of the Lincoln Institute of Land Policy, Fellow of the RSA - Royal Society of Arts, Manufactures and Commerce. Urbano (PL n.o 775/1983) - que nunca decolou. Participei de muitas das discussões que levaram à formulação da Emenda Popular de Reforma Urbana que foi submetida ao Congresso Constituinte. Entre 1986 e 1988, trabalhei na assessoria do Congresso Constituinte, e nesta condição me envolvi com a formulação, o encaminhamento e a discussão de diversas propostas sobre questões urbanas, metropolitanas e fundiárias: nesse contexto, sinto-me um pouco presente no capítulo de Política Urbana introduzido na Constituição Federal de 1988. Mesmo morando fora do Brasil desde setembro de 1988, acompanhei de diversas maneiras as experiências municipais pioneiras de formulação de Planos Diretores nos anos 1990 e contribui um pouco para a discussão do Projeto de Lei que, em 2001, foi aprovado como o Estatuto da Cidade. Em 2003, regressei ao Brasil a convite da querida Professora Raquel Rolnik – outra grande mentora - para contribuir juntamente com uma equipe excepcional para a consolidação do recém-criado Ministério das Cidades, que tinha por principal O ESTATUTO DA CIDADE, 20 ANOS MAIS TARDE incumbência promover a implementação do Estatuto da Cidade pelo Brasil afora. Contribuí para a formulação do Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável e, nesta condição, pude viajar por muitas partes do País e conhecer melhor sua enorme diversidade. De especial significação para mim foi a participação na Primeira Conferência Nacional das Cidades, que aconteceu de 23 a 26 de outubro de 2003, em Brasília, evento emocionante que reuniu 2,5 mil delegados dos 27 estados. De volta a Londres desde então, de diversas maneiras ao longo dos últimos 17 nos tenho participado - no Brasil e em inúmeros países - de incontáveis discussões e diversas ações que visam a implementar o Estatuto da Cidade, ou a avaliar sua implementação. Antes de passar a palavra para meus colegas, vou me permitir dar meu próprio depoimento sobre esse processo que me é tão caro. Mudanças de percepção e deslocamentos desde a aprovação do Estatuto da Cidade A Lei Federal n.o 10.257/2001 - o Estatuto da Cidade – é a lei-marco do Direito Urbanístico, este ramo novo e ainda pouco conhecido do Direito Público brasileiro. A aprovação do Estatuto da Cidade - EC gerou uma enorme expectativa de que as experiências promissoras, mas até então limitadas, de promoção de reforma urbana pelos municípios nos anos 1990, através da aprovação de seus Planos Diretores Municipais - PDMs, ganhariam mais folego, dando assim sentido concreto ao princípio constitucional da função social da propriedade. Fruto da mobilização social, além da sua legitimidade sociopolítica, essa Lei Federal também tem outra característica especial no cenário jurídico brasileiro: o EC não apenas contém uma lista de princípios e diretrizes de política urbana e reconhece nominalmente diversos direitos sociais e coletivos, mas também estabelece uma série de processos, mecanismos, instrumentos e recursos a serem incorporados de alguma forma nos PDMs para possibilitar a materialização dos princípios declarados e dos direitos reconhecidos. Chamado por muitosde “caixa de ferramentas” — o EC contém mais de 30 instrumentos jurídicos, urbanísticos e financeiros —, a lei propôs uma articulação rara entre Direito, gestão pública e financiamento do desenvolvimento urbano. O aniversário de 20 anos da aprovação do EC coincide com o movimento de revisão, em diversos casos pela segunda vez, dos PDMs, tal como determinado pela própria lei. Contudo, se no primeiro momento havia um grande otimismo em torno da lei, atualmente há uma série de críticas aos PDMs e mesmo certo descrédito em relação a essa lei-marco. Refletindo sobre a trajetória do EC ao longo de 20 anos, identifiquei uma série de deslocamentos que têm acontecido no campo do Direito Urbanístico e da Política Urbana: • do ideário da função social da propriedade para o ideário da liberdade econômica; • da agenda da reforma urbana e do direito à cidade para o movimento de financeirização da cidade; • da busca de regularização sustentável de assentamentos informais consolidados para a mera legalização formal dos lotes; • da proposta de reconhecimento dos direitos coletivos e da posse ao domínio dos direitos individuais; • da busca de gestão pública democrática às estratégias de privatização; • do fortalecimento do Direito Público ao reforço do Direito Privado; e • do regime das ZEIS – as Zonas Especiais de Interesse Social, que para muitos são a maior invenção do urbanismo brasileiro – ao pós- ZEIS, com a pressão do mercado imobiliário pela abolição dos gravames. Esses deslocamentos que têm acontecido no campo do Direito Urbanístico estão na base de três momentos que podemos identificar de maneira esquemática na evolução da aplicação do EC nos últimos 20 anos - e talvez pudesse também dizer que já estamos chegando a um quarto momento, quais sejam: otimismo; desconfiança; descrédito; e, quem sabe, certo abandono da Lei Federal. 10 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1120 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões Um primeiro momento de otimismo começou quando o EC foi aprovado, saudado, celebrado e premiado: a aprovação do EC gerou um grande esforço nacional no Brasil de elaboração de uma nova geração de Planos Diretores Municipais (PDMs), inclusive pela ação do Ministério das Cidades na sua primeira versão. As primeiras Conferências Nacionais, Estaduais e Municipais das Cidades oxigenaram a discussão sobre a política urbana no País. O Brasil ganhou prêmios internacionais e entrou para o Rol de Honra da ONU por ter aprovado essa lei, que era e ainda é objeto de inveja e cobiça de ministros e primeiros-ministros em diversos países, bem como fonte de inspiração internacional. De fato, a literatura internacional sobre a lei é significativa, debates de todo tipo têm sido promovidos, e diversos países e cidades estrangeiras têm considerado como incorporar aspectos do EC em suas ordens jurídico-urbanísticas. Contudo um segundo momento de certa desconfiança em torno da lei começou alguns anos mais tarde, decorrente sobretudo de críticas crescentes dos movimentos sociais preocupados com o processo de mercantilização alarmante das cidades, especialmente face do avanço de operações urbanas e vendas de créditos, direitos e Cepacs promovidas no contexto jurídico da aplicação de PDMs tal como previsto pelo EC - porém fora de um contexto claro de governança da terra urbana que afirmasse os princípios e diretrizes de política urbana do próprio Estatuto da Cidade. Cerca de dez anos mais tarde talvez, começou um momento de descrédito do EC com diversas avaliações negativas dos novos PDMs e uma visão generalizada de inefetividade dos instrumentos para materializar os princípios de política urbana – apontando assim um descompasso entre os princípios e instrumentos da lei e sua aplicação, e isto em um contexto maior de agravamento da crise urbana no País. Parece que hoje em dia estamos caminhando na direção até mesmo de certo abandono da Lei Federal. Mesmo antes da pandemia de Covid 19, tenho percebido resistências municipais crescentes à atualização dos PDMs, enquanto novas Leis, Medidas Provisórias e Decretos têm sido sistematicamente aprovados pelo Governo Federal e, também, por alguns estados e municípios, propondo as bases de outra cultura jurídico-político-urbanística que não aquela do EC, uma cultura de orientação neoliberal, processo este confirmado e agravado por diversas decisões judiciais que também estão promovendo retrocessos. É verdade que ao longo de todo esse período de 20 anos certamente tem havido muita falta de informação, e muita desinformação, acerca da Lei Federal no meio jurídico e na sociedade mais ampla. O fato é que a maioria dos juristas e juízes – e também dos cidadãos brasileiros – ainda não conhece o EC, a maioria das sentenças judiciais não incorpora os princípios desta Lei Federal, e a maioria das faculdades de Direito também não ensina Direito Urbanístico. Agora, é verdade também que tem havido disputas crescentes de interpretação e apropriação da lei entre juristas, urbanistas e atores diversos, com uma apropriação crescente e seletiva de certos instrumentos da lei pelas forças de mercado imobiliário e financeiro - proprietários, promotores imobiliários e investidores diversos -, a tal ponto que, ironicamente, hoje em dia é mais fácil falar da noção de mais-valias urbanísticas – tabu até poucos anos atrás - do que justificar um simples aumento do IPTU. Isso prova o que sempre afirmei: o Direito Urbanístico não é um mero instrumento como muitos urbanistas imaginam mas, sim, uma arena de conflitos. Mais do que nunca, o Estatuto da Cidade e o Direito Urbanístico são objeto de disputa sociopolítica renovada e acirrada. A trajetória do Direito Urbanístico É fundamental recuperar a trajetória do Direito Urbanístico para compreender melhor esse processo de disputas, tensões, avanços e retrocessos. A construção do Direito Urbanístico se deu muito tardiamente em relação ao fenômeno da urbanização no País. O processo sistemático de urbanização começou na década de 1930 e ganhou um enorme vigor a partir dos anos 1950: o Brasil passou a ser um país majoritariamente urbanizado a partir de meados desta década. A urbanização brasileira chegou ao seu pico no final dos anos 1970 e desde então as taxas são decrescentes, ainda que significativas, com a urbanização acontecendo em novas bases em relação ao período anterior: maior metropolização, maior crescimento de cidades de porte médio e de cidades pequenas, esvaziamento de áreas centrais, crescimento de áreas periurbanas, periferização da pobreza e aumento do crescimento informal e da precariedade habitacional, etc. Contudo esse processo de urbanização rápida e de enorme impacto, que mudou o País de ponta-cabeça – provocando mudanças estruturais em termos territoriais, sociais, econômicos, ambientais e culturais -, se deu sem uma base jurídica minimamente adequada. A pergunta necessária é: a quem se prestou esse descompasso histórico entre a ordem jurídica e a ordem urbanística? O princípio central do Direito Urbanístico – que é a ideia da função social da propriedade – certamente existe nas Constituições desde a Constituição Federal de 1934, porém sem que tenha havido uma definição minimamente clara do seu conteúdo ao longo das décadas de urbanização intensiva, tendo assim sido sempre um princípio muito elusivo. A principal lei que vigorou ao longo desse processo de crescimento urbano até o final dos anos 1970 foi o Decreto- Lei n.o 58, de 1937, que visava a regular aspectos do processo de loteamento do solo urbano, mas que, em que pese sua importância, era totalmente inadequado da perspectiva de uma política urbana - especialmente quando a urbanização no País se dava principalmente de maneira horizontal, pela agregação de novas áreas de expansão urbana e rurais. Nesse período, foram pouquíssimas as leis e decisões judiciais aplicáveis aocampo do urbanismo, dado o pleno domínio do civilismo isso é, das noções hegemônicas sobre o direito de propriedade que advinham do ideário privatista do Código Civil de 1916. A intervenção estatal no domínio da propriedade era admitida tão somente na forma do que um dia chamei de binômio usucapião–desapropriação. As leis municipais também eram muito limitadas, restringindo-se sobretudo à demarcação de Perímetros duvidosos e a Códigos de Obras e Códigos de Posturas tradicionais e obsoletos – fora os casos de algumas poucas grandes cidades e de algumas experiências malsucedidas de formulação de PDMs nos anos 1970. Mesmo assim, com todos os seus limites, por ação ou omissão, é inegável que essas leis municipais cumpriram papéis importantes na determinação do padrão segregador da urbanização brasileira - e especialmente da natureza estrutural e estruturante da informalidade urbana. 12 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1320 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões O que chamamos mais propriamente de Direito Urbanístico hoje em dia começou a se formar no Brasil a partir de meados da década de 1970, inicialmente com uma série de leis municipais de zoneamento e de uso/ocupação do solo – a de Belo Horizonte em 1976 sendo uma referência paradigmática por ter introduzido uma fórmula de planejamento territorial urbano que, na escala 1:1, articula diversas noções técnicas complexas como taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento, modelo de assentamento, índice construtivo, etc. -, fórmula esta que se tornou hegemônica no urbanismo brasileiro. Posteriormente, o Direito Urbanístico atingiu outro patamar através da aprovação de uma lei muito importante, que é a Lei Federal n.o 6.766/1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano – e que efetivamente se prestava ainda que muito tardiamente como instrumento de política urbana. Na esteira dessa lei, as primeiras experiências de regularização fundiária de favelas em Belo Horizonte (Pro-Favela) e logo depois no Recife (PREZEIS), em 1983, indicaram novos caminhos para o Direito Urbanístico do País. Nesse período, foram feitas algumas tentativas de formulação e de aprovação de uma lei federal de desenvolvimento urbano (o Anteprojeto de Lei n.o 755/1983 merecendo destaque), mas nada disso efetivamente aconteceu - diferentemente da ordem jurídico-ambiental, que, esta sim, se consolidou nos anos 1980 na esfera federal. Antes de avançar, cabe um comentário sobre esse descompasso entre as duas ordens jurídicas, a ambiental e a urbanística, que é muito revelador. Apesar do avanço representado pela Lei Federal n.o 6.766/1979, os esforços feitos desde o final da década de 1970 e especialmente na primeira metade da década de 1980 para aprovar uma lei federal de desenvolvimento urbano não lograram sucesso. Enquanto no começo da década de 1980 toda a base de uma ordem jurídica ambiental se consolidou com a aprovação de uma série de leis federais, inclusive a da Ação Civil Pública, somente com a introdução de um breve capítulo sobre Política Urbana na Constituição Federal de 1988 a ordem jurídico-urbanística avançou – sendo que foram necessários 12 anos para que este capítulo fosse regulamentado. Há quem diga que o avanço da legislação ambiental se deu de forma artificial e tecnocrática naquele momento, já que não expressava uma verdadeira consciência ambiental e nem a realidade da mobilização social nesta área – enquanto no caso do Direito Urbanístico a legislação sempre esteve atrasada em relação aos processos sociopolíticos. Parte da razão disso, acredito, é que o Direito Urbanístico inevitavelmente confronta diretamente a questão sempre polêmica do direito de propriedade imobiliária, enquanto, por muito tempo, a agenda ambiental parecia afirmar uma visão naturalista de um meio ambiente abstrato – sem que maior atenção fosse dada aos conflitos em torno da questão da propriedade que também afetam intrinsecamente esse ramo do Direito. De certa maneira, vista dessa forma naturalizada, a “agenda verde” é de mais fácil aceitação pelas elites e classes médias do que a “agenda marrom”, suja e explosiva, das cidades – especialmente no que toca aos conflitos de posse e propriedade envolvendo os mais pobres e vulneráveis. De qualquer forma, esse conflito entre urbano e ambiental – como de resto o conflito entre urbano e rural – é artificial, na sua maioria os conflitos apontados são falsos, e essa fragmentação do que é essencialmente um processo único somente gera imobilismo, quando não, retrocesso. Superar essas dicotomias e as respostas fragmentadas é fundamental para compreender a totalidade da questão territorial – e para afirmar o princípio da responsabilidade territorial do poder público. Voltando à trajetória do Direito Urbanístico, nesse primeiro momento a ideia dominante que se tinha do objeto do Direito Urbanístico era como uma forma de promoção discricionária pelo Estado de alguma medida de ordenamento territorial e controle jurídico dos processos de uso e ocupação, parcelamento, construção e preservação do solo urbano. Não se admitia a separação entre direito de construir e direito de propriedade. A natureza do Planejamento Urbano nesse contexto seria meramente regulatória. Dessa perspectiva, o Direito Urbanístico era inicialmente muito associado a uma espécie de apêndice do Direito Administrativo – mais uma forma de Direito Estatal do que exatamente um verdadeiro Direito Público, mais ligado à ideia de imposição de “limites administrativos” ou de “restrições administrativas” externos à propriedade do que à ideia de se qualificar o princípio da função social da propriedade por dentro desse direito, além de ser totalmente dissociado dos mecanismos e processos existentes de gestão urbana e financiamento do desenvolvimento urbano. A Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Cidade e a nova ordem jurídico-urbanística Foi com a Constituição Federal de 1988, quando se aprovou tardiamente um breve capítulo de Política Urbana na ordem jurídica nacional – resultado de um processo de mobilização social e de lutas populares que gerou a Emenda Popular de Política Urbana -, que se reconheceu a autonomia do Direito Urbanístico no Brasil: um ramo do Direito Público com objeto próprio, princípios próprios, leis próprias e instrumentos próprios. Dado o contexto político-institucional mais amplo de fortalecimento da autonomia municipal no País, a Constituição Federal atribuiu especialmente aos municípios a competência para promover o ordenamento territorial, especialmente através dos PDMs: na fórmula constitucional, resultado de fortes disputas entre grupos durante o processo constituinte, o direito de propriedade é reconhecido como direito fundamental desde que cumprida uma função social a ser determinada em processos participativos e descentralizados, sobretudo através dos PDMs. Em tese, não há direito de propriedade, mas, sim, direito à propriedade. Se a intenção dos setores conservadores era inviabilizar qualquer enfoque progressista da questão da propriedade imobiliária ao promover esse atrelamento burocrático e tecnocrático à aprovação de PDMs, confirmando especialmente os precedentes da incipiente prática urbanística nos anos 1970, o movimento social organizado se dispôs a subverter esta ordem através da afirmação da luta por Planos Diretores Municipais Participativos que efetivamente dessem funções sociais à propriedade imobiliária urbana. Na esteira do capítulo constitucional, mesmo na falta de sua regulamentação na década de 1990, houve um avanço enorme do Direito Urbanístico, sobretudo por meio da aprovação de diversas leis e dos mencionados PDMs, que também geraram um movimento significativo 14 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1520 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões de produção de doutrina e jurisprudência. A verdade,porém, é que o Direito Urbanístico ainda é muito pouco conhecido, muito pouco reconhecido e muito pouco ensinado nas faculdades de Direito do Brasil. É interessante notar que o movimento inicial de euforia em torno do EC vinha de antes mesmo de sua aprovação. Quando foi aprovada a Constituição Federal de 1988 – afirmando, como mencionado, a ideia original de que o direito de propriedade é reconhecido desde que cumprida uma função social que é aquela determinada pelos PDMs –, o Brasil virou um verdadeiro laboratório de experiências de gestão urbana e planejamento territorial. Em certo momento, diversos voos charter levaram para o Brasil urbanistas estrangeiros que queriam conhecer novidades promissoras, como o Orçamento Participativo, as Operações Interligadas, as ZEIS, os Programas de Regularização de Assentamentos, dentre outros – que eram avanços incontestes do movimento da Reforma Urbana e do movimento pelo Direito à Cidade, e que expressavam um compromisso claro com a inclusão na ordem urbanística dos pobres e daqueles que tradicionalmente haviam sido excluídos pela urbanização. Essa primeira leva dos PDMs, ainda na década de 1990, também sofreu críticas de diversos setores socioeconômicos conservadores, para os quais esses planos davam pouca consideração às demandas dos mercados imobiliários e de outros atores do setor privado. Essas resistências levaram a uma série de questionamentos jurídicos – por exemplo, se lei municipal podia tratar de temas de direito de propriedade imobiliária, e se lei municipal podia ser aprovada sem que houvesse uma regulamentação federal do capítulo constitucional. Muitos dos avanços que estavam sendo consolidados nos municípios foram minados por essas resistências crescentes, e por isso o Fórum Nacional da Reforma Urbana, dentre outros atores, defendeu a regulamentação do capítulo constitucional por lei federal – o que aconteceu 20 anos atrás com o Estatuto da Cidade - e a criação de um aparato institucional federal, o que se deu em 2003, com o surgimento do Ministério das Cidades. A lei-marco do Direito Urbanístico é exatamente o Estatuto da Cidade, que depois de cerca de 12 anos de discussões no Congresso Nacional foi aprovada para regulamentar o capítulo constitucional sobre Política Urbana. Como mencionado, também essa lei foi resultado de um processo dinâmico de mobilização social em prol da promoção de uma ampla Reforma Urbana no País, processo este liderado, dentre outros atores, pelas centenas de entidades reunidas no Fórum Nacional de Reforma Urbana. O EC, porém, o fez de outra forma fundamentalmente distinta em relação à visão anterior que se tinha do Direito Urbanístico. Ao regulamentar a Constituição Federal e reconhecendo os muitos direitos sociais e coletivos nela contidos, a Lei Federal propôs as bases de uma nova ordem jurídico-urbanística, conciliando no seu bojo um novo enfoque sobre propriedade imobiliária e um novo enfoque sobre gestão urbana, assim como abrindo um campo pioneiro de discussão sobre o financiamento do desenvolvimento urbano no País: quem paga e como pelo crescimento urbano, como se dá a distribuição dos ônus e benefícios da urbanização. A ideia dominante, então, passou a ser não mais tão somente a promoção de ordenamento territorial e de controle do uso do solo, mas também a de materialização na ordem urbanística de uma visão socioambiental e o reconhecimento de uma série de direitos sociais e coletivos: o bem-estar dos cidadãos passa a ser princípio fundamental da política urbana - função social da propriedade, mas também funções sociais da cidade. Em outras palavras, o EC trouxe no seu bojo toda uma nova visão de planejamento territorial urbano, visão esta que determina não apenas “o que pode ser feito, onde, quando, como e por quem”, determinando assim, direta ou indiretamente, “quem vive onde e como” na cidade – elementos típicos do planejamento regulatório tradicional -, mas também a obrigação de fazer: a ideia de que a função social da propriedade está também na possibilidade de obrigar proprietários de imóveis a certas condutas. Outro elemento dessa nova ordem jurídica é a ideia da participação popular como condição de validade jurídica de planos, leis e projetos – e não apenas como um critério de verificação de sua legitimidade sociopolítica: estamos falando aqui, então, de um verdadeiro Direito Público, não apenas Estatal, não apenas Administrativo. O EC confirma a visão da cidade como uma criação coletiva e um bem comum – não apenas como resultado das ações de indivíduos e nem somente das ações do Estado -, e assim a ideia da recuperação para a comunidade da valorização imobiliária gerada por todos – através das obras e dos serviços públicos, assim como pelas mudanças da legislação urbanística - também foi imposta pela lei federal como princípio central dessa nova ordem jurídica. Na esteira da Constituição Federal de 1988, o EC reconhece o direito coletivo à regularização fundiária dos assentamentos informais consolidados. Além disso, o EC foi a primeira lei no cenário internacional que reconheceu a ideia do Direito à Cidade – na forma de “direito a cidades sustentáveis” -, conciliando a plataforma da Reforma Urbana com a perspectiva de promoções de transformações mais profundas na ordem urbanística. Contudo, se o otimismo inicial em torno do EC era compreensível dada a natureza sociopolítica do processo de sua elaboração e aprovação, esse sentimento era também exagerado, pois vinha em boa parte da ideia generalizada da lei como solução mágica para os problemas urbanos historicamente acumulados do País – quando, em última análise, o que a lei propõe é um novo marco jurídico-político para a renovação dos movimentos sociais e das lutas urbanas. Avanços e limites dos PDMs Ao longo dos últimos 20 anos, o EC certamente permitiu avanços importantes, começando com o fato de que, em que pesem seus problemas e limites, centenas de municípios aprovaram as bases de sua ordem territorial — quando anteriormente a enorme maioria quase nada tinha neste sentido. Antes de fazer qualquer crítica ao Estatuto da Cidade, acho fundamental reconhecer diversos avanços inegáveis: • dos aproximadamente 1.700 municípios brasileiros que tinham a obrigação legal de elaborar seus PDMs, cerca de 1.450 o fizeram em alguma medida e de alguma maneira – o que é em si um feito histórico, já que até então a maioria dos municípios não tinha quase nada de significativo em termos jurídicos e urbanísticos; 16 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1720 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões • da mesma forma, em que pesem as distintas qualidades sociopolíticas dos processos, houve uma série de avanços inegáveis em termos da participação popular nos PDMs, inclusive com a anulação judicial de alguns por falta de participação adequada; • houve uma produção recorde de informações, dados, mapas e fotografias sobre as realidades municipais, até então amplamente desconhecidas; • áreas importantes da política urbana, como proteção jurídica do patrimônio e meio ambiente, ficaram um pouco mais consolidadas nos novos PDMs; • milhares de Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS foram demarcadas pelo País afora; de fato, para muitos analistas talvez seja esse o maior avanço dessa geração de PDMs, assim permitindo que centenas de milhares de pessoas pudessem continuar vivendo em assentamentos informais consolidados. Contudo a desconfiança em torno da lei que se formou ao longo da primeira década de sua aplicação decorreu em boa parte do fato de que os PDMs não mudaram automaticamente as realidades urbanas e sociais... Pelo contrário, a maneira seletiva como alguns dos instrumentos foram utilizados e apropriados por forças do mercado imobiliário certamente agravou problemas antigos de segregação, especulação e gentrificaçãodas cidades, especialmente como resultado do deslocamento recorde de bens e recursos do setor público para o setor privado – terras, créditos de construção, subsídios, anistias, benefícios, renúncias, etc. – principalmente através de programas de renovação urbana, revitalização, requalificação, etc. promovidos pelos municípios em processos opacos e em nome de um suposto interesse público. A primeira avaliação dos novos PDMs também indicou um descrédito crescente da parte de diversos atores sociais porque muitos destes planos não estariam considerando as realidades urbanas e sociais do País, especialmente nas regiões Norte e Nordeste e nas cidades médias e pequenas; e que seriam em muitos casos cópias artificiais de modelos formais; que seriam excessivamente complicados e burocráticos, quando não ininteligíveis; que não conteriam uma definição clara das prioridades e sem considerar a pouca capacidade de gestão dos municípios. Muitas leis municipais foram mudadas sem participação popular adequada, e revisões parciais posteriores dos planos descaracterizaram muitos deles. A revisão dos PDMs na pandemia tem sido outro fator de conflito. Para mim, porém, a questão central a ser discutida é que os urbanistas e gestores urbanos brasileiros, assim como os juristas em geral, não entenderam que a proposta do EC era mudar a natureza do planejamento territorial urbano - e como resultado ainda prevalece uma visão tradicional de planejamento regulatório que não se dispõe a interferir diretamente na estrutura da propriedade imobiliária. A enorme maioria dos PDMs e das leis urbanísticas que os apoiam ainda se limita a dizer “o que pode ser feito onde, como, quando e por quem”, mas, além de não dizer “não pode”, tampouco diz “tem de fazer” – e assim não impõe obrigações aos proprietários e não enfrenta diretamente a estrutura fundiária brasileira, que envolve um estoque gigantesco e perverso de imóveis e terrenos vazios – há quase seis milhões de imóveis e construções vazias e subutilizadas no País, convivendo com um déficit habitacional em torno de seis milhões de unidades, e isto sem falar do enorme estoque de lotes com serviços que são mantidos vazios pelos proprietários. Pela mesma razão, não separando direito de construção do direito de propriedade, há pouquíssima recuperação da valorização urbanística na enorme maioria dos PDMs. E o pior é que, quando há alguma recuperação dessa valorização imobiliária, ela tem se dado de forma que não promove a redistribuição socioespacial dos recursos gerados, e tudo isso em um contexto de crise generalizada de moradia, periferização da pobreza, crescimento da informalidade e aumento dos despejos e remoções. Ao mesmo tempo, esse descompasso entre os princípios da política urbana – a agenda da Reforma Urbana - e a aplicação seletiva de instrumentos do EC têm se dado em contexto de esvaziamento, repressão e mesmo criminalização crescentes da mobilização social. Os Conselhos e Conferências das Cidades foram esvaziados em todas as esferas governamentais. Não houve uma mudança da cultura urbanística do País: para mim, o maior problema da lei não é a lei em si, em que pesem seus limites, mas as condições de sua leitura, interpretação e aplicação. O EC foi abraçado pela metade, em especial pelos urbanistas, gestores, juízes, promotores e pela sociedade civil. O discurso de direitos nele contido não foi materializado, mesmo porque a sociedade brasileira tem demandado pouco esses direitos nominalmente reconhecidos pelo Estatuto da Cidade. A heroica ação da Defensoria Pública tem sido a grande revelação nesse contexto, já que a ação do Ministério Público se tornou ambivalente: no começo era bem mais promissora e, posteriormente, se mostrou mais sólida na área ambiental do que na área urbanística, especialmente quanto às questões de moradia social. Muito desse descrédito que hoje existe em diversos setores em torno da lei decorre da falta de compreensão da centralidade sociopolítica e socioeconômica da questão urbana e sobretudo da questão fundiária: é fundamental fazer essa articulação entre política urbana e política fundiária. O Ministério das Cidades foi o primeiro ministério a ser rifado pelo governo em busca de “governabilidade”, e desde então o que temos visto é a penetração cada vez mais agressiva de uma agenda neoliberal tosca no País. O governo Temer começou um desmonte sistemático da ordem jurídico-urbanístico-ambiental incipiente, e o governo Bolsonaro tem “arrombado as porteiras” para deixar “passar a boiada” – ambiental e urbanística. O ataque à própria noção da função social da propriedade está se dando através da PEC n.o 80/2019, que está sendo discutida no momento, e a resistência aos PDMs tem mostrado o quanto o neoliberalismo também foi abraçado por municípios - enquanto a agenda da Reforma Urbana tem sido esvaziada no contexto mais amplo de desmobilização social. A PEC no .80/2019, de iniciativa do Senador Flavio Bolsonaro, dentre outros, “Regulamenta a função social da propriedade urbana e condiciona a desapropriação da propriedade urbana e da rural à prévia autorização do Poder Legislativo ou de decisão judicial, observando-se em ambos os casos o valor de mercado da propriedade na indenização”. Ao fazê-lo, a proposta desconsidera a autonomia municipal e o papel central dos PDMs - que, como mencionado, têm a atribuição de definir como se dará o cumprimento da 18 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 1920 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões função social da propriedade -, além de ignorar a autonomia entre os Poderes de Estado – já que a aplicação dos instrumentos está condicionada à autorização legislativa ou judiciária. Se aprovada, a PEC vai efetivamente inviabilizar a aplicação dos instrumentos do EC que buscam punir a retenção especulativa de imóveis nas cidades. Trata-se do maior ataque neoliberal à nova ordem jurídico-urbanística proposta pela Constituição Federal de 1988 e consolidada pelo Estatuto da Cidade – e tem de ser derrotada a todo custo. Na verdade, diferentemente de outras formas de propriedade – industrial, financeira, intelectual, etc. -, quando se trata da propriedade imobiliária, falar de neoliberalismo é mesmo inadequado, já que o Brasil ainda não conseguiu reformar o liberalismo clássico do século XIX, e que está na base da tradição histórica da cultura privatista e patrimonialista hegemônica no País. O EC se propõe a reformar essa cultura – mas, ao tocar tão diretamente na ordem da propriedade imobiliária, a lei-marco tem renovado os ataques dos grupos conservadores às propostas e tentativas de promoção de ordenamento territorial sustentável, inclusivo, democrático, resiliente, eficiente, racional, saudável e justo. É inegável que o EC tem seus muitos limites e problemas. Alguns são estruturais, o principal deles para mim sendo de base constitucional, que é o fato de a Constituição Federal de 1988 ter abraçado uma visão de autonomia municipal que me parece exacerbada e algo artificial, com pouco lugar para a União e para os estados na promoção do ordenamento territorial e na formulação da política urbana - especialmente quanto àquela marca central da urbanização brasileira que é a metropolização: a questão metropolitana não é tratada de maneira minimamente adequada pela ordem constitucional e não cabe adequadamente no pacto federativo. A ordem jurídico-urbanístico- territorial municipal tampouco se articula com facilidade com a ordem ambiental estadual, especialmente quanto ao tratamento de temas fundamentais, como as bacias hidrográficas e as áreas de mineração. Parece que estamos trabalhando numa esfera territorial errada e com instituições inadequadas, confundindo o local com o municipal. Dito isso, a União e os estados não têm ocupado como deveriam os espaços que efetivamente lhes cabem naordem constitucional e no pacto federativo – ainda que limitados - quanto à promoção do ordenamento territorial. Há outros limites da lei que são conjunturais, por exemplo, a ideia equivocada que ainda vigora em muitos contextos de que o EC se limitaria às zonas urbanas do município - e com isso muitas zonas rurais têm ficado abandonadas pelos PDMs. Esses são problemas, no entanto, relativamente menores que aos poucos têm sido resolvidos. Perspectivas Quais são, então, as perspectivas do Estatuto da Cidade nesse contexto de disputas, crise e desmonte? É fundamental lembrar que a aprovação do Estatuto da Cidade levou cerca de 12 anos – isso sem considerar as décadas de discussão do anteprojeto de lei de desenvolvimento urbano -, e nesse tempo a urbanização brasileira certamente mudou de natureza. Hoje o Brasil é um país pós- industrial, metropolitano, com o crescimento de cidades médias e pequenas, e cada vez mais afetado pelo processo global de financeirização da terra, da propriedade, da moradia e da cidade, que envolve novos atores como fundos de investimento e fundos de pensão que ainda são amplamente desconhecidos. As formas de exclusão e segregação têm se renovado. O desafio que nos é colocado hoje é repensar profundamente formas, modelos e, principalmente, processos de planejamento territorial urbano e de gestão de cidades à luz dessas realidades, ampliando o espaço da participação popular sempre, mas sobretudo reconhecendo novos espaços de ação comunitária direta na gestão do território e das políticas públicas e, assim, afirmando uma ordem pública maior do que a ordem estatal. Com todos os seus limites, ainda que possa e deva ser aprimorado, ainda que possa e deva ser articulado com outras leis especialmente urbanísticas e ambientais, o EC ainda é um marco fundamental que permite mudanças paradigmáticas e que merece ser louvado: nós é que temos que fazer por merecer o Estatuto da Cidade. Para tanto, temos que lutar por sua plena implementação, para o que é fundamental interpretá-lo à luz de seus princípios, para aplicar plena e consistentemente seus processos, mecanismos, instrumentos e recursos. Cabe destacar que o Estatuto da Metrópole – Lei Federal n.o 13.089/2015 - não tem a mesma origem sociopolítica do EC e nem o mesmo compromisso com o ideário da Reforma Urbana, expressando uma visão distinta de cidade, de gestão urbana e de ordenamento territorial. Trata-se certamente de legislação importante, já que tenta atacar em parte o principal limite estrutural do EC – qual seja, a redução do “local” ao “municipal” e a falta de uma compreensão sobre o fenômeno da metropolização -, mas, ainda que abra espaço para maior presença dos estados na promoção do ordenamento territorial, ainda esbarra na natureza municipalista do pacto federativo – e na dificuldade de territorialização de propostas e políticas por outros processos decisórios que não os municipais. De qualquer forma, na falta de uma reforma constitucional sobre a questão do pacto federativo, o Estatuto da Metrópole oferece um balizamento para a ação conjunta dos municípios para a articulação intergovernamental. Longe de esvaziar o EC como alguns sugerem, acho que o Estatuto da Metrópole pode contribuir para seu fortalecimento. Com todos os seus limites, ainda que possa e deva ser aprimorado, ainda que possa e deva ser articulado com outras leis especialmente urbanísticas e ambientais, como, por exemplo, o Estatuto da Metrópole, o novo Código Florestal, a Lei Federal n.o 13.465/2017, além das leis sobre transporte e mobilidade, habitação, saneamento básico, etc., o EC merece ser apoiado – e aplicado. Os tempos requerem urgentemente que aprendamos as lições trágicas da pandemia para as cidades e para a sociedade urbana – de forma a prevenir futuras pandemias e pelo menos minimizar os impactos das mudanças climáticas em curso, bem como os efeitos dos desastres cada vez mais intensos. O Estatuto da Cidade permite isto: afirmar a centralidade da questão fundiária; repensar o modelo de cidade; romper com a cultura do urbanismo tradicional; enfatizar valores de uso, a esfera do comum e os direitos coletivos; destacar mais o valor social da terra e moradia e menos a defesa da 20 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 2120 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 23SUDESTE propriedade individual; articular política urbana e política ambiental; e buscar outras formas de ordenamento territorial que atendam às necessidades contemporâneas. Uma última palavra: para mim, na origem dessa desconfiança e do descrédito em relação ao Estatuto da Cidade há certa visão do Direito que urbanistas e juristas têm com muita frequência, isto é, a ideia de que o Direito seria um mero instrumento – que seria politicamente neutro, objetivo, natural, a-histórico –, quando, na verdade, o Direito é essencialmente uma arena sociopolítica de explicitação, confrontação e alguma resolução de conflitos. Quando a Constituição Federal de 1988 disse que cabe ao Plano Diretor Municipal determinar o que é a função social da propriedade – o que, por sua vez, é o que permite reconhecer o direito de propriedade –, a Constituição colocou o urbanismo no coração do processo sociopolítico do País. É a qualidade desse processo político que vai dizer quando e como se dá a função social. Muita gente fala que a lei “pega” ou “não pega”, e que o Estatuto não teria “pegado”. Eu diria o seguinte: a lei “pega” quando ela tem “pega” no processo sociopolítico. Más leis podem dificultar avanços sociais, mas boas leis por si só não mudam realidades. Criar esses novos processos e estruturas de governança da terra urbana é o enorme desafio colocado para todos nós, urbanistas, juristas, gestores urbanos e cidadãos do Brasil, nesse contexto tão dramático em que o país se encontra tomado pela combinação trágica das crises sanitária, social, urbana, habitacional, energética e ambiental. A pandemia já deixou claro que, mais do que nunca, a hora do Direito Urbanístico é agora: conhecê-lo, ensiná-lo e, sobretudo, aplicá-lo se tornou questão de sobrevivência social e humana. Fazer jus ao potencial de transformação das cidades intrínseco ao Estatuto da Cidade deveria ser o objetivo comum para a ação articulada de juristas, urbanistas, gestores, ativistas – e cidadãos. 22 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 24 25SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões 26 27SUDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões Nordeste 0 50 100 500 1000 PARÁ | 28 Bruno Soeiro Vieira José Júlio Lima CEARÁ | 40 Clarissa Freitas Olinda Maria Marques dos Santos RIO GRANDE DO NORTE | 52 Márcio Moraes Valença PERNAMBUCO | 62 Fernanda Carolina Costa PARAIBA | 66 Demóstenes Moraes José Herbert Luna Lisboa Talden Farias e Arícia Fernandes Correia ALAGOAS | 90 Débora Cavalcanti Regina Dulce Lins SERGIPE | 104 Ricardo Soares Mascarello BAHIA | 110 Adriana Nogueira Vieira Lima Claudio Carvalho Norte 0 50 100 500 1000 2828 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões BRUNO SOEIRO VIEIRA Bacharel em Ciências Jurídicas (UFPA). Auditor Fiscal da Secretaria Municipal de Finanças do Município de Belém/PA. Especialista em Direito Tributário (PUC/Minas Gerais). Mestre em Direito do Estado (Universidade da Amazônia - UNAMA). Professor Titular Pós-Stricto Sensu I da Universidade da Amazônia - UNAMA. Doutor em Direito (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (NAEA/UFPA). Professor no Mestrado em Direitos Fundamentais (UNAMA). Professor no programa de Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano (UNAMA). Pesquisador CNPQ (Grupo de Estudo e Pesquisa em Direito à Cidade). Coordenador da Região Nortedo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), no biênio 2018/2019. por todos como Estatuto da Cidade (Lei n.o 10.257/2001). Devo registrar que em 2001, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira estava em torno de 170 milhões de habitantes, em sua maioria vivendo nos perímetros urbanos. Logo, naquele momento, o Brasil já era um país eminentemente urbano, cujas cidades se caracterizavam pela segregação socioespacial e pela negação do Direito à Cidade. Em 2015, de acordo com o IBGE, a população urbana era de 84,72% e, em 2020, eram 49 os municípios brasileiros com mais de 500 mil habitantes e, destes, 17 superavam a marca de 1 milhão de habitantes. Portanto, atualmente, o Brasil tem 17 municípios “milionários” (em número de habitantes), mas, também, ricos em pobreza e desigualdade. Duas décadas depois Foram muitos e consideráveis os avanços na questão urbana promovidos após a vigência do Estatuto da Cidade, tais como: a formulação de políticas urbanas pautadas na participação social (fortalecimento do planejamento e da gestão democrática) e o aumento expressivo na aprovação do Plano Diretor por parte dos municípios brasileiros, pois, segundo a pesquisa MUNIC do IBGE, em 2018, o percentual de municípios brasileiros com Plano Diretor era próximo a 50% e aqueles com mais de 20.000 habitantes chegavam a 90,1%. Logo, fica evidente que houve uma positiva evolução na consolidação de uma lógica institucional de construção da O ESTATUTO DA CIDADE E O PLANEJAMENTO MUNICIPAL INTEGRAL Uma aproximação ao tema proposto Sabemos que a Constituição Federal de 1988 deixou patente que, em matéria urbanística e no âmbito da legislação concorrente, cabe à União editar norma geral. Tal competência legislativa foi exercida com a edição do Estatuto da Cidade (quase 12 anos após o advento da Carta de 1988). Entretanto, antes mesmo do texto constitucional vigente ter sido promulgado em 5 de outubro de 1988, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) já estava articulado para defender a adoção de um novo paradigma de planejamento do desenvolvimento urbano, no qual a cidade fosse acessível a todos, a cidadania – na acepção ampla defendida por Milton Santos (2014) – estivesse assegurada e o Direito à Cidade fosse universalizado àqueles que habitam as manchas urbanas no Brasil. Em outros termos, aquele conjunto de mulheres, homens e entidades almejava organizar a sociedade civil e criar as bases conceituais necessárias à implementação de uma ampla reforma urbana que fosse capaz de diminuir as desigualdades sociais, econômicas e espaciais tão flagrantes até os dias atuais. As sementes daquela ampla articulação promovida pelo MNRU germinaram com a inclusão de um capítulo específico destinado à política urbana no corpo da Carta da República (algo inédito na história constitucional brasileira), bem como na edição da lei brasileira de desenvolvimento urbano, conhecida 30 3130 31NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões política urbana se comparada com o cenário anterior ao Estatuto da Cidade. No entanto, o poeta popular já dizia que nem tudo são flores e, neste caso, após a consolidação da ordem urbana normativa no País, resta ainda garantir que ela seja efetivada, afinal, não se pode admitir a existência de milhares de normas urbanísticas municipais, sem que elas produzam efeitos concretos no universo urbano e metropolitano e, portanto, não sejam capazes de auxiliar na construção de cidades nas quais o Direito à Cidade seja uma realidade. Infelizmente, após uma expressiva evolução no campo da política urbana, estamos diante de uma encruzilhada, tendo que admitir a existência de dois caminhos. O primeiro seria a continuidade do quadro atual, ou seja, a inefetividade flagrante da política urbana, quando as políticas setoriais e os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, nos planos diretores e demais leis urbanísticas não são aplicados ou, ainda, são utilizados de modo mitigado, a partir de estratégias políticas de determinados agentes que produzem o espaço urbano, sobretudo, os agentes do capital imobiliário que obstaculizam grandemente a implementação do arsenal de instrumentos previstos no Estatuto da Cidade. Nesse caminho indesejado e impróprio ao desenvolvimento sustentável das cidades, podemos observar a existência de um teatro da política urbana em que é encenada uma obra de ficção na qual a cidade tem regras e princípios de planejamento municipal que regulam o uso e a ocupação do solo e do espaço urbano de modo sustentável, equitativo e democrático, de modo que as funções sociais da cidade sejam a todos garantidas. Entretanto, como toda obra ficcional, essa encenação evidencia um descolamento da realidade urbana, neste caso, as cidades que dispõem de um conjunto de normas de cunho urbanístico não implementam, plena e concretamente, as políticas setoriais e os instrumentos urbanísticos contidos no citado conjunto normativo, implicando uma expressiva inefetividade daquelas ferramentas que podem reconfigurar o espaço urbano de modo a torná-lo acessível, sustentável, equitativo e democrático. A outra via seria aquela na qual a ordem urbana é resultado de um arranjo democrático e plural, na qual os instrumentos urbanísticos e as políticas setoriais são verdadeiramente construídas, aplicadas e geridas pela sociedade em toda a sua diversidade, transformando as urbes de espaços informais de segregação socioespacial em cidades justas, sustentáveis, plurais e acessíveis a todos, independentemente da renda, da cor ou do credo de seus habitantes. Em resumo, minha impressão é de que a maior parte dos municípios brasileiros que dispõem de planos diretores e outras leis de natureza urbanística visam tão somente a cumprir superficialmente os comandos expressos no texto constitucional e no Estatuto da Cidade e, deste modo, evitar que os gestores sofram as sanções previstas no ordenamento jurídico nacional. Portanto, são leis para “inglês ver”, são leis de “perfumaria”, ou seja, ficções normativas que em nada ou quase nada contribuem com o planejamento do desenvolvimento dos municípios, mas que servem para eximir os prefeitos de punições ou de crime de improbidade, tal como determina o Art. 52 do Estatuto da Cidade. O descompasso das leis de planejamento municipal Tal como em uma dança na qual os casais de dançarinos precisam estar no mesmo compasso e ritmo, as leis de planejamento municipal precisam estar na mesma toada, ou seja, necessitam estar harmonizadas formando um processo normativo integrado e compatível com a Constituição Federal, com o Estatuto da Cidade e com o Estatuto da Metrópole. O Estatuto da Cidade deixa bem evidente que as leis que compõem o planejamento municipal são: o plano diretor, o plano plurianual (PPA), as diretrizes orçamentárias (LDO) e o orçamento anual (LOA). Contudo o plano diretor ganhou ênfase no texto do Estatuto da Cidade ao dispor que o PPA, a LDO e a LOA devem incorporar as diretrizes e as prioridades contidas na lei do plano diretor (§1o do Art. 40). Faz todo o sentido a lógica normativa acima mencionada, pois, ao incluir o plano diretor no contexto das leis de planejamento municipal, permite que o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana (plano diretor) esteja conectado e compatível com toda a perspectiva de planificação do futuro do município, afinal, como o título deste depoimento anuncia, não bastam apenas as boas intenções por parte dos gestores e técnicos municipais se não existir um planejamento de captação (receita) e de desembolso (despesa) dos recursos financeiros por parte das municipalidades que estejam em estreita harmonia com as diretrizes e as prioridades enunciadas no plano diretor municipal. Sendo assim, na dança da configuração e da reconfiguração do espaço urbano, as leis quecompõem o processo de planejamento municipal devem estar no mesmo ritmo e compasso, ou seja, devem ser concebidas por meio de um processo integrado de modo que as diretrizes, os objetivos e metas da administração pública contidas no PPA (planejamento de longo prazo) estejam em conformidade com as metas e prioridades contidas na LDO, bem como com as regras existentes na lei de execução orçamentária (LOA) e, por sua vez, todas em consonância com as diretrizes e prioridades de natureza urbanística dispostas na lei do plano diretor, tais como: saneamento urbano, mobilidade urbana, preservação e recuperação do patrimônio cultural, habitação, regularização fundiária, desapropriações, etc. Desde que comecei a estudar e, posteriormente, pesquisar sobre a questão urbana e metropolitana, o plexo normativo que a sustenta e sua necessária interdisciplinaridade, sempre tive a curiosidade de saber se o previsto §1o do Art. 40 do Estatuto da Cidade seria ou não respeitado, afinal, tal como acima dito, naquele momento estava em curso o processo de consolidação institucional na maioria dos municípios brasileiros. Portanto, era momento de lutar para que fosse maior o número de municípios com plano diretor. Contudo entendo que há algum tempo a ordem urbana já iniciou um novo estágio de aprimoramento, momento no qual as municipalidades precisam utilizar efetivamente todas as possibilidades contidas no plano diretor e nas demais leis urbanísticas, seja por meio da execução de políticas setoriais ou, ainda, através da aplicação integral dos diversos instrumentos urbanísticos, no intuito de transformar os municípios para que o desiderato previsto no caput do Art. 182 da Constituição Federal seja alcançado e possamos testemunhar a existência e o gozo das funções sociais da cidade por todos os seus habitantes. Assim, após este modesto diagnóstico conjuntural, indago-me: de que maneira as municipalidades 32 3332 33NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões poderão avançar no campo da política urbana, de modo que as normas de planejamento municipal sejam construídas harmonicamente e, mais importante, sejam úteis ao planejamento do desenvolvimento urbano? Como as normas de natureza urbanística deixarão de ser apenas o invólucro e sejam o conteúdo da política urbana? Os questionamentos que me faço, que agora amplio àqueles que lerem este depoimento, dizem respeito à profunda preocupação com a inefetividade dessa já consolidada ordem urbana, isto porque este conjunto de normas de direito não tem gerado a repercussão necessária à transformação urgente das cidades brasileiras e, como consequência, as urbes continuam a ser a fotografia mais verdadeira e cruel da injustiça social, da segregação espacial e da negação do Direito à Cidade. Desse modo, como possíveis agentes capazes de alterar a rota da política urbana no Brasil estão: o ministério público, a defensoria pública e a sociedade civil. É necessário lembrar o potencial papel institucional do ministério público, que tem o dever de defender a ordem jurídica, o regime democrático, bem como os interesses sociais e individuais indisponíveis, devendo empenhar- se para que a ordem urbana seja cumprida integralmente. Na mesma toada, devo lembrar a missão institucional da defensoria pública, que deve atuar na promoção dos direitos humanos e, como o meio ambiente urbano é um direito humano, também deve a defensoria se empenhar para que a ordem urbana seja aplicada plenamente. Outro agente importante é a sociedade civil, que, armada das regras e dos princípios jurídicos que evidenciam que a política urbana precisa ser concebida, executada e gerida por meio de um processo de gestão democrática, deverá contribuir neste novo caminho que entendo ser o mais apropriado à construção de cidades plurais, sustentáveis e justas. Sem dúvida, todos os agentes citados têm sua importância e devem atuar em conjunto na construção e na efetivação da ordem urbana, objetivando garantir que a política de desenvolvimento urbano seja capaz de disciplinar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e, em última análise, garantir que todas as mulheres e todos os homens que habitam nas cidades vivam com dignidade, tal como almejou o legislador constituinte ao redigir o Art. 182 da Constituição Federal. Entretanto, sabe-se que a cidade é uma arena de lutas na qual os agentes que produzem o espaço urbano, por muitas vezes, têm valores e interesses antagônicos, por exemplo: 1) relativos à área que representa a história e a cultura de uma cidade; 2) relacionados ao uso e à ocupação dos leitos de rios e praias; e 3) sobre o coeficiente de aproveitamento. Nesse cenário, evidencia-se ser ainda mais necessário e urgente que as leis de planejamento municipal, o PPA, a LDO, a LOA estejam interligadas e incorporem as diretrizes e as prioridades contidas na lei do plano diretor. Assim, em um ambiente conflituoso é fundamental que as leis de planejamento estejam soando a mesma melodia, estejam harmonizadas, permitindo que as prioridades, bem como as diretrizes dispostas no plano diretor sejam inseridas e estejam respaldadas nas regras típicas do planejamento orçamentário-financeiro. Caso contrário, não serão suficientes as boas intenções em realizar um planejamento do desenvolvimento útil a todos, se não houver uma previsão de receita (recursos financeiros) que seja suficiente para garantir que certa intervenção urbana aconteça. Em outros termos, as prioridades e as diretrizes contidas no plano diretor devem estar acompanhadas de uma estimativa de receita suficiente para sustentar o desembolso necessário (despesa) à realização de ações de intervenção urbana. Para que tal lógica de planejamento municipal seja implementada é fundamental que existam ações rotineiras de fiscalização por parte dos órgãos de controle externo, sobretudo, os tribunais de contas e o ministério público junto aos tribunais de contas. Afinal, existe uma determinação normativa expressa no §1o do Art. 40 do Estatuto da Cidade que determina que as leis orçamentárias incorporem as diretrizes e as prioridades contidas no plano diretor. Logo, se tal dispositivo está em vigor, não foi considerado inconstitucional, deve ser cumprido e os tribunais de contas têm o poder-dever de fiscalizar o seu cumprimento. Sendo assim, realizei uma brevíssima pesquisa exploratória por meio de um formulário eletrônico que enviei pelo WhatsApp para dois grupos de servidores que atuam em tribunais de contas brasileiros, visando a saber quais cortes de contas públicas já adotam sistematicamente a fiscalização da compatibilidade de todas as leis de planejamento municipal. Por consequência, obtive 15 (quinze) respostas, sendo que, destas, apenas 6 (seis) admitem que os tribunais realizam ações de fiscalização voltadas à verificação do atendimento ao previsto no §1o do Art. 40 do Estatuto da Cidade, por parte das municipalidades, ou seja, 40% dos tribunais já incluíram na sua rotina de fiscalização a análise da compatibilidade entre todas as leis de planejamento municipal. Confesso que fiquei até surpreso com o resultado obtido. Contudo ainda é insuficiente, pois é crucial que todos os órgãos de controle externo (tribunais de contas, Controladoria Geral da União, ministério público junto aos tribunais de contas, Poder Legislativo municipal), bem como os órgãos de controle interno da administração pública exerçam, na medida de suas competências, ações necessárias à efetivação da lógica de planejamento municipal integrado proposta pelo legislador ao redigir o Estatuto da Cidade. Enfim, dessa maneira teremos a chance de ter um processo de planejamento do desenvolvimento urbano que esteja em consonância com o paradigma expresso no Estatuto da Cidade, no qual as boas intenções dos gestores públicos e dos agentes que produzem o espaço urbano estejamrespaldadas em normas jurídicas que garantam verdadeiramente que as diretrizes e as prioridades (boas intenções) escolhidas democraticamente pela sociedade serão executadas. Caso contrário, continuaremos a ser meros espectadores da obra de ficção que tem sido a política urbana no Brasil. 3434 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões JOSÉ JÚLIO LIMA José Júlio Lima, arquiteto formado na Universidade Federal do Pará (1986), mestre em arquitetura pela Universidade de Fukui, Japão (1991), e em Desenho Urbano (1994) pela Oxford Brookes University, onde concluiu o doutorado em Arquitetura em 2000. É professor titular da UFPA, bolsista de produtividade 2 do CNPq e pesquisador do Observatório das Metrópoles. Atuou como Secretário de Planejamento do Estado do Pará entre 2007 e 2010. lado, há de se reconhecer que os instrumentos propostos pelo Estatuto têm limitações pela própria concepção de cidade nele contida e que não são condizentes com o que são as cidades na Amazônia – a experiência mostra a necessidade de adequação. O urbano amazônico é diverso do urbano das demais regiões. As peculiaridades ambientais, fundiárias e a interferência do Estado Central em projetos econômicos ao longo da história de ocupação da região têm produzido cidades caracterizadas pela existência de terras de várzea que, combinadas com a grande quantidade de terras federais, bem como com a grilagem de terras, dificultam a implementação dos instrumentos do Estatuto da Cidade. Na Amazônia, onde os limites municipais incluem território urbano, vastas áreas rurais com absolutamente complexas situações de definição fundiária e territórios de ocupação periurbana, onde há comunidades ribeirinhas, quilombolas, assentamentos da reforma agrária vivendo em meio à exploração predatória de madeira, minerais e grandes projetos econômicos, ou seja, há uma agenda que, embora seja municipal, não cabe em um Plano Diretor e seu rol de problemas foge ao escopo de instrumentos do Estatuto. E mesmo que esforços sejam feitos para adequação ou inovações, como é o caso da aplicação de ações de regularização fundiária em áreas urbanas que vêm sendo repassadas para as prefeituras e exigem diretrizes urbanísticas para loteamentos e zoneamentos de uso e ocupação do solo. Nelas, os instrumentos de zoneamento de interesse social têm sido fundamentais para o encaminhamento de ações de reconhecimento da posse, embora estejam mais relacionados com a possibilidade de titulação, por vezes a qualquer custo, sem garantia de melhoria de padrões de urbanização condizentes com a realidade local. VINTE ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE Escrevo a partir de atuação na Região Norte, mais especificamente em municípios da Amazônia Oriental no Estado do Pará. Esta contribuição busca trazer reflexões sobre os 20 anos de aprovação do Estatuto da Cidade em situações que vão desde sua utilização como justificativa para o cumprimento de mera formalidade imposta pelo sistema de financiamento de políticas públicas com recursos federais, passa por tentativas de suas indicações, principalmente referentes à necessidade de articulação de seus instrumentos com regulações urbanísticas (zoneamento de uso e ocupação do solo), alcançando o que seria uma legitimação, mesmo que parcial, de alguns de seus instrumentos em ações de regularização fundiária, planejamento participativo na revisão e na implementação de planos diretores. Vinte anos não foi tempo suficiente para que o Estatuto da Cidade fosse incorporado pelo Estado e assumido pela sociedade como parte dos direitos garantidos pela Constituição. A identificação de razões para isso, por um lado, leva a certo ceticismo de que, em algum momento, será incorporado para uso corrente pela sociedade. Esse sentido talvez seja causado pelo excesso de “tecnicismo” que grupos formados por interessados no setor imobiliário e, portanto, conservadores e comprometidos com o patrimonialismo e a manutenção de status quo de elites urbanas aliam-se ao legislativo e a membros de gestões municipais deste perfil para que seja mantida uma espécie de “hermetismo” de procedimentos para o controle urbanístico. Por outro 36 3736 37NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões As dificuldades decorrem ainda de outras situações constatadas a partir da inadequação dos instrumentos obrigatórios do Estatuto à realidade de gestão dos municípios na região, caracterizada pela falta de um corpo técnico com condições e capacidade de aplicá-los, pela falta de cultura de planejamento, pela existência de dinâmicas imobiliárias periurbanas predatórias e processos de expansão urbana desordenada, o que resulta em pouca efetividade. Embora seja fundamental que o município tenha seu cadastro imobiliário e sua planta genérica de valores (PGV) atualizados, assim como registros de modificações de usos do solo, infraestrutura urbana existente e indicadores de acompanhamento do mercado de terras, nada disso é comum nos municípios do Pará. Voltando ao plano regional, outra questão que foi tentada em função das peculiaridades em relação ao sistema ambiental hídrico, aptidão da terra para aproveitamento econômico, manejo consorciado de detritos, etc. foi relacionar o que o Estatuto propõe com outros instrumentos de planejamento no nível regional disponíveis, como é o caso do Zoneamento Econômico e Ecológico estadual. Macrozoneamentos foram elaborados em planos diretores municipais que buscaram incorporar a realidade de exploração da natureza na região. A questão ambiental determina em grande medida a relação entre a legislação urbanística intraurbana e a regionalização de políticas públicas para as cidades da Amazônia. Isso foi experimentado quando da elaboração e da revisão de planos diretores como parte das ações de mitigação de impactos causados nos municípios localizados a jusante da Hidrelétrica de Tucuruí. Durante a Campanha dos Planos Diretores em 2004-2006, uma equipe de professores da Universidade Federal do Pará esteve envolvida no desenvolvimento de metodologia e acompanhamento na elaboração de planos diretores dos cinco municípios localizados na região denominada de Baixo Tocantins. O conjunto de municípios teve impactos severos devido à implantação da Usina Hidrelétrica de Tucuruí: redução da oxigenação da água e alteração na pesca com prejuízos econômicos e alimentícios para as populações, rearranjo da localização de comunidades nas sedes municipais e nas localidades ribeirinhas e ao longo das estradas, bem como uma mudança nas relações com a Eletronorte por meio de uma longa discussão para a aplicação de recursos de compensação. Diferente dos municípios localizados a montante, que tiveram porções alagadas, na parte a jusante não há sinais tão visíveis. Os planos diretores foram elaborados com participação de grupos sociais identificados pela equipe, sessões de discussão foram realizadas para tornar conhecidos da população o que eram os instrumentos obrigatórios do Estatuto e, embora tenham ocorrido avanços entre grupos que já tinham militância na região, pouco foi efetivamente implementado. Os resultados foram variados em função da dificuldade da falta de capacidade de as prefeituras implantarem os instrumentos propostos sob a inspiração do Estatuto da Cidade. Em algumas, houve esforço para garantir que os Conselhos da Cidade criados a partir dos Planos Diretores se tornassem fóruns de discussão e deliberação. Toma-se como referência aqui o caso do Município de Limoeiro do Ajuru. Trata- se de um município ribeirinho, uma vez que está localizado na confluência do Rio Pará (tributário do Amazonas) e do Rio Tocantins, é 110.34 km, mas a distância de condução é 378 km. Na Figura 1 apresenta-se a área de preservação permanente no território municipal, assim definida em função da existência de áreas de várzea, terra firme e sistema hídrico Dos cinco municípios que tiveramos planos diretores desenvolvidos pela UFPA e as prefeituras em 2006, apenas Limoeiro do Ajuru teve seu plano revisto em 2018 a partir de uma nova aproximação com a universidade. A Figura 2 mostra a proposta de oficialização de bairros constante do Plano Diretor aprovado pela Câmara Municipal em 2006. Nessa nova oportunidade, foi visto que os instrumentos do Estatuto da Cidade regulamentados no Plano Diretor anterior foram praticamente ignorados pela gestão. Mesmo que tenha sido detectado que o crescimento da periferia da sede municipal tenha ocorrido trazendo mais população para os assentamentos que já haviam sido detectados e incluídos em Zonas de Interesse Social (na FIGURA 3 é possível observar um dos mapas de zoneamento proposto para a sede municipal de Limoeiro do Ajuru, no Pará). A despeito do regramento específico, a gestão municipal atuava construindo Figura 1: Delimitação de áreas de preservação permanente para o município de Limoeiro do Ajuru constante na minuta do projeto de lei de revisão do Plano Diretor, 2018. Fonte: Minuta do projeto de lei de revisão do Plano Diretor, 2018. 38 3938 39NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões pontes, promovendo aterros e buscando captar recursos do Programa Minha Casa Minha Vida sem considerar os parâmetros urbanísticos diferenciados para habitação de interesse social. Por último, ainda referenciando a experiência de Limoeiro do Ajuru, há de se relacionar alguns avanços na gestão ambiental municipal. Embora os instrumentos do Estatuto da Cidade não tenham sido diretamente implementados, é possível observar demandas para a resolução de problemas ambientais, como é o caso da destinação de resíduos sólidos e da gestão das áreas de várzea onde há ocupações por população de baixa renda. Observa-se que há uma aproximação entre as secretarias de meio ambiente municipais e o que poderia chamar de “espírito” do Estatuto, ou seja, um reconhecimento da existência e, em alguns casos, da implantação de medidas de controle de ocupação da várzea amazônica tanto nas regiões metropolitanas como em municípios menores. Figura 2: Delimitação de bairros proposta para a sede de Limoeiro do Ajuru em 2006. Fonte: Plano Diretor aprovado pela Câmara Municipal em 2006. Figura 3; Mapa de Zonas especiais de interesse social e de interesse ambiental para a sede de Limoeiro do Ajuru proposta no projeto de lei da revisão do Plano Diretor de 2018. Fonte: Minuta do projeto de lei de revisão do Plano Diretor, 2018. 4040 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões CLARISSA FREITAS Clarissa Freitas é Doutora em Arquitetura e Urbanismo (UNB) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza desde 2009. Suas pesquisas posicionam-se na intercessão entre a economia política da urbanização e o projeto urbanístico. Utiliza com frequência modelagem digital da forma urbana para informar suas reflexões sobre o significado da urbanização informal para o Planejamento Urbano. Foi professora visitante no Departamento de Planejamento Urbano e Regional da Universidade de Illinois em Urbana Champaign (UIUC) durante o ano acadêmico de 2015/2016, e desde 2018, é coordenadora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC. Ensina disciplinas de “Planejamento da Paisagem”, “Projeto Urbanístico” e “Remoções, Planejamento e Cidadania”, além de contribuir com os movimentos sociais urbanos pelo Direito à Cidade, em Fortaleza. Assim, quando cheguei aos Estados Unidos, o Brasil vivia um contexto acadêmico de celebração da promulgação do Estatuto da Cidade e a possibilidade real de que o PT ganhasse as eleições federais, o que aprofundou minha curiosidade sobre a utopia coletiva que estava nascendo no Brasil. Enquanto nenhum de meus professores estrangeiros demonstrava familiaridade com o processo de urbanização brasileiro, percebia em vários deles um interesse genuíno em entender o meu contexto. Na disciplina de “planejamento internacional” todos tiveram que ler “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire, pois isto era parte da abordagem decolonial da professora, que questionava o modelo de desenvolvimento que eu sempre havia sido ensinada a almejar. Em um diálogo de corredor, fui solicitada a opinar sobre o Orçamento Participativo de Porto Alegre, porém foi durante uma disciplina de “Introdução à Teoria do Planejamento”, lecionada pelo respeitado professor Lew Hopkins, que tive a oportunidade de dar uma aula sobre ZEIS em Fortaleza. É claro que ninguém lá sabia o que era ZEIS, nem onde ficava Fortaleza! Cheguei a essa situação porque, ao sermos solicitados para apresentar um dos livros-referência em urbanismo contidos numa lista previamente formatada, pedi para sair da lista e apresentar algo que era referência no meu contexto local. Assim, pude expor o livro “Labirintos da Habitação Popular”, da professora de Ciências Sociais da UFC Elza Braga, que eu tinha levado na mala comigo. Naquele contexto americano de ascensão do ideário do “Novo Urbanismo”, quando o livro da Jane Jacobs era o mais disputado pelos meus colegas, eu sentia que a fórmula pronta de “adensar, fomentar uso misto, arborizar, substituir carros por pedestres” 20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: FLEXIBILIZAR OU RESPONSABILIZAR-SE PELO DESENVOLVIMENTO URBANO? Quando o Estatuto da Cidade foi promulgado, em meados de 2001, eu era uma arquiteta recém-formada que acabava de chegar a uma cidade universitária no meio-oeste americano para cursar mestrado em Planejamento Urbano e Regional. Eu já tinha ouvido falar na abordagem inovadora que a lei trazia, entretanto a minha atuação profissional no Ceará passava completamente ao largo das promessas trazidas pelo Estatuto da Cidade. Eu havia participado da elaboração de Planos Diretores nos polos de desenvolvimento urbano no interior do estado, por meio do PROURB-CE, uma cooperação entre o Governo do Ceará e o BIRD. O programa enfatizava a modernização administrativa e valorizava a participação, mas fazia muito pouco para garantir a incorporação das propostas pelos atores locais dos municípios atendidos, que possuíam baixíssima capacidade institucional. Por outro lado, os gestores urbanos se mostravam interessados apenas no financiamento de obras e viam as ações de planejamento como uma etapa burocrática a ser cumprida. Em uma época de incipiente difusão de informações pela Internet, meu primeiro contato com a noção de direito à cidade e sua ênfase em aprender com a experiência dos grupos vulneráveis havia chegado para mim através das revistas impressas do Instituto Pólis, que eu buscava mais por interesse acadêmico do que necessidade da prática profissional. 42 4342 43NORTE e NORDESTE20 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: experiências e reflexões não dava conta dos problemas estruturais das cidades cearenses que eu havia tentado decifrar. O professor aceitou a minha sugestão e, durante a apresentação do livro, a turma se mostrou bastante interessada. Por algum fato relatado no livro, tive que explicar que o Estado brasileiro obrigava todo loteador a reservar uma porção mínima de 35% da gleba para área pública e ainda exigia que o loteador instalasse toda a infraestrutura básica. O professor comentou sobre como o Estado brasileiro tinha uma invejável capacidade regulatória. Se, por um lado, saí orgulhosa de ser brasileira, por outro lado, saí frustrada por não ter conseguido explicar que a facilidade de aprovação de tais dispositivos legais se devia exatamente à ausência de mecanismos eficientes de controle social da sua aplicação. Nem sei se entendia isso naquele momento! Outro aspecto que despertou muito interesse dos colegas foi a noção de limitar o potencial construtivo de um terreno em ZEIS para evitar usos do solo que atendessem aos interesses do mercado imobiliário. Hoje eu entendo que, numa sociedade capitalista como os EUA, eles provavelmente nunca tinham
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