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CADERNOS DO FORCINE Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual C A D E R N O S D O F O R C IN E Fórum Brasileiro de Ensino de C inem a e A udiovisual Forcine_capa_final.indd 1 27/08/14 18:49 CADERNOS DO FORCINE Forcine_final.indd 1 27/08/14 17:04 Forcine_final.indd 2 27/08/14 17:04 CADERNOS DO FORCINE Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual Forcine_final.indd 3 27/08/14 17:04 EXPEDIENTE: Cadernos do FORCINE – É uma publicação anual do Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual – FORCINE. DIRETORIA EXECUTIVA (2012-2014) Presidente, Luciana Rodrigues – FAAP – SP Vice-presidente Secretária geral, Katia Augusta Maciel – UFRJ – RJ Primeiro secretário, João Guilherme Barone Reis e Silva – PUCRS – RS Diretor financeiro, Eduardo Paiva – UNICAMP – SP Primeira tesoureira, Erika Bauer – UNB – DF Conselho de Representantes: Ana Paula Nunes – UFRB – BA Angeluccia Habert – PUC – RJ Bruno Hingst – Anhembi-Morumbi – SP Gilberto Sobrinho – UNICAMP – SP Luis Fernando Angerami – USP – SP Conselho Fiscal: Dácia Ibiapina – UNB – DF João Luiz Leocadio da Nova – UFF – RJ José Gozze – FAAP – SP Suplentes: Eduardo Santos Mendes – USP- SP Ney Costa Santos – PUC – RJ EDITORES Aída Marques e Luciana Rodrigues Capa e Projeto Gráfico Impressão WalPrint Gráfica e Editora Forcine_final.indd 4 27/08/14 17:04 Sumário 1 Apresentação – AídA MArques – UFF – RJ 7 2 Entrevista com Orlando Senna – por AídA MArques – UFF – RJ 9 3 Entrevista com Nelson Pereira dos Santos – por AídA MArques e Tunico AMAncio – UFF – RJ 15 4 Breve histórico de área do ensino de cinema e do audiovisual – MAriA dorA Mourão – USP-SP 24 5 Proposta de história – LuciAnA rodrigues – FAAP – SP 33 6 A licenciatura em cinema e audiovisual da UFF – João Luiz LeocAdio dA novA – UFF-RJ 56 7 Três visões sobre o curso superior de tecnologia em produção audiovisual da PUCRS – João guiLherMe BArone – ALeTéiA seLonk – roBerTo TieTzMAnn – PUCRS – RS 63 8 Cenas da vida urbana: relato de uma experiência de ensino não-formal – kATiA AugusTA MAcieL – ECO-UFRJ 69 9 O que se aprende ensinando cinema – MAuro eduArdo poMMer – UFSC – SC 79 10 Ensino de cinema e audiovisuaL – AídA MArques – LuciAnA rodrigues – BernArdo sAnTos 99 Forcine_final.indd 5 27/08/14 17:04 Forcine_final.indd 6 27/08/14 17:04 1 Apresentação AídA MArques A publicação dos “Cadernos do FORCINE” é uma ideia que nos persegue e seduz há tempos, mais insistentemente nos últimos cinco anos. Inúmeras vezes, as ações empreendidas nesse sentido tiveram que ser interrompidas por motivos de ordens diversas. Portanto, é com a satisfação acumulada ao longo de todo esse tempo de trabalho e perseverança que apresentamos esse material, o qual esperamos que seja o primeiro de uma série de publicações. Desde seu princípio, nossa proposta foi socializar, por meio da publicação, as inúmeras experiências que estão sendo implantadas país afora na área do ensino do audiovisual. Com esse objetivo em mente, buscamos contribuir para levar ao público interessado nessa temática conhecimentos produzidos nos mais diferentes contextos sociais, econômicos e culturais de nosso país. Motivou-nos, sobretudo, a percepção da urgência da difusão do conhecimento acerca dessas experiências, a qual torna-se cada vez mais inadiável, dada a importância que vem assumindo o audiovisu- al no Brasil e no mundo. Nesse contexto, todos os esforços visando à Forcine_final.indd 7 27/08/14 17:04 8 solidificação da formação dos profissionais do audiovisual em todas as suas dimensões (técnicos, culturais e negociais) permitirão uma inserção mais consequente dos alunos no mundo do trabalho, o que, por sua vez, poderá atuar para alavancar mudanças estruturais no audiovisual brasileiro. Não é à toa, que nos países onde a indústria e a arte do audiovisual possuem preponderância econômica e cultural, tais como os EUA e a França, se preocupam sobremaneira com a formação de seus técnicos e artistas, implementando escolas com suporte técnico profissional e recursos consideráveis, garantindo as- sim a formação adequada para a manutenção desta atividade estra- tégica em todo mundo, e divulgando ideologias, valores, etc. Em face de tarefas tão necessárias, quanto hercúleas, fez-se ne- cessária iniciar a caminhada por algum ponto específico. Para a ela- boração desse primeiro número, optamos por apresentar relatos de experiências já consolidadas, ao lado de novos cursos que estão sen- do implantados, tais como a licenciatura da UFF. e o curso na Bahia (qual???). Não se trata, portanto, de um dossiê tematicamente deli- mitado, mas de uma coleção de iniciativas fundamentais, exemplos desejosos de se fazer acontecer. Esperamos que, no esforço cotidiano para levar à frente essa em- preitada, possamos contar com a colaboração e o apoio de todos. Forcine_final.indd 8 27/08/14 17:04 2 Entrevista com Orlando Senna por AídA MArques Orlando Senna foi Secretário do Audiovisual do Ministério da Cul- tura entre 2003 e 2007, quando então incluiu a formação e o ensino do cinema e do audiovisual entre uma das atividades contínuas da SAV, apoiando o FORCINE e criando os dois primeiros editais de produção para filmes de escola. Aida: Qual é a importância de um ensino formal do cinema? O que esse ensino traz, tanto para o aluno, quanto para o desenvolvimento do cinema, da arte, do audiovisual? Por que ter escolas de cinema? Orlando Senna: Talvez, em um tempo passado, trinta, quarenta anos atrás, o fato das pessoas que lidavam com cinema, principalmente com a criação, serem autodidatas tenha toda a justificativa. Primei- ro, ainda se considerava, trinta anos atrás, o cinema como uma arte nova, uma arte ainda em desenvolvimento, ainda na infância, diga- mos assim. E, além disso, ainda não havia muitas escolas de cinema. Era uma raridade, há quarenta anos, você encontrar uma escola de Forcine_final.indd 9 27/08/14 17:04 10 cinema no mundo inteiro, não apenas no Brasil. Hoje, pensar assim, ou seja, que é normal que uma pessoa de cinema seja autodidata, aprenda por si mesma a fazer cinema, é bastante complicado, ou seja, é bastante complexo se pensar dessa maneira, porque o cinema hoje não é o mesmo cinema de quarenta anos atrás. Ou seja, o cine- ma é apenas o nicho inicial, a interface inicial, digamos assim, de uma atividade que se expandiu de uma maneira enorme. Ou seja, quando eu falo de cinema, eu falo de cinema e seus derivados. Estou falando do cinema, estou falando da televisão, estou falando do vide- ogame, etc. Estou falando de todo um universo que nasceu a partir do cinema. E que é um universo absolutamente complexo. Esta complexidade exige que hoje, daqui para frente, para se fazer cine- ma, a pessoa tenha conhecimentos técnicos na mesma medida que um engenheiro tem, que um médico tem, que qualquer profissão com uma alta incidência de tecnologia tem. E o cinema é uma das atividades em que essa incidência é maior, pensando em todas as atividades humanas. Então, ou seja, o que eu estou dizendo é: as escolas de cinema e televisão, as escolas de audiovisual, são absoluta- mente necessárias para a existência da atividade. Claro que não é para se deletar da vida humana o autodidata. Eu acho que existirão autodidatas enquanto existir humanidade. Mas, na prática da vida, para se fazer cinema atualmente, é necessária uma quantidade de conhecimentos e habilidades para as quais é muito melhor, muito mais proveitoso, com resultados muito mais consequentes, que você faça esse aprendizado de maneira formal, de maneira organizada. Por isso, as escolas de audiovisual cresceram tanto. O número dessas escolas cresceu tanto no mundo inteiro, no Brasil também e em todo lugar. Na África também crescem muito, ampliam-se muito o âmbi- to onde estão essas escolas, os lugares onde estão essas escolas e tam- bém o número delas. Em toda parte do mundo, hoje, as escolasde audiovisual são uma realidade. Exatamente por isso. Porque é uma atividade complexa sob vários pontos de vista, complexa tecnologi- Forcine_final.indd 10 27/08/14 17:04 11 camente, complexa sob o ponto de vista da criação, já que a expan- são do cinema faz com que, também o número de pessoas que criam filmes, que criam novelas de televisão, que criam produtos televisivos seja muito maior. Ou seja, tem muito mais cabeças trabalhando com isso. É complicado sob o ponto de vista gerencial, sob o ponto de vista da distribuição, porque as regras e as leis do mercado audiovi- sual hoje são, também seguindo essa tendência enorme de amplia- ção da atividade, são outras. As convergências não são só tecnológicas. Há convergências também negociais, convergências comerciais, convergências de todos os tipos. Enfim, é uma atividade complexa e, por isso, merece um cuidado especial na formação das pessoas que vão trabalhar com ela. Aída: Bom, o que seria, então, a escola, para um país como o nosso? Orlando: Uma escola para o Brasil, na atualidade, a escola de audio- visual para o Brasil, na minha opinião, teria as mesmas característi- cas que uma escola da Nigéria, que, aliás, é o país que mais produz cinema na atualidade. Seria uma escola do mesmo tipo em qualquer lugar do mundo. A diferença estaria focada apenas na cultura de cada um. Ou seja, uma escola no Brasil seria diferente de uma esco- la na Nigéria devido à cultura do Brasil e à cultura da Nigéria, devi- do ao local de onde vieram as pessoas que estão aprendendo a fazer cinema. De que cultura, de que formação familiar, de que formação coletiva, de que formação humanística elas estão vindo. Porque são pessoas diferentes. Essa é a diferença que se pode estabelecer entre as escolas de audiovisual de um lugar ou de outro lugar. Ou de um terceiro lugar ou de um quarto lugar. Ou seja, a cultura de quem está aprendendo. Sob o ponto de vista do que é o fazer cinematográfico, o fazer audiovisual, as escolas, cada vez mais, são bem parecidas umas com as outras. Ou seja, são escolas que têm de prover para os aprendizes alta tecnologia. Porque temos alta tecnologia de comuni- Forcine_final.indd 11 27/08/14 17:04 12 cação e informação. Temos acompanhado o desenvolvimento dessas tecnologias que, pelo menos, durante algum tempo, ainda vai ser bem veloz. Depois, quem sabe, talvez, se estabeleça um ritmo mais lento, mas, atualmente, por algumas décadas, acho que vamos ter uma evolução muito acentuada dessas tecnologias. As escolas devem prover uma cultura humanista e uma cultura audiovisual muito sofis- ticada aos seus aprendizes e têm de provê-los, também, de um co- nhecimento de mercado, ou seja, do mundo capitalista em que vivemos. Inclusive, também no que nos resta de mundo socialista, também lá, o mercado tem caráter, digamos assim, capitalista. En- tão, quer dizer, são essas três coisas, esses três envolvimentos que são mais ou menos parecidos em todo lugar. A diferença é quem é o aluno, de onde ele vem, qual é a sua formação familiar, qual é a sua formação cultural e onde essa sua visão de mundo, essa sua compre- ensão da vida pode interferir em seu trabalho. E, evidentemente, interfere. A: Agora eu queria que você falasse um pouco das suas experiências como formulador de escolas. OS: Na verdade, eu estive envolvido com muitas escolas, mas no sen- tido mais pontual, ou seja, de dar cursos, fazer palestras, ter encon- tros com alunos, etc. E, de uma maneira mais pessoal, de uma maneira mais intensa, digamos assim, mais íntima, na verdade, eu apenas me dediquei a três escolas. Antes de tudo, a minha escola central, a minha escola básica, é a Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, conhecida como Escola de Cuba. Na qual estou desde antes do seu nascimento, digamos assim. Eu sou um dos formuladores, um dos fundadores, era um grupo grande. E, desde que começou a escola, ou seja, há vinte e oito anos, eu sou professor dessa escola. E já vivi muito na escola, já convivi muito com a escola. Fui diretor docente durante muito tempo, fui diretor Forcine_final.indd 12 27/08/14 17:04 13 geral durante muito tempo. Ou seja, esse é o meu ovo pedagógico, digamos assim, no que se refere ao audiovisual. Tive também uma relação bem interessante e bem profunda com o CCC do México. Centro de Capacitación Cinematográfica do México, onde o meu trabalho mais importante foi organizar e começar, digamos assim, dar os primeiros passos com um curso de dramaturgia, um curso dedicado a roteiro, que corre em paralelo ao curso geral, de três anos. Sendo que esse curso de roteiro é de dois anos. Um trabalho muito interessante também. Dediquei-me vários anos ao CCC do México. E eu colocaria como uma terceira experiência mais íntima, digamos assim, com escola de cinema e audiovisual, a experiência que tive no Centro Dragão do Mar, no Instituto Dragão do Mar, de Fortaleza. Evidentemente, eu também estava no projeto geral com Maurice Capovilla, mas me dediquei especificamente ao centro de dramaturgia, porque foi um instituto de aprendizado também muito relacionado com a questão da indústria audiovisual, muito ligado ao mercado também. Não eram apenas escolas de criação. Mas era uma coisa bastante ampla, porque Fortaleza, na época, não tinha alguns elementos de sustentação, digamos assim, de apoio para um ensino do audiovisual. Então, teve de se criar, no mesmo bojo do Instituto Audiovisual Dragão do Mar, escola de dança, escola de de- sign, escola de direção teatral, para cercar, digamos assim, os dois cursos, os dois centros mais importantes, que eram o centro de dra- maturgia, que tratava de dramaturgia não apenas para o audiovisu- al, mas de dramaturgia de uma maneira geral, focando, em seguida, no audiovisual, e o centro de formação cinematográfica, de direção cinematográfica. Contávamos também, quer dizer, com a formação de atores. Ou seja, era uma coisa bastante ampla. Não foi uma expe- riência como as outras que eu mencionei, ou seja, que ficaram, que existem e espero que existam para sempre, como é o CCC do Méxi- co e a Escola de Cinema e Televisão de Cuba. Foi uma, digamos assim, uma experiência maravilhosa, inclusive, uma experiência de Forcine_final.indd 13 27/08/14 17:04 14 vida maravilhosa, mas que durou apenas cinco anos e era uma coisa interessante, porque, como eu disse, era uma coisa relacionada com a produção. Ao mesmo tempo que existia o Instituto Dragão do Mar, existia também, paralelamente e ligada ao Instituo Dragão do Mar, uma organização do governo do Estado para a produção. E existia uma terceira etapa, a qual não chegamos, que era a distribui- ção regional de produtos audiovisuais. Mas, durante quatro anos e meio, no Ceará, por exemplo, onde na época se produzia, sei lá, um filme a cada três anos ou talvez até menos que isso, nesses quatro anos e meio de atividade do Instituto e da organização que tratava da produção, catorze longas metragens foram feitos. Nesses quatro anos, quatro anos e meio, todo mês havia a estreia de uma obra de teatro, por exemplo, coisa que também era novidade. Ou seja, foi uma coisa de interferência também em Fortaleza. Ou seja, a vida cultural de Fortaleza se expandiu. Um pouco também por todo esta- do do Ceará. Houve momentos de pique do estúdio Dragão do Mar, nos seus cursos, digamos, de nível primário, porque havia curso de nível primário, secundário e os centros, que eram estudos mais avan- çados. Chegamos a ter oito mil alunos. Ou seja, não era apenas uma formação especializada, como tínhamos em Fortaleza, mas também a formação de muita gente para atividades audiovisuais ou relacio- nadas ao audiovisual. Então foi uma experiência bem diferente de tudo que eu tinha feito e de tudo que eu fiz depois. Eu acho que essas foram as três experiências mais fortes, digamos assim, que eu tive com o ensino e o aprendizado do audiovisual. Forcine_final.indd 14 27/08/14 17:04 3 Entrevista com NelsonPereira dos Santos por AídA MArques e Tunico AMâncio Aida: Como foi a história do curso de Cinema de Brasília, que, depois, foi transferido para a UFF? Nelson Pereira dos Santos: O primeiro foi fundado pelo Paulo Emílio Salles Gomes, mas o grande incentivador foi o Pompeu de Sousa, jor- nalista, que foi diretor do Diário Carioca e era o Diretor do Departa- mento de Comunicação Social, que estava filiado aos cursos de Cinema, Jornalismo e Biblioteconomia. O curso de Cinema começou ali, logo depois do golpe, em 1965. E ele me convidou para ir para lá. Eu nunca havia pensado em ser professor, nem em ir para Brasília, mas ele me requisitou: “Você tem que ir, porque nós estamos fazendo um curso de Cinema…”. Eu fiquei mais ou menos comovido com o apelo, a convocação, e fui ser professor e fizemos o curso de cinema. O reitor que estava lá era uma figura importante – depois ele foi reitor de Campinas – mas, quando ele pediu demissão, foi substituí- do por aquele milico, que ficou o resto do tempo. Foi aí que surgiu a Forcine_final.indd 15 27/08/14 17:04 16 possibilidade de se fechar a universidade. Esse milico demitiu o Pom- peu de Sousa e outros professores que eram considerados da oposi- ção. Em solidariedade a esses demitidos, todo o corpo docente pediu demissão, com algumas exceções. Eu já estava no Rio, editando o filme “Fala Brasília”, então, para mim, foi confortável não precisar voltar para Brasília. Naquele tempo, eu fui para lá e não tinha apar- tamento. Eu fiquei morando em hotel. Era uma vida divertida, por- que nós criamos um grupo, alunos e estudantes… Ia para a universidade, alguma coisa acontecia e ficava o dia inteiro por lá. Aí aparece a história da Martha Reis, agora falando da Univer- sidade Federal Fluminense. A Martha disse para irmos falar com o reitor, que era o Barreto Neto. A reitoria era no Hospital Antônio Pedro, tinha só três ou quatro salas, estava começando, mas já estava comprando o Cassino Icaraí… Já tinha pago a entrada, já tinha dado uma negociada, mas noticiou-se que o Costa e Silva, então presidente, iria permitir os jogos no Brasil. E aí, os donos do Cassino, que seria a universidade, resolveram voltar atrás e a negociação fi- cou emperrada. Então, a Martha Reis me levou, porque eu havia voltado para trabalhar no Jornal do Brasil, para conversar com o reitor. Ele me contou a história e eu fiz uma matéria no Jornal do Brasil sobre o caso, porque, lá em Niterói, a imprensa fez uma cam- panha contra a instalação da universidade no antigo Cassino Icaraí: “Imagina! Estudantes ali! Quem é que vai à aula? Vão querer ir à praia.”. Eu fiz uma matéria no Jornal do Brasil que deu repercussão. O Fluminense era a favor desse negócio de não ter a universidade lá. Graças a Deus, o Jornal do Brasil apoiou o outro lado. Eu tinha bons amigos lá: o Carlos Lemos, que era o chefe da redação. Expliquei qual era o problema. “Então, vamos com você e tal”. Fizemos algumas matérias sobre a universidade e, nesse convívio com o reitor, eu falei: “Olha, estou vindo de Brasília, tinha um curso de Cinema, tal...”. “Faz um aqui! Faz aqui!”. Ele era uma pessoa ge- nial. “Então, faz aqui. Faz aqui em Niterói. Vamos fazer um curso de Forcine_final.indd 16 27/08/14 17:04 17 Cinema.”. A partir daí, foi feito um trabalho de comunicação social abrangente: cinema, teatro, tudo junto. E foi assim que começou. Outra coisa importante aí nessa jogada: o reitor nomeou uma comissão relacionada com cinema. Tinha um certo poder funcional, mas não eram empregados, não tinham salários. Era só uma comis- são para resolver o que fazer com o Cassino. Então, no pequeno es- paço, resolvemos fazer um teatro. E, no grande, um cinemão, uma sala de cinema. Nós, conseguimos, mas não tinha ar condicionado, era horrível. Aquela coisa fechada, aquele calor. A programação, confesso que confiei ao Fabiano, que não era programador de cine- ma profissional, mas fez uma programação de alto nível. Aquele ci- nema gigante e uma programação de cinema de arte. Uma incongruência, mas tudo bem. Depois, com o tempo, foi rolando, rolando... E o cinema continuou, não é? Graças a Deus continuou até depois. A: Mas é verdade que as aulas aconteciam no cinema? NPS: A sala de cinema virou a sala de aula, o encontro de cinema. Então, eu chamava alguém para apresentar o filme, falar sobre o cinema. O Glauber foi lá, fez um grande discurso. Convoquei todo mundo, inclusive meus amigos diretores, para apresentar o filme lá e falar. Isso era uma atividade. A outra atividade era o centro para es- tudar a possibilidade de filme que nós faríamos, porque conseguimos fazer um filme. Pelo INCE, Instituto Nacional de Cinema Educati- vo, conseguimos o negativo e câmera para fazer o filme, que decidi- mos que seria um documentário. Aí, uma turma disse: “Vamos fazer Pirenópolis.”. A outra turma queria fazer sobre a história da ponte de Niterói! Os de Pirenópolis eram maioria. Enfim, fomos fazer! Foi divertido, fomos lá para Pirenópolis e foi feito o filme, mas nunca foi editado. Sabe o que é que acontece lá na cavalhada? Tem os mouros e os cristãos, então, tem duelo. E, no final, vencem os Forcine_final.indd 17 27/08/14 17:04 18 cristãos. A tradição é que vença o cristão. Como era a época da po- lítica, ditadura, fomos entrevistar. O filme era esse, era muito engra- çado, entrevistar os mouros e os cristãos e perguntar quem é a que iria vencer naquele ano. Porque aquilo é um espetáculo tradicional, fechado, e, todo ano, claro que têm que vencer os cristãos. Mas, a votação foi esmagadoramente a favor dos mouros. Tudo isso está filmado. É muito engraçado combinar a votação com a história. É um material importante de estudo sócio-político da nossa sociedade. O que tem que ser mantido? O tradicional, conservador, ou o que está em ebulição. Aquilo é uma tampa, é uma mentira em cima. O material ficou muito engraçado, mas não foi editado. E depois não sei onde foi parar esse material. Estava lá nos cantos da UFF. Uma pena. Quando eu voltei para a UFF, eu propus fazer o mesmo filme, com outros atores, em outros tempos. Porque continua o mesmo processo, o mesmo enredo. A: E, naquele momento, o que você pensava que era uma escola de cine- ma? Como seria? Você tinha a ideia de que uma escola de cinema seria interessante para um país com poucos recursos, com todas as nossas características? NPS: Não, como eu tenho experiência com a escola americana. Eu caminhava mais por essa tendência do que aquela do IDHET, por- que toda a proposta do cinema do IDHET tem uma formação me- nos prática e mais cultural, onde se discute tudo. Acho que deve que ser o contrário: a partir da experiência é que cada um vai escolher o caminho, vai escolher a teoria, filosofia. Não e deve chegar logo e botar na cabeça do garoto de vinte anos o que ele tem que pensar: o cinema é isso, é aquilo. Então, prefiro deixa rolar, com cada um livre para encontrar o seu caminho, ter suas predileções. Isso é uma for- mação, claro, o garoto é formado pelo pai, mãe, avô, escola, segunda escola, terceira escola, amigos, influências, experiências… Já tem Forcine_final.indd 18 27/08/14 17:04 19 uma cabeça feita. A única coisa que tem que dizer é: “Bota sua ca- beça agora e pensa cinema.”. É nessa jogada que ele vai pensando, vai vivendo. Os que têm realmente vocação: os atores, os artistas. No lugar de você dizer: “Vai por aqui, vai por ali.”, não: “Vai por onde você acha que deve ir.”. “Ah, mas está feio. Está bonito.”. Só isso que você faz. A: Seria quase a partir de oficinas? De ver filmes e fazer oficinas? NPS: Eu tenho um grande prazer em contar a história do Ripper. O Ripper foi meu aluno em Brasília. Lá, quando eu comecei, não tinha câmera, não tinha projetor, não tinha nada. Então, parti do livro do Kuleshov, que indica você a pegar um quadro, uma pintura e fazer uma decupagem. Pega um quadro aqui, outro ali e conta uma histó- ria. Eu comecei a fazer essa experiência com os alunos.O Ripper apresentou um trabalho incrível, uma loucura. Ele não ficou só no concreto, no realismo. Ele bolou um movimento de imagem, outra coisa e tal. Mas foi incrível, foi um exemplo. A partir daí o Ripper virou meu assistente, fez montes de coisas comigo, vários filmes. De- pois foi para a vida profissional, fez filmes e a gente sente falta. Foi embora jovem. Jovem demais. T: Nos anos de ditadura na UFF, houve alguma repercussão do regime so- bre a escola? NPS: No começo, houve uma presença da ditadura, porque eu escolhi o cinema como sala de aula. Ou melhor, como estúdio, um lugar de tra- balhar. Eu digo dar aula como eu tinha visto em outras universidades: o lugar de trabalhar era ali, não precisa ter uma sala de aula com profes- sor, quadro negro. Ali a gente ia fazendo o trabalho que é cinema. A partir daí, correu o boato de que ali tinha reunião de comunis- tas, subversivos, e, por isso, baixaram uma determinação de que os alunos não podiam se reunir no teatro. Isso acabou com a minha Forcine_final.indd 19 27/08/14 17:04 20 sala de aula e tivemos que ir para uma salinha não sei onde. A coisa mudou completamente, o que foi uma intervenção severa. Além disso, eu levei um ano para tomar posse. Eu fiz concurso e, para tomar posse, eu tinha que ser aprovado pelos órgãos de seguran- ça. Eu ficava na moita, mas se eu não tomasse posse em um ano, eu perderia. Então, o reitor, o Barreto, meu amigo que está no céu: “Nelson, o que é que tem aí? Uma informação que te impede de to- mar posse?”. Aí tem a sigla do DOPS: “Não consta nenhum processo contra ele, nada disso, porém a figura precisa de não sei o quê...”. Enfim, era eu, não tinha problema nenhum com a lei, mas tinha uma grande desconfiança desse meio. Aí, o reitor disse: “É só isso?”. Botou no processo assim: “Está aprovado” e me nomeou. Por causa disso, o chefe da segurança foi lá protestar com ele, que foi engraçado. Outro problema foi quando fui fazer um filme na Bahia, “Tenda dos Milagres”. Você sabe o que é um presente? Tem um produtor maravilhoso, te dão um milhão de dólares para fazer um filme na Bahia! Aí eu pedi licença ao chefe de departamento, um gordinho de óculos, Antônio Sérgio Mendonça, para ir fazer. Eu era professor ti- tular! E, naquele tempo, o regime era mais severo, não podia faltar mais de trinta dias. Por isso, eu apresentei aquilo para que ele me desse licença. Eu não estava querendo faltar e receber. Pedi três vezes. Quando acabaram as filmagens... “E o Nelson? Ele foi demitido.”. Rapaz, falei: “Mentira, por quê?”. “Você faltou mais de trinta dias.” Eu estava demitido por justa-causa e não tinha defesa. Tinham três acadêmicos que iam estudar o caso e eu não tinha defesa oral, nada. Tinha que escrever alguma coisa. Aí eu escrevi. A única defesa que eu tinha era: “Eu faltei, porque eu fui trabalhar em cinema”. Eu não fui fazer cirurgia, nem paraquedismo. Eu estava fazendo minha profissão. E eu ensinava aos jovens. Que loucura! Mas os três profes- sores da junta lá me demitiram. Mas o reitor tinha que assinar a demissão. E aí apareceu lá na universidade o ministro da Educação, o Ney Braga: “Oh, Nelson! Você…”. Ele fez de propósito, sabe por Forcine_final.indd 20 27/08/14 17:04 21 quê? Porque a assessora dele era professora, colega nossa, você se lembra dela? Depois ela ficou só em Brasília. Ela tinha ligações polí- ticas fantásticas. Ela me ajudou, explicou para ele e, depois, o minis- tro me cumprimentou. Aí, ficou a coisa no ar. Mesmo assim, eu fiquei três anos suspenso. Quando o Romeu assumiu, botou tudo em ordem e eu voltei. T: A sua relação com o Ney Braga é interessante também, porque teve um momento em que já não tinha equipamento nenhum. A gente vivia emprestando equipamento para fazer os filmes. DFC emprestava equipamento para a gente. A gente fez Jornalismo e In- dependência, Biblioteca Nacional, o Pirenópolis. E aí, com o Ney Braga, você intermediou para que os alunos fossem para Brasília e a gente conseguisse o primeiro kit de equipamento nosso. Você fez isso junto à Embrafilme, que conseguiu esse equipamento para a escola. A: Como você articulou isso aí? NPS: Primeiro, tinha o conselho dos colegas da área técnica. Eu con- videi uma porção de gente para fazer o corpo docente, mas a maio- ria não tinha diploma de curso superior e não podia ser professor universitário. Então, tinham uns dois, três ou quatro colegas que co- nheciam a parte técnica de saber: “Escolhe isso, pede isso.”. E foi assim que foi encaminhado ao ministro nossa licitação. E chegou. Que coisa incrível! O Ney Braga era gente fina. Ele fez coisas muito corretas. T: Se a gente pensar, você foi uma presença importante na UFF para dar legitimidade à escola. Era o grande cineasta Nelson Pereira na UFF. E você sempre teve esta relação de cuidado e carinho com a escola. Forcine_final.indd 21 27/08/14 17:04 22 A: E levando os alunos para trabalhar. T: Como é que a escola ficou na sua vida? Porque você foi fazer seus fil- mes, dava aula, etc, mas como é que era essa sua relação com a escola? NPS: Eu fiz aquela coisa em Brasília: na realidade, era muito simples: pegava um monte de gente e dizia: “Vamos fazer um filme”. Minha aula era essa… “Vamos fazer um filme.”. E, na hora do botequim, que é importante, fala-se de cinema, fala-se de uma porção de coisas, de acordo com o desejo de cada um, de cada um dos alunos. Esse é o es- quema de ensinar, não é outra coisa. Não tem que fazer aulas formais. “Faz isso, aquilo e tal…”. Mesmo porque eu não saberia fazer isso. A: Foi um acaso, mas isso ocupou um espaço na sua vida, não é? A esco- la. Tanto que você tem essa relação até hoje, esse carinho… NPS: Adorei, poxa. Uma das coisas que eu tenho o maior orgulho. Fiz uma escola de cinema! Trabalhei em duas formações de escola de cinema. Mas a grande parada da escola é que era em Niterói. Essa que é a coisa mais engraçada. Ter uma escola de cinema em Niterói. “Mas Niterói?”. Ao mesmo tempo, ela começou a aparecer com os filmes, com os alunos, e ficou… Se firmou, não é? E daí a coisa mais simples: a gente descobre que tinha que começar em Ni- terói. Você já pensou fazer escola de cinema aqui no Rio? Aonde? Na Zona Norte? Na Zona Sul? Era difícil. E Niterói tem um afasta- mento do Rio e é possível. Quantos alunos cariocas que foram fazer o curso lá? Mineiros! Tem outra coisa: não havia uma preocupação de fazer um curso em função de algumas ideias feitas. “Um curso de cinema tem que ser assim, assim e assim.”. Não, o curso de cinema foi nascendo na medi- da em que ele foi acontecendo. Nasceu junto com os alunos. Com os alunos perguntando. Eu acho que fazer um curso de cinema como se Forcine_final.indd 22 27/08/14 17:04 23 fosse um curso de medicina é completamente absurdo, não tem nada a ver. Tem que deixar com essa ansiedade do conhecimento que têm os alunos e ser contaminado por isso. O meu caso é esse: eu não sa- bia… Fui chamado para ser professor. “Uma coisa eu sei, agora eu não sei tudo. Vocês podem também correr atrás. Não fiquem esperan- do eu dizer o que é e o que não é.”. Cada um pode estar no seu espa- ço de liberdade, de investigação, de conhecimento, etc. Essa é a ideia. A: Mas hoje o cinema se tornou uma coisa muito mais complexa, negocial. Você acha que ainda tem espaço para uma escola assim? Ou você acha que a escola tem que dar outros instrumentos? NPS: O que é uma escola de cinema? Ela tem o seu momento técnico. E isso é pão-pão, queijo-queijo. Elementar. Agora, tem o outro lado, que é a criação. E a melhor forma de fazer com que os alunos exerci- tem a criação é mantê-los em liberdade. Por exemplo, eu acho que só se devia falar de história do cinema, teoria de cinema, no final do curso. A primeira coisa é dar toda a liberdade para fazer… Aprender a usar, inventar e realizar o que inventou. Depois que vai discutir o realismo, surrealismo, etc. Não ficar prisioneiro. De repente, fica muito fechado. Eu não sabia que tinhaque ser assim. Eu fui fazendo assim, porque eu me formei de uma forma muito livre. Graças a Deus, eu fui para Fran- ça fazer curso de cinema e cheguei muito atrasado e não fiz. NPS: Uma coisa boa foi fazer a escola de Niterói, viu? Eu não fiz sozinho, tiveram pessoas que vieram junto, mas a ideia foi essa. E, graças à Martha Reis, que me apresentou o reitor... Voltei, estava despedido lá de Brasília, já tinha uma fórmula de fazer escola de ci- nema. Botei, o reitor topou… Muita, muita gente. Uma grande es- cola. E, como eu disse, lugar de aula, do outro lado da baía! Forcine_final.indd 23 27/08/14 17:04 4 Breve histórico de área do ensino de cinema e do audiovisual MAriA dorA g. Mourão Introdução Seguindo os passos das grandes mudanças acontecidas no início dos anos 60 em algumas cinematografias mundiais, o cinema brasileiro tomou o caminho do Cinema Novo. Assim como a Nouvelle Vague francesa retomo o impacto modernista dos anos 20, o Brasil acom- panhou a renovação da linguagem cinematográfica e as mudanças na maneira de produzir. A valorização do “cinema de autor”, em contraposição à indús- tria hollywoodiana ou ao “cinema de produtor”, teve como referên- cia não somente questões de linguagem, mas, principalmente, a criação de uma nova estética e a defesa de uma postura ideológica. Havia uma forte inquietação nos meios cinematográficos brasilei- ros quanto aos novos rumos. O movimento cineclubista crescia, eram organizadas palestras, seminários e debates. Havia grande demanda por eventos que colocassem o cinema em pauto para reflexão. Forcine_final.indd 24 27/08/14 17:04 25 É neste panorama que surgem os primeiros cursos de cinema no Brasil. As universidades abrem espaço para um novo tipo de forma- ção, a do realizador cinematográfico com um perfil adequado aos novos ventos, ou seja, o do “cinema de autor” que seguia um mode- lo de produção independente. A estrutura curricular dos primeiros cursos, o da Universidade de Brasília (UnB), criado em 1962, segui- do pelo curso da Universidade de São Paulo (USP), criado em 1967, e depois pelo curso da Universidade Federal Fluminense (UFF), cria- do em 1969, tinha como característica a quebra da rigidez universi- tária, permitindo uma ampla formação cultural e profissional. O objetivo principal era a formação de diretores, objetivo este em total consonância com a ideologia dominante do “cinema de autor”, além de enfatizar a necessidade de realizar filmes que refletissem sobre nossa realidade social. Esse modelo permaneceu até os anos 90 do século XX, quando a introdução de instrumentos eletrônicos nos processos de produ- ção de cinema alterou os conceitos elaborados em relação ao con- tinuum espaço-temporal, atributo do cinema clássico, e facilitou a experimentação. O surgimento de novos estilos e formas de expressão determi- nou, inevitavelmente, uma necessidade de revisar os métodos de pensar e fazer cinema. O avanço para o digital e a convergência de equipamentos no processo de produção derrubou algumas barreiras de linguagem, sendo que hoje vemos claramente a influência da lin- guagem cinematográfica em alguns programas de televisão (princi- palmente as mini-séries) e, inversamente, filmes para tela grande que confundem com telefilmes. As primeiras experiências de uso das novas tecnologias ocor- rem por volta de meados dos anos 70 do século XX (Godard, Co- ppola, Antonioni), mas é a partir dos anos 1995 que a linguagem audiovisual, o modelo de produção, a preservação, a difusão, a exi- bição e o ensino da atividade audiovisual têm experimentado Forcine_final.indd 25 27/08/14 17:04 26 transformações mais evidentes advindas das rápidas mudanças do paradigma tecnológico. Por um lado, o desenvolvimento das tecnologias digitais de cap- tação e manipulação de imagens e sons oferece aos realizadores no- vas possibilidades e novas abordagens para questões de linguagem. Por outro, o advento de novos canais de distribuição e a revolução midiática operada pela Internet, estabeleceram novos parâmetros de difusão e consumo de produtos audiovisuais, permitindo a ampla circulação de imagens e sons em padrões totalmente inéditos. Da mesma forma, as atividades ligadas ao ensino das artes e técnicas audiovisuais vêm sofrendo profundas alterações em sua na- tureza pela introdução de novas tecnologias e de novos formatos e suportes. Outras formas de narrar se impõem resultantes desses no- vos formatos e suportes. Todas as etapas desde a produção até a difusão e a preservação do audiovisual têm sido paulatinamente influenciadas pelo surgi- mento de novas ferramentas e modelos de produção digitais. Dentro desse contexto, faz-se necessário considerar as possibili- dades técnicas e artísticas que são oferecidas por essas ferramentas digitais e analisar as mudanças e consequências que já estão ocor- rendo dentro da dinâmica econômica, social e cultural que afeta a todos os grupos sociais. O cinema digital e os novos formatos implicam algo mais que uma mudança de sistemas, suportes e formatos de produção e difu- são: é parte de um irreversível processo de mudança do mundo com- parada por muitos analistas com a revolução científica, tecnológica e industrial dos séculos XVIII e XIX. Sob essa perspectiva, é neces- sário restabelecer as coordenadas estéticas, éticas, pedagógicas e eco- nômicas das distintas manifestações de arte audiovisual, num mundo de novos modelos de negócios, novos públicos e novas necessidades. É evidente que, tendo em vista as mudanças do paradigma tec- nológico de produção e consumo de cinema e audiovisual, o cam- Forcine_final.indd 26 27/08/14 17:04 27 po do ensino e da formação profissional também merecem ser seriamente considerados. Qual o perfil do profissional de audiovi- sual da era digital e qual o papel das escolas na formação desse profissional? Um ponto fundamental de mudança no ensino de cinema está já na nomenclatura, pois muitos dos termos e conceitos aplicáveis ao cinema e à televisão anteriores à era digital não são aplicáveis a nova realidade. Hoje o conceito de audiovisual é representante da conver- gência de suportes, no entanto, deve-se considerar que o Cinema constitui uma matriz histórica da criação das linguagens e técnicas do Audiovisual e, como tal, deve ser o ponto de partida e a referência constante dos estudos nessas áreas. Estabelecer essas novas categorias do pensamento e do estudo do audiovisual é um desafio que se impõe aos profissionais do ensino e da pesquisa neste campo. Além disso, o currículo das escolas deve incluir conteúdos que permitam aos futuros profissionais lidar com as demandas sempre renovadas do mercado, não para ficar atrelado a ele, mas para propor ideias que abram espaço para o novo e que olhem para o futuro. Tendências no ensino Em 2006, foram aprovadas e implantadas pelo Ministério da Educa- ção (MEC) as Novas Diretrizes Curriculares para o Ensino de Cine- ma e Audiovisual. As novas diretrizes foram pensadas e propostas por uma comissão da qual faziam parte professores de cinema de várias universidades brasileiras. As novas diretrizes tem como objetivo a formação de um aluno com competência profissional, social e intelectual em questões de criação, produção, distribuição, recepção e análise crítica referentes ao cinema e ao audiovisual, assim como as práticas profissionais e sociais relacionadas com estes, em suas inserções culturais, políticas Forcine_final.indd 27 27/08/14 17:04 28 e econômicas. Para isso, deve ter uma formação não exclusivamen- te voltada para uma única especialidade profissional, mas uma compreensão ampla e rigorosa sobre o campo do Cinema e do Au- diovisual, desenvolvendo, assim, uma percepção geral sobre esse campo, no qual a especialidade encontrará seu lugar. Essa percep- ção vai se estabelecer numa dupla perspectiva – a primeira, genéri- ca e universalista; a segunda específica e singular – viabilizando que o egresso possa exercer sua profissão comuma percepção funda- mentada da área do Cinema e Audiovisual, assim como da socieda- de contemporânea. A nova estrutura prevê uma ampla formação cultural e profissio- nal baseada em um currículo que, além de ter disciplinas de caráter específico e geral, prevê uma série de optativas que vão criando uma interdisciplinaridade fundamental para a formação em cinema. Fo- ram definidas, ainda, áreas de interesse a partir da qual o estudante especializa-se em: teoria e crítica, fotografia, som, montagem, ani- mação, roteiro, direção ou produção. Alguns pontos que fundamentam a proposta de diretrizes curriculares 1. Oferecer aos alunos as mais variadas formas de experimentação do fazer cinematográfico e audiovisual, pautadas pela mais ampla liberdade de expressão, pela responsabilidade profissional e ética, pela consciência do papel do Cinema e do Audiovisual no proces- so sócio-político do país e pela busca de qualificação que habilite ao exercício profissional com dignidade e independência; 2. Entender a necessidade de preservar e enriquecer a formação humanística dos alunos, seja como campo de reflexão sobre a situação humana, seja como meio de aprofundamento do Cine- ma e do Audiovisual como atividades artísticas, reflexivas e de forte contundência na vida social; Forcine_final.indd 28 27/08/14 17:04 29 3. Considerar as tensões entre as chamas vertentes “industrial” e “independente” como um dos parâmetros da história do Cine- ma e do Audiovisual no Brasil, ora com efeitos contraditórios, ora com oportunidades de convergência, cabendo-nos extrair de ambas os potenciais de criação e afirmação dos profissionais e o enriquecimento da filmografia brasileira; 4. Atentar ao papel que o Cinema veio a ocupar no Brasil como elemento constituinte e ativo de sua cultura e de meio de intensa representação e debate sobre a realidade nacional; 5. Considerar a importância peculiar da televisão na sociedade bra- sileira e sua importância no âmbito atual da cultura audiovisual em paralelo com o crescimento quase exponencial da Internet; 6. Atentar para o impacto das transformações tecnológicas sobre o Cinema e as sucessivas modalidades de expressão audiovisual decorrentes; 7. Acompanhar as atuais definições das políticas sobre a atividade ci- nematográfica e audiovisual no Brasil quanto aos papéis do Estado, do mercado, da radiofusão e mesmo em relação ao ensino superior; 8. Despertar a consciência do papel cultural, educacional e políti- co do Cinema e do Audiovisual como instrumentos da demo- cracia social no país e dos aspectos éticos individuais e coletivos enquanto dimensões da condição humana e planetária numa perspectiva anti-dogmática e aberta às várias concepções estéti- cas e de pensamento; 9. Desenvolver metodologias de ensino que impliquem no contato e no envolvimento do aluno com a realidade social e cultural, seja quanto ás áreas de conhecimento teórico, seja quanto á ela- boração dos projetos de realização, visando sua formação hu- mana, de cidade e profissional; 10. Incorporar, como complementares, atividades de extensão e co- munitárias, sejam no âmbito de programas da universidade, se- jam as buscadas e exercidas voluntariamente pelo aluno. Forcine_final.indd 29 27/08/14 17:04 30 Como resultado da reflexão e discussão sobre o ensino, hou- ve um crescimento significativo no número de Escolas, Cursos e Habilitações de Cinema e Audiovisual ligadas aos Cursos de Comunicação Social, sendo que a maioria este vinculada a uni- versidades. Os três cursos regulares que se iniciaram na década de 60 do século XX deram frutos e hoje existem no Brasil 53 cursos reconhecidos pelo Ministério da Educação. O debate internacional aponta para a necessidade de se desvestir de ideias e atitudes redutoras e de dar hoje ao cine- ma, desde seu lugar de matriz da linguagem audiovisual, a função de disseminador de teorias e de práticas audiovisuais em diálogo com o que resulta do avanço da tecnologia, in- corporando as novas mídias. No entanto, é importante não perder de vista aquilo que é específico desse campo multidis- ciplinar, ou seja, narrar histórias, independente do gênero e dos formatos. Pesquisa e tendências Há uma preocupação na área que se refere ao lugar dos estudos e pesquisas do Cinema e Audiovisual no sistema nacional de pós-gra- duação. O Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e do Audiovisual (Forcine) julga recomendável aplicar uma flexibilização capaz de legitimar a diversidade de enfoques que a área não apenas abrigas como exige, para que se possa dar conta da reflexão sobre as ex- periências e práticas e do Cinema e Audiovisual. Essas práticas requerem, para sua análise rigorosa, o domínio de um campo con- ceitual que lhes é próprio, não sendo apenas um terreno de apli- cação de categorias gerais, seja da Comunicação, da Estética, da Sociologia, etc. Entende-se aqui que é equivocada a ideia de que nosso terreno se caracteriza apenas pelos suportes e pelas técnicas. Forcine_final.indd 30 27/08/14 17:04 31 Ao contrário, o Cinema e o Audiovisual constituem um campo de pesquisa com critérios de coerência específicos e uma tradição te- órica atestada por uma bibliografia que já tem um século, na qual é possível discernir o desenvolvimento de certas problemáticas que devem ser do conhecimento de qualquer pesquisador da área. Atualmente, o Cinema e o Audiovisual tem especialidades inseri- das no campo das Artes e outras no campo da Comunicação. Os avanços tecnológicos e as novas implicações socioeconômicas de- les decorrentes exigem que estas especialidades sejam estudadas e pesquisadas de maneira integrada em um mesmo campo. Este campo abrange o ensino e a pesquisa da produção em Cinema e Audiovisual incorporando os processos de realização, de distribui- ção e de análise de sistemas de exibição, bem como os aspectos de manifestação e identidade cultural. Desde o início do século XX, essa área vem acumulando experi- ências de produção as quais geraram uma ampla reflexão que sedi- mentou bases teóricas densas, específicas e ajustadas a cada desdobramento ocorrido ao longo das décadas. Esse campo requer uma familiaridade com práticas e técnicas sem as quais as análises dos produtos perdem especificidade e efetividade. Mercado de trabalho A área do Cinema e Audiovisual tem uma relação direta com o mer- cado de trabalho, já que forma profissionais que irão atuar na reali- zação propriamente dita através de produtoras independentes ou ocupando cargos na televisão, sejam administrativos ou nas equipes de produção. Outra característica importante é o fato de também proporcionar quadros para o Poder Executivo nas instâncias muni- cipais, estaduais e federais. Forcine_final.indd 31 27/08/14 17:04 32 Relações internacionais Algumas das escolas brasileiras são filiadas ao Centre International de Liaison des Ecoles de Cinema et Télévision (CILECT), entidade que congrega por volta de 140 escolas de todo o mundo. A participa- ção nessa entidade proporciona a possibilidade de fazer parte de um circuito internacional de intercâmbio de conhecimento, de desenvol- vimento conjunto de projetos e mobilidade de alunos e professores. Forcine_final.indd 32 27/08/14 17:04 5 Proposta de história LuciAnA rodrigues PARTE1 – Da incipiência aos primeiros cursos regulares No mundo inteiro existem poucas publicações acerca do ensino de cinema, muito embora a CILECT – Centre International de Liai- son des Ecoles de Cinéma et de Télévision, exista e esteja em grande atividade há quase 6 décadas. No Brasil, fala-se sempre em tornar o cinema “industrial”, “co- mercial/ industrial”, em melhorar a qualidade do audiovisual, mas, paradoxalmente, não se instituem políticas públicas efetivas, pelos próprios órgãos e instituições de audiovisual, que valorizem o ensi- no do audiovisual o quanto seria necessário à qualificação dos pro- fissionais que atuarão na área. Para ilustrar tal afirmativa vale observaro que vem ocorrendo com o Fundo Setorial do Audiovisu- al, que, nos seus objetivos, diz que parte das verbas deverão ser aplicadas em projetos e programas que desenvolvam as atividades cinematográficas e audiovisuais com a finalidade precípua de inser- ção e consolidação do produto brasileiro no mercado nacional e Forcine_final.indd 33 27/08/14 17:04 34 internacional. “Dentre seus eixos estão: aperfeiçoar a competência artística, técnica, gerencial e financeira das empresas brasileiras do cinema e do audiovisual e aperfeiçoar a capacitação profissional do setor audiovisual”.1 A despeito da ainda baixa valorização da formação em cinema é importante destacar que vivemos hoje uma situação ímpar: na úl- tima década, o número de cursos de graduação com as denomina- ções de cinema, audiovisual, mídias, imagem e som, cresceu em torno de 300%, motivado pelas facilidades do digital e pelas políticas do Reuni e Prouni. Para suprir, ainda que minimamente, a lacuna de estudos a que me referi no primeiro parágrafo, desenvolvi todas as minhas pesqui- sas na pós-graduação em torno do tema, tanto no mestrado quanto no doutorado na ECA USP, orientada pela professora doutora Ma- ria Dora Genis Mourão, sem dúvida uma das maiores especialistas no mundo sobre a área de ensino do audiovisual e atual presidente da CILECT. Na minha dissertação, A Formação em Cinema em Instituições de Ensino Superior Brasileiras – Universidade Federal Fluminense, Universidade de São Paulo e Fundação Armando Álvares Penteado, defendida no início de 2004, tratei de traçar um panorama histórico sobre o ensino de cinema desde os seus primórdios, com foco no Brasil, mas com informações internacionais, falei um pouco sobre todos os cursos existentes e lancei um olhar mais detalhado sobre três cursos que se afiguravam com trajetórias bastante regulares: a habilitação em Cinema, na época já se transformado em Curso Su- perior do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da Uni- versidade de São Paulo; a habilitação em Cinema do Instituto de Comunicações e Artes da Universidade Federal Fluminense e a ha- 1 Fonte: http://www.ancine.gov.br/fsa/principaisdiretrizes.htm. Acesso em 01 de dezembro de2011 Forcine_final.indd 34 27/08/14 17:04 35 bilitação em Cinema da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado. É necessário dizer que a pesquisa se tornou um misto de garim- po com arqueologia? Como forma de atualizar o tema, com o Brasil já contando com acima de 50 cursos de graduação na área, passei a desenvolver a tese de doutoramento que defendi no primeiro semestre de 2012, intitu- lada O Cinema Digital e seus Impactos na Formação em Cinema e Audiovisual. Seu escopo foi se e como a formação superior em cine- ma e audiovisual estava respondendo à consolidação do digital, con- siderando que esta situação, em constante emergência, influencia e pode contribuir na melhoria e concepção dos cursos. Na tese discorro acerca das jornadas de algumas escolas, nacio- nais e internacionais, levantando: os novos contextos do ensino de cinema e de audiovisual no Brasil e no mundo; as novas configura- ções na relação entre professores (imigrantes digitais) e estudantes (nativos digitais), e as mudanças nos processos do cinema. Ainda: os impactos do digital nas escolas, se adotado apenas como uma possibilidade de acesso menos caro a equipamentos e insumos ou se seus potenciais estavam sendo explorados dentro das Instituições de Ensino Superior (IES), mudando o modo de fazer e pensar das/nas graduações, com novas formas de contar histórias, de pensar novos ambientes e personagens, além de outras possibili- dades na captação, edição e manipulação de imagens e sons e facili- tação na circulação, difusão e preservação de obras. Enquanto elaboro um livro reunindo ambas pesquisas, gostaria de compartilhar, na edição inaugural do CADERNOS FORCI- NE, um pouco do muito que organizei sobre a história da forma- ção em cinema, dividindo-o em dois artigos. A primeira parte, o presente texto, vai dos primórdios da formação até os primeiros cursos regulares, impulsionados pelas atuações da Igreja Católica e do cineclubismo. Forcine_final.indd 35 27/08/14 17:04 36 Internacionalmente, a primeira escola de cinema foi criada em Moscou, setembro de 1919, originalmente chamada de Escola Esta- tal de Cinema (GIK), transformada, posteriormente, em Russian State University of Cinematography (VGIK – Vserossijskij Gosoudars- tvennyj Institut Kinumatographii.). Sua formação se deveu à nacionaliza- ção do cinema, considerado por Lenin como “mais importante das artes”. É importante lembrar que o que existia neste momento, na nascente União Soviética, era de um lado uma situação bastante desfavorável em face da saída de técnicos e equipamentos do país e, de outro, uma enorme vontade estatal de tornar o cinema uma indús- tria qualificada em termos de autonomia e de profissionais com alta capacitação. Em todas estas décadas de existência, frequentaram seus bancos escolares artistas do calibre de Andrei Tarkovski Sergei Paradjanov, Otar Iosseliani, Andrei Mikhalkov Konchalovsky e Nikita Mikhalkov, que tiveram a oportunidade de aprender os ensinamentos e métodos básicos que a escola mantém até hoje, de Lev Kuleshov, Sergei Ei- senstein, Vsevolod Pudovkin, Aleksandr Dovzenko e Mikhail Romm. Coerente com os princípios internacionalistas da Revolução, fo- ram acolhidos diversos estudantes estrangeiros, sobretudo dos países do leste europeu e africanos, como a húngara Marta Maszaros, Kon- rad Wolf, da Alemanha Oriental, Ousmane Sembene, do Senegal e Souleymane Cissé, do Mali. No Brasil, embora com caráter muito diverso da GIK, desde a década de 1920 já se ouvia falar em escolas de cinema, principal- mente a Azzurri de Arturo Carrari, voltadas à formação de atores e que alimentaram a atividade de cavação, gerando campanhas siste- máticas contra elas. Maria Rita Eliezer Galvão, em Crônica do Cinema Paulistano, relata que “A partir de 1919, o centro do cinema paulista se desloca das sociedades italianas para as escolas de cinema”. (GALVÃO. 1975). O precursor desse movimento foi um italiano, que se tornou Forcine_final.indd 36 27/08/14 17:04 37 conhecido por aqui a partir de 1916, chamado Arturo Carrari, um “cavador”, termo que se referia à corriqueira prática de se fazer re- gistros cinematográfico de acontecimentos ofertados depois à venda para interessados. Consta que Carrari veio, em 1911, de Modena, Itália, para o Brasil para atuar como ator. Como fotografo e “docu- mentarista”, dirigiu alguns filmes como O Crime de Cravinhos, 1919; em 1921, Um Crime no Parque Paulista; O Misterioso Roubo dos 500 Contos (1922); Os Milagres da Nossa Senhora da Penha (A Virgem da Penha e seus Milagres) (1923); Manhãs de Sol (1924); Amor de Mãe (1927) e Anchieta Entre Amor e Religião (1931). Como aglutinava em seu entorno profissional muitos jovens, fi- lhos de imigrantes, montou a Escola de Artes Cinematográficas Azzurri2, um misto de escola e empresa de cinema. No já citado livro, Maria Rita Galvão situa a importância da criação da Escola, Seus alunos – futuros atores, diretores, cinegrafistas, laboratoristas, cavadores – seriam os homens que, quase sempre anonimamente, iriam dar ao cinema paulista toda a vitalidade que o sustentou durante mais de dez anos. Não seriam os únicos a fazer cinema em São Paulo, e certa- mente não seriam os autores dos melhores filmes. Sua importân- cia se deve ao fato de terem feito cinema com continuidade, de terem se associado, nas mais variadas combinações, a todos os homens que fizeram cinema, de terem sustentado o cinema em São Paulo – com sua atividade nem sempre irrepreensível – nas épocas em que ninguém mais filmava. (GALVÃO, 1975: 40) 2 De mesmo nome de uma escola de atores da Itália. Funcionou inicialmente no Bairro do Brás, na rua Martim Buchara, depois se transferiu para local mais central, na rua Quintino Bocaiúva Forcine_final.indd37 27/08/14 17:04 38 Carrari usava seus alunos como atores dos seus filmes “posados” (não documentais) e assim o fez até 1924, quando passou a se dedi- car exclusivamente à cavação, fechando a escola. Seus alunos segui- ram realizando filmes e muitos criaram novas escolas, como a Internacional, de Francisco Madrigano, e a Anhangá, de Aquiles Tartari, ambas em 1925. Embora essas primeiras “escolas” fossem em São Paulo, outras experiências se deram no interior e em outros estados. A figura fol- clórica do cinema brasileiro, E. C. Kerrigan, também abriu uma escola em Campinas e no Rio de Janeiro. Salvador Aragão dirigiu uma que funcionava junto à Guanabara Filme, frequentada por José Silva, português considerado pioneiro do cinema mudo mineiro na década de 20. Em Porto Alegre, pode-se mencionar a Itapuã Film. A quantidade de escolas fundadas no período chamou a atenção da imprensa que não as viu com bons olhos, referindo-se a elas como antros de prostituição e exploração de alunos, que eram responsáveis por financiar os filmes a fim de poderem ingressar nos elencos. Uma das campanhas públicas mais intensas partiu do redator da revista Cinearte, Pedro Lima, que considerava que elas depunham contra o cinema brasileiro. Na contramão do que vinha acontecendo por aqui, onde as es- colas tinham vida muito curta e eram fechadas, muitas vezes, por policiais, na Europa cursos superiores de grande monta eram cria- dos e acabaram influenciando, e muito, diversas atividades de for- mação no mundo todo, inclusive no Brasil. A Fondazione Centro Sperimentale di Cinematografia (FCSC) ex-Centro Sperimentale di Cinematografia (CSC), fundada em 13 de abril de 1935, é a segunda escola de cinema no mundo e a primei- ra da Europa Ocidental. Nos anos de 1920, o especialista em cinema Luigi Freddi fez di- versas viagens para observar as estruturas da indústria cinematográ- fica dos Estados Unidos. Em seu retorno à Itália, sugeriu a construção Forcine_final.indd 38 27/08/14 17:04 39 de Cinecittà, do Istituto Luce e do Centro a Mussolini, visando mais aprimorar a técnica cinematográfica do que o controle político em si. Essa situação confortável de independência para os realizadores italianos se manteve até 1939, quando uma mudança de rumo polí- tico pretendeu se utilizar do cinema nas atividades de propaganda do regime, causando negativas por parte dos cineastas. No Centro, estudaram vários cineastas italianos como Marco Bellocchio, Michelangelo Antonioni, Francesca Archibugi, Liliana Cavani, Luchino Visconti, Vittorio De Sica, Alessandro Blasetti, Paola Borboni, e Roberto Rossellini, que foi seu diretor nos anos 70. Também o húngaro Bela Balazs, Pietro Germi, Mario Soldati, Al- berto Lattuada, Luigi Comencini, Giuseppe De Santis, Monica Vit- ti, Suso Cecchi d’Amico, Furio Scarpelli, Gianni Amelio, Carlo Lizzani, Lina Wertmuller, o cubano Tomás Gutiérrez Alea, Ales- sandro D’Alatri, Emidio Greco, Valentino Orsini, Giuseppe Rotun- no, Piero Tosi, Antonio Avati, Roberto Perpignani, Daniele Segre, Giancarlo Giannini, Stefania Rocca. Dentre muitos estrangeiros de todas as nacionalidades que frequentaram o Centro, brasileiros também lá buscaram uma formação, integral ou parcialmente, como Duílio Mastroianni, César Memolo Jr., Rudá de Andrade, Gerson Tavares, Trigueiri- nho Neto,Guido Cosulich, Luís Sérgio Person, Roberto Palmari, Glauco Mirko Laurelli, Paulo César Saraceni, Gustavo Dahl, Luiz Carlos Saldanha e Rose Lacreta. Diversos dos citados foram responsáveis pela criação dos primeiros cursos superiores de cine- ma no Brasil. A Cinecittà passou a sediar a Escola em 1939, período em que o Festival de Veneza tornou-se uma referência internacional. Em novembro de 1997, o CSC foi transformado em Fundação, passando a ser Scuola Nazionale di Cinema (Escola Nacional de Cinema). Nesta época contava com quatro departamentos básicos: Biblioteca e Atividades Editoriais; Cinemateca Nacional; Forcine_final.indd 39 27/08/14 17:04 40 Formação, Pesquisa e Experimentação; Produção e Promoção Cultural. Importa destacar que muitos estudantes e docentes do Centro foram expoentes do Neo-Realismo, traçando os princípios dos nos- sos primeiros cursos. Egresso da primeira turma discente do curso de Cinema da Uni- versidade Federal Fluminense e seu atual professor, Tunico Aman- cio, fala sobre a influência do neo-realismo: De uma certa maneira, com o Nelson (Pereira dos Santos) na cabe- ça não dá para pensar de outra maneira; tinha Gustavo Dahl, (José Carlos) Avellar; era todo mundo filiado a essa vertente. A informa- ção que a gente tinha era essa. A camisa de força da escola era se pautar por esses princí- pios, produção pobre, produção independente...um caráter do- cumental, estava meio associada à Boca, uma coisa neo realista... (AMÂNCIO apud SILVA. 2004: 29) O fundador do curso de cinema na Universidade de São Paulo, Rudá de Andrade, relata sua passagem por cursos de cinema na Eu- ropa nos anos de 1950: Toda a minha ideia era voltada para a prática cinematográfi- ca, não para a teoria. Quando eu fui para a Europa para fazer cinema, eu fui para o, IDHEC, na França, e eles estavam em uma situação difícil, não se tinha dinheiro, então era só teoria. Tinha várias pessoas que estavam estudando lá, meus amigos brasileiros (...) Quando eu cheguei, ele (o Rodolfo Nanni) esta- va saindo. Tinham outros brasileiros. Eu cheguei a seguir al- guns cursos como ouvinte. Tinha preconceito com as escolas de Cinema... o que são? Entre a teoria e a prática, é a prática. Aqui no Brasil a prática era a Vera Cruz, a Maristela e as Forcine_final.indd 40 27/08/14 17:04 41 pessoas iam e aprendiam lá. Eu deixei o IDHEC quando des- cobri o Centro Sperimentali, de Roma, que é uma Escola muito mais ligada à prática. A Escola tinha dois estúdios grandes. Eu fui pra lá. A minha ideia é que a questão ideoló- gica que estava ligada à questão de São Bernardo a gente não queria fazer uma escola de cinema, a gente queria fazer a re- volução, transformar o mundo, transformar o Brasil, virar so- cialista, comunista. A minha intenção era esta. (ANDRADE apud SILVA. 2004: 27). O IDHEC, a que se refere Andrade no seu depoimento à minha dissertação, é o Institut Des Hautes Études, antecessor direto de LA FÉMIS – École Nationale Supérieure des Métiers de l’Image et du Son. Foi fundado pelo governo francês em 1943 e coube a Marcel L´ Herbier sua primeira direção, visando ofertar uma formação que não só agregasse todos os aspectos da realização fílmica, mas tam- bém a história, teoria e crítica. Por esse motivo, e grande reputa- ção, se tornou um polo de atração nacional e internacional para estudantes. Vale citar alguns de seus ex-estudantes, como ilustração do po- der do internacional do IDHEC: o alemão Volker Schlöndorff, o diretor francês de origem grega Costa-Gavras e o diretor grego Theo Angelopoulos, além de eminentes figuras do cinema brasileiro que o frequentaram no todo ou em parte, como Paulo Emílio Sales Gomes (essencial na formação dos cursos de Cinema da UnB e da USP), Joaquim Pedro de Andrade; Rodolfo Nanni (fundador do curso de Cinema da FAAP); Anselmo Duarte; Ruy Guerra, Jorge Monclar, Romain Lesage; Sílvio Autuori; Luiz Carlos Barreto; Osvaldo Cal- deira; Eduardo Coutinho; Eduardo Escorel; Jacques Deheinzelin; Vera Freire; Saul Lachtermacher; Marcos Marguliès Renato Santos Pereira; Geraldo Santos Pereira e muitos outros. Forcine_final.indd 41 27/08/14 17:04 42 Como se observa nos nomes de brasileiros mencionados, esta escola está intimamente ligada com a história do nosso ensino de cinema, já que muitos dos supramencionados estiveram, ou estão, presentes nas principais instituições formadoras de pesquisadores e de realizadores do país. Rodolfo Nanni relata sua experiência em Paris e como se apro- ximou do IDHEC. Na época, a escola estava passando por uma si- tuação financeira bastante difícil: O metrô começou a sair eu vislumbrei um cartazna parede do metrô que era alguma coisa sobre uma escola de cinema. Co- mecei a me informar sobre o que era isso e acabei descobrindo que era a escola (IDHEC). Fui saber se eu podia cursar como aluno estrangeiro. Me matriculei e fiz o curso que era meio precário na época, praticamente no pós-guerra. Em Paris tinha racionamento de muitas coisas por causa da guerra. E então nós tínhamos aulas teóricas de manhã, num local, e à tarde ti- nham aulas práticas e as aulas de história do cinema com Ge- orge Sadoul que tinha uma sala de projeção em um bairro meio afastado assim de Paris. Também havia uma sala de projeção e um estúdio. Então eu fiz esse curso, de manhã era aula prática, à tarde era Sadoul e à noite eu ia na cinemateca.. E aí ficou a febre, toda a noite eu ia para a cinemateca que era também uma salinha super precária naquela ocasião; você imagina pós- -guerra. Se você visse hoje em dia o IDHEC o que é, o IDHEC virou FEMIS se você visse hoje em dia o que são as instalações, é uma coisa monstruosa. ( NANNI apud SILVA. 2004:34) Relata ainda Nanni que o curso básico era de 3 anos, podendo che- gar a 5 com as especializações. Também conta que tentou imprimir aspectos do ensino de cinema europeu aos cursos que realizou, in- cluindo o da Fundação Armando Álvares Penteado, a FAAP. Forcine_final.indd 42 27/08/14 17:04 43 Dentre os franceses que a frequentaram, vale destacar alguns, como Louis Malle, Alain Resnais, Alain Cavalier, Claude Sautet, Henri Colpi, Jean-Jacques Annaud, Yves Boisset, Arnaud Desples- chin e George Sluizer, tornando-se um ponto de encontro essencial a muitos realizadores da Nouvelle Vague. A exemplo do que ocorreu com o Neo-Realismo, a Nouvelle Vague influenciou sobremaneira os primeiros passos das escolas de cinema no País, como conta Marília Franco, da primeira turma do Cinema e professora do Curso Superior do Audiovisual da ECA USP. Os primeiros filmes do curso seguiam essas tendências: Seguíamos dois grandes eixos cinematográficos que dominavam o fim dos anos 60, início dos anos 70: o Cinema Novo brasileiro e a Nouvelle Vague francesa. A gente respirava Godard o tempo todo, e Resnais, aquela coisa toda. Os cinema-novistas, óbvio, eram todos os nossos grandes mestres. De uma certa forma todo mundo queria ser Glauber. É, não sei, acho que até hoje as pes- soas continuam querendo ser Glauber; menos como cineasta, mais como pessoa. ( FRANCO apud SILVA. 2004:35) Sobrevivendo a muitas intempéries, inclusive a diversas crises do pós-guerra, transformou-se em Fondation Européenne des Métiers de l’Image et du Son (FEMIS ) em 1984, sob orientação do escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, transferindo-se em 1998 para os reformados estúdios antigos da Pathé. Enquanto na Europa o número e a importância das escolas cres- ciam, o mesmo não se pode dizer de outros países. Desde os anos de 1920 já haviam algumas escolas de ensino superior oferecendo cursos de filmagem nos Estados Unidos da América, com programas pouco valo- rizados dentro e fora das próprias universidades, inclusive por profissio- nais do meio, que acreditavam que cinema só era possível se ensinado na prática. Os egressos das escolas de cinema não eram mais respeitados Forcine_final.indd 43 27/08/14 17:04 44 que qualquer outro trabalhador da indústria, poucos realizadores, como Martin Scorsese, haviam estudado em escolas de cinema. Esta situação persistiu durante muito tempo, até o final dos anos de 1970, quando uma nova geração de realizadores, como Francis Ford Coppola (UCLA – University of California, Los Angeles), Ste- ven Spielberg (California State Univ. Long Beach) e George Lucas (USC – University of South California – School of Cinema-Televi- sion), veio das escolas dos sul da Califórnia para mudar, para sem- pre, a história de Hollywood. Encarando o cinema de forma divertida e, por que não dizer, leve, acabaram atraindo plateias em números nunca antes vistos. Audiências jovens lotaram as salas, identificadas com American Graffiti – Loucuras de Verão (American Graffiti, George Lucas, 1973) e pela luta do bem contra o mal na jornada do herói de Guerra nas Estrelas,(Star Wars, George Lucas, 1977). Rapidamente a indústria cinematográfica estadunidense re- conheceu a lucratividade advinda de O Poderoso Chefão (The Godfa- ther. Francis Ford Copola, 1972), Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, 1975), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encouters of the Third Kind. Steven Spielberg, 1977) e se interessou em financiar os projetos cinematográficos desses egressos das escolas. As universidades não ficaram alheias ao inesperado prestígio de seus estudantes, que ficaram milionários antes dos 30 anos, e lucra- ram nos mais diversos níveis, com uma enorme atração para jovens saídos do segundo grau. Não só os programas dos cursos já existen- tes se expandiram como houve substancial aumento do número de cursos em faculdades e universidades. Entretanto, a lua de mel da indústria com os estudantes não se manteve por tanto tempo quanto desejável, pois o parâmetro de uma bilheteria como Star Wars é muito difícil de ser alcançado. Enquanto as universidades do sul da Califórnia, como a USC ou AFI, seguiram preparando seus alunos exclusivamente para Hollywood, sobre como “ajeitar” um roteiro para vendê-lo a um Forcine_final.indd 44 27/08/14 17:04 45 produtor, outras escolas buscaram novos nichos e a geração seguin- te de cineastas a adquirir notabilidade em longas-metragens veio de escolas mais alternativas, como a NYU (New York University), na linha de produções independentes, como as de John Sayles e Albert Brooks. Logo o mundo conheceu os filmes de egressos como Spike Lee e Jim Jarmush, mais pessoais e de orçamentos reduzidos. Seus filmes foram sucesso de crítica e deram lucro, apesar de não atingi- rem os parâmetros de Star Wars. Essa situação, boa para as escolas e seus alunos, manteve-se até o final dos anos de 1980, quando, devido a uma recessão que se manteve até a segunda metade da década de 90, o cinema passa a ter dificuldade de conseguir financiadores. Com a recuperação da economia, houve uma retomada da pro- dução de filmes, surgiram novas tecnologias que exigiram um repen- sar de ações e profissões, com demanda de profissionais mais versáteis. Atentas a isso, as escolas de cinema acrescentaram novas mídias em seus programas de cinema e televisão, ampliando a ocu- pação dos mercados de trabalho para seus alunos. Segundo relatam Tom Edgar e Karin Kelly, dois ex-alunos da New York University, NYU, no livro Film School Confidential: The Insider’s Guide to Film Schools, a relação entre a indústria e os egressos das escolas ainda é muito delicada: Continuam se formando um grande número de alunos nas esco- las de cinema e a produção é grande. Tantos filmes estão sendo feitos que o público não pode ver todos (…) Quanto ao conteú- do, Hollywood e os graduados em cinema chegaram a um acor- do. O exagero acabou. Os alunos de cinema não estão mais livres para filmar qualquer coisa e serem reconhecidos como brilhantes prodígios do cinema. E a reação violenta que os for- çou a fazer filmes bobos, explorando o interesse das crianças, e que depois os rotulou de pirralhos sem talento e supervaloriza- Forcine_final.indd 45 27/08/14 17:04 46 dos, também acabou. Alguns estúdios e grandes produtores in- dependentes desejam apoiar projetos de risco de cineastas que filmam pela primeira vez. Desde que o dinheiro envolvido seja pequeno (…) Hollywood é agora, como tem sido sempre, um lugar difícil para graduados em cinema. Há oportunidades, mas elas são escassas, e a cada anos dez mil graduados em escolas de cinema se mudam para lá a fim de competir por um punhado de empregos. (EDGAR. 1997:56. Tradução nossa) Ressaltam, entretanto, o que há muito estamos dizendo também no Brasil: não há indústria qualificada sem formação de profissionais para tal: O que nenhum executivo de Hollywood quer admitir, é que Hollywoodprecisa de uma escola de cinema. Jovens cineastas são e continuarão sendo a chave para as audiências jovens, que contam pela porção maior do público que vai ao cinema. Esses jovens cineastas precisam aprender a arte de filmar em algum lugar. Mas os estúdios não querem pagar pela educa- ção que antigamente eles davam, como os “aprendizes” e “as- sistentes”. (EDGAR. 1997:57. Tradução nossa) O preconceito com egressos de escolas também foi observado em nosso país, onde os ensinamentos, se for possível chamá-los assim, eram aprendidos no dia a dia das filmagens. Aos técnicos cabia a transmissão das técnicas, mas, em meio a tanto empirismo, a quem cabia a discussão teórica sobre cinema? As discussões se davam em cursos e seminários livres e, principal- mente, nos cineclubes. Apesar de desde 1917 já se ouvir falar no Rio de Janeiro em grupos de debates sobre filmes, com Adhemar Gonzaga, Álvaro Ro- cha, Pedro Lima e Paulo Vanderley, entre outros, o título de primeiro Forcine_final.indd 46 27/08/14 17:04 47 cineclube coube ao Chaplin Club, fundado em 1928, também no Rio, contando com respeitáveis intelectuais como Otávio de Faria, Almir Castro, Cláudio Mello e Plínio Sussekind Rocha. Os cineclubes, em franca expansão, sofreram perseguições da censura, chegando a serem proibidos até o final da Segunda Grande Guerra, quando retomaram suas atividades e proliferaram, dentro e fora das universidades. Do final dos anos de 1940 aos anos de 1980, a atividade cineclu- bista no Brasil era intensa, mas insuficiente para dar conta de toda a reflexão necessária, aliada com a crescente necessidade de um apri- moramento técnico superior. Cresceu a demanda pela construção de escolas superiores de ci- nema, a exemplo do que vinha acontecendo internacionalmente. Em abril de 1952, o I Congresso Paulista do Cinema aprovou resoluções acerca dos cineclubes e cursos de cinema: O Congresso reconhece a importância e a necessidade imediata da criação dos cursos de cinema; também recomenda uma maior aproximação dos técnicos do cinema brasileiro com os sócios dos cineclubes, para comunicação do cinema nacional (CATANI. In: RAMOS (org.), 1990: 280) No mesmo ano o I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, reu- nido no Rio de Janeiro, recomendou a criação urgente da Escola Nacional de Cinema, deliberação reiterada pelo II Congresso, em dezembro de 1953. Esta Escola, objetivando a formação de quadros para o cinema brasileiro, pertenceria à Universidade do Brasil, atual UFRJ. Uma série de iniciativas, públicas e privadas, seguiu tentando suprir as deficiências técnicas e de pessoal do cinema brasileiro, en- quanto a criação de um curso superior de cinema não saía do mero planejamento. Forcine_final.indd 47 27/08/14 17:04 48 Os cursos livres de cinema já existiam há algum tempo. Ruggero Jaccobi, Adolfo Celli e Carlos Ortiz inauguraram em 1949 o Semi- nário de Cinema do MASP – Museu de Arte de São Paulo, incorpo- rado em 1972 pela Fundação Armando Álvares Penteado, embrião do curso de cinema que lá existe até hoje. Quando citamos experiências, corremos o risco de nos esquecer de muitas. Mesmo correndo tal risco, de excluir importantes histó- rias, gostaria de salientar alguns cursos fora das Instituições de Ensi- no Superior, mas que mereceram destaque nesse momento em que a formação para o cinema ainda não estava consolidada. Em meados dos anos de 1960, no Rio de Janeiro, dois importan- tes adventos se deram, ambos no Museu de Arte Moderna, MAM: as criações de um curso de cinema e um Seminário promovido pelo Itamaraty – Unesco, essencial para a consolidação do Cinema Novo, em 1963 e 1964. O Seminário do Itamaraty-Unesco trouxe para o Brasil o reali- zador sueco Arne Sucksdorff 3 e por ele passaram artistas e intelectuais que foram, e muitos ainda são, essenciais ao nosso cinema, como Domingos de Oliveira, David Neves, Arnaldo Jabor, Dib Lufti, Schubert Maga- lhães, Eduardo Escorel, Luiz Carlos Saldanha, Stefan Wohl, Flávio Migliaccio, Cecil Thiré, Antonio Carlos Fontoura, Joaquim Pedro dos Santos, Antônio Carlos Gomes de Matos, Alberto Salvá, José Wilker, Vladmir Herzog, Luiz Carlos Saldanha e José Sanz. No ano seguinte, começou o Curso de Cinema do MAM RJ, que manteve seu funcionamento até a década de 1970, formando realiza- 3 Considerado por muitos como o crítico francês Georges Sadoul, um dos grandes documentaristas contemporâneos veio ao Brasil especialmente para o Seminário. Na sua bagagem, além de um Oscar que ganhou ano de 1949 por seu documentá- rio Ritmos da Cidade, vieram também uma câmera Arriflex de 35 mm blimpada e um gravador Nagra IV, que possibilitava o registro do som direto, fundamentais ao chamado cinema direto. Forcine_final.indd 48 27/08/14 17:04 49 dores bastante autorais, do porte de Arthur Omar, Haroldo Marinho Barbosa, Manfredo Caldas, Antonio Calmon, Carlos Frederico, Rose Lacreta, Chico Liberato, Renato Neumann, Xavier de Oliveira, Sílvio Tendler, e Afrânio Vital. Deram aulas por lá: Walter Carvalho, Rolan- do F. Monteiro, Ruy Guerra, Bartolomeu Andrade e Gustavo Dahl. No Departamento Cultural da Universidade Federal da Bahia, UFBA, um outro curso vinha sendo realizado desde março de 1968, intitulado – GEC – Grupo Experimental de Cinema, organizado pelo crítico de cinema Walter da Silveira, “considerado por Glauber Rocha, ao lado de Paulo Emílio Sales Gomes e Alex Viany como ‘uma das pedras angulares de nossa teoria cultural’” (AUTRAN. in: RAMOS e MIRANDA, 2000: 515). Ativo militante do cinema bra- sileiro, foi também professor de Cinema na Escola de Teatro da Fa- culdade de Arquitetura e na Escola de Belas Artes na Universidade Federal da Bahia. Foram seus alunos, entre outros, André Luis Oli- veira, que participou ativamente do Cinema Marginal na Bahia, José Frazão e José Umberto. Contrariando a quaisquer previsões, o primeiro curso de cinema em uma universidade brasileira não partiu nem de uma política pú- blica, nem de um curso livre: o curso de cinema da Universidade Católica de Minas Gerais surgiu da união de cineclubistas com mili- tantes católicos. Aqui é preciso abrir um parágrafo sobre as intensas ações da Igreja Católica na formação cinematográfica dessa época. Das encíclicas do Vaticano, duas chamam particular atenção pelo enfoque no cinema: a Vigilanti Cura, do Papa Pio X (1936) e a do Papa PIO XII, chamada Miranda Prorsus, “Sobre a Cinematografia, o Rádio e a Televisão” (1957). Pregava a Vigilanti Cura que o cinema, como um poderoso meio de divulgação, precisava se colocar a serviço do aperfeiçoa- mento humano, sendo de grande utilidade na transmissão da edu- cação e instrução, desde que se livrasse da influência dos maus Forcine_final.indd 49 27/08/14 17:04 50 instintos e do lucro. Conclamava a todos a só produzirem e divul- garem filmes que não rebaixassem o senso moral dos espectado- res. Preocupava-se, ainda, com o fato do espaço coletivo do cinema, reunindo grupos em uma sala escura, levasse a um “entu- siasmo depravado”, com a sedução exercida pelos atores e atrizes, lotados de atributos físicos, sobre crianças e adolescentes. Fazia um chamamento aos católicos: A cinematografia realmente é para a maioria dos homens uma lição de coisas que instrui mais eficazmente no bem e no mal, do que o raciocínio abstrato. É, pois, necessário que o cinema, er- guendo-se ao nível da consciência cristã, sirva à difusão dos seus ideais e deixe de ser um meio de depravação e de desmoraliza- ção. (VIGILANTI CURA. 1936) De fato é possível observar que os católicos atenderam a esse chama- do, criando uma série de seminários em escolas, objetivando educar jovens e adultos. No ano de 1952, representantes da OCIC (Office Catholique International du Cinéma) vieram ao Brasil orientar a formação de um Curso de Iniciação Cinematográfica anual, que seria abrigado no currículo do curso secundário do Colégio Des Oiseaux na cidade de São Paulo. No ano seguinte, 1953, a CNBB – Conferência
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