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Cirrose A cirrose é uma das 10 maiores causas de morte no mundo ocidental. Suas principais causas são infecções virais crônicas e esteato-hepatite alcoólica e não alcoólica (NASH), doenças autoimunes que afetam os hepatócitos e/ou canalículos biliares e sobrecarga de ferro. A cirrose é definida como um processo difuso caracterizado por fibrose e pela conversão da arquitetura hepática normal em nódulos estruturados anormais. Suas principais características por definição não são focais, mas envolvem a maioria (se não todo) o fígado afetado e incluem: • Septos fibrosos na forma de faixas delicadas ou cicatrizes largas ao redor de múltiplos nódulos adjacentes. A fibrose disseminada é geralmente irreversível enquanto a doença persistir ou se as alterações vasculares relacionadas à doença são disseminadas, porém com a cessação da lesão causal pode ocorrer regressão da fibrose. • Nódulos parenquimatosos, com diâmetros variando de muito pequenos (menores que 3 mm em diâmetro — micronódulos) a grandes (maiores que 1 cm — macronódulos), são circundados por septos fibrosos. Os hepatócitos nesses nódulos têm duas origens: (1) hepatócitos preexistentes, que no momento do estabelecimento da cirrose já apresentavam sinais replicativos de senescência; e (2) hepatócitos recém-originados capazes de replicação, que são derivados de células progenitoras encontradas nas adjacências do canal de Hering e dos pequenos canalículos biliares — o ninho de células-tronco hepatobiliares. Essas células progenitoras também dão origem às reações ductulares, encontradas na periferia da maioria dos nódulos cirróticos, onde o parênquima encontra a cicatriz estromal, e são acompanhados por células endoteliais em proliferação, miofibroblastos e células inflamatórias. PATOGENIA Três processos são essenciais para a patogenia da cirrose: morte dos hepatócitos, deposição de matriz extracelular e reorganização vascular. As alterações no tecido conjuntivo e na matriz extracelular (MEC) são comuns a todas as formas de cirrose. No fígado normal, a MEC consistindo em fibras colagenosas intersticiais (colágenos tipos I, III, V e XI) está presente somente na cápsula hepática nos tratos portais e ao redor das veias centrais. Os hepatócitos não apresentam membrana basal propriamente dita; em vez disso, uma delicada trama contendo colágeno tipo IV e outras proteínas ocupa o espaço entre as células endoteliais sinusoidais e os hepatócitos (espaço de Disse). De forma distinta, na cirrose, os colágenos tipos I e III e outros componentes da MEC são depositados no espaço de Disse (Fig. 15-2). A principal fonte de colágeno na cirrose são as células estreladas perissinusoidais (chamadas de células de Ito), que ocupam o espaço de Disse. Apesar de funcionarem normalmente como células de reserva de vitamina A, durante o desenvolvimento da fibrose elas são ativadas e transformadas em miofibroblastos. Acredita-se que o estímulo para a ativação das células estreladas e para a produção de colágeno inclua espécies reativas de oxigênio, fatores de crescimento e citocinas, como fator de necrose tumoral (TNF), interleucina 1 (IL-1) e as linfotoxinas, que podem ser produzidas por hepatócitos lesionados ou células de Kupffer ativadas e pelas células endoteliais sinusoidais. As células estreladas ativadas produzem fatores de crescimento, citocinas e quimiocinas que podem estimular a sua própria proliferação e síntese de colágeno — particularmente, o fator de transformação do crescimento b (TGF-b). Os fibroblastos portais provavelmente também participam de algumas formas de cirrose. Durante o curso de uma doença hepática crônica, a fibrose é um processo dinâmico que envolve síntese, deposição e reabsorção de componentes da MEC, que são modulados pelo equilíbrio entre as metaloproteases e os inibidores teciduais de metaloproteases (Capítulo 2). Assim, mesmo no estágio avançado, se o processo da doença for alterado ou eliminado, pode ocorrer remodelamento significativo e talvez até a restauração da função hepática (regressão cirrótica) Lesões e modificações vasculares também têm papel importante no remodelamento do fígado para o estado cirrótico. A inflamação e a trombose de veias portais de artérias hepáticas e/ou de veias centrais podem promover zonas alternativas de hipoperfusão parenquimatosa, que resultam na atrofia do parênquima e hiperperfusão, com regeneração compensatória. A principal lesão vascular que contribui para defeitos na função hepática é a perda de fenestrações das células endoteliais sinusoidais (Fig. 15-2) e o desenvolvimento de shunts vasculares entre veia porta-veia hepática e artéria hepática-veia porta. Enquanto sinusoides normais têm células endoteliais fenestradas que permitem a livre troca de solutos entre o plasma e os hepatócitos, a perda de fenestrações e o espessamento da membrana basal convertem finos sinusoides em canais vasculares de alta pressão e grande velocidade, sem a devida troca de solutos. Em particular, o movimento de proteínas (p. ex., albumina, fatores de coagulação e lipoproteínas) entre os hepatócitos e o plasma é acentuadamente dificultado. Essas alterações funcionais são agravadas pela perda das microvilosidades da superfície dos hepatócitos, diminuindo significativamente a sua capacidade de transporte. Os shunts vasculares mencionados anteriormente levam a uma pressão vascular anormal dentro do fígado e contribuem para a disfunção hepática e a hipertensão portal, descritos adiante. As causas de lesão da célula hepática que dão origem à cirrose são variadas e dependem da sua etiologia (viral, alcoólica, drogas). Como descrito anteriormente, as células hepáticas normais são substituídas por nódulos parenquimatosos derivados de hepatócitos sobreviventes e de novos hepatócitos gerados a partir de células-tronco. As células hepáticas regenerativas formam nódulos esféricos confinados por um septo fibroso. Características Clínicas Todas as formas de cirrose podem ser clinicamente silenciosas. Quando os sintomas aparecem, são tipicamente inespecíficos e incluem anorexia, perda de peso, fraqueza e, na doença avançada, debilitação franca. Insuficiência hepática incipiente ou manifesta pode desenvolver-se, usualmente precipitada pela carga metabólica imposta ao fígado, como pela infecção sistêmica ou hemorragia gastrointestinal. A maioria dos casos de cirrose fatal envolve um dos seguintes mecanismos: • Insuficiência hepática progressiva • Complicação relacionada com hipertensão portal • Desenvolvimento de carcinoma hepatocelular Carcinomas Hepatocelulares Epidemiologia Muitas populações são expostas à aflatoxina, que, quando combinada com a infecção por HBV, aumenta drasticamente o risco de carcinoma hepatocelular em comparação com populações não infectadas e não expostas; dependendo do estudo, o aumento de risco estimado para CHC varia de 23-216 vezes. O pico de incidência do carcinoma hepatocelular nessas áreas é entre 30- 40 anos de idade e, em quase 50% dos casos, o tumor aparece na ausência de cirrose. Há preponderância evidentemente masculina em todo o mundo, cerca de 3:1 em áreas de baixa prevalência, podendo chegar a 8:1 em áreas de alta prevalência. PATOGENIA • Três associações etiológicas importantes foram estabelecidas: infecção por HBV ou HCV, cirrose alcoólica e exposição a aflatoxinas. Nos Estados Unidos, a DHGNA é crescente e tem se tornado um fator de risco importante para o câncer hepatocelular. Outras condições associadas incluem hemocromatose, deficiência de a1-antitripsina e tirosinemia. • Muitos fatores, incluindo idade, sexo, substâncias químicas, vírus, hormônios, álcool e nutrição, interagem no desenvolvimento do CHC. Por exemplo, a doença mais provável de desenvolver CHC é a tirosinemia hereditária, uma condição rara, na qual quase 40% dos pacientes desenvolvem esse tumor. • Em muitas partes do mundo, inclusive no Japão e na Europa Central, a infecção crônica por HCV é o mais importante fator de risco para o desenvolvimento do carcinoma hepático. • Em certas regiões do mundo, como Chinae sudeste da África, especialmente Moçambique, onde o HBV é endêmico, alta exposição a aflatoxinas da dieta, derivadas do fungo Aspergillus flavus, é comum. Esses carcinogênicos são encontrados em grãos “mofados” e amendoim. A aflatoxina pode ligar-se covalentemente ao DNA celular, resultando em mutações genéticas como o TP53. Apesar do conhecimento detalhado sobre os agentes etiológicos do CHC, a patogenia do tumor permanece incerta. Na maioria dos casos, ele se desenvolve a partir de nódulos displásicos de alto grau com pequenas células em fígados cirróticos. Esses nódulos podem ser monoclonais e conter aberrações cromossômicas similares àquelas vistas no CHC. A célula de origem do CHC é um tópico de grande discussão. Acredita-se que os tumores se originam tanto de hepatócitos quanto de células progenitoras (chamadas de células ductulares ou ovais). A distinção entre nódulos displásicos de alto grau e um CHC inicial é difícil mesmo em biópsias porque não há marcadores moleculares específicos para esses estágios. Um critério importante é a vascularização do nódulo, que é quase sempre uma indicação clara de malignidade. Uma característica quase universal do carcinoma hepatocelular é a presença de anomalias cromossômicas estruturais e numéricas, um indicativo de instabilidade genômica. A origem precisa da instabilidade genômica nesse tumor não é conhecida, mas vários fatores parecem ser importantes: • Inflamação e regeneração, vistos em todas as formas de hepatite crônica, são tidos como os principais contribuintes para as mutações adquiridas no DNA genômico. • Mutações adquiridas em oncogenes específicos (como b-catenina) e supressores de tumor (TP53) contribuem para descontrolar o crescimento e, assim, aumentar a instabilidade genômica. • Os defeitos adquiridos no reparo do DNA, particularmente aqueles adquiridos no sistema de reparo de quebras da dupla fita, também perpetuam danos no DNA e podem causar defeitos cromossômicos. Nem o HBC nem o HCV contêm oncogenes. Já foi mencionado que o gene HBV-X tem algum potencial oncogênico (Capítulo 5). A capacidade tumorigênica desses vírus provavelmente se relaciona primariamente à sua capacidade de causar inflamação crônica e à proliferação celular aumentada. Lesões Precursoras de Carcinoma Hepatocelular Displasia Celular São conhecidas duas formas de displasia hepatocelular, e ambas são mais comuns no contexto de hepatite viral crônica. A alteração de grandes células consiste em hepatócitos dispersos, geralmente na região periportal ou perisseptal, que são maiores do que os hepatócitos normais e possuem núcleos pleomórficos e, com frequência, múltiplos (Fig. 15-32, A). Apesar de morfologicamente atípicas, não se acredita que essas células estejam em via de transformação maligna, mas sejam marcadores de alterações moleculares da raiz da lesão crônica que predispõe outros hepatócitos morfologicamente normais a evoluir para transformação maligna. A alteração de pequenas células é caracterizada por hepatócitos menores do que os hepatócitos normais com núcleos de tamanho normal, frequentemente hipercromáticos, ovais ou angulados. A alteração de pequenas células pode aparecer em qualquer lóbulo hepático, frequentemente com a formação de conjuntos vagamente nodulares. Essa forma de displasia é considerada diretamente pré-maligna (Fig. 15-32, B). Nódulos Displásicos Os nódulos displásicos provavelmente representam a principal via para o carcinoma hepatocelular em doença hepática crônica. Em fígados cirróticos, os nódulos displásicos são distinguíveis por seu tamanho maior: a maioria dos nódulos cirróticos varia de 0,3-0,8 cm, mas nódulos displásicos frequentemente têm 1-2 cm de espessura (Fig. 15-33, A). Estes são crescimentos neoplásicos que englobam muitos lóbulos hepáticos adjacentes, sem deslocar todos os tratos portais. Essas lesões são de alto risco de transformação maligna e de fato, algumas vezes, contêm subnódulos claramente malignos (Fig. 15-33, B). MORFOLOGIA O CHC pode aparecer macroscopicamente como (1) massa solitária; (2) tumor multifocal, constituído de nódulos de tamanhos variados ou (3) câncer difusamente infiltrante, permeando amplamente e às vezes comprometendo o fígado inteiro, fundido imperceptivelmente para dentro de um fundo de fígado cirrótico. Particularmente nos dois últimos tipos, pode ser difícil distinguir radiologicamente os nódulos cirróticos regenerativos dos neoplasmas de tamanho semelhante. As massas isoladas de tumor são geralmente amareladas, pontilhadas algumas vezes por coloração de bile e áreas de hemorragia ou necrose. O CHC tem forte propensão a invadir canais vasculares. As metástases intra-hepáticas extensas são características e, ocasionalmente, longas massas semelhantes a serpentes de tumor invadem a veia porta (com oclusão da circulação portal) ou a veia cava inferior, estendendo-se até o lado direito do coração. Microscopicamente, os CHC variam de bem diferenciados, que reproduzem hepatócitos organizados em padrões de cordões, trabéculas ou glandulares (Fig. 15-34), a lesões indiferenciadas, frequentemente compostas de células gigantes multinucleadas altamente anaplásicas. Nos tumores diferenciados e moderadamente bem diferenciados, pode-se identificar glóbulos de bile no interior do citoplasma das células e nos pseudocanalículos entre as células. Podem ser encontradas inclusões hialinas acidófilas no interior do citoplasma, semelhantes a corpos de Mallory. Na maioria dos carcinomas hepatocelulares, é visto pouco estroma, o que explica a sua consistência macia. Uma variedade clinicopatológica do CHC é o carcinoma fibrolamelar. Ele ocorre em adultos jovens (20-40 anos de idade) com igual prevalência entre homens e mulheres, e não tem associação com cirrose ou outro fator de risco. Geralmente ocorre como tumor único, com bandas fibrosas em seu interior, semelhante na sua superfície à hiperplasia nodular focal. A variedade fibrolamelar tem prognóstico melhor do que as outras variedades, mais comuns. Características Clínicas Apesar de o CHC poder se manifestar com hepatomegalia silenciosa, ele é mais frequentemente encontrado em pessoas com cirrose sintomática. Nesses indivíduos, o rápido aumento no tamanho do fígado, súbita piora da ascite ou aparência de ascite hemorrágica, febre e dor chamam a atenção para o desenvolvimento de um tumor. Não há bons testes sorológicos de triagem para o carcinoma hepatocelular. O marcador mais comumente utilizado é o nível de alfa-fetoproteína sérica, mas ele só é elevado em tumores avançados e apenas em 50% dos pacientes.