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UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. A Adoção de Crianças e Adolescentes Sob Uma Perspectiva Crítica: Reflexões Sobre o Direito à Convivência Familiar no Contexto da Sociedade Capitalista Juliana Viana Ford1 Adriana Amaral Ferreira Alves2 Mariana Azevedo Gava3 RESUMO: A adoção de crianças e adolescentes enquanto prática social inserida em determinadas condições socio-históricas, político-econômicas e ideo-culturais é objeto de uma análise que reflete a garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes no contexto da reprodução objetiva e ideológica do capital. Afinal, em que medida o Estado subordinado aos interesses do capital se compromete em satisfazer as necessidades dos sujeitos explorados? O desenvolvimento desta e outras questões revela o exercício do controle social pelo Estado burguês através da adoção, como forma de punir, culpabilizar e “ajustar” os sujeitos ao modo de vida da classe dominante. Palavras-Chave: Adoção; Direito; Estado; Controle Social. ABSTRACT: The adoption of children and adolescents known as a social practice inserted in determined conditions socio-historical, politic-economic and ideological-cultural is object of an analysis that reflects the guarantee of the right to family and community life of children and adolescents in the context of objective and ideological reproduction of capital. Anyway, to what extent the State subordinated to the interests of capital is committed to meeting the needs of the individual explored? The development of this and other issues shows the application of the social control by the bourgeois State through adopting as a way of punish blame and "adjust" the individuals to the lifestyle of the dominant class. Keywords: Adoption; Law; State; Social Control. 1 Bacharel em Serviço Social (UFES), mestranda da Escola de Serviço Social da UFRJ. 2 Docente do departamento de Serviço Social da UFES, doutoranda da Escola de Serviço Social da UFRJ. 3 Bacharel em Serviço Social (UFES). 2 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. 1. Introdução De forma rápida e severa, a reprodução das desigualdades sociais no contexto da crise contemporânea do capital tem gerado novas e complexas representações da “questão social”, cuja compreensão perpassa pela apreensão de um conjunto de transformações sócio- históricas, politicoeconômicas, e ideoculturais que redefiniram o modo de vida dos sujeitos sociais a partir do final do século XX. Até meados dos anos de 1960, o capital acumulava altas taxas de lucro e crescimento econômico produzidas com o término da Segunda Guerra Mundial, que resultaram em uma fase próspera conhecida como “os trinta anos gloriosos”. Porém, na década seguinte o desenvolvimento econômico acumulado no pós-guerra deu lugar a uma recessão generalizada provocada pela queda dos lucros e do crescimento econômico, e agravado pela movimentação dos trabalhadores organizados, desencadeando o início de um longo período de crise do capital (NETTO & BRAS, 2007, p. 214-215). Nesse momento, superar a rigidez que caracterizava o modelo de produção fordista/taylorista na época a fim de expandir os lucros em escala global, e retomar o crescimento econômico abalado pela crise foi a estratégia adotada pelo capital a fim de estender o seu domínio político e econômico em nível global. A reestruturação do modo de produção capitalista baseou-se na substituição da mão-de-obra do trabalhador (trabalho vivo) pelo emprego da robótica (trabalho morto) no processo produtivo, de forma a criar o incremento necessário ao aumento de extração da mais-valia relativa sobre o trabalhado assalariado e, consequentemente, a expansão dos lucros. Estes fatores, associados à redução do tempo de vida útil das mercadorias provocaram a aceleração da produção e do consumo em níveis globais, devido ao rompimento das barreiras territoriais através do uso das tecnologias de informação no gerenciamento do tempo de giro do capital (HARVEY, 1993). O rápido desenvolvimento da microeletrônica e da informática ampliou o setor de serviços e de produção de conhecimento, globalizando os sistemas de informações. Os veículos de informação transformaram a acumulação de riquezas em uma atividade transnacional e o capital, ao assumir sua forma fetiche, se desloca de um lugar para o outro do planeta realizando operações quase que de maneira instantânea (MAGALHÃES, 2004, p. 40- 41). A especulação financeira assume o centro das relações econômicas no mundo, 3 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. O fetichismo dos mercados apresenta as finanças como potências autônomas ante as sociedades nacionais, esconde o funcionamento e a dominação operada pelo capital transnacional e pelos investidores, que contam com o efetivo respaldo dos Estados nacionais e das grandes potências internacionais (IAMAMOTO, 2009, p. 17-18). Não obstante, o modelo de acumulação flexível4 do capital impactou sobre a classe trabalhadora causando a flexibilização das relações de trabalho, o desemprego estrutural, a precarização das condições de trabalho, o subemprego, o crescimento da atividade informal, o cerceamento das atividades de organização política dos trabalhadores e a terceirização da produção. Impactos estes que corroboraram para o agravamento das expressões da “questão social” já existentes. Tão logo as inovações no processo de produção do capital tenham refletido sobre as condições de sobrevivência dos sujeitos como uma ameaça real e perversa, a ofensiva ideológica do neoliberalismo tratou de acentuá-las ao refuncionalizar o papel do Estado no contexto da “nova” ordem do capital. 2. A contrarreforma do Estado brasileiro e o declínio da proteção social No Brasil, as bases para o desenvolvimento do capital financeiro começaram a ser introduzidas ainda nos anos 80 – ao aglutinar o apoio político das elites nacionais durante a transição do regime ditatorial para a abertura democrática. A falta de investimentos nessa época produziu um cenário de atraso econômico que gerou o endividamento externo do setor privado, o qual foi assumido pelo Estado nos anos 90. Logo, o combate à crise fiscal na época serviu então de justificativa para a realização de ajustes econômicos cujo objetivo era submeter a hegemonia nacional aos ditames do capital financeiro internacional. Desde então, a ofensiva neoliberal passou a operar uma contrarreforma no Estado brasileiro, deixando-o inteiramente a serviço dos interesses da classe dominante (BEHRING, 2008). O orçamento da União destinado à assistência social sofre graves cortes desde então, sob o pretexto do aumento do déficit público gerado a partir do endividamento com os organismos internacionais de crédito, para amortizar os juros da dívida. Um exemplo 1 “A acumulação flexível [...] se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional” (HARVEY, 1993, p. 140). 4 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. emblemático foi a aprovação do Fundo Social de Emergência – mais tarde transformado em DRU (Desvinculação de Receita da União), que previa o desvio de 20% da receita dedicada à Seguridade Social para o pagamento da dívida externa.A concessão de incentivos fiscais às empresas multinacionais com intenção de se fixarem no Brasil também contribui para a redução da receita destinada aos projetos e políticas sociais, agravando a qualidade e a cobertura dos serviços prestados pelo Estado. Para Behring (2008, p. 64): As políticas sociais entram neste cenário [neoliberal] caracterizadas por meio de um discurso nitidamente ideológico. Elas são: paternalistas, geradoras de desequilíbrio, custo excessivo do trabalho, e devem ser acessadas via mercado. Evidentemente, nessa perspectiva deixam de ser direito social. Daí as tendências de desresponsabilização e desfinanciamento da proteção social pelo Estado, o que, aos poucos – já que há resistências e sujeitos em conflito nesse processo eminentemente político – vai configurando um Estado mínimo para os trabalhadores e um Estado Máximo para o capital (Netto, 1993). Deve-se considerar também que a degradação dos serviços públicos e o corte nos gastos sociais levam a um processo de privatização induzida nesse terreno. Ou seja, há uma mercantilização e transformação de políticas sociais em negócios – o que expressa processo amplo de supercapitalização do capital (Mendel, 1982 & Behring, 1998) – tendo em vista a rentabilidade do capital (Montes, 1996: 76). Este último não prescinde de seu pressuposto geral – o Estado -, que lhe assegura as condições de produção e reprodução. Hoje, cumprir com esse papel é facilitar o fluxo global de mercadorias e dinheiro, por meio, como já foi sinalizado, da desregulamentação de direitos sociais, de garantias fiscais ao capital, da ”vista grossa” para a fuga fiscal, da política de privatização, dentre inúmeras possibilidades que pragmaticamente viabilizam a realização dos superlucros e da acumulação. O caráter conservador assumido pelas políticas sociais a partir da ofensiva neoliberal denota o desinteresse do Estado burguês em oferecer serviços que atendam às reais necessidades dos sujeitos, para que o mercado possa oferecê-los. Apoiado em uma perspectiva reducionista de controle dos índices de miséria no país, a esfera pública se dispõe a intervir apenas nas situações extremas de risco social, de maneira pontual e não-preventiva, favorecendo assim a livre regulação do mercado capitalista em detrimento do atendimento das reais necessidades dos sujeitos sociais. Tais aspetos impressos às políticas sociais na contemporaneidade estreitam a sua relação histórica com o controle social dos indivíduos em situação de pobreza acentuada pelo Estado burguês, revelando uma face perversa que elege os mais pobres dentre os miseráveis para acessar os benefícios sociais. 5 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. O atual recorte das políticas sociais sob o parâmetro da pobreza absoluta5 – aquela identificada por indicadores numéricos - contempla somente a parcela mais empobrecida da população, satisfazendo suas necessidades apenas em parte. Segundo Boschetti apud ALVES, (2008, p. 124-125), a seletividade dos serviços sociais públicos é associada ao conceito de focalização das políticas sociais – que prioriza o acesso aos direitos sociais junto à população economicamente inativa como meio a sua universalização, tornando-se um fator de exclusão social que serve para perpetuar as precárias condições de vida da classe trabalhadora. Logo, a pobreza enquanto reflexo imediato das contradições entre capital e trabalho constitui-se na sociedade burguesa como o estado de privação de um conjunto de direitos promotores da cidadania liberal, e por isso da inserção social dos indivíduos; sendo entendida como uma conduta perigosa, que ameaça a reprodução do modo de vida capitalista por estar à margem dos processos sociais que a condicionam, tais como a escolarização, a inserção no mercado de trabalho formal, o acesso à informação, etc. O que justificaria, do ponto de vista do Estado burguês, uma intervenção repressora dos conflitos originários nessa dinâmica, haja vista o estereótipo que associa a condição de pobreza ao conflito com a lei ser um eficiente instrumento ideológico que naturaliza as expressões da “questão social”, condena moralmente os sujeitos, e de certa forma enfatiza a ação punitiva do Estado. A ameaça constante às condições de sobrevivência dos sujeitos na “nova” ordem social, somada ao processo de mercantilização dos serviços públicos e submissão das funções do Estado ao capital financeiro em detrimento do bem-estar social, tem refletido no aumento do controle social através do uso de medidas que visam o “ajustamento” dos indivíduos à sociabilidade produzida pela classe dominante. Esse retorno às práticas conservadoras inspirado no avanço das ideias neoliberais na contemporaneidade tem produzido a criminalização – formal e moral - da situação de pobreza extrema, sobretudo junto às instituições públicas de conservação da ordem vigente. Questões como o uso abusivo de álcool e drogas, a violência doméstica, entre outras, se tornaram objeto de uma intervenção do Estado burguês pautada na correção e punição dos sujeitos das classes subalternas6, como 2 O empobrecimento absoluto da classe trabalhadora é “proporcionado pelas condições que regulam a disponibilidade do trabalho assalariado. Quando o exercito industrial de reserva é grande, por exemplo, os salários reais podem ser reduzidos abaixo do nível de subsistência da força de trabalho porque há novos trabalhadores para substituir os que forem ‘consumidos’ pelo capital.” (BOTTOMORE, 2001, p. 284). 6 O conceito de classe subalterna em Gramsci extrapola a análise de fenômenos sociopolíticos e culturais utilizados para “descrever as condições de vida de grupos e camadas de classe em situação de exploração ou destituídos dos meios suficientes para uma vida digna”. Ele considera os processos históricos de dominação na 6 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. forma de “adequá-los” forçadamente ao modo de vida capitalista. Seguindo essa lógica, os mecanismos históricos de defesa da infância e da adolescência no Brasil desempenham uma função reguladora, a qual se observa na aplicação da destituição do poder familiar7 sob os sujeitos das classes subalternas: como medida “protetiva” dos direitos da criança e do adolescente de uso legítimo do Estado, que trata de punir e culpabilizar as famílias impossibilitadas de promover os meios necessários à reprodução física, intelectual e subjetiva de seus filhos. O poder familiar é um dever dos pais a ser exercido no interesse dos filhos. O Estado moderno sente-se legitimado a entrar no recesso da família, a fim de defender os menores que aí vivem. Assim, reserva-se o direito de fiscalizar o adimplemento de tal encargo, podendo suspender e até excluir o poder familiar. Quando um ou ambos os genitores deixam de cumprir com os deveres dele decorrentes, mantendo comportamento que possa vir em prejuízo do filho, o Estado deve intervir. É prioritário preservar a integridade física e psíquica da criança e adolescente, nem que para isso tenha o Poder Público de afastá-lo do convívio de seus pais (DIAS, 2005, p. 389). Nesse contexto, a prática da adoção como eficaz solução para o reestabelecimento do convívio familiar e comunitário das crianças e adolescentes retirados definitivamente de suas famílias de origem evita transparecer a real preocupação da classe dominante: a de eximir o Estado burguês de qualquer responsabilidade sobre os meios de sobrevivência dos sujeitos, transferindo-a para outros sujeitos mais “adaptados” à sociedade burguesa. 3. A adoção e sua funcionalidade para o Estado burguês neoliberal A concepção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil produziu inegáveis avanços emmatéria de proteção social no país, os quais, no entanto, estão submissos à supremacia dos interesses econômicos no âmbito da esfera pública; de modo que a realização sociedade capitalista, desvendando as ações político-culturais da hegemonia que marginalizam a história dos próprios subalternos, até mesmo dentro da sociedade civil (SIMIONATTO, 2009, p.42). 4 Baseada na noção do direito romano, a instituição do pátrio poder foi incorporada ao Código de Civil de 1916, atribuindo o exercício do pátrio poder exclusivamente aos homens, chefes da sociedade conjugal. A partir da maior inserção das mulheres no mercado de trabalho, acompanhada por conquistas do movimento feminista, é estabelecida a igualdade de direitos e deveres na sociedade conjugal, alterando-se o termo pátrio poder para poder familiar. Dessa forma, a família em sua extensão passa a ser responsabilizada pelo bem-estar dos membros economicamente inativos, e não apenas de um dos sujeitos (DIAS, 2005, p. 379-380). 7 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. desses direitos na sociedade capitalista não contempla as reais necessidades dos sujeitos. Ao contrário, a ofensiva neoliberal resgata a lógica do laissez-faire no contexto da crise global, promovendo a refuncionalização do Estado com base na transferência das responsabilidades pela promoção do bem-estar social aos próprios indivíduos, independente de suas possibilidades de acesso aos meios de trabalho necessários para tal. Não obstante, a matriz familiar em que se apoiam as políticas sociais a partir dos anos 90 configura uma estratégia de reposição da autossuficiência exigida aos indivíduos, por reforçar o dever moral atribuído à família de promover o cuidado a cada um de seus membros, protegendo-os de qualquer situação de desamparo social (CARVALHO, 2008, p. 270, 271). Transpassada por essa lógica, a proteção social de crianças e adolescentes enfatiza o convívio familiar e comunitário como direito fundamental, e a internação uma medida excepcional e provisória segundo os artigos 100 e 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nessa mesma direção, recentes alterações no ECA produzidas a partir da lei 12.010, de novembro de 2009, são favorecedoras da prática da adoção. O que pode parecer muito benéfico à realização do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes em uma análise menos aprofundada. No entanto, a valorização da convivência familiar que se quer garantir no Estado burguês está relacionada a determinadas relações familiares. Em outras palavras, o convívio em família só pode ser uma experiência saudável para crianças e adolescentes, do ponto de vista do Estado burguês, quando aquela tem incorporado o padrão de vida da classe dominante. Do contrário, as famílias que não estão “adaptadas” a esse modo de vida, devido aos aspectos materiais, culturais, etc., são entendidas como inaptas a exercerem suas funções parentais, por representarem uma verdadeira ameaça à hegemonia do capital. Estas, de maneira oposta, têm sido alvo da ação moralizadora do Estado burguês que, para “proteger” os direitos da criança e do adolescente, age na prevenção de possíveis manifestações contrárias à ordem vigente retirando os filhos dos sujeitos da classe subalterna e colocando-os em famílias devidamente enquadradas ao modo de vida capitalista. Logo, o que se percebe é que a aplicação do direito à convivência familiar e comunitária para as crianças e adolescentes da classe subalterna tende a ser “garantido”, do ponto de vista do Estado burguês, em família substituta. Consequentemente, a adoção de crianças e adolescentes tem sido explorada pelos órgãos públicos de defesa da infância e da adolescência como a grande solução para os impasses à “garantia” do direito à convivência familiar e comunitária. Segundo a análise de Fávero (2007, p. 170): 8 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha como base a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, a qual pressupõe uma mentalidade diferente da que predominava na legislação anterior, colocando a sociedade em “situação irregular” perante crianças e adolescentes em situação de risco social, muitas das práticas direcionadas a essa população ainda não incorporaram essa nova mentalidade. As medidas de guarda, adoção, destituição do poder familiar, abrigo de uma criança e internação de um adolescente, previstas nessa lei, dão margem à proteção necessária, mas também ao exercício do controle e à regulação de determinados aspectos “desviantes” do que é socialmente estabelecido como normalidade. Geralmente, as famílias da classe subalterna acusadas pelo Estado burguês de negligenciar, maltratar, abandonar, ou explorar seus filhos estão nessa situação devido à omissão do próprio poder público, ausente no atendimento das demandas das classes exploradas. E assim permanecem, pois não há o interesse de que recebam a assistência necessária ao resgate de uma forma de vida digna, haja vista o recuo das ações de proteção social pela esfera estatal. Fatalmente, sob a alegação da incapacidade de cumprir com os deveres materno e paterno estipulados pelo ECA (art. 4 e 22), as famílias da classe subalterna têm sido covardemente destituídas do poder familiar por não conseguirem promover sua sobrevivência, e dependerem da intervenção do Estado para tal. Dessa forma, não havendo a atuação efetiva do Estado sobre as desigualdades sociais, a situação de pobreza extrema em algumas famílias das classes subalternas tende a se perpetuar por várias gerações, alimentando assim os argumentos da ordem neoliberal para que haja a destituição do poder familiar. Sustentando a defesa do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, o Estado burguês elegeu a inserção dos filhos das classes subalternas em famílias substitutas como a medida mais adequada à garantia dos seus interesses de classe, e não propriamente ao bem-estar desses sujeitos. Pois, ainda que o artigo 19 do ECA determine que “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta [...]”, na realidade, o comprometimento de classe assumido pelo Estado burguês não permite que esse direito seja efetivado em sua integralidade conforme o sentido atribuído pelas lutas sociais que o originaram. [...] a perda do poder familiar e o encaminhamento de uma criança para abrigo ou para adoção funciona, ainda que de forma “invisível”, como mecanismo de punição pela situação de pobreza vivida, responsabilizando as pessoas, individualmente, por não usufruírem de condições dignas de cidadãs. O recurso do Judiciário esconde a obrigação do Estado (Poder Executivo) de prover o atendimento integral às necessidades das crianças, criando programas de saúde (incluindo a saúde reprodutiva e a orientação sexual, até para evitar a gravidez 9 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. não desejada), educação, alimentação, habitação, apoio à gestante, à mãe solteira, dentre outros, que possibilitem aos sujeitos modos de enfrentamento da violência decorrente da miséria. Programas que ofereçam alternativas para a criança que tenha um crescimento e um desenvolvimento sadio, evitando, assim, que a situação de pobreza vivida pela família dê margem à interpretação do abandono moral e material (FÁVERO, 2007, p. 193). Assim, a adoção de crianças e adolescentes na sociedade capitalista tornou-se uma práticacristalizada, mecanizada, que tem sido interpretada pelos operadores da lei enquanto recurso imediato a que se recorre na maioria dos casos de destituição do poder familiar dos filhos da classe subalterna, visando a “garantia” do direito à convivência familiar e comunitária dessas crianças e adolescentes. Além de reforçar a questão da responsabilização do indivíduo de manter-se e à sua família objetivamente, sem a intervenção do Estado para isso, a adoção de crianças e adolescentes também contribui com o processo de controle social dos sujeitos da classe subalterna, ao interferir nos processos de criação e educação das crianças e adolescentes de origem pobre. Diante da necessidade de adequar as crianças e adolescentes pobres que foram subtraídos do seio das famílias da classe subalterna em ambiente propício ao seu desenvolvimento, segundo o ethos capitalista, o Estado burguês enxerga na adoção a opção mais segura de manter-se alheio às necessidades desses sujeitos, e ainda cooptá-los como seres funcionais ao sistema. Isso porque, a medida da adoção tem o poder jurídico de cessar os vínculos de parentesco entre a criança e o adolescente com a sua família biológica, e estabelecê-los em ambiente familiar favorável ao desenvolvimento do modo de vida capitalista. Portanto, aquele indivíduo retirado de um contexto familiar característico das classes subalterna, ou seja, de extrema pobreza e hábitos condenáveis aos olhos da sociedade capitalista, torna-se responsabilidade daqueles que o adotaram, e não mais do Estado. Enquanto sua família de origem continua a provar das desigualdades sociais. Cabe destacar, todavia, que a adoção de crianças e adolescentes é um importante instrumento de defesa dos direitos da infância e da adolescência contra inúmeras situações prejudiciais ao seu desenvolvimento enquanto pessoa humana, contribuindo efetivamente para a melhoria da qualidade de vida desses sujeitos. O que se questiona, portanto, não é a aplicação da medida em si, mas em que circunstâncias ela é aplicada pelo Estado burguês, e para atender a quais interesses. 10 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. 4. Conclusão A proteção dos direitos da infância e da adolescência realizada pelo Estado neoliberal brasileiro tem assumido os contornos do controle social, transformando assim a questão da defesa integral dos direitos de crianças e adolescentes, conforme estipula o ECA, em um meio de integrar os indivíduos ao padrão de vida burguês. A perspectiva classista assumida pela esfera pública no que concerne às ações dedicadas ao amparo de crianças e adolescentes, por vezes, vai de encontro com as reais necessidades desses sujeitos, mas também para legitimar o domínio exercido pelo capital. Assim tem funcionado a aplicação da medida protetiva permanente de adoção: como um fim em si mesmo, um fluxo de sentido único, que se esgota ao introduzir crianças e adolescentes da classe subalterna em lares cujos valores da sociedade burguesa foram devidamente incorporados pelos seus membros. A maneira com que o Estado burguês tem recorrido a esta, que é uma medida excepcional e possível apenas quando findadas as possibilidades de retorno dos filhos para a família de origem, segundo o ECA, afirma o posicionamento de classe que permeia a realização da adoção. Banalizada, a adoção de crianças e adolescentes na sociedade capitalista tem se cristalizado como alternativa eficaz pelos órgãos de controle social estatais na “promoção” do direito à convivência familiar e comunitária. Nesse bojo, estão diversos técnicos cooperando com o projeto expansivo do capital, que tende a contar com a adesão dos próprios assistentes sociais, os quais, sob a aparência da “defesa dos direitos da criança e do adolescente”, muitas vezes acabam atuando sob outra perspectiva. Essa contradição é indissociável da própria existência do Serviço Social, mas não pode ser, no entanto, reproduzida como determinação que anula as possibilidades histórico-concretas de uma atuação que mobilize os sujeitos coletivos para a crítica e para a luta. Este é o potencial que o Serviço Social traz em si: o exercício da crítica para uma atuação realizada muitas vezes na contramão de práticas institucionalmente engessadas, e que tiram os sujeitos históricos de cena. Neste sentido, face à aplicação do direito segundo a ética liberal que visa o controle das relações sociais capitalistas, os profissionais que atuam nas instituições de atendimento das crianças e adolescentes do Estado burguês precisam estar atentos à lógica naturalizada que tem conduzido os processos de destituição do poder familiar e de adoção. É preciso refletir até que ponto a retirada dos filhos da classe subalterna, e sua inserção em lares substitutos 11 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. incorporado dos ideais burgueses, garante de fato os interesses de defesa dos direitos de crianças e adolescentes. O enfrentamento dessa situação, que tanto afeta crianças e adolescentes em todo o país, exige a mobilização dos diferentes atores sociais – os Conselhos Nacional, Estadual e Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, Ministério Público da Infância e Juventude, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Conselhos Tutelares, Conselhos Federal e Estaduais de Serviço Social, dentre outros – a fim de se questionar qual o verdadeiro sentido da adoção de crianças e adolescentes, se ele vem sendo cumprido pelos órgãos competentes, e como garantir que assim seja. Não obstante, a transformação da realidade social perpassa também pela transformação dos próprios sujeitos, o que envolve a comoção das massas populares em torno de uma luta que lhes é comum. REFERÊNCIAS ALVES, A. A. F. Assistência Social: história, análise crítica e avaliação. Curitiba: Juará, 2008. BEHRING, E. R. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda dos direitos, 2 ed. – São Paulo : Cortez, 2008. BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista. – Rio de Janeiro : Zahar, 2001. BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990. CARVALHO, M. do C. B. de Famílias e políticas públicas, In: Famílias, redes sociais e políticas públicas. 4 ed., Cortez, PUC-SP, São Paulo, 2008. DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 2. ed. - Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2005. FÁVERO, E. T. Questão social e perda do poder familiar – São Paulo : Veras, 2007 (Série temas, nº 5). HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1993. IAMAMOTO, M. V. O serviço social na cena contemporânea. In: Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais – Brasília : CFESS, 2009. 12 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. MAGALHÃES, F. Tempos pós-modernos: a globalização e as sociedades pós-industriais – São Paulo : Cortez, 2004, (Coleção Questões da Nossa Época; v.108). NETTO, J. P; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. 2. ed. – São Paulo : Cortez, 2007 (Biblioteca básica de serviço social ; v.1). SIMIONATTO, I. Classes subalternas, luta de classe e hegemonia: uma abordagem gramsciana. In: Revista Katálysis, vol. 12, nº 1. Florianópolis, 2009. UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. A Avaliação Social no Benefício de Prestação Continuada Paula Valéria de Oliveira Terra1 RESUMO: Desde 2009 foi introduzida na análise do Benefício de Prestação Continuada para pessoas com deficiência a Avaliação Social. Conhecer o olhar dos assistentes sociais, investigando as possibilidadese impasses encontrados por eles na realização da Avaliação Social foi nosso objetivo de estudo. Realizamos entrevistas semi-estruturadas com sete das quatorze assistentes sociais da Gerência Executiva do INSS de Niterói. Os resultados da pesquisa demonstraram que esses profissionais têm uma visão muito positiva sobre as mudanças realizadas em 2009, mas apontaram questões relativas às condições de trabalho e exigências institucionais que rebatem no seu fazer profissional trazendo dificuldades na realização da Avaliação Social. Palavras-Chave: Assistência Social; Benefício de Prestação Continuada; Avaliação Social; Serviço Social. ABSTRACT: Since 2009 was introduced in the analysis of the Continuous Cash Benefit for people with disabilities Social Evaluation. Knowing the eyes of social workers, investigating the possibilities and dilemmas encountered by them was our goal to study. We conducted semi-structured interviews with seven of the fourteen social workers Executive Management INSS Niterói. The survey results showed that these professionals have a very positive view of the changes made in 2009, but pointed questions relating to working conditions and institutional requirements that bounce off in the professional Social Work leading to difficulties in carrying out the Social Evaluation. Keywords: Social Assistance; Continuous Cash Benefit, Social Evaluation, Social Work 1 Mestre em Serviço Social pela PUC-Rio e Coordenadora da Equipe de Serviço Social do Hospital Universitário Antônio Pedro – UFF. 2 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. Introdução Reflexões iniciais sobre a Assistência Social e o BPC A Política de Assistência Social foi legalmente reconhecida no Brasil como direito social e dever do Estado pela Constituição de 1988. A aprovação LOAS (1993), a Política Nacional de Assistência Social (2004), e a criação do SUAS - Sistema Único de Assistência Social - (2005) são acontecimentos marcantes no reconhecimento e regulamentação da política Assistência Social no país. A Constituição de 1988 pode ser considerada um marco histórico para as políticas sociais em nosso país através do reconhecimento da assistência social como política pública integrante da rede de Seguridade Social e do estabelecimento do mínimo social no Brasil. Segundo Sposati (2004), o Benefício de Prestação Continuada (BPC) é primeiro mínimo social não contributivo garantido constitucionalmente a todos os brasileiros independente da sua condição de trabalho, mas dependente da condição atual de renda. O BPC, instituído pela Constituição Federal e regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (art.20 da Lei 8.742/93), é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso, com idade de 65 anos ou mais, que comprovem não possuir meios para prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família, integrando a proteção social básica no âmbito do SUAS. Não esquecendo as limitações relacionadas ao critério de renda per capita, ressaltamos a importância do BPC dentre os programas de transferência de renda no Brasil, que de fato possibilitam uma melhoria nas condições de vida da população. O BPC pode ser considerado um componente importante da política de assistência social na atualidade, principalmente no que diz respeito à inserção no campo do direito e ao valor da cobertura. O valor do BPC equipara-se ao salário mínimo (embora esse ainda não seja suficiente para a manutenção de uma família com dignidade) e o critério de acesso ao benefício, ainda que seja objeto de críticas, não é regido pelo favor ou clientelismo como na história recente da assistência, ele é um direito social reclamável e garantido constitucionalmente. O BPC tem hoje um importante papel na Política de Assistência Social do país. De acordo com dados do MDS no ano de 2011 os recursos destinados para pagamento do 3 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. benefício chegaram a R$ 22.854.838.824 e em agosto de 2012 chegam a R$ 18.134.639.002. No ano de 2012 (dados relativos a agosto) o número de BPC’s mantidos no Brasil é de 3.702.561 benefícios, sendo 1.978.752 para PcD e 1.723.809 para Idosos. O “novo” modelo de Avaliação para o BBC para pessoas com deficiência O BPC para pessoas com deficiência passou por uma significativa modificação iniciada no ano de 2007 com a alteração da legislação (Decreto 6.214/2007) e implementada em 2009. A partir de então o processo de concessão e avaliação do benefício para pessoas com deficiência ganhou novos parâmetros e procedimentos para a avaliação da deficiência baseados na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). A concessão do BPC para pessoas com deficiência passou a ser condicionada à avaliação do médico perito e do assistente social do INSS. Nesta análise foram introduzidos elementos relacionados à deficiência da função ou da estrutura do corpo2, da limitação da execução de atividades e das restrições da participação social. Essa nova visão considera não só a questão da deficiência e incapacidade pura e simples, mas também o impacto dos aspectos ambientais e sociais na definição dos níveis de incapacidades para a vida independente e para o trabalho. É importante ressaltar que essa alteração não se deu de forma instantânea, mas a partir de intensas críticas ao modelo anterior. O modelo de avaliação médico pericial para do BPC foi intensamente criticado e tornou-se objeto de reivindicações da sociedade civil e deliberações das Conferências Nacionais de Assistência Social. Além das conferências, levantamentos e encontros do MDS3 apontaram problemas na avaliação da deficiência e incapacidade pela perícia médica do INSS. Alguns estudos acadêmicos também indicaram problemas na avaliação da deficiência para o BPC. O significado de incapacidade para a vida independente das pessoas com deficiência requerentes do BPC foi objeto de discussão e crítica por alguns autores (DINIZ et al, 2007; MEDEIROS et al, 2006; SQUINCA, 2007). Diniz et al (2007) apresenta uma interessante pesquisa com os médicos peritos do 2 Esses elementos estão relacionados ao funcionamento das estruturas do corpo, ou seja, funções fisiológicas dos sistemas corporais, e também a parte mental. 3 Relatório do Encontro Nacional sobre Gestão do Benefício Assistencial de Prestação Continuada (2004) e o Levantamento de dados realizado pela SNAS/MDS, em Janeiro de 2005 (BRASIL, 2007a) 4 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. INSS sobre o questionário de avaliação da deficiência e da incapacidade para o BPC, os resultados do estudo demonstraram que os médicos peritos tinham critérios diversificados para realizar a avaliação médico-pericial da deficiência e incapacidade para o trabalho e para a vida independente e que quanto mais padronizada fosse a seleção, maiores seriam as chances de “objetividade” no acesso ao programa. (DINIZ et al, 2007, p. 2594). Outro estudo sobre o BPC que merece destaque é a “Pesquisa de Avaliação do BPC” realizada pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da Escola de Serviço Social da UFF em cumprimento a um acordo com a Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do MDS. A pesquisa demonstrou a importância e a centralidade do BPC na política de Assistência Social, mas não deixou de indicar os problemas graves relativos à perícia médica no que diz respeito a falta de clareza na avaliação dos peritos, possibilitando “iniquidades de toda ordem”, problemas esses que foram objeto de críticas intensas que sedesdobraram nas mudanças na avaliação da deficiência (LOBATO et al, 2007). Assim, foi recomendada a constituição de um grupo de trabalho e pesquisa sobre classificação de deficiências e avaliação de incapacidade com vistas à proposição de parâmetros e procedimentos unificados de avaliação das pessoas com deficiência para o acesso ao BPC. O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e o Ministério da Previdência Social (MPS) instituíram um grupo de trabalho interministerial (GTI)4 composto por técnicos do MDS e do INSS, médicos, assistentes sociais, bem como especialistas nas áreas de políticas públicas e atenção às pessoas com deficiência. Após análise, concluiu que a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF - era o instrumento mais moderno e mais abrangente, e o único capaz de atender à avaliação do maior conjunto de variáveis envolvidas com o binômio deficiência/incapacidade. Esse novo modelo incorporou uma abordagem multidimensional da funcionalidade, da incapacidade e da saúde. Considerou também, a acessibilidade e a participação da pessoa com deficiência na sociedade, em consonância com a tendência mundial de atentar para os fatores biopsicossociais, sendo a saúde compreendida sob uma perspectiva biológica, individual e social. (BRASIL, 2007b). A CIF permite classificar, em nível mundial, a funcionalidade, a saúde e a deficiência do ser humano, estabelecendo outros paradigmas em contraposição às ideias tradicionais 4 Através da por meio da Portaria Interministerial nº 001, de 15 de junho de 2005. 5 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. sobre saúde e deficiência. A CIF foi aceita como uma das classificações sociais da Organização das Nações Unidas (ONU) incorpora as Normas Uniformes sobre a Igualdade de Oportunidades para Pessoas com Deficiência e é adotada por 191 países, entre os quais o Brasil, como nova norma internacional para descrever e avaliar a funcionalidade, a incapacidade e a saúde (BRASIL, 2007b, p. 31). Essa nova classificação propõe um mecanismo para identificar o impacto do ambiente social e físico sobre a funcionalidade da pessoa. A proposição de novos parâmetros e procedimentos unificados de avaliação das pessoas com deficiência para o acesso ao BPC foi traduzida em lei através dos decretos 6.214/075 e 6.564/2008: Art. 4o Para os fins do reconhecimento do direito ao benefício, considera-se: ................................................................................................................. II - pessoa com deficiência: aquela cuja deficiência a incapacita para a vida independente e para o trabalho; III - incapacidade: fenômeno multidimensional que abrange limitação do desempenho de atividade e restrição da participação, com redução efetiva e acentuada da capacidade de inclusão social, em correspondência à interação entre a pessoa com deficiência e seu ambiente físico e social (BRASIL, 2007b) Isso significou uma mudança na conceituação de deficiência e nos fundamentos da própria legislação que norteia o BPC. O olhar sobre a pessoa com deficiência passou a contemplar não apenas a estrutura do corpo afetada, mas também a sua relação com o contexto socioambiental em que os sujeitos estão inseridos. Contudo, quando ainda pairava no ar a “novidade” a respeito das mudanças na conceituação e avaliação da deficiência e da incapacidade para acesso ao BPC novas alterações surgiram. Em 2011 ocorreram outras alterações na legislação referente ao BPC: o Decreto nº 7.617 de 17/11/11 que alterou o Regulamento do BPC ( Decreto nº 6.214/2007) e a 5 Podemos ressaltar outras mudanças introduzidas por essa legislação que representam um avanço na legislação tais como: no caso do requerente ser pessoa em situação de rua deve ser adotado como referência o endereço do serviço socioassistencial ou na falta deste, de pessoas com as quais mantém relação de proximidade (Artigo 13 § 6o); a possibilidade de acumulação do BPC com pensão de natureza indenizatória (Artigo 5o); a compatibilidade do BPC com o desenvolvimento de capacidades e habilidades (Art. 24); a possibilidade de retorno ao BPC após experiência de participação no mercado de trabalho (Art. 25), etc. 6 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. Lei 12.435 de 06/07/11 que alterou a LOAS. Na nova legislação, apesar do conceito de incapacidade não ter sido modificado, a pessoa com deficiência, para fins de reconhecimento do direito ao BPC, passou a ser definida tendo como base o conceito de impedimento de longo prazo: Art. 4o Para os fins do reconhecimento do direito ao benefício, considera-se: ...................................................................................................................... II - pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2011). É considerado impedimento de longo prazo “aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos”. O avanço da legislação anterior no que diz respeito à conceituação de pessoa com deficiência parece ter sido restringido a uma definição: impedimento de longo prazo. Assim, o requerente que se enquadre em uma deficiência que possa produzir efeitos por dois anos tem acesso ao BPC e os outros não. A questão central é como a análise pericial pode caracterizar e, de certa forma “prever” um impedimento de curto, médio ou longo prazo de forma tão exata, principalmente se esta informação pode ser considerada crucial para o deferimento ou não do benefício, para a concretização ou não do direito. A introdução do conceito de impedimento de longo prazo tem sido objeto de críticas e pode significar um retrocesso na avaliação do BPC a partir do momento em que retoma para as mãos do médico perito o poder decisório na concessão do benefício. A Avaliação Social no BPC O Assistente Social foi inserido no processo de avaliação para a concessão do BPC, um benefício essencialmente voltado para a população mais empobrecida. Havia certa 7 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. expectativa da própria categoria profissional sobre essa inserção. O Assistente Social entrou em cena como figura que supostamente poderia possibilitar uma ampliação do acesso ao BPC, pois traria a visão de outro profissional além do médico perito, um olhar mais amplo das questões sociais que envolvem a vida dos requerentes. O Instrumento total de avaliação, denominado “Avaliação da Deficiência e do Grau de Incapacidade para Acesso ao BPC”, é composto pela Avaliação Social e Avaliação Médico- pericial, nele três componentes são avaliados: Funções do corpo (analisado pelo médico perito), Fatores Ambientais (analisado pelo assistente social) e Atividades e Participação (analisado por ambos). A Folha de Rosto da Avaliação Social contém os dados cadastrais da pessoa com deficiência, tais como endereço, documentação e escolaridade. A folha seguinte, ou seja, o instrumento em si, inicia com um espaço em branco para o Assistente social relatar a História Social do requerente e, posteriormente, o documento apresenta os componentes que serão analisados pelo assistente social: Fatores Ambientais e Atividades de Participação. Os Fatores Ambientais constituem o ambiente físico, social e de atitude em que as pessoas viveme conduzem sua vida. Esses fatores são externos aos indivíduos e podem ter uma influência positiva ou negativa sobre seu desempenho enquanto membro da sociedade, sobre a sua capacidade de executar ações ou tarefas, ou sobre a função ou estrutura do corpo. Os Fatores Ambientais são constituídos por: Ambiente Físico (território onde vive e as condições de vida considerando a acessibilidade ou insalubridade); Ambiente Social (relações de convívio familiar, comunitário e social, considerando a acessibilidade às políticas públicas, a vulnerabilidade e o risco pessoal e social) e Atitudes (são as consequências observáveis dos costumes, prática, ideologias, valores que influenciam o comportamento individual e a vida social em todos os níveis). (BRASIL, 2007c, p.116). O componente Atividades e Participação representam como é realizada uma tarefa ou ação pelo indivíduo e seu envolvimento em situações do cotidiano de vida, tais como: cooperação familiar, relações sociais, relacionamento e responsabilidades no âmbito escolar e comunitário. (BRASIL, 2007c, p.105). O componente Fatores Ambientais é composto por 5 domínios6 (produtos e tecnologia, condições de moradia e mudanças ambientais apoio e relacionamentos, atitudes e 6 Domínio é um conceito utilizado pela CIF que significa conjuntos práticos e significativos de ações, tarefas ou áreas da vida que serão analisados, ele pode estar relacionados a nível individual ou social (estruturas sociais predominantes na sociedade ou comunidade que têm impacto na vida do indivíduo) (BRASIL, 2007a). 8 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. serviços, sistemas e políticas). O componente Atividades e Participação é composto por 4 domínios (vida doméstica, relação e interações interpessoais, áreas principais da vida comunitária, social e cívica). Uma das preocupações dos profissionais que lidam com a Avaliação Social é a complexidade do instrumento, mais conhecido pelos assistentes sociais como formulário de Avaliação Social. Podemos dizer que o formulário tem o objetivo de captar diversas expressões da vida dos requerentes e se constitui em uma extensa gama de questões a serem analisadas pelo profissional. Nosso estudo tem como objetivo refletir sobre a Avaliação Social para acesso ao BPC de pessoas com deficiência e sua repercussão no fazer profissional do Assistente Social. Buscamos conhecer o olhar desses profissionais e investigar as possibilidades e os impasses encontrados por eles na realização da Avaliação Social. É importante ressaltar que refletir sobre a Avaliação Social para acesso ao BPC de pessoas com deficiência e sua repercussão no fazer profissional do Assistente Social, para nós significou discorrer sobre um tema relativamente novo, com raras produções acadêmicas e, por isso, desafiador. Sendo assim, pretendemos, com este trabalho, propiciar uma discussão sobre a Avaliação Social realizando uma breve aproximação com o tema e contribuir para o debate no âmbito do Serviço Social. Metodologia Em nossa pesquisa, de natureza exploratória e caráter qualitativo, realizamos entrevistas semi-estruturadas com assistentes sociais da Gerência Executiva de Niterói/RJ do INSS (GEX-NIT), região onde atuamos profissionalmente. A GEX-NIT conta com quatorze assistentes sociais, sendo uma Responsável Técnica e treze na linha de frente da execução. Essa equipe realiza o atendimento do Serviço Social do INSS em uma região de grande extensão que abrange os municípios de Niterói, São Gonçalo, Maricá, Itaboraí, Tanguá, Rio Bonito, Silva Jardim, Saquarema, Araruama, Iguaba, São Pedro, Arraial do Cabo, Cabo Frio e Búzios. Entrevistamos sete assistentes sociais da GEX NIT: três servidoras antigas na instituição e três novos profissionais que ingressaram no 9 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. último concurso em 20097. O nosso objetivo foi ter uma visão sobre esses dois grupos, um com o acúmulo e a experiência do momento anterior a inserção do Assistente Social na análise do BPC e outro cujo ingresso recente no INSS se deu basicamente para suprir a demanda da Avaliação Social. É importante ressaltar que realizamos uma breve aproximação com a temática abordada sem, contudo, ter a pretensão de esgotá-la, mas sim de apontar os elementos que consideramos primordiais e marcantes nesse processo. Dentro desta perspectiva, destacamos o pensamento de Minayo (1998) que considera a pesquisa como uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota, fazendo uma combinação entre teoria e dados. É uma atitude e uma prática teórica de constante busca que define um processo inacabado e permanente. Apresentação de resultados Considerações Finais Os resultados da pesquisa demonstraram que de modo geral as alterações trazidas pela CIF e a introdução da Avaliação Social foram consideradas pelo grupo como algo muito positivo, pois anteriormente tudo era focado na concepção do médico, um modelo que privilegiava a visão física do adoecer. Elas acreditam que a partir dessas alterações ocorreu uma ampliação do foco de análise, pois várias questões passaram a ser contempladas, tais como aspecto social, familiar, econômico, educacional, cultural, o ambiente, a localidade. A Avaliação Social, realizada pela assistente social, trouxe para a análise do BPC a visão de um profissional que lida com as mais variadas expressões das questão social que envolvem a vida dos requerentes, buscando analisar a pessoa com deficiência e sua relação com a sociedade em que o sujeito está inserido, os aspectos familiares, comunitários, a localidade, a oferta de serviços e políticas, etc. 7 Esclarecemos que há uma diferenciação relativa ao nome do cargo com implicações inclusive na carga horária, as servidoras antigas são Assistentes Sociais no quadro institucional, já as novas profissionais são Analistas do Seguro Social com formação em Serviço Social, conforme o edital do concurso de 2009. 10 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. Contudo, observamos que as falas dos profissionais que atuam na Avaliação Social expressaram algumas dificuldades vividas no dia a dia por esses profissionais. Em primeiro lugar, o relato das assistentes sociais aponta graves problemas relativos às condições de trabalho para a realização da avaliação social demonstrando a inobservância não só dos princípios do Código de Ética do Assistente Social como também da legislação que dispõe sobre as condições éticas e técnicas do exercício profissional. Esses profissionais estão sujeitos a um trabalho complexo e intenso8 e apontaram dificuldades relativas à limitação de tempo para a realização das avaliações, ao quadro de profissionais reduzido para atender a uma grande demanda, a necessidade de deslocamento para atender a mais de uma agência, à salas de atendimento que não garantem o sigilo profissional, etc. Além disso, a preocupação com o preenchimento do formulário pelos profissionais no sentido de captar todas as informações importantes para serem lançadas no instrumento também deve ser destacada. A preocupação com o preenchimento do formulário pode estar relacionada a complexidade do mesmo e ao pouco tempo para a realização da Avaliação Social. O instrumento de Avaliação Social conta com 31 itens9 sem contar com a parte da História Social e Observações do Avaliador. Considerando que o profissional tem 40 minutos para fazer a avaliação e 31 itens para analisar, ele conta apenas com 1 minuto e 17 segundo para cada item. O tempo é considerado curto pela maioria das assistentes sociaistendo em vista a complexidade do instrumento e o número de perguntas. Os profissionais entrevistados relatam que fazem em média de quatro a seis Avaliações Sociais por dia em um período de 40 a 50 minutos. Ressaltam que no início o tempo era maior, pois elas ainda estavam se familiarizando com o instrumento. Além do grau de complexidade do instrumento a realização da Avaliação Social exige que o assistente social esteja atento a uma gama de questões e que nos 40 minutos execute várias tarefas ao mesmo tempo: realizar as perguntas, ouvir o usuário, analisar os itens, atribuir a pontuação e inserir os dados no sistema. As assistentes sociais falaram da 8 É importante ressaltar que esses profissionais atuam em outras frentes de trabalho além da Avaliação Social, tais como: atendimento ao servidor (através de Parecer Social para licença para acompanhar pessoa da família), participação em ações relativas ao Programa de Educação Previdenciária e atendimento à população através dos projetos operacionais do INSS (Atendimento Geral ao Usuário, Atendimento ao Requerente do Benefício Assistencial, BPC, e Atendimento ao Requerente do Benefício por Incapacidade). 9 É importante esclarecer que o Instrumento de Avaliação Social para maiores de 16 anos é composto de 31 itens, já o instrumento para menores de 16 anos possui 33 itens sendo que nem todos são avaliados dependendo da idade do requerente. 11 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. dificuldade em administrar todas essas questões nos quarenta minutos da Avaliação Social e de certa forma se mostraram surpresas em conseguir. A luta por melhores condições de trabalho parece estar latente no dia a dia dos profissionais que atuam na Avaliação Social. Raichelis (2011) analisando as diferentes dimensões do processo de precarização do trabalho do assistente social, as novas configurações que se expressam nos espaços sócio-ocupacionais e a violação de direitos, destaca que a temática da superexploração e do desgaste físico e mental no trabalho profissional é um tema novo no âmbito da profissão. A autora enfatiza que esse tema é pouco debatido, pouco pesquisado e, assim, pouco conhecido pelo Serviço Social e seus trabalhadores não apresentando acúmulo na literatura profissional. Portanto, problematizar a violação dos próprios direitos dos assistentes sociais, na relação com a violação dos direitos dos trabalhadores, requer a definição de uma agenda de questões específicas conectada às lutas gerais da classe trabalhadora no tempo presente. Exige uma pauta mais ampliada, que inclui a organização e as lutas sindicais e trabalhistas, mas também o enfrentamento das dimensões complexas envolvidas nos processos e relações de trabalho nos quais os assistentes sociais estão inseridos. Não observando apenas os aspectos negativos, mas também as possibilidades construídas no cotidiano profissional, destacamos não só as dificuldades e limitações como também as estratégias viabilizadas por esses profissionais. Dessa forma, ressaltamos a estratégia de incentivo a elaboração de relatos sociais sobre os requerentes ao BPC pelos assistentes sociais da rede socioassistencial no sentido de buscar uma maior articulação com os profissionais do INSS e fornecer informações sobre a localidade, sobre o ambiente social e sobre a família que visem à concretização dos direitos dos usuários. Outra estratégia a ser ressaltada, foi a adesão a proposta de realização de uma pesquisa sobre a demanda para o BPC para pessoas com deficiência na Gerência Executiva de Niterói. A realização dessa pesquisa pode ser considerada uma estratégia profissional da equipe de Serviço Social de conhecimento da realidade do usuário baseada na atitude investigativa e incorporação da pesquisa como “atividade do trabalho profissional, acumulando dados sobre as múltiplas expressões da questão social, campo que incide o trabalho do assistente social” (IAMAMOTO, 2000, p.146). A necessidade de conhecer e decifrar a realidade da população usuária se dá no sentido de construir propostas e alternativas de ação, alternativas que possam contribuir até mesmo para uma análise da política de forma mais geral. 12 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. É importante destacar que a única questão em que as entrevistadas se posicionaram de forma unânime foi a relativa ao peso maior da perícia médica na análise do BPC. O grupo acredita que a avaliação médico pericial tem um peso maior do que a Avaliação Social na concessão do BPC, principalmente depois das alterações trazidas pela legislação em 2011 relativas ao impedimento de longo prazo. Os profissionais consideraram essa alteração como um retrocesso que devolve ao médico perito o poder decisório na concessão do benefício e retira a autonomia do Serviço Social na Avaliação Social. Consideram ainda que o conceito de impedimento de longo prazo retoma a compreensão sobre a deficiência pura e simples, desmerecendo todo o contexto histórico, social e de ambiente em que a pessoa com deficiência está inserida. O Serviço social entrou em cena na avaliação social como profissão que poderia qualificar o processo e supostamente ampliar o acesso ao BPC, pois traria um olhar específico e mais próximo das questões sociais que envolvem a vida dos requerentes. O olhar dos profissionais que realizam avaliação social demonstrou que no cotidiano de sua prática os assistentes sociais vivenciam dificuldades e limitações e também viabilizam possibilidades e estratégias. Desconfiando da “veracidade de nossas certezas” (CHAUÍ, 2000, p. 316), buscamos de forma crítica trazer para o debate alguns elementos centrais relacionados à Avaliação Social para acesso ao BPC. Considerando a pesquisa como uma atitude de “constante busca que define um processo inacabado e permanente, atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota.” (MINAYO, 1994, p. 23), realizamos uma breve aproximação com a temática abordada apontando os elementos que consideramos primordiais e marcantes para a reflexão. Entendemos que a realidade é composta por múltiplas determinações e de forma dinâmica, a própria legislação que norteia o benefício tem demonstrado isso. Assim, a condução da Avaliação Social no BPC está permeada por questões técnicas, éticas, teórico- metolodológicas e políticas envolvendo os profissionais, os usuários e também os gestores do benefício. Acreditamos que a postura e a concepção teórico-metodológica do assistente social poderá ser o diferencial no desdobramento da questão, seja para o aumento da burocratização e dos limites na concessão do benefício em detrimento dos direitos, seja para a ampliação das possibilidades de análise e acesso do cidadão. 13 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Congresso Nacional, 1988. _______. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. 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Na relação do Estado com a sociedade e dos novos critérios de avaliação baseados na eficiência, verificam-se as características marcantes da condição de cidadão em face do que tem sido presente nos discursos e na ação reformadora dos últimos governos brasileiros. O debate sobre o papel e as consequências da reforma para a democratização nas relações com a sociedade e a eficácia da gestão é o ponto inicial para entender como ocorre a redefinição do papel estatal. Palavras-Chave: Reforma do Estado, cidadania. ABSTRACT: The aim is analyze how the citizenship is presented, from the theoretical foundations and of impacts of the State Reform in Brazil. In relationship between the state and society and new assessment criteria based on efficiency, there are the outstanding characteristics of the condition of citizens in the face of what has been present in the discourse and action reformer of the last Brazilian governments. The debate about the role and consequences of reform for democratization in relations with society and the effectiveness of management is the starting point to understand how the redefinition of the role of the state. Keywords: State Reform, citizenship. 1 Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense 2 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. Introdução Nas últimas décadas, já com a consolidação do Estado liberal, sobretudo com a promulgação da Constituição Federal brasileira de 1988, tem surgido maior preocupação de fortalecer os instrumentos voltados à garantia da participação popular na formulação e no controle na gestão pública estatal, com garantia dos direitos e deveres à cidadania e à participação popular. Sendo assim surge a preocupação de contribuir com a análise das profundas transformações ocorridas no cenário contemporâneo e, particularmente, com a experiência da Reforma do Estado brasileiro a partir dos anos 1990. Para isso, torna-se válido destacar as particularidades que essas transformações assumem e analisar o papel do Estado gerencial na efetivação da cidadania. Lustosa (2010) aponta que as reformas priorizadas pelo Estado gerencial, a partir da década de 1990, vêm sendo realizadas com o intuito para reduzir gastos públicos. Esse objetivo é construído pelo processo de privatização e terceirização, para aumentar a receita, para aumentar a eficiência nos serviços públicos. Contudo, esse plano de reformas deixa de lado uma série de questões importantes com relação à intervenção legítima do Estado, aos direitos e deveres de cidadania e às formas de participação e de representação. Quando ocorre a discussão dessas propostas são, no entanto, pontuais e focalizadas. O interesse de realizar uma análise sobre a questão da cidadania é por observar que este é um instrumento de base que tem o papel fundamental para a efetivação de direitos e deveres, mas que, ao mesmo tempo, pode ser um instrumento de coerção e controle do Estado. Sendo assim, cabe analisar e questionar esse campo de disputa de interesses. Metodologia Quanto à tipologia de pesquisa para abordar o problema, o estudo adotará a pesquisa qualitativa, no qual descreve a complexidade do fenômeno e busca compreender as suas variáveis e particularidades. Em síntese, a pesquisa será de orientação dialética, de natureza qualitativa, com fins explicativos, utilizando meios bibliográficos para a análise. Basicamente três conjuntos de saberes orientam o presente trabalho. No primeiro relaciona-se com a análise da relação entre Estado e sociedade, mostrando as causas e 3 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. consequências da redefinição dessa relação. O segundo estuda as características da Reforma do Estado no Brasil como os seus impactos para a gestão pública. E, finalmente, o terceiro momento analisa as consequências desse processo para o conceito de o que é ser cidadão e as suas consequências práticas. No primeiro momento é realizado a partir dos referenciais do Bresser-Pereira (1995) e Gurgel (2009) para tratar da relação entre Estado e sociedade e entender a função que o Estado exerce, mostrando que esta relação é socialmente construída com avanços e retrocesso para a democratização do acesso e da participação. O intuito desta breve parte é fornecer embasamento de análise para o momento seguinte, pois parte do princípio que a reforma na gestão pública envolve o âmbito político e gera impactos significativos na sua relação com a sociedade. Com o segundo momento, aborda-se particularmentea reforma no Brasil, destacando as principais características. Para isso, são utilizados os trabalhos de Lustosa (2008, 2009, 2010), Silva (2001) e Bresser-Pereira (1995, 2005). No decorrer do estudo, são utilizadas as referências dos pontos positivos e negativos que a reforma trouxe para a gestão pública e para a sociedade. O último momento, com apresentação dos resultados, é composto pelos trabalhos de Abreu (2008), Lustosa (2010), Silva (2008) e Antunes (2003) para analisar sobre o que se tem construído como cidadania, no ambiente gerencialista criado pela Reforma do Estado brasileiro– em muitos aspectos semelhantes às reformas de outros Estados Nacionais. Em que medida o conceito de cidadão configurado corresponde à acepção impressa historicamente e ao entendimento de que os direitos e deveres do cidadão ultrapassam os limites de sua privacidade e de sua condição de cliente/consumidor. As distinções que se podem destacar entre o cidadão e o cliente certamente devem ser levados em conta no momento em que se pretende construir uma nova relação entre a sociedade e o Estado, fundada na ação política dessa sociedade, objetivando o enfrentamento dos seus problemas atuais e futuros. Considerações sobre Estado e sociedade Para entender o papel do Estado e a sua relação com a sociedade, torna-se necessário, primeiramente, diferenciar Estado e governo. Como bem analisa Bresser-Pereira (1995), o governo se refere a “cúpula político-administrativa” do Estado. Já o Estado é uma parte da 4 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. sociedade, mas que, ao mesmo tempo, se sobrepõe à sociedade na medida em que é definida como uma organização política e econômica. O autor ao descrever sobre a necessidade da criação do Estado, afirma que esse processo ocorre no momento em que a sociedade produz um excedente e se divide em classes, consequentemente, torna-se necessário criar condições políticas para legitimar a apropriação desse excedente econômico, garantindo a autonomia do governo. A partir do momento que a democracia avança, o Estado passa a ser o provedor de benefícios sociais para amenizar e legitimar as relações de dominação. No clássico O Contrato Social (2011), Rousseau expõe a função de um pacto social entre os indivíduos para assegurar a ordem social, a segurança e o direito à liberdade, ou seja, estabelece os princípios necessários para ter uma relação entre Estado e sociedade, mostrando o porquê das sociedades formarem Estados. Para isso, o individuo abre mão da sua liberdade natural, entendida pelos instintos e do prazer, e do direito ilimitado a favor da vontade geral, ou seja, “cada associado com todos os seus direitos a favor de toda a comunidade” para que todos usufruam dos mesmos direitos pré-estabelecidos. As teorias contratualistas tornam-se um ponto fundamental para analisar a relação sociedade e Estado e discussão chave para estudar a administração pública. Nessas teorias, a natureza humana é a base dos direitos e liberdades. A questão central dessa discussão política nas teorias contratualistas é a necessidade de conciliar essas liberdades com o direito individual e, paralelamente, com o respeito ao direito do outro, fundamental para o equilíbrio da vida social. Como podemos encontrar em Gurgel (2009), pelo fato de o Estado ser um forte detentor do poder, já é costume considerá-lo como superior a ponto de sempre referimos Estado e sociedade, em uma relação em que este último está subordinado ao primeiro. Sendo que na historiografia a sociedade antecedeu a formação do Estado e, consequentemente, é a sociedade que tem significado superior já que esta é a geradora do Estado. Diante de uma crise passa a ser necessário redefinir a relação entre Estado e sociedade para predominar o consenso que seja capaz de garantir a legitimidade do Estado. Este, por sua vez, é uma relação social, ou seja, é um relacionamento entre as classes e as frações de classes. Diante da situação de crise, criar base para fortalecer a sua legitimidade passa a ser ponto fundamental, e, consequentemente, uma nova gestão sobre o que é ser cidadania passa a ser funcional à um novo Estado gerencial que precisa redefinir as suas funções, ou seja, precisa redefinir o seu papel de Estado. 5 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. A Reforma do Estado brasileiro A reforma teve início no meado dos anos 1990, sob a direção do Ministério da Administração e Reforma do Estado, vinculado ao governo central. Seus efeitos foram extensivos a todo o país e se inseriram na tentativa de superar a crise então vivida, na qual os reformadores viam grande responsabilidade do Estado e da relação desse Estado com a sociedade. Foram, portanto, profundas mudanças ocorridas na administração pública que a reforma trouxe para os brasileiros. Essas transformações se efetivaram tendo como referência o New Public Management. Para estudar a Reforma do Estado, torna-se necessário considerar a forte presença do patrimonialismo, pois, como afirma Lustosa (2009), ainda exerce influencia nas práticas da esfera pública. Mesmo diante dos avanços e retrocessos na reforma do Estado, o patrimonialismo, o coronelismo e o personalismo constituem elementos relevantes para entender o percurso da reforma, somente ao considerar a influencia marcante desses elementos é que se torna possível uma reforma orientada para a desburocratização e flexibilidade da gestão. No ano de 1995 foi encaminhado ao Congresso Nacional o Projeto de Ementa Constitucional referente à reforma do Estado. Como argumenta Silva (2001), o governo do Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) tinha como objetivo a reforma nas políticas e nos aparelhos do Estado, solucionar a crise econômica e garantir a inserção do país no mercado globalizado. Sendo assim, enquanto empreende uma luta ideológica de Estado mínimo e de disponibilizar os direitos sociais como privilégio, promove a flexibilização da economia e da legislação do trabalho. A reforma do Estado teve como marco referencial a criação do Ministério da Administração e Reforma do Estado, cargo ocupado pelo professor Bresser Pereira, e a elaboração do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (Pdrae). O discurso do governo defende que devido a sua forte intervenção na economia e de grandes gastos sociais, é o responsável pela crise econômica. Necessitando, assim, uma reforma no Estado. Bresser-Pereira (1995) vê a necessidade do Plano Diretor para dar resposta à “crise generalizada do Estado”. Sendo assim, torna-se necessário defender o Estado das práticas patrimonialistas e fortalecer a sua governabilidade. Tanto Bresser-Pereira (1995) quanto 6 UFF-Política Social – Anais do Seminário Internacional Proteção Social e Cidadania hoje: tendências e desafios. Na reforma gerencial, as atividades consideradas como não exclusivas ou competitivas do Estado tendem a “publicização”, ou seja, destinar essas atividades, como, por exemplo, a educação e a saúde, às organizações sem fins lucrativos, públicas não estatais e para o terceiro setor, com intuito de elevar o desempenho das organizações públicas. Já as atividades consideradas exclusivas são aquelas que o poder de legislar e tributar são intrínsecos ao poder do Estado, como, por exemplo, a polícia e as forças armadas e os órgãos responsáveis pelas transparências e recursos, continuando, assim, sobre a propriedade estatal (Bresser e Pacheco, 2005). Com a nova administração gerencial, a produção de bens e serviços para o mercado é visto como uma atividade de caráter competitivo e não se enquadram nas funções do Estado. Essas atividades podem ser financiadas pelo Estado, mas gerenciadas pela iniciativa privada, disputando cliente numa
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