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TEMAS E TEORIAS DA FILOSOFIA UNIASSELVI-PÓS Autoria: Prof. Daniel Nery da Cruz Indaial - 2019 2ª Edição CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Carlos Fabiano Fistarol Ilana Gunilda Gerber Cavichioli Jóice Gadotti Consatti Norberto Siegel Julia dos Santos Ariana Monique Dalri Marcelo Bucci Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2019 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. C957t Cruz, Daniel Nery da Temas e teorias da filosofia. / Daniel Nery da Cruz. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 144 p.; il. ISBN 978-85-7141-420-4 ISBN Digital 978-85-7141-421-1 1.Filosofia. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 100 Impresso por: Sumário APRESENTAÇÃO ............................................................................7 CAPÍTULO 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLO- GIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL ..........................9 CAPÍTULO 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE ..........................55 CAPÍTULO 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA ............................................99 APRESENTAÇÃO Há mais de 2.500 anos a filosofia emerge como não aceitação da explicação supersticiosa da realidade. A característica fundamental do saber filosófico já é expressiva pela própria etimologia da palavra filosofia, que significa relação, um vínculo com o saber, amor e desejo em conhecer. Se a filosofia é uma relação, é possível ensiná-la ou aprendê-la? Podemos dizer que quem ensina deve manifestar esse relacionamento com o conhecimento, não superficialmente, mas por uma vivência ou como forma de vida, maneira que os filósofos da Grécia Clássica se envolviam com a racionalidade filosófica. A aspiração pelo conhecimento como relação não significa meramente uma transmissão de conteúdos, mas uma atividade ou um exercício espiritual para a alma alcançar o verdadeiro conhecimento racional do cosmos e do próprio homem. Para isso, é preciso estar em uma posição filosófica de aprendizado e ensinamento, assim como o exemplo de Sócrates que adotava a postura não de transmissor, mas de provocador de novas ideias em seus discípulos pela maiêutica. Provocar no outro a vontade de esclarecer, de conhecer a realidade de forma racional e comprometido com a verdade é tarefa do filósofo curativa, uma vez que a doença da alma é a ignorância e a postura acrítica sobre a realidade. Sob a consciência do conhecimento filosófico, como postura relacional, apresentamos esta obra intitulada de Temas e Teorias da Filosofia, não como uma receita pronta em que o leitor encontrará uma fórmula mágica que o tornará conhecedor pleno sobre os assuntos aqui explorados, mas é um guia de navegação e debate sobre algumas importantes correntes filosóficas da História da Filosofia. O itinerário pelas teorias filosóficas tem seu ponto de partida na Grécia Antiga, berço da filosofia, por isso, nossa investigação inicia explorando a forma originalmente grega de conhecimento, a episteme theoretiké, desenvolvida a partir do século VI a.C. Continuando pelas páginas do primeiro capítulo desse exemplar, o leitor irá apreciar uma reflexão sobre: política e filosofia em Platão; a educação como caminho à verdade; o desenvolvimento da ética e da moral no pensamento de Sócrates e Aristóteles; o aristotelismo e sua influência na teoria tomista; Aristóteles e a sistematização da lógica. Já o segundo capítulo propõe o olhar voltado para a crise da antiga ciência (baseada em Aristóteles e seguida pela Era Medieval) e o surgimento do Racionalismo, ao propor a origem do conhecimento no sujeito do conhecimento, ou seja, na razão, antes da experiência. Também veremos a corrente oposta ao Racionalismo, a Empirista, que julga ser a gênese do conhecimento somente a experiência. Outro ponto a ser explorado no segundo capítulo é a superação da dicotomia entre Racionalismo e Empirismo proposta por Immanuel Kant, no século XVIII, ao afirmar que o conhecimento só é possível pela conjunção entre sensibilidade e entendimento. Ainda no segundo capítulo serão apresentadas as interpretações kantianas sobre as ideias iluministas, como a saída do homem da sua menoridade para a maioridade racional e a discussão sobre o positivismo e a lei dos três estágios do entendimento humano, finalizando com a teoria marxista e sua crítica ao idealismo no século XIX. O terceiro e último capítulo trata sobre a crise da Filosofia Moderna. Nesse contexto, a sociedade hierárquica parece perder força, há um declínio da sociedade orgânica (hierárquica) por outros laços. As que antes tinham grande prestígio e confiabilidade perdem seu prestígio, o sujeito perde o interesse em se regular por princípios absolutos, não se afirma mais nenhum conteúdo, nem Igreja, partido, exército, o trabalho etc. Já não funcionam mais como princípios absolutos. “Todos os grandes valores que organizam as épocas anteriores são aos poucos esvaziados de sua substância” (LIPOVETSKY, 2005, p. 18). O homem parece não se sentir mais como pertencendo a quaisquer categorias, o sentimento de pertencimento enfraquece, o que prevalece é o não se sentir de lugar nenhum. Com esse panorama, desenvolvemos, caro leitor, uma reflexão sobre o século XIX e alguns dos principais críticos da modernidade, que detectam e denunciam o desmoronamento do edifício da razão, tão caro para os racionalistas. Exploramos, portanto, na última seção as ideias dos filósofos: Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Horkheimer, Adorno, Lipovetsky, Bauman, Gadamer, Heidegger, Freud e Foucault. Desejamos a todos uma ótima e proveitosa leitura! Prof. Daniel Nery da Cruz CAPÍTULO 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo, você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: � Identificar e entender conceitos filosóficos básicos relacionados as questões epistemológicas, educacionais, políticas e morais na Grécia Antiga. � Entender a importância do desenvolvimento da filosofia na Grécia Antiga para a formação do pensamento ocidental e suas bases cientificas e lógicas, educacionais e políticas. � Compreender como os gregos forjaram e sistematizaram a ética como fundamento para o bem-viver entre os homens. 8 Temas e teorias da Filosofia 9 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 1 CONTEXTUALIZAÇÃO As bases do pensamento filosófico-científico no ocidente estão alicerçadas na Grécia Antiga, por isso nossa investigação inicia explorando a forma originalmente grega de conhecimento, a episteme theoretiké, desenvolvida a partir do século VI a.C. Desde então, o conhecimento racional segue sua trajetória e abrange as várias áreas da compreensão humana, como a política, a educação, a ética, a lógica e demais campos do saber. Filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles e os que vieram posteriormente elaboram teorias e reflexões que transformaram o modo como o mundo era concebido. Podemos notar que com a reflexão filosófica, a problematização do mundo e da realidade passa a ser fundamental não somente para uma análise sobre o fluxo das coisas, mas também para abordar o homem e as suas criações, como a política, a educação, a lógica, a própria ciência e filosofia, a ética e tudo que possa englobar uma teorização humana. Neste capítulo, serão abordadasas seguintes temáticas determinantes para a história da filosofia: O conhecimento filosófico como episteme theoretiké na Grécia Antiga; Política e filosofia em Platão: A educação como caminho à verdade; O desenvolvimento da ética e da moral no pensamento de Sócrates e Aristóteles; O aristotelismo e sua influência na teoria tomista; Aristóteles e a sistematização da lógica. Os assuntos explorados são envolvidos por um aspecto (não exclusivo) do conhecimento e sua fundamentação, passando pelas ideias de Sócrates, Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e alguns logicistas contemporâneos. 2 O CONHECIMENTO FILOSÓFICO COMO EPISTEME THEORETIKÉ NA GRÉCIA ANTIGA Desde sua origem na Grécia Antiga a filosofia tem o propósito de alcançar o real pelo caminho do conhecimento verdadeiro. O conhecer para os gregos estava ligado a um ato específico de enxergar a realidade: a teoria. Tanto a filosofia quanto a ciência nascem dessa maneira de saber, aliás, é impossível falar de ciência sem recorrer ao problema originário da filosofia forjado no século VI a.C na Grécia Antiga. É consenso entre os estudiosos que a filosofia foi criação grega, não sendo derivada de outras civilizações, como as orientais. É justamente essa forma de conhecer a realidade pela teoria que colocam os gregos em uma situação de originalidade. pois mesmo que alguns conhecimentos científicos, 10 Temas e teorias da Filosofia astronômicos, matemáticos, geométricos, dentre outros, vieram do Oriente, foram os gregos que sistematizaram racionalmente de forma teórica o que esses outros povos fundamentavam na prática. Assim, não teria sido possível o saber filosófico e científico se não fosse preservada e transmitida aos homens do Renascimento tanto o theoreo como a atividade grega que era chamada de techne. Foi a junção tardia dessas duas concepções que deu à ciência moderna seu caráter ativo de agente transformador da realidade. Ciência é, portanto, uma atividade humana. Não é um saber qualquer, é um saber eminentemente teórico. Saber, teoria e atividade não são antagônicos. Embora se possa dizer que o saber é um impulso próprio do homem e exista desde que a consciência humana apareceu, o mesmo não se pode dizer da teoria. Ela é uma construção do espírito relativamente recente. Theoreo, em grego, quer dizer, ver. Teoria, portanto, originalmente é um ver. Um ver com os olhos do espírito que só enxergam nas coisas o essencial. Seria, assim, uma contemplação e, como tal aparta-se de toda atividade, mas desde o Renascimento a ciência vem sendo também uma atividade de domínio da natureza. Vem sendo um saber poder (frase renascentista). A princípio esse caráter de atividade foi de natureza mágica, não durou muito, porque a magia foi substituída pela técnica como atuação sobre o mundo. Por sua vez, a teoria consistia tanto para a filosofia grega como para a matemática, no pensar as coisas, não na totalidade dos seus atributos e aparências, porém na abstração de tudo o que não fosse essencial para a compreensão do que era pensado, isto é, no conceber as coisas e os fatos a serem conhecidos, procurando encontrar neles certos dados considerados essenciais para a sua descrição, explicação e compreensão. A gênese do que são os dados essenciais abstraídos das coisas nos remete ao espírito aventureiro dos gregos. Com as navegações entre suas diversas ilhas interligadas, os gregos viajavam e descobriam “coisas novas”. Daí o interesse grego pela consistência das coisas novas que encontravam nas viagens. Foi natural que ocorresse a pergunta: em que consiste isso que se encontra pelo mundo? Essa seria a gênese inicial da filosofia, qual em grego tem um sabor especial: ti to on? O que é o ente? Daí os filósofos naturalistas, também chamados de pré-socráticos, investigam a origem de todas as coisas (naturais) no princípio (arché). O que é o ente? ou o ti to on? É chamada hoje a pergunta ontológica e deu origem ao tipo essencial do saber que chamamos teoria. Entretanto, não existia antes daquela época o que chamamos ciência ou filosofia. Os filósofos que insistiam na pergunta “o que é o ente?”, ou seja, qual é o ser do ente? O que é aquilo que faz com que o tenha ser, seja? É uma pergunta sobre tudo aquilo 11 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 que se encontra no mundo. É uma pergunta fundamental que exige uma resposta essencial. Será uma resposta ao que se chama em filosofia quididade. Os gregos tinham para explicar isso a palavra ousia, no português, essência ou substância, como também “entidade”. Está na procura da ousia a origem da teoria. Note-se que nas suas origens gregas, em vez de ciência, como entendemos hoje, há um tipo de saber que, por assim dizer, desapareceu: a episteme theoretike, traduz-se por uma “competência em ver as coisas teoricamente e não por uma “ciência teórica””. Se perguntarmos por filosofia em Aristóteles vamos encontrar como resposta: episteme teórica dos primeiros princípios e das causas (metafisica). Daí epistemologia, ou seja, o estudo relativo à ciência pela teoria ou logos. Para Heidegger (1997), a filosofia é um dialogar entre os filósofos, em que eles se dispõem ao saber a partir do ser dos entes. Diz Heidegger (1997), que a pergunta filosófica é pela quididade, entretanto, a quiditas se determina diversamente em diversas épocas da filosofia. Nesta linha de pensamento a filosofia mantém uma reflexão sobre o ser, isto é, a quididade, essência ou consistência, o caráter original da filosofia: o espanto e a curiosidade. O ponto de partida do conhecimento, segundo Platão e Aristóteles, é a admiração; e admirar para os gregos tinha o sentido de espanto. Podemos dizer que ao espantarmos com algo que nos inquieta despertamos uma postura ou atitude de buscar conhecer ou descobrir o que se encontra por trás do véu que encobre aquela realidade. Em sua obra Teeteto, Platão relata um diálogo entre Sócrates e o matemático Teeteto que refletem sobre a natureza do conhecimento. Platão considera a distinção filosófica do falso e verdadeiro como primordial para iniciar qualquer tentativa de compreender o conhecimento. Interessante notar que Sócrates compara o processo do conhecer com a profissão das parteiras. Assim como elas, o filósofo é aquele que tem como função o parto das ideias ou o auxílio da difícil tarefa de despertar a reflexão crítica, determinação dos princípios e distinção do que é verdadeiro (ou seja, o conhecimento) e o falso. Sócrates – A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou igualzinho as parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me as assacam, de só interrogar o outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de 12 Temas e teorias da Filosofia sabedoria (PLATÃO, 2001, 150 c-e). Chisholm (1966), recorrendo às análises platônicas do Teeteto, elenca as dificuldades encontradas no diálogo quanto à possibilidade de distinção do conhecimento verdadeiro e da doxa (opinião). A primeira dificuldade está no estabelecimento de verdades fundamentadas nas sensações. O indivíduo pode se enganar devido à singularidade de cada sensação, isto é, o que se sente é particular, não há como mensurar os sentidos dos outros para estabelecer uma certeza absoluta sobre as opiniões de cada pessoa como verdadeiras. Sempre há a tendência de dependência do estado mental e sensível dequem vivencia a realidade. O perigo eminente é o relativismo. Platão coloca em equivalência a aparência (que não conduz ao verdadeiro) e a sensação. Desse modo, identificar conhecimento com sensação pode levar à redução de uma perspectiva individual, com isso a limitação da possibilidade do conhecimento. A distinção entre conhecimento e opinião verdadeira é outro problema que surge no teeteto, assim, podemos considerar que existe diferença entre uma pessoa que possua conhecimento e outra apenas com uma opinião verdadeira? Responder esta questão proposta por Platão não é algo simples, mas identificamos que o filósofo considera que a primeira pessoa tem mais vantagens em relação à segunda, pois esta tem opinião certa, mas não sabe, não conhece, aquela tem o conhecimento e também opinião verdadeira. Dessa constatação podemos inferir que o que faz com que uma pessoa tenha conhecimento sobre determinada situação e se distingue da mera opinião é o que chamamos de justificação racional, ou seja, uma justificativa apoiada em evidências lógicas. A partir da justificativa racional é possível encontrar pressupostos sistemáticos para explicação, por exemplo, da verdade científica estruturada na modernidade pelo método cartesiano pautado no modelo racionalista e mecânico de explicação das leis naturais. Isso não significa que os sistemas bem-sucedidos que explicam racionalmente e justificam por meio de hipóteses que fundamentam o conhecimento não possam entrar em crise e serem superados por outras teorias mais avançadas. Um bom exemplo é a explicação aristotélica sobre o Universo, em que as leis do mundo lunar (perfeitas e imutáveis) são diferentes das leis do mundo sublunar (imperfeito). As investigações e experimentos de Isaac Newton mostraram, por meio de sua teoria da física, que Aristóteles estava equivocado, pois as leis do universo são as mesmas tanto no mundo lunar como no sublunar. Nesse sentido, as crenças aristotélicas foram postas à prova pelos modelos empiristas e racionalistas. É perceptível que os sistemas que explicam racionalmente e justificam suas crenças distinguiriam o conhecimento da opinião. 13 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 Essa concepção sistêmica (explicada acima) reforça que o problema do teeteto é vigente mesmo em tempos contemporâneos, pois não há como saber se um sistema poderá vir a explicar fatos novos ou se precisará de novas bases explicativas para tal. A história da ciência mostra muito bem como vários sistemas perduraram por vários séculos, apesar de serem considerados posteriormente como não corretos. Nisso, percebemos que o problema do teeteto é permanente, pois distinguir conhecimento de opinião parece simplificar demais a querela, uma vez que Platão chega a uma situação complexa em que o conhecimento não pode ser nem sensação, nem opinião verdadeira, nem a explicação racional acrescentada a essa opinião. Ora, será o cúmulo da simplicidade, estando nós à procura do conhecimento vir alguém dizer-nos que é a opinião certa aliada ao conhecimento, seja da diferença ou do que for. Desse modo, Teeteto, conhecimento não pode ser nem sensação, nem opinião verdadeira, nem a explicação racional acrescentada a essa opinião (PLATÃO, 2001, p. 76). 1 Comente o interesse dos gregos antigos pela consistência das coisas novas encontradas em suas viagens e a ligação desse fato com o desenvolvimento da ontologia, gênese inicial da filosofia. 2 Como você analisa a consideração grega de encarar o saber como um impulso próprio do homem existente desde que a consciência humana apareceu e a teoria como uma construção do espírito relativamente recente? 3 POLÍTICA E FILOSOFIA EM PLATÃO: A EDUCAÇÃO COMO CAMINHO À VERDADE A filosofia e a política sempre estiveram em estreita relação, tanto que em Sócrates a virtude é identificada com o viver bem ou a felicidade dentro da cidade, ou seja, no âmbito político. Platão, como maior discípulo de Sócrates, seguiu a herança do pensamento ético de seu mestre ao ponto de em sua teoria política forjar o ideal de homem justo e virtuoso também relacionado ao problema 14 Temas e teorias da Filosofia epistemológico e educacional com a sua teoria das ideias. Vejamos como Platão argumenta e correlaciona essas áreas do conhecimento. Em sua obra A república, Platão precisa exatamente a coincidência da verdadeira filosofia com a verdadeira política. A cidade autêntica ou o Estado que tem como fundamento a virtude, a justiça e o bem só se mantêm nesse nível saudável se o filósofo for o político ou o político ser o filósofo. Para chegar a tal constatação, Platão (1956), argumenta que a construção de uma cidade deve ter como base uma estrutura que leve em conta o conhecimento de vários assuntos, principalmente o conhecer humano, e essa destreza tem o filósofo. O estado é o reflexo de nossa alma, por isso o eixo central da discussão platônica na República versa sobre a justiça e suas várias conexões com os diversos temas. Uma cidade nasce pelo fato de não existir nenhuma pessoa autárquica, isso quer dizer que não existe ninguém que se basta a si mesmo e necessita de outros e de seus serviços, por exemplo, de homens que cuidam da alimentação, que realizem o trabalho de habitação, da defesa e segurança, também de alguns que governem. Para tais atividades a cidade deve ser dividida em três classes: a primeira é a dos lavradores, comerciantes e artesãos. Nesta classe prevalece em seus homens o aspecto da alma da concupiscência. Para que a classe possa se tornar boa é preciso que haja o exercício da virtude da temperança, ou seja, o domínio e a disciplina em relação aos prazeres e instintos. A segunda é a dos guardiães. Nesta classe deve prevalecer a força ou o lado irascível da alma e que conciliem mansidão e ousadia, tais como os cães de guarda com o intuito de proteger a Polis. Sua virtude deve ser a coragem. A terceira é classe dos governantes. Nela seus integrantes devem cumprir com zelo a missão de administrar e amar a cidade. A contemplação do bem e seu aprendizado capacitam os governantes e devem prevalecer a virtude da sabedoria como aspecto fundamental de suas almas. Portanto, temos que na cidade ideal prevalecem a temperança na primeira classe; a fortaleza ou coragem na segunda; e a sabedoria na terceira, porém em todas elas a justiça é a virtude que estabelece um nexo entre as três tornando a cidade uma perfeita harmonia entre suas partes e como consequência a sociedade como um todo reflete o bem que é distribuído. Cada cidadão dentro de sua classe deve desempenhar bem sua função e obedecer ao que sua natureza ordena. Dessa forma, na cidade prevalecerá a justiça. Para que cada cidadão esteja em plena sintonia com sua função, Platão elabora seu programa educacional da seguinte forma: uma cidade em harmonia, com seus cidadãos, deve ter uma educação perfeita. Porém, a primeira classe dos artesãos, lavradores e comerciantes apreendem seus ofícios facilmente na prática e não necessitam de uma educação especial. Para os guardiões, Platão 15 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 propõe o ensino da ginástica e da música com o intuito de que a parte da alma em que se encontra a coragem seja abastecida de exercícios desse nível, fortalecendo mais os encarregados da segurança da Polis. Nessa classe tudo deve ser compartilhado, ou seja, todos os seus bens são comuns, inclusive os afetivos e familiares: homens, mulheres e filhos. Nessa espécie de comunidade a propriedade de bens materiais é proibida. O sustento material da classe dos guardiões deriva da classe inferior dos artesãos, comerciantes eagricultores. Os filhos dos soldados são retirados imediatamente dos pais e alimentados e cuidados em lugar reservado, sem a presença dos seus progenitores. O objetivo de Platão era formatar uma grande família em que todos nutririam uns pelos outros um sentimento de pais, mães e filhos. Numa situação de guerra, por exemplo, todos redobrariam sua vontade de lutar e proteger uns aos outros, pois a relação de sangue gera e desperta ainda mais o instinto de proteção. Também era eliminado tudo aquilo que poderia gerar o egoísmo na forma de posse ou postura privada. Tudo é de todos e tudo deve ser pensado na forma de bem comum. Já a classe dos governantes era destinada ao ensino da filosofia. Durava até os 35 anos quando o indivíduo alcançava a maturidade intelectual. Entre os 30 e os 35 anos ocorria o que era chamado de tirocínio mais complexo, era o período do aprendizado da dialética. No espaço dos 35 aos 40 anos era o momento de retorno ao contato com a realidade empírica e suas finalidades. Essas são as fases para a formação do político-filósofo que deveria ter como finalidade a contemplação do Bem ou da Verdade. Alcançar esse Bem é o objetivo máximo e todo agir político deve estar fundamentado segundo as leis da justiça que brota desse Bem. A filósofa e teórica política Hannah Arendt em sua obra A Vida do Espírito (2000) se opõe à teoria política platônica baseada no princípio de contemplação ou do pensamento. Para ela a vida ativa e não a contemplativa é onde os homens podem manifestar a pluralidade, participar da vida pública. A tradição filosófica delimitou a política no caminho da contemplação e, como tal, forjou um sistema que é passível de não participação das pessoas nas decisões públicas, pois contemplar supõe estar sozinho, refletir com seu eu, tal como a proposta do rei filósofo em Platão. Isso não promove a participação popular, e as decisões são tomadas por uma pessoa ou um grupo unilateral, portanto não promove a democracia. Arendt (2000) considera que pensar e conhecer são atividades diferentes da política; porém o pensar filosófico é menos político, por estar mais distante das aparências. Mesmo assim, ela não nega que a atividade do pensar tenha uma importância para a política, pois incapacidade de pensar afeta diretamente a política, por induzir as pessoas a normas de conduta prescritas para uma sociedade em determinado tempo. O pensar pode auxiliar a política, a 16 Temas e teorias da Filosofia atividade do filósofo contribui realizando sua crítica desde fora. Na modernidade há, para Arendt (2000), uma lamentável perda do sentido original da ação política, isso pelo fato de ter acontecido a substituição do agir pelo fazer. Arendt alerta ainda que, já em Platão, com a política fundamentada no rei filósofo, governante da cidade, é criado um padrão que torna a política semelhante à fabricação, pois os que estão no poder criam um objeto - o Estado - assim como o artesão constrói sua arte. “Arendt pensa que Platão buscava fugir à aleatoriedade e à imprevisibilidade da democracia, fundamentando a política em ideias universais e verdadeiras; no entanto, ao agir assim, ele extingue a pluralidade das pessoas” (FRY, 2010, p. 73). A ação tem como característica seus aspectos inesperados e irreversíveis e, segundo Arendt (2000), seguindo o modelo platônico da teoria universal, a política é interpretada como uma forma de fabricação previsível, a isso ela denomina “substituição do agir pelo fazer”. Isso significa um modelo político que trata as pessoas como um objeto fabricado, como coisas. “A visão política de Arendt é diferente porque mantém a importância da diversidade dentro da política e rejeita a ideia de que a política possa ser fabricada pelos poucos que estão no comando” (FRY, 2010, p. 74). Alegoria da caverna SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens, o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só veem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem. GLAUCO - Imagino tudo isso. SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste 17 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio. GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos! SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita, mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira? GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida. SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras? GLAUCO - Não. SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que veem, lhes dariam os nomes que elas representam? GLAUCO - Sem dúvida. SÓRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos? GLAUCO - Claro que sim. SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram. GLAUCO - Necessariamente. SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, caso se livrassem 18 Temas e teorias da Filosofia a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um desses cativos desatados, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados? GLAUCO - Sem dúvida nenhuma. SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados? GLAUCO - Certamente. SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe-ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais? GLAUCO - A princípio nada veria. SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia. 19 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOSDA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 GLAUCO - Não há dúvida. SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é. GLAUCO - Fora de dúvida. SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões. SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da ideia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram? GLAUCO - Evidentemente. SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia? GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga. SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo 20 Temas e teorias da Filosofia lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas? GLAUCO - Certamente. SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa - porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade - tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto? GLAUCO - Por certo que o fariam. SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe a região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto a mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a ideia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos. FONTE: Extraído de A República de Platão (1956, p. 287-291). 21 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 Assista ao filme Matrix relacionando-o à teoria das ideias de Platão na alegoria da caverna. Matrix Ficha Técnica e Premiações Título original: The Matrix Lançamento: 1999 (EUA) Elenco: Laurence Fishburne (Morpheus); Carrie-Anne Moss (Trinity); Hugo Weaving (Agente Smith); Keanu Reeves (Thomas A. Anderson / Neo); Joe Pantoliano (Cypher); Marcus Chong (Tank); Julian Arahanga (Apoc); Matt Doran (Mouse); Belinda McClory (Switch); Gloria Foster (Oráculo); Ray Anthony Parker (Dozer). Duração: 136 min Gênero: Ficção Científica Direção e roteiro: Andy e Larry Wachowski Produção: Joel Silver Música: Don Davis Fotografia: Bill Pope Direção de arte: Hugh Bateup e Michelle McGahey Figurino: Kym Barrett Edição: Zach Staenberg Efeitos especiais: Mass. Illusions, LLC / Manex Visual Effects / Amalgameted Pixels Estúdio: Village Roadshow Productions Distribuidora: Warner Bros. 1 Considerando o texto sobre a alegoria da caverna, comente e analise qual a importância da formação do filósofo para a governança da cidade. 2 Como você interpreta a visão platônica de que somente o filósofo tem capacidade de governar a cidade? Quais impactos dessa ideia para a formação política Ocidental? 22 Temas e teorias da Filosofia 4 O DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA E DA MORAL NO PENSAMENTO DE SÓCRATES E ARISTÓTELES Nascido em Atenas em 470/469 a.C., Sócrates é considerado o filósofo mais influente de sua época e tem sua contribuição reconhecida em todas as épocas posteriores, inclusive a nossa. Ele não escreveu nenhuma obra, o que foi ensinado era transmitido pela palavra viva por meio de diálogos, da oralidade dialética. O pensamento socrático foi escrito por seus discípulos, dentre eles, o que mais escreveu foi Platão, inclusive muitas vezes tornando Sócrates porta- voz de suas doutrinas. Por esse motivo, em muitos casos torna-se difícil saber o que realmente é uma ideia apenas socrática ou se houve uma remodelação dos pensamentos platônicos. A importância do pensamento socrático foi tamanha que a história da filosofia passou a ser dividida em antes e depois de Sócrates. Esse critério, além de outros, tem um fundamento na mudança de perspectiva de investigação socrática, que abandonou a especulação em torno da origem da arqué (princípio) na natureza para estudar o homem como objeto de conhecimento. Tal mudança representa um marco na história da filosofia, inaugurando o chamado período antropológico. Seu interesse na problemática do homem desenvolveu uma série de conclusões e contribuições para o campo da ética e da moral no Ocidente. A descoberta da essência do homem como psyché, ou seja, como alma, distingue esse ser de todos os outros seres, pois a alma é a razão relativa à nossa capacidade de pensar e operar eticamente. A alma é, nesse sentido, a consciência e a personalidade intelectual e moral. Sócrates, consequentemente à descoberta do homem como ser intelectual e moral, traz para o debate a relação do homem consigo mesmo pelo cuidado de si. Cuidar da alma é a atividade mais nobre e ensinar isso aos homens é uma tarefa fundamental do educador. Se a alma é o homem, o corpo é instrumento da psyché, pois a alma ordena ao conhecimento. Daí é preciso conhecer o interior da alma humana, que, diferentemente do corpo é imaterial, imortal e conduz à verdade. Sócrates, desse modo, traz como base de sua doutrina o “conhece a ti mesmo” e dessa decisão há o vínculo do modo e atividade de aperfeiçoamento do ser enquanto areté, que os gregos denominavam como aquilo que faz com que uma coisa se torne boa ao que ela foi destinada a ser. Por exemplo, uma árvore é enquanto areté quando ela se realiza perfeitamente enquanto árvore, se desenvolvendo a ponto de crescer, florescer, dar bons frutos... Areté seria o que denominamos hoje como virtude. A virtude para os gregos, então, estava em tudo, 23 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 inclusive nas coisas inanimadas, mas qual é a virtude do homem? A virtude do homem está no que a alma deve ser, ou seja, boa e perfeita. Sócrates identifica dessa forma a virtude como ciência, pois ela é a ciência, o contrário dela é a ignorância ou vício.Os valores verdadeiros para Sócrates estão ligados à alma e não às coisas externas como riqueza, honra, poder etc. Sócrates opera nesse sentido uma grande mudança no quadro tradicional de valores e o conhecimento científico está relacionado a própria alma do homem. Para Sócrates ninguém pratica o mal voluntariamente, pois o homem por natureza procura sempre o bem. Quando uma pessoa pratica o mal é por ausência de conhecimento do bem que ela age dessa forma, nesse sentido, o mal seria involuntário e o homem que o faz engana-se ao esperar que da sua ação possa extrair um bem. Quem conhece o bem não poderá cometer o mal. O bem é a condição necessária para evitar o mal. Essa postura de Sócrates é muito criticada, mas também há o entendimento que ele chega a esse excesso de racionalismo devido aos filósofos gregos não desenvolverem uma reflexão aprofundada sobre a vontade, isso vai ocorrer com a ética dos cristãos e o desenvolvimento da ideia de livre-arbítrio. Faltaria em Sócrates o entendimento de que “para fazer o bern também é necessário o concurso da ‘vontade’” (REALE; ANTISSERI, 2007, p. 97). Um outro conceito norteador da doutrina da ética socrática é a enkráteia ou o domínio de si mesmo pela razão. As paixões e os impulsos são como os tiranos da alma e o autodomínio, sendo que base da virtude equilibra o homem em suas ações, sendo senhor de si, controlando sua animalidade. Dominar o corpo e seus instintos é dar ao homem sua verdadeira liberdade, essa libertação não conhece aquele que é escravo do corpo, pois ser livre é dominar seus próprios instintos pela sabedoria da alma. Também, o conceito de felicidade tem relação com a determinação da alma. Sócrates recorre e sistematiza o conceito grego de eudaimonia, ou seja, aquilo que faz com que haja ordem e fruição da alma e promova uma vida agradável. Essa ordem ou harmonia interior identifica-se com a felicidade. O homem virtuoso tendo essa harmonia interior não será perturbado pelas intempéries provocadas por fatos naturais e até mesmo a própria morte. Tendo vivido com integridade e voltado para o bem e exercício da virtude, o homem não deve viver angustiado com a vinda da morte, pois se existir um além-mundo ele será premiado, não havendo, também terá tranquilidade ao perceber que viveu uma vida harmoniosa. Uma vida virtuosa vale a pena independente de qualquer coisa, pois na virtude já se encontra um prêmio em si mesma. Ser feliz é possível nesta vida seguindo o caminho da virtude. Discutimos até aqui a formação ética em Sócrates, iremos agora explorar o pensamento sistemático em Aristóteles sobre o agir humano. 24 Temas e teorias da Filosofia 4.1 ÉTICA E POLÍTICA EM ARISTÓTELES Para Aristóteles, a ética é teleológica, ou seja, tem uma finalidade que é a busca do Bem ou da felicidade do homem. A ética se articula com a política, pois é na vida social que o indivíduo deve exercer sua virtude procurando a felicidade na relação com os outros. Para entendermos a teoria moral aristotélica vejamos antes em que campo científico ele inclui a política e a ética. As ciências para Aristóteles estão divididas em três ramificações, vejamos quais: • Ciências produtivas: relacionadas à produção de algum objeto, por exemplo, a confecção de uma mesa, uma cadeira etc. • Ciências Teoréticas: relacionadas ao estudo teórico, por exemplo, fazem parte dessa classe a matemática, a física, a psicologia, a filosofia. • Ciências práticas: campo do saber em que se encontram a ética e a política. É esse o nosso interesse maior aqui, pois nele Aristóteles esclarece as normas e as boas formas de agir, o que é correto fazer. Com relação à ética, temos três obras atribuídas a Aristóteles: A Ética a Nicômaco, a Ética a Eudemo e o tratado conhecido como Magna Moralia. Depois das "ciências teóricas”, na sistematização do saber, vêm as "ciências práticas", que dizem respeito à conduta dos homens e ao fim que eles querem atingir, tanto considerados como indivíduos, quanto como parte de uma sociedade política. O estudo da conduta ou do fim do homem como indivíduo é a "ética"; o estudo da conduta e do fim do homem como parte de uma sociedade é a "política". O conjunto das ações humanas e o conjunto dos fins particulares para os quais elas tendem subordinam-se a um "fim último", que é o "bem supremo", que todos os homens concordam em chamar de "felicidade". 4.2 O QUE É A FELICIDADE? Como vimos, a ética aristotélica é teleológica, busca o fim em si mesmo ou o bem, a felicidade dos homens. “[...] a felicidade, acima de tudo o mais, parece ser absolutamente completa nesse sentido uma vez que sempre optamos por ela mesma e jamais como um meio para algo mais [...]” (ARISTÓTELES, 2002, 25 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 p. 49). Quando nos referimos ao “em si mesmo” significa que para Aristóteles a felicidade deve ser compreendida como a busca por ela mesma, ela é em si mesma o maior bem a se alcançar, se queremos viver uma vida de acordo com o bem não devemos procurar exteriormente, mas na própria felicidade. Uma coisa buscada como uma finalidade em si mesma é mais completa do que uma buscada como um meio para alguma coisa mais e que uma coisa jamais como um meio para alguma coisa mais e que uma coisa jamais eleita como um meio para qualquer coisa mais é mais completa do que coisas eleitas tanto como finalidades em si mesmas quanto meios para aquela coisa; em conformidade com isso, chamamos de absolutamente completa uma coisa sempre eleita como uma finalidade e nunca como um meio (ARISTÓTELES, 2002, p. 48-49). Constata-se que pela argumentação, que é a felicidade “a mais desejável de todas as boas coisas” (ARISTÓTELES, 2002, p. 49). Podemos aristotelicamente considerar que: a) Para a maioria das pessoas a felicidade é o prazer e o gozo, mas uma vida gasta com o prazer, segundo Aristóteles, é uma vida que torna "semelhantes aos escravos", e "digna dos animais". b) Para alguns, a felicidade é a honra, mas a honra é extrínseca, ou seja, não é em si mesma, necessita de algo externo para existir, portanto é dependente e condicionada a que as pessoas te honrem. c) Para outros, a felicidade está em juntar riquezas. Para Aristóteles, esta é a mais absurda das vidas, chegando mesmo a ser vida "contra a natureza", porque a riqueza é apenas meio para outras coisas, não podendo, portanto, valer como fim. As pessoas ordinárias identificam como algum bem óbvio e visível, tais como o prazer, ou a riqueza ou a honra, umas dizendo uma coisa e outras algo diferente; na verdade, com muita frequência o mesmo indivíduo diz coisas diferentes em ocasiões diferentes: quando fica doente, pensa ser a saúde a felicidade; quando é pobre, julga ser a riqueza a felicidade (ARISTÓTELES, 2002, p. 42). O bem supremo realizável pelo homem (e, portanto, a felicidade) consiste em aperfeiçoar- se enquanto homem, ou seja, naquela atividade que diferencia o homem de todas as outras coisas. Assim, não pode consistir no simples viver como tal, porque até os seres vegetativos vivem; nem mesmo viver na vida sensitiva, que é comum também aos animais. Só resta, portanto, a atividade da razão. O homem que deseja viver bem deve viver, sempre, segundo a razão. 26 Temas e teorias da Filosofia Aristóteles identifica que cada um de nós é alma, mas também ressalta que é a alma a parte mais elevada do homem. A alma sendo parte dominante deixa, assim, claro que cada um é sobretudo intelecto. Os valores da alma são considerados, então, supremos, mesmo assim Aristóteles não menospreza os bens materiais, ele reconhece que necessitamos deles, mesmo que não sejam condição necessária para a felicidade, podem, com sua ausência, comprometer nossa tranquilidade. 4.3 AS VIRTUDES ÉTICAS E AS VIRTUDES DIANOÉTICAS O homem sendoprioritariamente razão deve saber que não é apenas razão. Na alma humana existe algo oposto a ela, mas que ao mesmo tempo participa dela. Para explicar melhor podemos dizer que a parte vegetativa da alma não tem participação no aspecto racional, porém temos a faculdade do desejo, do apetite, que participa da racionalidade ao escutar e obedecer a razão. Aristóteles chama o domínio dessa parte da alma de virtude do comportamento prático ou virtude ética. Pela repetição ou hábito esse tipo de virtude é adquirido. As virtudes éticas são muitas e cada uma corresponde ao controle de impulsos e paixões ou sentimentos que possam se manifestar por excesso ou falta. A razão deve ser, portanto, a moderadora dos excessos e das faltas, intervindo, impõe a justa medida ou o meio termo entre os extremos. A coragem, por exemplo, é o meio termo entre a covardia e a audácia. O meio termo é vitória da razão sobre os instintos. A Justiça é destaque dentre todas as virtudes éticas porque é pela "justa medida" que se distribuem os bens, as vantagens, os ganhos e seus contrários. A perfeição da alma racional como tal é chamada por Aristóteles de virtude "dianoética". As virtudes dianoéticas são a "sabedoria" (phronesis) e a "sapiência" (sophia). Elas são divididas em duas porque a alma racional tem dois aspectos: um que é voltado para as coisas mutáveis, da vida do homem; e outro aspecto voltado para as coisas imutáveis, das realidades necessárias. A sabedoria tem como função dirigir a vida do homem para o bem, deliberando corretamente sobre o que é bom ou ruim para ele. A sapiência, por sua vez, consiste no conhecimento das realidades supremas, as que estão acima do homem, é o que Aristóteles diz ser a ciência theorétika. 27 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 4.4 OS PROCESSOS PSÍQUICOS E O ATO MORAL Aristóteles teve ainda o mérito de haver tentado superar o intelectualismo socrático. Percebeu que uma coisa é "conhecer o bem" e outra é "fazer e realizar o bem". Procurou determinar os processos psíquicos pressupostos pelo ato moral. A escolha, para Aristóteles, é vinculada ao ato de deliberação. Para alcançar certos fins podemos estabelecer, conforme a deliberação, quais são os meios para tal execução. Há fins mais longínquos e outros mais próximos. A escolha tem seu modo operante nestes últimos. Desse modo, a escolha condiz aos meios para alcançar os fins. A escolha, então, nos torna responsáveis, mas isso não quer dizer que ela necessariamente nos torna bons ou ruins. Ser bom ou ruim depende dos fins e não são objetos de escolha, mas da vontade. A vontade parece querer sempre o que é o bem, ou seja, aquilo que parece revestido de bem. Por isso, para ser bom, é necessário um querer o bem, e isso somente o homem virtuoso reconhece como o bem verdadeiro. 4.5 A POLÍTICA Aristóteles definiu o homem como animal político, isso quer dizer que não simplesmente o classificou como animal social, mas que vive em sociedade politicamente organizada. Para os gregos, a natureza do bem do indivíduo é a mesma do bem da cidade, pois o interesse público é o mais belo de todos os interesses. Desse modo, a cidade está para o indivíduo e o indivíduo está para a cidade. Sabemos que na Grécia Antiga nem todos eram cidadãos, pois para alcançar esse nível a pessoa precisava participar da administração pública, fazendo parte das assembleias e do governo da cidade. Era preciso ter o tempo livre para se dedicar aos assuntos da coisa pública, por isso nem operários nem escravos poderiam ser cidadãos. O escravo, por exemplo, era considerado um instrumento que servia para produção de artefatos e objetos para o uso. O escravo é daquela forma por natureza. Os antigos pensavam que era necessário ter escravos porque a própria vida exige isso da natureza. Por isso laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão está inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem sujeitos às necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade. A degradação do escravo era um rude golpe do destino, um fardo 28 Temas e teorias da Filosofia pior que a morte, por implicar a transformação do homem em algo semelhante a um animal doméstico. Assim, qualquer alteração na condição do escravo, “como alforria, ou qualquer mudança de circunstâncias políticas gerais que elevasse certas ocupações a um nível de relevância pública, significava uma mudança na natureza do escravo” (ARENDT, 2007, p. 94-95). 4.6 O ESTADO Na cidade ainda prevalecia a constituição, ou seja, a estrutura ordenadora da cidade, e dela emana todo o funcionamento de todos os cargos, principalmente da autoridade soberana. Aristóteles destaca que o poder soberano pode ser exercido: 1. por um só homem; 2. por poucos homens; 3. pela maior parte. E quem governa pode governar: a) segundo o bem comum; b) no seu interesse privado. Então, são possíveis três formas de governo correto e três de governo corrupto: Formas corretas de governo Formas corruptas de governo Monarquia Tirania Aristocracia Oligarquia Politia Democracia FONTE: O autor Aristóteles entende por "democracia" um governo que, desleixando o bem comum, visa a favorecer de maneira indébita os interesses dos mais pobres e, portanto, entende "democracia" no sentido de "demagogia". Para ele o erro na forma de governo demagógico está em considerar que, como todas as pessoas são iguais em sentido de direito de liberdade, logo, todos podem também ser iguais também em tudo. Aristóteles afirma que, em abstrato, são melhores a monarquia e a aristocracia, mas, na realidade, considera que, no concreto, sabendo como os 29 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 homens são, a melhor forma de governo é a politia, que é um meio termo entre a monarquia e a aristocracia. 4.7 O ESTADO IDEAL O fim do Estado moral é o incremento dos bens da alma, ou a virtude como sustentáculo, a alma deve ter uma correspondência entre o estado e o cidadão. Aristotelicamente falando, a cidade perfeita deve ser na medida certa, nem muito populosa e nem muito pequena. Seu território também deve obedecer a essa regra, grande o bastante para suprir as necessidades, sem excessos. Os cidadãos, que governam a cidade, serão os protetores quando jovens, passando por conselheiros e posteriormente sacerdotes. Assim, há uma conexão que se adequa na medida correta aos moldes de Aristóteles, ou seja, a polis é dirigida pela força que há nos jovens e a sabedoria e bom senso dos mais velhos. A cidade alcançará sua felicidade de acordo com a felicidade de seus cidadãos, por isso, quanto mais virtuoso se possa formar o cidadão mais justo e feliz será o Estado. ÉTICA DAS VIRTUDES: UMA ALTERNATIVA PARA PENSAR O PROBLEMA DA PUNIÇÃO A PROPOSTA DA ÉTICA DAS VIRTUDES Até há pouco tempo existia um consenso entre os estudiosos da punição de que o consequencialismo, a deontologia ou uma teoria mista dessas duas vertentes eram as únicas teorias normativas que podiam justificar a punição de um cidadão pelo Estado. Consciente dessa realidade, Matthew Schaeffer, em um texto intitulado virtue ethics and the justification of punishment, descreve que os filósofos dessas teorias, em debate, tentaram melhorar e definir justificativas consequencialistas para a punição, outros defendem uma postura deontológica e ainda há aqueles que tentaram evitar fraquezas percebidas em ambas (deontologia e consequencialismo), construindo teorias mistas de justificação. Schaeffer esclarece que nos primeiros sessenta anos do século XX 30 Temas e teoriasda Filosofia todas as tentativas de justificar a punição estavam niveladas em consequências, deveres ou em ambas. “Virtue ethics re-emerged in the late 1950s, with Elizabeth Anscombe’s important article ‘Modern Moral Philosophy’, and has established itself as a major approach in normative ethics” (AMAYA, LAI, 2012, p. 1). Em 1958, Elizabeth Anscombe defende que deontologia e consequencialismo são incoerentes em uma concepção de lei ética. Como alternativa a essas teorias, Anscombe propõe o retorno da ética das virtudes aristotélica. A partir dessa investigação, muitos filósofos seguiram nessa esteira e a ética das virtudes entra em cena como uma concorrente para o consequencialismo e a deontologia. Essa iniciativa levou alguns filósofos a declararem a ética das virtudes como tendo um completo status de uma teoria. [....] O procedimento investigativo de Schaeffer leva em conta, em primeiro lugar, que a ética das virtudes diz que o Estado deveria punir X se, e somente se, a pessoa totalmente virtuosa puniria X. Em segundo lugar, constatado isso, realiza o discernimento da natureza da virtude e o conjunto de virtudes que possui a pessoa totalmente virtuosa. Nesses dois passos é possível discernir o que a pessoa totalmente virtuosa faria se estivesse em suas mãos a decisão de punir ou absolver o indivíduo infrator. Essas são informações básicas que já nos mostram o fundamento da ética das virtudes, a saber: a pessoa virtuosa, ou seja, diferentemente das outras teorias normativas (deontologia e consequencialismo, mista), a pessoa virtuosa é a medida da decisão, uma vez que ela está imbuída das virtudes. Schaeffer realça que a natureza da virtude é constituída de caráter eudaimonista. O vício, por sua vez, é a antítese da eudaimonia. Ainda seguindo na esteira aristotélica, ele apresenta os dois tipos de virtude. A virtude moral que é um traço de caráter “multitrack” composta de emoções, escolhas, reações emocionais, valores, desejos, atitudes, interesses, expectativas e sensibilidades. O outro tipo de virtude é a intelectual, tendo como característica nos permitir ou ajudar a adquirir conhecimento. Um exemplo é a sabedoria prática, virtude intelectiva que permite conhecer o fim definitivo da ação e até mesmo os meios para o efeito. Então, quais virtudes a pessoa virtuosa possui? Schaeffer elenca quatro: sabedoria prática; justiça; benevolência e misericórdia. O 31 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 critério para a escolha foi a relevância delas para a questão da pena. [...]. A primeira, a sabedoria prática, tem uma relevância especial, pois ela perpassa o interior de cada uma das virtudes. A justiça e a benevolência são por excelência importantes para a questão da pena, já a misericórdia é a única como firma Schaeffer que prima facie parece silenciar exigências da justiça. Schaeffer (2010, p. 40) adota algumas estratégias para discernir o que uma pessoa que possui essas quatro virtudes faria em relação à punição, ou seja, que possua o controle de jure do Estado: [...] A sabedoria prática determina o fim da ação. Para isso ela vai primeiramente assumir que a atividade racional constitui eudaimonia, pois somos seres racionais; em segundo plano, ela se move sobre o juízo de quais “modos de ser” são racionais; terceiro, a sabedoria prática etiqueta esses “modos de ser” como virtudes e todos os outros como vícios. A sabedoria prática, por exemplo, julga que a média (coragem) entre o excesso de imprudência e a deficiência da covardia é racional. Assim, o excesso de imprudência e a deficiência da covardia são vícios, ou seja, os extremos irracionais. A sabedoria prática mostra que a coragem é um modo de ser racional e, portanto, uma virtude. A sabedoria prática então é um julgamento legítimo sobre determinadas ações. Além de ser a sabedoria prática a virtude controladora da pessoa totalmente virtuosa, ela ainda é o elemento constituído de todas as virtudes, pois todas elas devem se manifestar em ações. Aristóteles (2001, p. 93), diz que “na justiça se resume toda a excelência”. Pensando na virtude da justiça como excelência ela se divide em duas espécies: distributiva e comutativa. A primeira é a distribuição justa e equitativa dos produtos comuns, como o dinheiro, a liberdade, honra etc. A segunda é a igualdade de troca de bens entre os cidadãos. A pessoa justa possui o traço da justiça, uma combinação de vida interior relevante e sabedora prática. A pessoa justa, assim, pode fixar ou determinar ações particulares tanto em matéria de distribuição quanto comutativa. Schaeffer supõe que a pessoa justa no controle de jure do Estado fará sempre justiça, uma vez que é de sua índole essa ação. Ele dá um exemplo de uma pessoa que frauda idosos, 32 Temas e teorias da Filosofia a pessoa justa irá punir apenas com algum tipo de multa, serviço comunitário ou encarceramento? Importante lembrar que a pessoa justa é preocupada com os fatos que são relevantes à justiça. No caso de Ane, que fraudou cidadãos idosos, houve um prejuízo financeiro e psicológico, e ela agiu de forma moralmente responsável. Na perspectiva da pessoa justa a justiça distributiva esgrime que o Estado restrinja a liberdade civil de Ane (o Estado deve distribuir de acordo com o mérito ou demérito e Ane já não merece a liberdade). Já pela ótica da justiça comutativa há a exigência da restituição financeira e moral. É difícil definir um princípio sobre quando a pessoa justa vai punir um cidadão, isso vai depender do caso e de suas particularidades. O que fica evidente é que a pessoa justa está sempre disposta a ofuscar a injustiça e louvar a justiça. Com essa premissa, Schaeffer (2010, p. 43) conclui em três pontos as ações e razões para se acreditar no julgamento da pessoa justa: (I) a pessoa justa sabe que a justiça deve ser feita e a injustiça deve ser evitada; (II) a pessoa justa deveria sempre, não importa as circunstâncias, julgar que a punição de um cidadão inocente é injusto, uma vez que uma pessoa inocente não pode merecer punição para o que ela não fez; (III), portanto, a pessoa justa, necessariamente, jamais deve punir um cidadão inocente. Quanto à virtude da benevolência, é um tipo de vida interior conjugada com a sabedoria prática direcionada para o bem-estar dos outros. A pessoa benevolente se contenta quando os outros fazem o bem. A pessoa benevolente tem como fim corrigir ou determinar quais ações são benevolentes. Mantendo o mesmo procedimento que adotou na análise das outras virtudes, Schaeffer propõe que supondo a pessoa benevolente tendo controle de jure do Estado como ela agiria em relação à punição? Ela irá realmente punir? Uma pessoa benevolente desprezaria punir um cidadão inocente, pois punir um inocente é injusto. Uma questão paradoxal parece destoar na reflexão: pode o amante dos outros infligir danos ou privações sobre aqueles que ama? Essa problemática poderia colocar em risco o plano de justificar a punição sob a ética das virtudes, porém o castigo pode afetar positivamente o bem-estar tanto dos que sofreram os danos quanto dos que provocaram os danos, os infratores. Como o Estado que é direcionado para fazer o bem dos cidadãos utiliza da punição para com seus súditos? Schaeffer (2010) propõe quatro maneiras para se pensar a justificativa da punição e com isso pode afetar agressores e o público 33 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 em geral. (i) A dissuasão: punição, por vezes, impede o agressor e o público em geral de cometer crimes semelhantes no futuro e, assim, promover o bem-estar público geral. (ii) Incapacidade: punição,sob a forma de encarceramento, pode impedir os delinquentes de repetir seus crimes, assim, promover o bem-estar do público em geral. (iii) Comunicação Moral: a punição comunica que certas ações são a antítese de um bem-estar da pessoa, promovendo o bem-estar dos infratores e do público em geral. (iv) Reforma: a punição, quando conduzida de forma adequada, pode obrigar os infratores a desprezar a imoralidade de suas ações havendo envolvimento na autoreforma e assim promover o bem-estar dos infratores e do público em geral (uma vez que haverá menos crime). Desse modo, é mister considerar que a pessoa benevolente punirá sim o agressor, sem deixar de pensar no seu bem-estar e, ao mesmo tempo, com isso promover o bem do público em geral. É então a benevolência uma virtude que justifique a punição. O exposto até aqui foi uma incursão na visão de M. Schaeffer sobre a justificativa da punição pela ética das virtudes. Vimos algumas das virtudes que ele apontou como fundamentais para essa defesa. Continuando explorando sua análise, agora com uma diferença, tentarei propor uma implementação e problematização a partir da virtude da misericórdia. Gostaria de esclarecer que considero a mais problemática das virtudes para a defesa de uma justificativa da punição pela ética das virtudes. Schaeffer não aprofundou muito algumas questões referentes à misericórdia. Após essa minha incursão irei corroborar o que Schaeffer defende, ou seja, que é possível justificar a punição via ética das virtudes. O que farei é contribuir implementando a virtude da misericórdia. Historicamente a clemência ou misericórdia aparece na república de 509 a.C. a 27 a.C. e era uma atitude própria dos romanos em relação aos povos dominados pelo império. Em 100 a.C. – 44 a.C., o conceito ganha aspecto político com o governo de Júlio Cesar. Ele chegou até mesmo a oferecer cargos de honra, indicando que esqueceu as ofensas. Importante destacar também a importância de Sêneca que propôs um modelo de tratado sobre a clemência. O objetivo dessa obra era orientar o imperador Nero em suas ações pessoais como também do seu governo. A clemência poderia ter um papel de entendimento e admiração. Importante destacar que a clemência não poderia servir de brecha para que o criminoso fugisse da pena. Sêneca destaca que o homem deve ser responsável por seus atos, pois ele teve a oportunidade de viver segundo a virtude e escolheu 34 Temas e teorias da Filosofia viver contrariamente. A clemência do governante deveria ser produto de uma deliberação racional, não podia, portanto, ser confundida com piedade: “a compaixão não observa a causa do castigo, mas o infortúnio do criminoso. A clemência se aproxima da razão” (SÊNECA, 1990, p. 46). Tanto em Aristóteles como em Tomás de Aquino e também em Sêneca, a misericórdia deve ser uma atitude de reflexão racional. Também Sêneca está ciente de que a clemência deve estar a favor da justiça e revela equilíbrio em sua aplicação. Nessa breve avaliação histórica percebemos que a misericórdia tem importância na política. Fica claro também que os respeitados autores escreveram sobre a misericórdia e têm a consciência de que o homem clemente não deixaria de punir o culpado, as circunstâncias são levadas em conta para não haver injustiça. Nesta reflexão, assumimos que a misericórdia é um traço de caráter, uma combinação de vida interior e sabedoria prática que tem como fim limitar ou apagar a punição por compaixão para com os infratores. Claro que isso deve ser exercitado sem desrespeitar as exigências da justiça, ou seja, deve não anular ações da justiça, mas também não provocar uma deliberação irresponsável destoando a harmonia entre as virtudes em geral. Todas as virtudes na pessoa totalmente virtuosa se respeitam mutuamente, representando uma harmonia interior para a decisão, a ação do agente. Desse modo, a pessoa misericordiosa mantém uma relação saudável com a justiça, a benevolência e a sabedoria prática com o intuito de promover o bem-estar dos infratores e do público em geral. A misericórdia está entre a hiper-misericórdia e a impiedade, ela é a justa medida entre esses extremos. Então, novamente seguindo o procedimento adotado por Schaeffer, pergunta-se o que deveria uma pessoa totalmente misericordiosa fazer em relação à punição? Respostas: (i) A pessoa misericordiosa deveria constantemente limitar apenas a apagar punições; (ii) A pessoa misericordiosa nunca iria apenas limitar ou apagar punições; (iii) A pessoa misericordiosa faria, na ocasião, apenas limitar ou apagar punições. Essa última resposta (iii) é a indicada por Schaeffer como a correta. Sua justificativa baseia-se em que a pessoa misericordiosa julga que uma limitação ou supressão, uma punição justa é misericordiosa se, e somente se, o infrator em questão sinceramente exibe remorso e pretende abster-se de novas infrações. 35 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 O problema que surge está na realização dessa bicondicional que raramente é satisfeita uma vez que muitos infratores não se arrependem. Essas limitações ou apagamentos das punições podem afetar infratores e cidadãos, mas a pessoa misericordiosa, por agir na justa medida, não iria esvaziar as prisões nem irresponsavelmente colocar em risco a sociedade. Essas falhas pertencem ao vício da hipermisericórdia. O remorso sincero do criminoso pode apagar a punição. Quando a pessoa misericordiosa age sobre isso, age misericordiosamente, mas a questão que se esgrime é como saber se realmente o delinquente não está mentindo? Será que realmente ele está arrependido? Será que não irá mais cometer o erro? Como saber a resposta para essas questões se não podemos penetrar nos estados mentais da pessoa? Essa é a problemática que pretendo agora discutir e que Schaeffer percebe, mas limita-se a discutir. Acredito que explorar isso possa reforçar e complementar a tese da justificativa da punição pela ótica da ética das virtudes, pois creio que a misericórdia é a mais frágil para que a teoria passe à prova. No entanto, ela pode ser reforçada e ganhar robustez a ponto de ser considerada forte tanto quando as outras. Primeiro, é preciso dirimir a dúvida mais comum quando se fala da misericórdia, a saber, se ela realmente pode ser considerada uma virtude. Podemos recorrer a Tomás de Aquino, que seguindo na esteira de Aristóteles, discute essa questão. Na suma teológica explica que a misericórdia implica dor com a miséria alheia e esta pode ser considerada de algum modo um movimento de apetite sensitivo. Com essa interpretação a misericórdia é paixão e não virtude. Como relatamos anteriormente, o auxílio da sabedoria prática pode considerar a paixão como apetite intelectivo enquanto ela não nos direciona a não sermos confortáveis com o mal feito ao outro, ou seja, não nos agrada saber que o mal feito ao outro é efetivado. FONTE: CRUZ, D. N. da. Ética das virtudes: uma alternativa para pensar o problema da punição. In: Filosofia, ensino, diálogos e perspectivas de investigação. Rio de Janeiro: Multifoco, 2018. P. 163-179. 36 Temas e teorias da Filosofia 1 No texto acima, percebemos como a ética das virtudes aristotélica ainda é importante ao debate filosófico e político, mas também há um interesse por outras áreas, como o direito, por exemplo. Discorra como a ética das virtudes pode auxiliar na questão da punição de um indivíduo pelo Estado. 2 Interprete e esclareça a afirmação de Aristóteles de que o “homem é um animal político”. 3 Analise como Sócrates relaciona o conceito de areté ao problema antropológico contido no “conhece a ti mesmo”. 4 Explique por que a ética aristotélica é denominada teleológica? 5 O ARISTOTELISMO E SUA INFLUÊNCIA NA TEORIA TOMISTA Não é pretensão nossa realizaruma investigação de todas as correntes em todas as épocas do desenvolvimento da filosofia, mas realizar o estudo de algumas temáticas inerentes ao saber filosófico em vários períodos. A seguir temos uma cronologia resumida desses períodos: QUADRO 1 – PERÍODOS DA FILOSOFIA Antigo Medieval Moderna Contemporânea Pré-socráticos (VII – VI ao V a.C.) Patrística (I ao VIII d.C.) Renascimento (XIV ao XVI d.C.) Idealismo (XIX d.C.) Socráticos (V ao IV a.C.) Escolástica (IX ao XIV d.C.) Racionalismo e Empir- ismo (XVI ao XVIII d.C.) Positivismo (XIX – XX d.C.) Helenismo (IV a.C. ao I d.C.) Existencialismo (XX d.C.) FONTE: O autor Conscientes da cronologia apresentada, podemos agora explorar as ideias desenvolvidas pela filosofia cristã, na Idade Média, influenciada pelo aristotelismo. Focaremos apenas nas ideias de Tomás de Aquino, por ser o 37 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 principal representante da escolástica. O século XIII da era cristã caracteriza-se filosoficamente pelo pensamento escolástico. Não por acaso foi nesse período também que tivemos o surgimento das primeiras universidades e a criação das ordens religiosas como os dominicanos e franciscanos. O frade Tomás de Aquino (1224-74) pertencia aos dominicanos e também atuou em algumas universidades da época. Mesmo a partir da metade do século XII já haviam surgido a Universidade de Salerno (1050), de Bolonha (1088), posteriormente a de Paris (1214), na Inglaterra surge a de Oxford, e assim, muitas foram surgindo. O fato é que nessas instituições eram ensinados diversos saberes, inclusive o direito à medicina. Foi despertado o interesse pelas obras aristotélicas, principalmente pelos estudiosos árabes que estavam desenvolvendo a ciência natural ainda pouco explorada. As universidades atraiam mestres e estudantes de diversas localidades do mundo que se reuniam em determinada cidade para seus estudos. Daí o termo universitas ser utilizado para representar esse conjunto de pessoas de diferentes regiões. As obras de Aristóteles chegaram a ser proibidas de serem ensinadas já em 1215 e continuariam com muitas proibições. Porém, a Igreja percebeu que as Universidades poderiam desenvolver sistematicamente um saber que pudesse combater à heresia e com isso preservar a doutrina cristã. O pensador de maior influência nesse período foi Tomás de Aquino. Tomás de Aquino tem sua originalidade reconhecida por desenvolver uma filosofia própria e atingir questões de suma abrangência em todas as reflexões da filosofia. Podemos dizer que ele forjou um grande sistema filosófico e teológico tendo Aristóteles como base. Isso trouxe uma grande mudança, pois até então o que prevalecia era a teoria platônico-agostiniana. Tomás de Aquino traz à luz que a filosofia de Aristóteles tem compatibilidade para desenvolver a filosofia cristã. Várias são as obras de Aquino, dentre elas temos: De ente et essentia (sobre a essência, 1242-43); Suma contra os gentiles (suma contra os gentios, 1258-60); De veritate (sobre a verdade, 1256-59) e sua principal obra Summa Theologica (1265-73). Admirador de Aristóteles, a quem chamava na suma teológica de o filósofo, elabora um sistema que concilia o pensamento cristão com o aristotelismo. Sendo sua obra muito extensa e complexa analisaremos aqui não seu sistema em detalhes, mas focaremos no argumento das cinco vias da prova da existência de Deus que Tomás de Aquino trata na suma teológica e que mostra a cristianização do pensamento aristotélico para, a partir da luz natural da razão, chegar ao conhecimento da existência divina. Neste argumento, como veremos, se articulam a razão e a fé, tema central de discussão da filosofia medieval. 38 Temas e teorias da Filosofia O primeiro argumento é o do movimento (baseado na Física, VIII, de Aristóteles). A caracterização fundamental do movimento é a passagem do ato para potência. Tudo que está em movimento ou se move é movido por algo imóvel. Se assim não fosse haveria uma regressão ao infinito, o que não se pode admitir. Deus então é a causa primeira de todo o movimento, ou seja, ele é o motor imóvel que move tudo no universo, mas não é movido, ele é o Primeiro Motor. A segunda via denominada de causa eficiente tem base também na metafísica (II) de Aristóteles. Esse argumento diz que nada pode ser causa eficiente de si mesmo, caso contrário seria causa anterior a si mesmo. E se não é possível a admissão de uma regressão infinita de causas, Deus é a Causa Primeira de tudo. O argumento cosmológico é a terceira via, recorrendo às noções aristotélicas de necessidade e contingência direciona-se para a necessidade da existência do cosmos. A natureza tem sua constatação contingencial, porém deve haver algo incontingente, pois caso contrário não existiria nada. O que não existe só pode começar a existir a partir de algo já existente anteriormente. Portanto, é necessário que algo exista antes. Deus é esse primeiro ser existente, necessário para a existência de tudo. Ainda com base na Metafísica de Aristóteles, Tomás de Aquino chega à quarta via denominada de graus da perfeição. Todas as coisas são predicáveis, têm qualidades em maior ou menor grau. Se temos esse grau comparativo de maior ou menor, o parâmetro é o máximo. Deus, portanto, é esse Ser Perfeito que tem o máximo de perfeição. A quinta e última via é a do argumento teleológico. Deve haver um fim ou finalidade na natureza ou causa final. A causa final da natureza é Deus, pois tende para sua finalidade inteligente. Como vimos, é incontestável a influência do pensamento metafísico aristotélico na filosofia tomista. Claro que na Idade Moderna essa teoria foi muito contestada, mas é inegável a contribuição de Tomás de Aquino para a revelação de Deus pela luz natural da razão, passando pela esfera dos sentidos. Essa valorização naturalista é herança aristotélica e cabe ressaltar sua importância para a mudança de perspectiva que vai se apresentando, pois se podemos provar Deus naturalmente é despertado o interesse pela investigação do mundo natural. Também, a difusão do pensamento de Aristóteles via Tomás ascende a curiosidade de descobertas das investigações científicas, seja contestando seus argumentos (como fez Galileu ao demonstrar que Aristóteles estava equivocado ao dizer que dois objetos de diferentes pesos lançados de uma mesma altura o mais pesado cai primeiro) seja complementando. Nos séculos subsequentes a Tomás, na modernidade, por exemplo, ocorre uma grande metamorfose no Ocidente, sem dúvida o pensamento tomista contribuiu para sua formação. 39 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORALLÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL Capítulo 1 1 Disserte sobre as cinco vias da prova da existência de Deus pela luz natural da razão e associe os argumentos aos defendidos por Aristóteles em sua metafísica. 6 ARISTÓTELES E A SISTEMATIZAÇÃO DA LÓGICA Veremos agora como Aristóteles sistematiza a lógica. Gostaríamos de ressaltar que não estamos explorando aqui os assuntos com uma sequência cronológica, mas por uma abordagem temática sobre temas filosóficos. No sistema epistemológico aristotélico a lógica não faz parte da divisão das ciências, ela é um organon, ou seja, um instrumento de auxílio para todas as áreas do conhecimento e não entra no esquema geral porque constitui uma propedêutica para todas as ciências. A lógica é a base do pensamento e identifica qual a estrutura do raciocínio e de suas demonstrações e quais seus tipos. O conjunto de escritos de Aristóteles denominados de organon caracteriza a lógica com o termo de analítica. A analítica vem do grego análysis e significa solução. Dada uma conclusão, é investigada
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