Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Colegto PENSAMENTO CRITICO Vol. 65 NORBERTO BOBBIO O FUTURO Uma defesa DEMOCRACIA regras do iogo DA das Tradu96o Marco Aur6lio Nogueira 54 EDIQAO PAZ E TERRA Copyright @ t984 Giulio Einaudi Editore S.P.A. Torino Titulo do original em italiano: I! futuro della democrazia. IJna dilesa delle regole del gioco' Revis6o: S6nia Maria de Amorim Beatriz Siqueira Abr6o Capa: Isabel ComposigSo: Intertexto CIP-Brasil. Catalogag6o-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros,Rf. Bobbio, Norberto 8637f O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo / Norberto Bobbio; tradugSo de Marco Aurdlio Nogueira. - Rio de |aneiro: Paz e Terra, 1986.(Pensamento critico. 63) Tradug6o de: I futuro della democrazia. Una difesa delle regole del gioco. Bibliografia. 1. Democracia. l. Tltulo. IL S6rie. 864377 cDD - 521.4cDU - 521.7 Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA Rua do Triunfo, 177 01212 - Sio Paulo/SP Tel. (011) 223-6522 Rua SioJos6,90 - llo andar $ 20010 - Rio deJaneiro,/RJ Tel. (02r) 221-4066 que se reserva a propriedade desta tradugio Conselhn Mitorial Antonio Candido Femando GSsparian Fernando Henrique Cardoso 1992 Impresso no Brasil/ hintzd in Brazil fNDICE Premissa .) O futuro da democracia . . '17 Democracia representativa e democracia direta Os vfnculos da democracia . . 41 65 83 129 A democracia e o poder invisivel . . . Liberalismo velho e novo lO7 Contrato e contratualismo no debate atual Governo dos homens ou governo das leis? .. l5l,] / i O FUTURO DA DEMOCRACIA 1. Premissa n6o solicitada Convidado a apr€sentar uma comunicagdo sobre o futuro da democracia - tema sob todos os aspectos insidioso - defendomecom duirs citag6es. Em suas lig6es sobre a filosofia da hist6ria na universidade de Berlim, Hegel, respondendo a um estudante que dele queria saber se os Estados Unidos deveriam ser considerados como o pais do futuro -, assim se manifestou, visivelmente irri-tado: "Como pais do futuro, a Am6rica n6o me diz respeito. O fil6sofo n5o se afina com profecias (.. .) A filosofia ocupa-se da- quilo que 6 eternamente, ou melhor, da raz6o, e com isto jd temos muito o que fazer" r. Na sua c6lebre confer€ncia, proferida aos estudantes da universidade de M6naco no final da guerra, sobre a ciOncia como vocagSo, Max Weber assim respondeu aos seus ouvintes que lhe pediam insistentemente um parecer sobre o futuro da Alemanha: "A cdtedra ndo existe nem para os demagogos nem para os profetas"2. Mesmo quem n5o esteja disposto a aceitar as raz6es alegadas por Hegel e por Weber e as considere apenas um prctexto n6o pode deixar de reconhecer que o oficio do profeta 6 perigoso. A dificuldade de conhecer o futuro depende tamb6m do fato de que cada um de n6s proieta no futuro as pr6prias aspirag6es e inquie- 1. G. W. Hegel, Vorlesungen uber die Philosophie der Geschichte, I: Die Vernunlt in der Geschichte. Meiner, Leipzig, 1917, p. 200. 2. Max Weber,'"La scienza come professione', in Il lavoro inlellettuale come professione, Einaudi, Torino, 1948, p. 64. (Trad. bras. Polltica e ciAncia. Duqs vocagdes, Cultrix, 56o Paulo). l7 tag5es, enquanto a hist6ria prossegue o seu curso indiferente is nossas preocupag6es, um curso ali6s formado por milh6es e milh6es de pequenos, minfsculos, atos humanos que nenhuma mente, mes- mo a mais potente, jamais esteve em condigdes de apreender numa .vis6o de conjunto que ndo tenha sido excessivamente esquem6tica e portanto pouco convincente. E por isto que as previs6es feitas pelos grandes mestres do pensamento sobre o curso do mundo aca- baram por se revelar, no final das contas, quase sempre erradas, a comegar daquelas feitas por aquele que boa parte da humanidade considerou e ainda considera o fundador de uma nova e infalivel cidncia da sociedade, Karl Marx. Para dar-lhes brevemente a minha opinido, se me perguntas- sem se a democracia tem um porvir e qual 6 ele, admitindo-se que exista, responderia tranqililamente que ndo o sei. Nesta comunica- g5o, meu prop6sito 6 pura e simplesmente o de fazer algumas observag6es sobre o estado atual dos regimes democr6ticos, e com isto, para retomar o mote de Hegel, creio que temos todos n6s muito o que fazer. Se, depois, destas observag6es for possivel extrapolar uma linha de tendoncia no desenvolvimento (ou invo- lug6o) destes regimes, e assim tentar um cuidadoso progn6stico sobre o seu futuro, tanto melhor. 2. Uma definigEo minima de democracia Afirmo preliminarmente que o rinico modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocr6tico, 6 o de consider6-1a ca- ractefizada por um conjunto de regras (prim6rias ou fundamentais) que estabelecem quem estd autorizado a tomar as decis6es coletivas e com quais procedimentos. Todo grupo social est6 obrigado a tomar decisSes vinculat6rias para todos os seus membros com o objetivo de prover a pr6pria sobrevivOncia, tanto interna como externamente.s Mas.atd mesmo as decis6es de grupo sdo tomadas por individuos 1o giupo como tal ndo decide). -po, irto, para que uma decisSo tomada por individuos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisdo coletiva 6 preciso que seja tomada 3. sobre este ponto remeto ao meu ensaio "Decisioni individuali e collett! ve", in Ricerche politiche due (Identitd, interesse e scelte collettive), ll Saggiatore, Milano, 1983, pp. 9-30. 18 com base em regras (nio importa se escritas ou consuetudindrias) que estabelegam quais s6o os individuos autorizados a tomar as decis5es vincuiat6rias para todos os membros do grupo, e b base de quais procedimentos. No que diz respeito aos sujeitos chamados a tomar (ou a colaborar para a tomada de) decisdes coletivas, um regime democrdtico caracteriza-se por atribuir este poder (que es- tando autorizado pela lei fundamental torna-se um direito) a um n(mero muito elevado de membros do grupo. Percebo que "nf- mero muito elevado" 6 uma expressSo vaga. No entanto, os discur- sos politicos inscrevem-se no universo do "aproximadamente" e do "na maior parte das vezes" e, al6m disto, 6 impossivel dizer "todos" porque mesmo no mais perfeito regime democr6tico n6o votam os individuos que n6o atingiram uma certa idade. A onicracia, como governo de todos, 6 um ideal-limite. Estabelecer o nrimero dos que t€m direito ao voto a partir do qual pode-se comegar a falar de regime democrdtico 6 algo que n6o pode ser feito em linha de principio, isto 6, sem a consideragSo das circunstdncias hist6ricas e sem um juizo comparativo: pode-se dizer apenas que uma socie- dade na qual os que t6m direito ao voto s6o os cidaddos masculinos maiores de idade 6 mais democr6tica do que aquela na qual votam apenas os propriet6rios e 6 menos democrdtica do que aquela em que tOm direito ao voto tamb6m as mulheres. Quando se diz que no s6culo passado ocorreu em alguns paises um continuo processo de democratizagSo quer-se dizer que o ndmero dos individuos com direito ao voto sofreu um progressivo alargamento' No que diz respeito hs modalidades de decis6o, a regra fun- damental da democracia 6 a regra da maioria, ou seja, a regra ir base da qual sdo consideradas decis6es coletivas - e, portanto, vinculat6rias para todo o grupo - as decis6es aprovadas ao menos pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisSo. Se 6 v6- lida uma decisSo adotada por maioria, com maior taz6o ainda 6 v6lida uma decisSo adotada por unanimidade a. Mas a unanimi- dade 6 posslvel apenas num grupo restrito ou homog0neo, e pode ser exigida em dois casos extremos e contrapostos: ou no caso de decis6es muito graves em que cada um dos participantes tem direito 4. Ocupei-me mais amplamente deste tema no artigo "La regola della maggioranza: limiti e aporie", in AA, YY., Democrazia, maggioranza e minoranza, Il Mulino, Bologna, 1981, pp.33-72; e em'La regola di maggio- ranza e i suoi limiti", in AA.YY., Soggetti e potere. Un dibattito su so' cietd civile e qisi della politica, Bibliopolis, Napoli, 1983' pp. 11-23. t9 de veto, ou no caso de decis6es de escassa importAnciaem que se declara consenciente quem n6o se op6e expressamente (6 o caso do consenso tdcito). Naturalmente a unanimidade 6 necess6ria quando os que decidem s5o apenas dois, o que distingue com clateza a decisSo concordada daquela adotada por lei (que habitualmente 6 aprovada por maioria). No entanto, mesmo para uma definigSo minima de democra- cia, como 6 a que aceito, n6o bastam nem a atribuigSo a um elevado ndmero de cidadSos do direito de participar direta ou indireta- m€nte da tomada de decis6es coletivas, nem a exist6ncia de regras de procedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimi- dade). E indispens6vel uma terceira condigSo: 6 preciso que aque- les que s5o chamados a decidir ou a eleger os que deverSo decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condig6o de poder escolher entre uma e outra' Para que se realize esta con' dig6o 6 necess6rio que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opini6o, de expressdo das pr6prias opini6es, de reuniSo, de associagSo, etc. - os direitosir base dos quais nasceu o estado liberal e foi construida a dou- trina do estado de direito em sentido forte, isto 6, do estado que ndo apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos "inviol6- veis" do individuo. Seja qual for o fundamento filos6fico destes direitos, eles sho o pressuposto necessiirio para o correto funciona- mento dos pr6prios mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um regime democr6tico. As normas constitucio- nais que atribuem estes direitos n6o s6o exatamente regras do jogo: s6o regras preliminares que permitem o desenrolar do jogo. Disto segue que o estado liberal 6 o pressuposto n5o s6 hist6- rico mas jur(dico do estado democr6tico. Estado liberal e estado democr5tico sdo interdependentes em dois modos: na diregSo que vai do liberalismo h democracia, no sentido de que s6o necessdrias certas liberdades para o exercicio correto do poder dernocr6tico, e na diregdo oposta'que vai da democracia ao liberalismo, no sen- tido de que 6 necess6rio o poder democrdtico para garantir a exis- t€ncia e a persist6ncia das liberdades fundamentais. Em outras pa- lavras: 6 pouco provdvel que um estado n6o liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte 6 pouco provrlvel que um estado n6o democr6tico seja capaz de garantir as Iiberdades fundamentais. A prova hist6rica desta interdepend6ncia 20 est6 no fato de que estado liberal e estado democrdtico, quando caem, caem juntos. l. Os ideais e a "mat6ria bruta" Esta referdncia aos principios me permite entrar por inteiro no assunto, fazendo, como afirmei antes, algumas observag6es sobre a situagSo atual da democracia. Trata-se de um tema que normal- mente 6 discutido sob o nome de "transformag6es da democracia". Se recolhOssemos tudo o que foi escrito sobre as transformag6es da democracia ou sobre a democracia em transformagdo teriamos material suficiente para lotar uma biblioteca. Mas a palavra "trans- formagSo" €, vaga o bastante para consentir as mais diversas ava- liag5es: d direita (penso por exemplo no livro de Vilfredo Pareto, Translormazione della democrazia, de 1920,5 verdadeiro carro-chefe de uma longa e ininterrupta s6rie de lamentag6es sobre a crise da civilizagSo), a democracia transformou-se num regime semi-an6r- quico predestinado a ter como conseqii€ncia o "estilhagamento" do estado; h esquerda (penso por exemplo num livro como o de lohannes Agnoli, Die Translormationen der Demokratie, de 1967, tipica expr6ss6o de critica extraparlamentar), a democracia parla- mentar estd se transformando cada vez mais num regime autocrd- tico, Mais que sobre a transformagdo, parece-me mais ritil concen- trar nossa reflexSo sobre o contraste entre os ideais democr6ticos e a "democracia real" (expressSo que uso no mesmo sentido em que se fala de "socialismo real"). Algum tempo atr6s, um meu ouvinte chamou minha atengSo para as palavras conclusivas que Pasternak p5e na boca de Gordon, o amigo do doutor fivago: "Aconteceu mais vezes na hist6ria. O que foi concebido como nobre e elevado tornou-se matdria bruta. Assim a Gr€cia tornou-se Roma, assim o iluminismo russo tornou-se a revolugSo russa" 6. Assim, acrescento eu, o pensamento liberal e democr6tico de um Locke, de um Rousseau, de um Tocqueville, de um Bentham e de um |ohn Stuart Mill tornou-se a ag6o de . . . (coloquem voc6s o 5. Vilfredo Pareto, Translormazione della democrazia, Corbaccio, Mllano, 1920, reuniio de artigos publicados na Rivista di Milcno entre maiq e julho de 1920. O livro de Agnoli, publicado em 7967, foi traduzido em italiano por Feltrinelli, Milano, 1969; 6, Boris L. Pasternak, Il dottor Zivago, Feltrinelli, Milano, 1957, p. 673. 2l nome que preferirem; tenho certeza de que n5o ter6o dificuldade para encontrar mais de um). E exatamente desta "mat6ria bruta" e n6o do que foi concebido como "nobre e elevado" que devemos falar; em outras palavras, devemos examinar o contraste entre o que foi prometido e o que foi efetivamente realizado. Destas pro- messas n6o cumpridas indicarei seis. 4. O nascimento da sociedade pluralista A dcmocracia nasceu de uma concepgdo individualista da so- ciedade, isto 6, da concepgSo para a qual - ssnflaliamente b concepgao orgAnica, dominante na idade antiga e na idade m6dia, segundo a qual o todo precede as partes - a sociedade, qualquer forma de sociedade, e especialmente a sociedade politica, 6 um produto artificial da vontade dos individuos. Para a formagSo da concepgilo individualista da sociedade e do estado e para a disso- luqSo da conccpgSo orgAnica concorreram tr€s eventos que carac' terizam a filosofia social da idade modetnat a) o contratualismo do Seiscontos c do Setecentos, que parte da hip6tese de que antes da socicdade civil existe o estado de natureza, no qual soberanos s6o os individuos singulares livres'e iguais, que entram em acordo entre si para dar vida a um poder comum capaz de cumprir a fungio dc gararntir-lhes a vida e a liberdade (bem como a proprie- dade); b) o rrascimcnto da economia politica, vale dizet, de uma andlise da socicdadc e das relag5es sociais cujo sujeito 6 ainda uma vez o individuo singular, o homo oeconomicus e n6o o politik6n z6on da tradigao, quc n5o 6 considerado em si mesmo mas apenas como mcmbro de uma comunidade, o individuo singular que' se- gundo Adam Snrith, "perseguindo o pr6prio interesse, freqiiente- mente pronrovc aclttcle da sociedade de modo mais eficaz do que quando prctcnda rcalmente promovO-lo" (de resto 6 conhecida a recente intcrplctaqtro de Macpherson segundo a qual o estado de natureza do llobbcs.c de Locke 6 uma prefigurag6o da sociedade de mercado) 7; c) a filosofia utilitarista de Bentham a Mill, para a qual o rinico crit6rio capaz de fundar uma 6tica objetivista, e por- 7. Refiro-me ao conhccido livro de C. B. Macphetson, The Political Theory ol Possessive Indivitluulism, Clarendon Press, Oxford, 1962. (Trad. bras' A teoria politicu dLt lihcrulismo possessiuo, Rio de laneiro. Paz e Terra. 1979). 22 tanto distinguir o bem do mal sem fecorrer a conceitos vagos como "nattJreza" e outros, 6 o de partir da consideragSo de estados essencialmente individuais, como o prazer e a dor, e de resolver o problema tradicional do bem comum na soma dos bens individuais ou, segundo a f6rmula benthamiana, na felicidade do maior ntimero. Parflndo da hip6tese do individuo soberano que, entrando em acordo com outros individuos igualmente soberanos, cria a socie- dade politica, a doutrina democr6tica tinha imaginado um estado sem corpos intermedi6rios, caracteristicos da sociedade coiporativa das cidades medievais e do estado de camadas ou de ordens ante- rior h afirmaqSo das monarquias absolutas, uma sociedade politica na qual entre o povo soberano composto por tantos individuos (uma cabega, um voto) e os seus representantes n6o existem as sociedades particulares desprezadas por Rousseatr e canceladas pela leiLe Chapelier (ab-rogada na Franga apenas em 1887). O que aconteceu nos estados democr6ticos foi exatamente o oposto: su- jeitos politicamente relevantes tornaram-se sempre mais os grupos, grandes organizag5es, associagdes da mais diversa natureza, sindi- catos das mais diversas profiss6es, partidos das mais diversas ideo' logias, e sempre menos os individuos. Os grupos e n5o os individuos sdo os protagonistas da vida politica numa sociedade democrdtica, na qual ndo existe mais um soberano, o povo ou a nag6o, com- posto por individuos que adquiriram o direito de participar direta ou indiretamente do governo, na qual n5o existe mais o povo como unidade ideal (ou m(stica), mas apenas o povo dividido de fato em grupos contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomia diante do governo central (autonomia que os indivfduos singulares perderam ou s6 tiveram num modelo ideal de governo democr6tico sempre desmentido pelos fatos). O modelo ideal da sociedade democrdtica era aquele de uma sociedade centr(peta. A realidade que temos diante dos olhos 6 a de uma sociedade centrifuga, que nao tem apenas um centro de poder (a vontade geral de Rousseau) mas muitos, merecendo por isto o nome, sobre o qual concordam os estudiosos da politica, de sociedade policOntrica ou poli6rquica (ou ainda, com uma express6o mais forte mas n6o de tudo incorreta, policr6tica). O modelo do estado democrdtico fundado na soberania popular, idealizado h imagem e semelhanga da soberania do principe, era o modelo de uma sociedade monistica. A sociedade real, sotoposta aos governos democrriticos, 6 pluralista. 23 J ii I i 5. Revmche dos intercsses Desta primeira transformagdo (primeira no sentido de que diz respeito h distribuigdo do poder) derivou a segunda, relativa l representag6o. A democracia moderna, nascida como democracia representativa em contraposigSo ir democracia dos antigos, deveria sei caracterizadapela representagSo politica, isto €, por uma forma de representag6o na qual o representante, sendo chamado a Perse- guir os interesses da nag6o, n5o pode estar sujeito a um mandato vinculado. O principio sobre o qual se funda a representag6o poli tica 6 a antitese exata do principio sobre o qual se funda a repre- sentagSo dos interesses, no qual o representante, devendo perseguir os interesses particulares do representado, est6 sujeito a um man- dato vinculado (t(pico do contrato de direito privado que prev6 a revogagSo por excesso de mandato). Um dos debates mais cdlebres e historicamente mais significativos que se desenrolaram na Assem- bl6ia Constituinte francesa, da qual nasceu a constituigio de 1791, foi o que viu triunfar aqueles que sustentaram que o deputado, uma vez eleito, tornava-se o representante da na95o e deixava de ser o representante dos eleitores: como tal, nao estava vinculado a nenhum mandato. O mandato livre fora uma prerrogativa do rei, que, convocando os Estados Gerais, pretendera que os delega- dos das ordens n6o fossem enviados b Assembldia com pouvoirs restrictifss. ExpressSo cabal da soberania, o mandato livre foi transferido da soberania do rei para a soberania da Assembldia eleita pelo povo. Desde entSo a proibigSo de mandatos imperativos tornou-se uma regra constante de todas as constituig6es de demo- cracia representativa e a defesa intransigente da representag6o po- litica encontrou sempre, nos fautores da democracia representativa, convictos defensores contra as tentativas de substitui-la ou de com- bindla com a representagSo dos interesses. |amais uma norma constitucional foi mais violada que a da proibig6o de mandato imperativo. |amais um princ(pio foi mais desconsiderado que o da representag6o politica. Mas numa socie- dade composta de glupos relativamente aut6nomos que lutam pela sua supremacia, para fazer valer os pr6prios interesses contra outros grupos, uma tal norna, um tal princfpio, podem de fato encontrar rcalizagflo? Al€m do fato de que cada grupo tende a identificar o 8. Para uma ampla documentagEo ver P. Violante, Lo spazio della tappre' sentanza, I: Francia 1788-1789, Mozzone, Palermo, 1981. 24 interesse nacional com o interesse do pr6prio grupo, ser6 que existe algum critdrio gerul capaz de permitir a distingSo entre o interesse geral e o interesse particular deste ou daquele grupo, ou €ntre o interesse geral e a combinagSo de interesses particulares que se acordam entre si em detrimento de outros? Quem representa inte- resses particulares tem sempre um mandato imperativo. E onde podemod encontrar um representante que n6o represente interesses particulares? Certamente n6o nos sindicatos, dos quais entre outras coisas depende a estipulagIo de acordos - como os acordos na-cionais sobre a organizag6o e sobre o custo do trabalho - quet6m uma enorme relevAncia politica. No parlamento? Mas o que representa a disciplina partid6ria se n5o uma aberta violag6o da proibigSo de mandatos imperativos? Aqueles que de vez em quan- do fogem i disciplina partiddria aproveitando-se do voto secreto ndo s6o por acaso tachados de "franco-atiradores", isto 6, tratados como r6probos a serem submetidos i priblica reprovag6o? A proi- big6o de mandato imperativo, al6m do mais, 6 uma regra sem sang6o. Ao contrdrio: a dnica sang6o temida pelo deputado que depende do apoio do partido para se reeleger 6 a derivada da transgressSo da regra oposta, que o obriga a considerar-se vinculado ao mandato recebido do pr6prio partido. Uma confirmagSo da revanche (ousaria dizer definitiva) da representagdo dos interesses sobre a representagSo polftica d o tipo de relagSo qu€ se vem instaurando na maior parte dos estados de- rnocr6ticos europeus entre os grandes grupos de interesses contra- postos (representantes respectivamente dos industriais e dos oper6- rios) e o parlamento, uma relagdo que deu lugar a um novo tipo de sistema social que foi chamado, com ou sem taz6o, de neo- corporativoe. Tal sistema € caructerizado por uma relag6o trian- gular na qual o governo, idealmente representante dos interesses nacionais, interv6m unicamente como mediador entre as partes so- ciais e, no mdximo, como garante (geralmente impotente) do cum- primento do acordo. Aqueles que elaboraram, h6 cerca de dez anos, este modelo - que hoje ocupa o centro do debate sobre as "trans-formag6es" da democracia - definiram a sociedade neocorpora- 9. Refiro-me em particular ao debate que se estr{ desenvolvendo com cres- cente intensidade, inclusive na ltelia, em torno das teses de Philippe Schmitter. Ver, a respeito, a antologia La societd neo-corporatitta, org. M. Maraffi, ll Mulino, Bologna, 1981, e o livro escrito a duas m6os por L. Bordogna e G. Provasi, Politica, economia e ruppresentanza degli interessi, Il Mulino, Bologna, 1984. 2s tiva como uma forma de solugdo dos conflitos sociais que se vale de um procedimento (o do acordo entre grandes organizag6es) que nada tem a ver com a representagSo politica e 6, ao contrdrio, uma expressSo tfpica de representag6o dos interesses. 9. Persist6ncia das oligarquias Considero como terceira promessa ndo cumprida a derrota do poder oligdrquico. N6o preciso insistir ainda sobre este ponto, pois se trata de um tema muito examinado e pouco controverso, ao menos desde quando no fim do s6cu1o passado Gaetano Mosca exp6s sua teoria da classe politica, chamada, por influ6ncia de Pareto, de teoria das elites. O princ(pio inspirador do pensamento democrdtico sempre foi a liberdade entendida como autonomia, isto 6, como capacidade de dar leis a si pr6pria, conforme a famosa definigSo de Rousseau, que deveria ter corno conseqiiOncia a per- feita identificagSo entre quem d6 e quem recebe uma regra de con- duta e, portanto, a eliminagSo da tradicional distingSo entre gover- nados e governantes sobre a qual fundou-se todo o pensamento politico. A democracia representativa, que 6 a :iunica forma de de- mocracia existente e em funcionamento, 6 jd por si mesma uma rendncia ao principio da liberdade como autonomia, A hip6tese de que a futura computadorcracia, corno tem sido chamada, per- mita o exercicioda democracia direta, isto 6, dd a cada cidadSo a possibilidade de transmitir o pr6prio voto a um c6rebro eletr6- nico, 6 uma hip6tese absolutamente pueril, A julgar pelas leis pro- mulgadas a cada ano na Itdlia, o bom cidad6o deveria ser convo- cado para exprimir seu pr6prio voto ao menos uma vez por dia. O excesso de participag6o, prdduto do fen6meno que Dahrendorf chamou depreciativamente de cidad5o total, pode ter como efeito a saciedade de politica e o aumento da apatia eleitoral 10. O prego quc se deve pagar pelo empenho de poucos 6 freqiientemente a indifcrcriqa de muitqs. Nada ameaqa mais matar a democracia que o cxcesso de democracia. Naturalmente, a presenga de elites no poder ndo elimina a difcrcnqa cntrc regimes democrdticos e regimes autocrdticos. Sabia disso inclusive Mosca, um conservador que se declarava liberal mas 10. Rcfiro-nrc a Ralf Dahrendorf, 1/ cittadino totale, Centro di ricerca e di documcnlaziorrt: l.uigi llinaudi, Torino, 1977, pp. 15-59. 26 nio democr6tico e que imaginou uma complexa tipologia das for- mas de goyerno com o objetivo de mostrar que, apesar de n6o eliminarem jamais as oligarquias no poder, as diversas formas de governo distinguem-se com base na sua diversa formagSo e orga- nizag6o. Mas desde que parti de uma definigSo predominantemente procedimental de democracia, ndo se pode esquecer que um dos fautores desta interpretagSo, |oseph Schumpeter, acertou em cheio quando sustentou que a caracteristica de um governo democr6tico n6o d a aus6ncia de elites mas a presenqa de muitas elites em concorrOncia entre si para a conquista do voto popular. No recente livro de Macpberson, A vida e os tempos da democracia liberallt, sao diferenciadas quatro fases no desenvolvimento da democracia do s6culo passado a hoje: a fase atual, definida como "democracia de equilfbrio", corresponde h definiqSo de Schumpeter' Anos atr6s, um elitista italiano, intdrprete de Mosca e Pareto, distinguiu de maneira sint6tica - e a meu ver incisiva - as elites que se im- p5em das elites que se ProP6em r2 7. O espago limitado Se a democracia ndo consegue derrotar por completo o poder oligdrquico, 6 ainda menos capaz de ocupar todos'os espagos nos quais se exerce um poder que toma decis6es vinculat5rias para. um inteiro grupo social. A este ponto' a distinEso que entra em jogo nao 6 mais aquela entre poder de poucos e de muitos mas aquela entre poder ascendente e poder descendente. Por isto, dever-se-ia falar aqui mais de inconseqi-i0ncia que de ittealizagd'o, i6 que a democracia moderna nasceu como m6todo de legitimagSo e de con- trole das decis6es politicas em sentido estrito, ou do "governo" propriamente dito (seja ele nacional ou local), no qual o individuo 6 considerado em seu papel geral de cidadSo e n6o na multiplici- dade de seus pap6is especificos de fiel de uma igreja, de trabalha- dor, de estudante, de soldado, de consumidor, de doente, etc' Ap6s a conquista do sufrSgio universal, se ainda 6 possivel falar de uma extensdo do processo de democratizaglo, esta deveria revelar-se 11. C. B. Macpherson, The t'ile and Times ol Liberal Democracy, Oxford University Press, Oxford, 1977. 12. Refiro-me ao livro de F. Burzio, Essenza e attualitd del liberalismo, Utet, Torino, 1945, p" 19. 21 nao tanto na passagem da democracia representativa para a demo- cracia dircta, como habitualmente se afirma, quanto na passagem da democracia polftica para a democracia social - neo tanto na resposta h pergunta "Quem vota?", mas na resposta a esta outra peryunta: "Onde se vota?" Em outros termos, quando se quer ,ub". r" houve um desenvolvimento da democracia num dado pais o ccrto ri procurar perceber se aumentou ndo o n(mero dos que tepr 9 tlircito de participar nas decis5es que thes dizem respeito, mas os espagos nos quais podem exercer este direito' At6 que os tlois grandes blocos di poder situados nas instancias superiores das socicJadcs avangadas ndo sejam dissolvidos pelo processo de demo- cratizagao - deixando-se de lado a questao de saber se isto 6 n6o s6 posiivel mas sobretudo desej6vel -, o processo de democrati- zagelo n6o pode ser dado por concluido. No entanto, parece-me de certo interesse observar que em algr,rns destes espagos n5o politicos (no sentido tradicional da pala- u*;, pot exemplo na fdbrica, deu-se algumas vezes a proclamagSo de ceitos direitos de liberdade no Ambito do especifico sistema de poder, analogamente ao que ocorreu com as declarag6es dos direi- io, do citlad6o em relagdo ao sistema do poder politico: refiro-me, por exemplo, ao Estatuto dos trabalhadores, promulgado na lt6lia crn 1970, e hs iniciativas hoje em curso para a proclamagSo de unra carta dos direitos do doente. Inclusive no que diz respeito hs pr.crrogativas do cidadSo diante do estado, a concessSo de direitos dc liberdade precedeu a concessao de direitos politicos. como jd al'irmei quand-o falei da relagSo entre estado liberal e estado demo- crhtico, a concessao dos direitos politicos foi uma conseqilOncia p:rttrral cla concess6o dos direitos de liberdade, pois a rinica garan- tiir tlo r.cspcito aos direitos de liberdade estd no direito de con- trolol o podcl ao qual compete esta garantia' t{. O podcr invisivel A cluirtta l)rotllcssa n5o cumprida pela democracia real em c()rtr.irst(. (.().r ' iclcal 6 a c1a eliminaqSo do poder invisivel 13. l)ifcrclle rrre 1tc tl1 r.cl:rqao cntre democracia e poder olig6rquico, 11 . ( )r upt:i nrr tlt.str. irssilnt() irlguns anos atrds nUm artigo intitUladO - " La rlt:rrrrrcrrrziil c il polt:rc invisibilc". in Rivista italiana di scienza politica, X ( 1q80), Pp. lt{ l 20J, ltxl() ;rgora rettnido no presente livto' 2tl a respeito da qual a literatura 6 riquissima, o tema do poder invi- sivel foi at6 agora muito pouco explorado (inclusive porque escapa das t6cnicas de pesquisa adotadas habitualmente pelos soci6logos, tais como entreYistas, levantamentos de opiniSo, etc')' Talvez eu esteja particularmente influenciado por aquilo que acontece na Itdlia, onde a presenga do poder invisivel (m6fia, camorra, lojas magdnicas andmalas, servigos secretos incontroldveis e acoberta- dores dos subversivos que deveriam combater) 6, permitam-me o jogo de palavras, visibilissima. A verdade por6m 6 que o trata- *into mais amplo do tema foi por mim encontrado, at6 agora, no livro de um estudioso americano, Alan wolfe, os limites da legitimidadela, que dedica um bem documentado capitulo ao qrie denomina de "duplo estado", duplo no sentido de que ao tado ae um estado visivel existiria sempre um estado invisivel. como 6 bem conhecido, a democracia nasceu com a perspectiva de eliminar para sempre das sociedades humanas o poder invisivel e de dar vida a um goYerno cujas a95es deveriam ser desenvol- vidas publicamente, "au grand iour" (para usar a expressSo de Mauricl loly tu). Modelo da democracia moderna foi a democra- cia dos antigos, de modo particular a da pequena cidade de Ate- nas, nos felizes momentos em que o povo se reunia na 6gorc e tomava livremente, h luz do sol, suas pr6prias decis6es, ap6s ter ouvido os ofadores que ilustravam os diversos pontos de vista' para denegri-la, PlatSo (que era um antidemocrdtico) a havia cha- mado de "teatrocracia" (palavra que se encontra, n6o por acaso, tambem em Nietzsche). Uma das raz6es da superioridade da demo- cracia diante dos estados absolutos, que tinham revalorizado os arcana imperii* e defendiam com argumentos hist6ricos e poli- ticos a necessidade de f.azer com que as grandes decis6es politicas fossem tomadas nos gabinetes secretos, longe dos olhares indiscre- tos do priblico, funda-se sobre a convicaSo de que o governo demo- cr6tico poderia finalmente dar vida h transparencia do poder, ao "poder sem mdscara". No "Ap6ndice" it Paz Perpttua, Kant enunciou e ilustrou o principio fundamental segundo o qual "todas as a96es relativas ao 14. Alan. Wolf.e, The Limits ol Legitimacy. Political contradictions of Contemporary Capitalism, The Free Press, New York' 1977' is. fuf.'loty, Oiitogue aax enlersentre Machiavel et Montesquieu ou la potliqur' ie'Machivet au XIXa sibcle par un contempotain, "chez tous les libraires", Bruxelles, 1868. n Em latim no original: autoridades ocultas, misteriosas' (N' do T') 29 direito de outros homens cuja m6xima n6o 6 suscetivel de se tornar priblica sdo injustas" 16, querendo com isto dizer que uma a95o que sou forgado a manter secreta 6 certamente n6o apenas uma a96o injusta, mas sobretudo uma ag6o que se fosse tornada pfblica sus- citaria uma reag6o tdo grande que tornaria impossivel a sua exe- cugSo: que estado, para usar o exemplo dado pelo pr6prio Kant, poderia declarar publicamente, no momento exato em que firma um tratado internacional, que n6o o cumprir6? Que funcion6rio priblico pode afirmar em priblico que usar6 o dinheiro priblico para interesses privados? Desta impostagdo do problema resulta que a exig6ncia de publicidade dos atos de governo 6 importante n6o apenas, como se costuma dizer, para permitir ao cidaddo conhecer os atos de quem det6m o poder e assim control6-los, mas tamb6m porque a publicidade 6 por si mesma uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que 6 licito do que ndo 6. N5o por acaso, a politica dos arcana imperii caminhou simultanea- mente com as teorias da raz6o de estado, isto 6, com as teorias segundo as quais 6 licito ao estado o que n5o 6 licito aos cidadSos privados, ficando o estado portanto obrigado a agir em segredo para n6o provocar escAndalo. (Para dar uma iddia do excepcional poderio do tirano, PlatSo afirma que apenas ao tirano 6 licito praticar em priblico os atos escandalosos que os comuns mortais s6 em sonho imaginam realizar) 17. Indtil dizer que o controle priblico do poder 6 ainda mais necessdrio numa 6poca como a nossa, na qual aumentaram enor- memente e sio praticamente ilimitados os instrumentos t6cnicos de que disp6em os detentores do poder para conhecer capilarmente tudo o que fazem os cidadSos. Se manifestei alguma drivida de que a computadorcracia possa vir a beneficiar a democracia gover- nada, n5o tenho drivida nenhuma sobre os servigos que pode prestar h democracia governante. O ideal do poderoso sempre foi o de ver cada gesto e escutar cada palavra dos que estSo a ele submetidos (se possivel sem ser visto nem ouvido): hoje este ideal 6 inalcang6vel.'Nenhum ddspota da antigiiidade, nenhum mo- narca absoluto da idade moderna, apesar de cercado por mil es- pi5es, jamais conseguiu ter sobre seus sriditos todas as informag6es que o mais democr6tico dos governos .atuais pode obter com o 16. I. Kant, Zum ewigen Frieden, Ap6ndice lI, in Kleinere Schrilten zur Geschichtsphilosophie, Ethi.k und Politik, Meinrer, Leipzig, 1915, p. 163. 17. Platao, Repubblicu, 57lcd. 50 uso dos c6rebros eletr6nicos. A velha pergunta que percorre toda a hist6ria do pensamento politico - r'Quem custodia os cust& dios?" - hoje pode ser repetida com esta outra f6rmula: "Quem controla os controladores?" Se ndo conseguir encontrar uma res- posta adequada para esta pergunta, a democracia, como advento do governo visivel, est6 perdida. Mais que de uma promessa ndo cumprida,'estariamos aqui diretamente diante de uma tend€ncia contrdria hs premissas: a tend€ncia n6o ao m6ximo controle do poder por parte dos cidad6os, mas ao m6ximo controle dos sridi- tos por parte do poder. 9. O cidadio n6o educado A sexta promessa ndo cumprida diz respeito i educagSo para a cidadania. Nos dois riltimos s6culos, nos discursos apologdticos sobre a democracia, jamais esteve ausente o argumento segundo o qual o rinico modo de fazer com que um sridito transforme-se em cidad6o 6 o de lhe atribuir aqueles direitos que os escritores de direito priblico do s6culo passado tinham chamado de activae civitatis*; com isso, a educagSo para a democracia surgiria no pr6prio exercicio da pr6tica democrdtica. Concomitantemente, ndo antesr ndo antes como prescreve o modelo jacobino, segundo o qual primeiro vem a ditadura revolucion6ria e apenas depois, num segundo tempo, o reino da virtude. Ndo, para o bom democrata, o reino da virtude (que para Montesquieu constituia o principio da democracia contraposto ao medo, princfpio do despotismo) 6 a pr6pria democracia, que, entendendo a virtude como amor pela coisa priblica, dela n6o pode privar-se e ao mesmo tempo a promo- ve, a alimenta e reforga. Um dos trechos mais exemplares a este respeito 6 o que se encontra no capitulo sobre a melhor forma de governo das Consideragdes sobre o govetno representativo de fohn Stuart Mill, na passagem em que ele divide os cidad6os em ativos e passivos e esclarece que, em geral, os governantes preferem os segundos (pois 6 mais fdcil dominar sriditos d6ceis ou indiferen- tes), mas a democracia necessita dos primeiros. Se devessem pre' valecer os cidad6os passivos, ele conclui, os governantes acabariam prazeirosamente por transformar seus sriditos num bando de ove- lhas dedicadas tdo-somente a pastar o capim uma ao lado da outra * Em latim no original: cidadania ativa, direitos do cidad6o. (N. do T.) 31 (e a nio reclamar, acrescento eu, nem mesmo quando o capim 6 escasso) ls. Isto o levava a propor a extens6o do sufrdgio is classeS populares, com base no argumento de que um dos rem6- dios contra a tirania das maiorias encontra-se exatamente na pro- mogSo da participagSo eleitoral ndo s6 das classes acomodadas (que constituem sempre uma minoria e tendem naturalmente a assegurar os pr6prios interesses exclusivos), mas tamb€m das clas- qes populares. Stuart Mill dizia: a participagdo eleitoral tem um grande valor educativo; 6 atravds da discuss6o politica que o oper6rio, cujo trabalho 6 repetitivo e concentrado no horizonte limitado da fribrica, consegue compreender a conexdo existente en' tre eventos distantes e o seu interesse pessoal e estabelecer rela- g6es com cidad6os diversos daqueles com os quais mant6m rela- gSes cotidianas, tornando-se assim membro consciente de uma co- munidade 10. A educagSo para a cidadania foi um dos temas pre- feridos da ciOncia politica americana nos anos cinqiienta, um tema tratado sob o r6tulo da "cultura politica" e sobre o qual foram gastos rios de tinta que rapidamente perdeu a cor: das tantas distinq6es, recordo aquela estabelecida entre cultura Para sriditos, isto 6, orientada para os output do sistema (para os beneficios que o eleitor espera extrair do sistema politico), e cultura pafiicipante, isto d, orientada para os input, pr6pria dos eleitores que se consi- deram potencialmente empenhados na articulagSo das demandas e na formagSo das decis6es. Olhemos ao nosso redor. Nas democracias mais consolidadas assistimos impotentes ao fen6meno da apatia politica, que freqiien- temente chega a envolver cerca da metade dos que t6m direito ao voto. Do ponto de vista da cultura politica, estas sdo Pessoas que n5o est6o orientadas nem para os output nem para os input. Est6o simplesmente desinteressadas daquilo que, como se diz na It6lia com uma feliz expressSo, acontece no "pal6cio". Sei bem que tambdm podem ser dadas interpretag6es ben6volas da apatia politica. Mas inclusive as interpretag6es mais bendvolas n6o con' seguem tirar-me da mente que os grandes escritores democr6ticos recusar-se-iam a reconhecer na renfncia ao uso do pr6prio direito 18. I. S. Mill, Considerations on Representative Government, in Collected Papers ol lohn Stuart Mill, University of Toronto Press, Routledge and Kegan Paul, vol. XIX, London, 1977, p.406. (Trad. bras. Brasllia, Editora Universidade de Brasilia, 1982.) 19. Ibid, p. 47o. 32 um ben6fico fruto da educagdo para a cidadania. Nos regimes democr6ticos, como 6 o italiano, onde a porcentagem dos votantes 6 ainda muito alta (embora diminua a cada eleig6o), existem boas raz6es para se acreditar que esteja em diminuig6o o voto de opi- ni6o e em aumento o voto de permuta lvoto di scambiof , o voto, para usar.a terminologia ass6ptica dos political scientists, orientado para os output, ou, para usar uma terminologia mais crua mas talvez menos mistificadora, o voto clientelar, fundado (freqiiente- mentede maneira ilus6ria) sobre o do ut des (apoio politico em troca de favores pessoais). Tamb6m Para o voto de Permuta podem ser dadas interpretag6es bendvolas. Mas n6o posso deixar de pen- sar em Tocqueville que, num discurso i CAmara dos Deputados (em 27 de janeiro de 1848), lamentando a degenerag6o dos oostu- mes priblicos em decorr6ncia da qual "as opini6es, os sentimentos, as id6ias comuns sdo cada vez mais substituidas pelos interesses particulares", perguntava-se "se n6o havia aumentado o nfmero dos que votam por interesses pessoais e diminuido o voto de quem vota h base de uma opiniSo politica", denunciando esta tendOncia como expressdo de uma "moral baixa e vulgar" segundo a qual "quem usufrui dos direitos politicos pensa em deles fazer um uso pessoal em fungdo do pr6prio interesse"2o. 10. O governo dos t6cnicos Promessas n6o cumpridas. Mas eram elas promessas que poderiam ser cumpridas? Diria que n5o. Embora prescindindo do contraste, por mim mencionado pdginas atrds, entre o que fora concebido como "nobre e elevado" e a "matdria bruta", o pro' jeto politico democrdtico foi idealizado para uma sociedade muito menos complexa que a de hoje. As promessas n6o foram cumpri' das por causa de obst6culos que n6o estavam previstos ou que surgiram em decorr6ncia das "transformag6es" da sociedade civil (neste. caso creio que o termo "transformagSo" 6 apropriado). Destes obst6culos indico trOs. Primeiro; na medida em que as sociedades passaram de uma economia familiar para uma economia de mercado, de uma eco- nomia de mercado para uma economia protegida, regulada, plani- 20. Alexis de Tocqueville, Discorso sulla rivoluzione sociale, in Scritti politici, a cura di N. Matteucci, vol' I, Utet, Torino, 1969' p- 271. 33 ficada, aumentaram os problemas politicos que requerem compe- t6ncias t6cnicas. Os problemas t6cnicos exigem por sua vez exper- tos, especialistas, uma multidSo cada vez mais ampla de pessoal especializado. H6 mais de um s6culo Sainlsimon havia percebido isto e defendido a substituigdo do governo dos legisladores pelo governo dos cientistas. Com o progresso dos instrumentos de cdl- culo, que Saint-Simon ndo podia nem mesmo de longe imaginar, a exig6ncia do assim chamado governo dos tdcnicos aumentou de maneira desmesurada. Tecnocracia e democracia s5o antit6ticas: se o protagonista da sociedade industrial d o especialista, impossivel que venha a ser o cidad6o qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hip6tese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrdrio, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que det6m conhecimentos especificos. Na 6poca dos estados absolutos, como j6 afirmei, o vulgo devia ser mantido longe dos arcana imperii porque considerado ignorante demais. Hoje o vulgo 6 certamente menos ignorante. Mas os problemas a resolver - tais como a luta contra a inflag6o, o pleno emprego, uma mais justa distribuig6o da renda - n6o se tornaram por acaso crescen- temente mais complicados? N6o sio eles de tal envergadura que requerem conhecimentos cientificos e t6cnicos em hip6tese alguma menos misteriosos para o homem m6dio de hoje (que apesar de tudo 6 mais instrufdo)? 11. O aumento do aparato O segundo obst6culo n6o previsto e que sobreveio de maneira inesperada foi o continuo crescimento do aparato burocr6tico, de um aparato de poder ordenado hierarquicamente do v6rtice i base, e portanto diametralmente oposto ao sistema de poder democr6- tico. Admitindo-sc como pressuposto que uma sociedade apresenta selnpre diversos graus de poder e configurando-se um sistema poli- tico com<-r urna pirimide, na sociedade democr6tica o poder vai da base ao v6rticc c numa sociedade burocrStica, ao contr6rio, vai do v6rticc I base. Estad<,r democru'rtico e estado burocr6tico estSo historicamente muito mais ligados um ao outro do que a sua contraposigdo pode fazer pensar. 'l'odos os estados que se tornaram mais democr6ticos J4 tornaram-se ao mesmo tempo mais burocrdticos, pois o processo de burocratizaglo f.oi em boa parte uma conseqii€ncia do processo de democratizagSo. Prova disso d que hoje o desmantelamento do estado de servigos - estado este que exigiu um aparato buro- cr6tico atd agorc jamais conhecido - esconde o prop6sito, n6o digo de. desmantelar, mas de reduzir a limites bem circunscritos o poder democrdtico. Que democratizag:ao e burocratizagSo cami- nharam no mesmo passo 6 algo evidente, como de resto havia i6 observado Max Weber. Quando os proprietdrios eram os rinicos que tinham direito de voto, era natural que pedissem ao poder priblico o exercfcio de apenas uma fung6o prim6ria: a protegdo da propriedade. Daqui nasceu a doutrina do estado limitado, do es- tado carsbiniere ou, como se diz hoie, do estado mfnimo, e con- figurou-se o estado como associagSo dos proprietdrios para a de- fesa daquele direito natural supremo que era exatamente, para Locke, o direito de propriedade. A partir do momento em que o voto foi estendido aos analfabetos tornou-se inevit6vel que estes pedissem ao estado a instituiEso de escolas gratuitas; com isto, o estado teve que arcar com um 6nus desconhecido pelo estado das oligarquias tradicionais e da primeira oligarquia burguesa. Quando o direito de voto foi estendido tambdm aos n5o-proprie.tdrios, aos que nada tinham, aos que tinham como propriedade t6o-somente a forga de trabalho, a conseqiiOncia foi que se comegou a exigir do estado a protegdo contra o desemprego e, pouco a pouco, segu- ros sociais contra as doengas e a velhice, provid6ncias em favor da maternidade, casas a pregos populares, etc. Assim aconteceu que o estado de servigos, o estado social, foi, agrade ou n5o, a resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda demo- cr6tica no sentido pleno da palavra. 12. O baixo rendimento O terceiro obstdculo est6 estreitamente ligado ao tema do ren- dimento do sistema democrdtico como um todo: estamos aqui dian- te de um problema que nos riltimos anos deu vida ao debate sobre a chamada "ingovernabilidade" da democracia. Do que se trata? Em sintese, do fato de que o estado liberal primeiro e o seu alar- gamento no estado democr6tico depois contribuiram para emanci- par a sociedade civil do sistema politico. Tal processo de emanci- f5 pag6o fez com que a sociedade civil se torttasse cada vez mais uma inesgot6vel fonte a"-i"""^a"s dirigidas ao governo' ficando este, para bem desenvolver sua funESo' obrigado a dar respostas sempre adequadas' Mu' "omo pode o - governo responder se as demandas qr.r" p'oue'J;" ;" sociedade livre e "*1l"tl:,1":"" sempre mais numerosas, sempre mais urgentes' sempfe mals one- rosas? Afirmei ot" " ;;;";;Jigao """"tt6ria de todo governo demo- cr6tico 6 a protegSo i' Un"tauats civis: a liberdade de imprensa' a liberdade de reunial- " a. urro"iu96o, s5o vias atrav€s das quais ; .cil-ada; pode dirigir-se aos governantes-para solicitar vantagens' i"""rl"i"r,'racilidades, uma riais _justa .distribuig60 dos recursos. A quantidad" " u 'uiiaJ'^'J"*ut at*andas' no entanto' s6o de tal ordem que nenhum 'i""-u politico' por mais eficiente que seja' pode a elas respond"t-"J"n""a"mente'. Dai derivam a assim cha- mada "sobr ecarga" " "-""i"ttidade de o sistema politico fazer drdsticas op96es. Mu'- t'-u opESo exclui a outra' E as op96es ndo satisfat6rias criam descontentamento' Al6m do -uir, ii*t" da rapidez com que s5o dirigidas ao gou"rno -* J"*u"du'-Ja parte dos..cidad6os' torna-se contrastante a lentidSo que os ""-pf"-it procedimentos de um sistema politico democr6tico imp6em i "lutt" politica no momento de tomar as decis6es adequadas' Cria-se assim uma verdadeira *f*ig":::I: o- aa"unir-o da imissao e o mecanismo da emissSo' o prlmelro em ritmo sempre mais acelerado e o segundo em ritmo sempre mais lento. Ou seja, exatamente ao .contr6rio do que ocorre num sistema autocr6tico, ;;;;; "t condiEses de controlar a demanda por ter sufocado u luio"o*iu da sociedade civil e d efetivamente ,ir"ir" mais r6pido na respostapor nlo ter que observar os com- plexos procediment"t al"iiOti"s pr6prios de um sistema parlamen- tar. Sinteticamente: a democracia tem a demanda f6cil e a res- posta rlificil, u uutJ"*;i;; - contr6rio' est6 em condig6es de tornar a demancra *ur, aiiiril e dispSe de maior facilidade para dar resPoslas. r 13. APesar disto Ap6s o quc afirmei at6 aqui' algu6m poderia esperar uma visdo catastr6fica do futuro da democracia' Nada disso' Em com- paragSo com os uno' "nt'" a Primeira e a Segunda Guerra Mun- dial - chamados, no-tJt"Ut" livro de Elie Hal6vy' de A era das 36 tiranias (1938) 27 -, nos dltimos quarenta anos aumentou pro-gressivamente o espaqo dos regimes democrdticos. Um livro como o de fuan Linz, A queda dos regimes democrdticos22, retira seu material principalmente dos anos que se seguiram h Primeira Guer- ra Mundial, enquanto o de fulian Santamaria, A transigdo pard a democracla na Europa do Sul e na Amdrica Latina2g, ap6ia-se nos acontecimentos dos anos posteriores )r segunda. Terminada a Pri- meira Guerra Mundial fpram suficientes poucos anos na lt6lia, e dez anos na Alemanha, para ser abatido o estado parlamentar; ap6s a segunda, a democracia n6o voltou a ser abatida nos lugares em que foi restaurada e em outros paises foram derrubados go- vernos autorit6rios. Mesmo num pais de democracia n6o gover- nante e mal governante como a \t6lia, a democracia n6o corre s6rio perigo, embora eu diga isto com um certo temor. Entenda-se: falo dos perigos internos, dos perigos que podem derivar do extremismo de direita ou de esquerda. Na Europa orien- tal, onde regimes democr6ticos foram sufocados no nascedouro ou n6o conseguiram nascer, a causa foi e continua a ser externa. Em minha an6lise, ocupei-me das dificuldades internas das democra- cias.e n5o das externas, que dependem da posigSo dos diversos paises no sistema internacional. Pois bem, a minha conclusdo 6 que as promessas n5o cumpridas e os obstdculos n6o previstos de que rne ocupei ndo foram suficientes para "transformar" os regi- mes democriiticos em regimes autocrdticos. A diferenga substancial entre uns e outros permaneceu. O contefdo minimo do estado democrdtico n6o encolheu: garantia dos principais direitos de li- berdade, exist6ncia de v6rios partidos em concorr6ncia entre si, eleigSes peri6dicas a sufr6gio universal, decis6es coletivas ou con- cordadas (nas democracias consociativas ou no sistema neocorpo- rativo) ou tomadas com base no principio da maioria, e de qual- quer modo sempre ap6s um livre debate entre as partes ou entre os aliados de uma coaliz5,o de governo. Existem democracias mais s6lidas e menos s6lidas, mais invulner6veis e mais vulner6veis; 21. E. Hal6vy, L'bre des tyrannies. Etudes sur le socialisme et la guete, pref6cio de Charles Bougl6, Nrf, Paris, 1958. 22. Trata-se de uma selegdo de vdrios textos, organizada por fuan Linz, publicada primeiro em ingl6s, The Breakdown ol Democracy, The |ohn Hopkins University Press, London, 1978, e depois em italiano, Il Mulino, Bologna, 1981, na qual os tr6s temas fundamentais s6o o advento do fas- cismo na lt6lia, na Alemanha e na Espanha. 2J. Publicado pelo Centro de Investigaciones Sociol6gicas de Madrid, 1981. 37 existem diversos graus de aproximagao com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante do modelo n6o pode ser de modo algum confundida com um estado autocrdtico e menos ainda com um totalitdrio. Ndo falei dos perigos externos porque o tema a mim reser- vado dizia respeito ao futuro da democracia, neo ao futuro da humanidade. E neste, devo confessar, n5o estou disposto a fazer qualquer aposta. Parodiando o titulo do presente semin6rio - 'iO f.rtu.o jr4 comegou" -, algu6m com queda para o humor negro poderia perguntar: "E se ao inv6s disto o futuro i6 tivesse ter- minado?" No entanto, embora admitindo que possa estar correndo um certo risco, creio ser possfvel fazer uma constatagSo final: nenhu- ma guerra explodiu at6 agora entre estados dirigidos por regimes democrdticos. O que nao quer dizer que os estados democrdticos nao tenham feito guerras, mas apenas que jamais as fizeram entre si2a. A observagSo 6 temer6ria' como j6 reconheci, mas prefiro faza-la e aguardar um desmentido. SerS que estava certo Kant quando proilu-ou como primeiro artigo definitivo de um possivel acordo pela paz perp6tua que "a constituigao de cada estado deve s", ,"publi"inu"i'u Certo, o conceito de "repriblica" ao qual se referia Kant n6o coincide com o conceito atual de "democracia", mas a id6ia de que a constituigSo interna dos estados viesse a ser um obst6culo h guerra foi uma id6ia forte, fecunda, inspiradora de muitos projetos pacifistas elaborados ao longo dos dois riltimos s6culos (e importa pouco que eles tenham permanecido, na pr6- tica, letra morta). As objeg6es feitas ao principio de Kant deri- yaram sempre do fato de nao se ter entendido que, tratando-se de um principio universal, ele 6 vdlido somente se todos os esta- dos e n6o apenas alguns poucos assumem a forma de governo exigida para o alcance da paz perp6tua' 14. Apelo.aos valores Para terminar, 6 preciso dar uma resposta i questdo funda- mental, aquela qu" uuqo freqiientemente repetida, sobretudo pelos 24. Esta tese foi recentemente sustentada, com argumentos doutrinais e hist6ricos, por M. W. Doylc, "Kant, Liberal Legacies and Foreign Affairs"' in Philosophy and Public Allairs, XII, 1983, pp' 205-55 e 323-55' 25. Kant, Zum ewigen Frieden, cit.' p' 126' 58 jovens, t6o f6ceis bs ilus6es quanto irs desilus6es. Se a democracia 6 predominantemente um conjunto de regras de procedimento, como pode pretender contar com "cidaddos ativos"? Para ter os cida- dSos ativos serS que n6o s6o necessdrios alguns ideais? E evidente que s5o necess6rios os ideais. Mas como n6o dar-se conta das gran- des lutas.de id6ias que produziram aquelas regras? Tentemos enu- mer6-las? Primeiro de tudo nos vem ao encontro, legado por s6culos de cru6is guerras de religi6o, o ideal da tolerAncia. Se hoje existe uma ameaga b paz mundial, esta vem ainda uma vez do fanatismo, ou seja, da crenga cega na pr6pria verdade e na forga capaz de imp6-la. Inritil dar exemplos: podemos encontr6-1os a cada dia diante dos olhos. Em segundo lugar, temos o ideal da n6o-viol0n- cia: jamais esqueci o ensinamento de Karl Popper segundo o qual o que distingue essencialmente um governo democrdtico de um n5o- democrdtico 6 que apenas no primeiro os cidadSos podem li vrar-se de seus governantes sem derramamento de sangue 2n As tao freqiientemente ridicularizadas regras formais da democra- cia introduziram pela primeira yez na hist6ria as t6cnicas de con- viv6ncia, destinadas a resolver os conflitos sociais sem o recurso i violdncia. Apenas onde essas regras sdo respeitadas o adversdrio ndo 6 mais um inimigo (que deve ser destruido), mas um opositor que amanhd poder6 ocupar o nosso lugar. Terceiro: o ideal da renovag5o gradual da sociedade atrav6s do livre debate das iddias e da mudanga das mentalidades e do modo de viver: apenas a democracia permite a formag6o e a expans6o das revolug6es silen- ciosas, como foi por exemplo nestas riltimas d6cadas a transfor- mag6o das relag5es entre os sexos - que talvez seja a maior revo-lugSo dos nossos tempos. Por fim, o ideal da irmandade (a fra- tcrnitd da revolugSo francesa). Grande parte da hist6ria humana d uma hist6ria de lutas fratricidas. Na sua Filosolia da histfria (e assim termino com o autor que citei logo no inicio) Hegel definiu a hist6ria como um "imenso matadouro"27. Podemos des- rnenti-lo? Em nenhum pais do mundo o mdtodo democrdtico pode pcrdurar sem tornar-se um costume. Mas pode tornar-se um cos- lb. Karl Popper, La societd aperta e i suoi nemici, Armando, Roma, 1975, 1r. 179. (Trad. bras. A sociedade aberta e os seus inimigos. S5o Paulo, lrd usp.) .11 Hegel, Vorlesungen. cit.. vol. I, p. 58. I 39 tume sem o reconhecimento da irmandade que une- todos os ho- mens num destino comum? Um reconhecimento ainda mais neces- ,6rio hoi", quando nos tornamos a cada dia mais conscientesdeste aa.tit" "oau- e devemos procurar aglr com coer6ncia' atrav6s il;;;; lume de taz6o que ilumina nosso caminho' 40 41 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E DEMOCRACIA DIRETA Parto de uma constatag6o sobre a qual podemos estar todos de acordo: a exig6ncia, t5o freqi.iente nos riltimos anos' de maior democracia exprime-se como exig6ncia de que a democracia repre- sentativa seja ladeada ou mesmo substituida pela democracia direta. Tal exig6ncia n6o 6 nova: jd a havia feito, como se sabe, o pai da democracia moderna, |ean-|acques Rousseau, quando afirmou que "a soberania n5o pode ser representada" e, portanto, "o povo inglOs acredita ser livre mas se engana redondamente; s6 o 6 du- rante a eleigSo dos membros do parlamento; uma vez eleitos estes, ele volta a ser escravo, ndo 6 mais nada" 1' Rousseau entretanto tambdm estava convencido de que "uma verdadeira democracia jamais existiu nem existir6", pois requer muitas condigdes dificeis de serem reunidas. Em primeiro lugar um estado muito pequeno, "no qual ao povo seja f6cil reunir-se e cada cidad6o possa facilmente conhecer todos os demais"; em se- gundo lugar, "uma grande simplicidade de costumes que impega a multiplicagSo dos problemas e as discuss6es espinhosas"; a16m do mais, "uma grande igualdade de condig6es e fortunas"; por fim, "pouco ou nada de luxo" (donde se poderia deduzir que Rousseau, e ndo Marx, 6 o inspirador da polftica de "austeridade"). Lembremo-nos da conclusdo: "Se existisse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Mas um governo assim perfeito n5o 6 feito para os homens" 2. Embora tenham transcorrido mais de dois sdculos - e ques6culos!, nada mais nada menos que os sdculos das revolugSes liberais e das socialistas, os sdculos que pela primeira vez deram l. Contratto sociale, lII, 15. (Trad. bras. S5o Paulo, Abril,'Os Pensa' dores'). 2. rbid, lll, 4.
Compartilhar