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Indaial – 2020 FilosoFia da CiênCia e da Mente Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: L685f Leyser, Kevin Daniel dos Santos Filosofia da ciência e da mente. / Kevin Daniel dos Santos Leyser. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 263 p.; il. ISBN 978-65-5663-169-1 ISBN Digital 978-65-5663-170-7 1. Ciência - Filosofia. - Brasil. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 121 apresentação Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático Filosofia da Ciência e da Mente, ao ler a Unidade1 você será introduzido às noções básicas da filosofia da ciência e ao raciocínio científico. Você irá estudar sobre as questões centrais da explicação na ciência e saberá identificar os processos de mudanças científicas e os principais problemas filosóficos desta área, como compreender o realismo científico e as críticas à ciência. No primeiro tópico desta Unidade, Ciência, Filosofia da Ciência e o Raciocínio Científico, responderemos à pergunta “o que é ciência?” e neste caminho apresentaremos as origens da ciência moderna. Posteriormente, respondemos à pergunta “o que é filosofia da ciência?” e neste caminho introduziremos vários temas centrais à Filosofia da Ciência, como as discussões entre a ciência e pseudociência, o raciocínio científico, a dedução e indução, o problema de Hume, a inferência à melhor explicação e as questões de probabilidade e indução. No segundo tópico, Explicação, Realismo e Antirrealismo na Ciência, você poderá estudar sobre o modelo da lei de cobertura da explicação de Hempel e a partir deste modelo compreender o problema da simetria, da irrelevância e da explicação e causalidade na ciência. Além disso, poderá entender a diferença das posições do realismo e do antirrealismo na ciência. No terceiro tópico, Mudança científica e problemas filosóficos, vamos aprofundar as discussões sobre o legado de Thomas Kuhn na filosofia da ciência. Temas como a estrutura das revoluções científicas, a incomensurabilidade e a carga teórica dos dados e a racionalidade da ciência serão centrais para entendermos a Filosofia da Ciência. Além disso, neste tópico você poderá compreender questões da filosofia da ciência especializada ou específica, como problemas filosóficos na física e na biologia. Na Unidade 2, Filosofia da Mente I, você poderá ler sobre as noções básicas de filosofia da mente e seus problemas filosóficos, compreender os argumentos e contra-argumentos dos dualismos de substância e de propriedade e identificar as principais características do idealismo, behaviorismo e o problema de outras mentes na filosofia da mente. No primeiro tópico dessa Unidade, vamos introduzir brevemente aspectos da mente, como o pensamento e a experiência, a consciência, os qualia, a emoção, entre outros temas que serão explorados no decorrer deste Livro Didático. No segundo tópico o tema central será explorar com mais profundidade o dualismo de substância e o dualismo de propriedade na filosofia da mente. No terceiro tópico você vai ler sobre o idealismo na filosofia da mente. Serão introduzidas as perspectivas do pampsiquismo e do solipsismo. Para cada um desses posicionamentos você verá os argumentos a favor e os contra- argumentos. Além disso, você vai conhecer a abordagem behaviorista na filosofia da mente e o problema filosófico das “outras mentes”. A Unidade 3, Filosofia da Mente II, introduzirá noções básicas do funcionalismo e da causação mental, apresentará os argumentos e contra- argumentos do materialismo eliminativo e questões dos estados perceptivos, das imagens mentais e estados emocionais e permitirá que você identifique as principais características do livre-arbítrio e dos estados mentais, das teorias da intencionalidade e da representação mental. No primeiro tópico dessa Unidade, exploraremos o funcionalismo na filosofia da mente, que é a doutrina de que o que torna algo um estado mental de um tipo particular não depende de sua constituição interna, mas sim da maneira como funciona, ou do papel que desempenha, no sistema do qual é uma parte. Após estudarmos sobre o funcionalismo, vamos ver questões sobre a existência e a natureza da causalidade mental, pois estas são proeminentes nas discussões contemporâneas sobre a mente e a ação humana. No segundo tópico, o centro da discussão será o materialismo eliminativo, que é uma forma extrema de monismo fisicalista que nega a existência de qualquer coisa mental ou, mais tipicamente, de alguma gama limitada de fenômenos mentais. Além disso, vamos estudar sobre estados mentais como a percepção, a imagem mental e a emoção. Finalmente, no terceiro tópico dessa Unidade e último tópico deste Livro, vamos investigar as questões sobre o livre-arbítrio, a intencionalidade e a representação mental. Desejo uma boa jornada a todos, rumo à edificação da educação e sucesso frente aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados pelo estudo da Filosofia da Ciência e da Mente. Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser. Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. 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Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE suMário UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA ................................................................................... 1 TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO ............... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 O QUE É CIÊNCIA? ............................................................................................................................ 3 2.1 AS ORIGENS DA CIÊNCIA MODERNA ................................................................................... 4 3 O QUE É FILOSOFIA DA CIÊNCIA? ............................................................................................10 3.1 CIÊNCIA E PSEUDOCIÊNCIA .................................................................................................. 12 4 RACIOCÍNIO CIENTÍFICO ............................................................................................................ 15 4.1 DEDUÇÃO E INDUÇÃO ............................................................................................................ 15 4.2 O PROBLEMA DE HUME ........................................................................................................... 18 4.3 INFERÊNCIA À MELHOR EXPLICAÇÃO .............................................................................. 21 4.4 PROBABILIDADE E INDUÇÃO ................................................................................................ 24 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 29 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 31 TÓPICO 2 — EXPLICAÇÃO, REALISMO E ANTIRREALISMO NA CIÊNCIA .................... 33 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 33 2 MODELO DA LEI DE COBERTURA DA EXPLICAÇÃO DE HEMPEL ................................ 34 2.1 O PROBLEMA DA SIMETRIA ................................................................................................... 37 2.2 O PROBLEMA DA IRRELEVÂNCIA ........................................................................................ 39 2.3 EXPLICAÇÃO E CAUSALIDADE ............................................................................................. 39 3 A CIÊNCIA PODE EXPLICAR TUDO? ......................................................................................... 42 3.1 EXPLICAÇÃO E REDUÇÃO ...................................................................................................... 44 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 47 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 59 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 61 TÓPICO 3 — MUDANÇA CIENTÍFICA E PROBLEMAS FILOSÓFICOS .............................. 63 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 63 2 FILOSOFIA DA CIÊNCIA LÓGICO-POSITIVISTA ................................................................. 63 3 A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS ............................................................... 66 3.1 INCOMENSURABILIDADE E A CARGA TEÓRICA DOS DADOS .................................... 69 3.2 KUHN E A RACIONALIDADE DA CIÊNCIA ........................................................................ 73 3.3 O LEGADO DE KUHN ................................................................................................................ 75 4 PROBLEMAS FILOSÓFICOS EM FÍSICA E BIOLOGIA ......................................................... 77 4.1 LEIBNIZ VERSUS NEWTON SOBRE O ESPAÇO ABSOLUTO ............................................ 77 4.2 O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO BIOLÓGICA .............................................................. 83 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 88 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 90 UNIDADE 2 — FILOSOFIA DA MENTE I ..................................................................................... 91 TÓPICO 1 — ASPECTOS DA MENTE E PROBLEMAS FILOSÓFICOS .................................. 93 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 93 2 ASPECTOS DA MENTE ................................................................................................................... 93 2.1 PENSAMENTO E EXPERIÊNCIA ............................................................................................. 94 2.2 CONSCIENTE E INCONSCIENTE ............................................................................................ 94 2.3 QUALIA .......................................................................................................................................... 95 2.4 PERCEPÇÃO SENSORIAL ........................................................................................................ 95 2.5 EMOÇÃO ....................................................................................................................................... 96 2.6 IMAGENS ...................................................................................................................................... 96 2.7 VONTADE E AÇÃO ..................................................................................................................... 97 2.8 SELF ................................................................................................................................................ 97 2.9 ATITUDES PROPOSICIONAIS .................................................................................................. 97 3 PROBLEMAS FILOSÓFICOS ......................................................................................................... 99 3.1 PROBLEMA MENTE-CORPO .................................................................................................... 99 3.2 OUTROS PROBLEMAS ............................................................................................................. 102 3.2.1 O problema da percepção ................................................................................................. 102 3.2.2 O problema de outras mentes .......................................................................................... 103 3.2.3 O problema da inteligência artificial ............................................................................... 104 3.2.4 O problema da consciência............................................................................................... 105 3.2.5 O problema da intencionalidade ..................................................................................... 105 3.2.6 O problema do livre-arbítrio ............................................................................................ 106 3.2.7 O problema da identidade pessoal ................................................................................. 106 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 108 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 109 TÓPICO 2 — DUALISMO DE SUBSTÂNCIA E DE PROPRIEDADE .................................... 111 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 111 2 ARGUMENTOS PARA O DUALISMO DE SUBSTÂNCIAS ................................................. 112 2.1 ARGUMENTOS DA LEI DE LEIBNIZ .................................................................................... 112 2.1.1 Crítica aos argumentos da lei de Leibniz: falácia intencional ..................................... 115 2.2 ARGUMENTOS DO HIATO EXPLICATIVO ......................................................................... 117 2.2.1 Críticas aos argumentos do hiato explicativo ............................................................... 119 2.3 ARGUMENTOS MODAIS .........................................................................................................120 2.3.1 Crítica aos argumentos modais ....................................................................................... 121 3 INTERAÇÃO MENTE-CORPO COMO UM PROBLEMA PARA O DUALISMO DE SUBSTÂNCIAS ......................................................................................................................... 122 3.1 OBJEÇÃO DA PRINCESA ELISABETH ................................................................................. 123 3.2 AS ALTERNATIVAS DUALISTAS AO INTERACIONISMO CARTESIANO ................... 124 4 DUALISMO DE PROPRIEDADE ................................................................................................ 126 4.1 O ESPECTRO INVERTIDO ....................................................................................................... 127 4.2 ATAQUE DOS ZUMBIS ............................................................................................................. 129 4.3 O ARGUMENTO DO CONHECIMENTO .............................................................................. 131 4.4 O ARGUMENTO DO HIATO EXPLICATIVO APLICADO AO DUALISMO DE PROPRIEDADE .................................................................................................................... 133 5 O DUALISMO DE PROPRIEDADE LEVA AO EPIFENOMENALISMO? .......................... 135 6 COMO VOCÊ SABE QUE NÃO É UM ZUMBI? ....................................................................... 137 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 139 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 140 TÓPICO 3 — IDEALISMO, BEHAVIORISMO E OUTRAS MENTES .................................... 141 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 141 2 IDEALISMO, SOLIPSISMO E PAMPSIQUISMO ................................................................... 141 2.1 SOLIPSISMO: SOU APENAS EU? ........................................................................................... 142 2.2 IDEALISMO: ESTÁ TUDO NA MENTE ................................................................................. 146 2.2.1 O argumento de Berkeley da dor .................................................................................... 147 2.2.2 O argumento de Berkeley a partir da relatividade perceptiva: o balde de Berkeley .......... 148 2.2.3 O argumento central de Berkeley .................................................................................... 148 2.2.4 Por que Berkeley não é um solipsista ............................................................................. 149 2.2.5 Argumentando contra o idealismo ................................................................................. 149 2.3 PAMPSIQUISMO: A MENTE ESTÁ EM TODA PARTE....................................................... 150 2.3.1 O argumento da analogia ................................................................................................. 151 2.3.2 O argumento nada do nada ............................................................................................. 152 2.3.3 O argumento evolutivo ..................................................................................................... 153 2.3.4 Argumentando contra o pampsiquismo: o problema da combinação ...................... 153 3 BEHAVIORISMO E OUTRAS MENTES .................................................................................... 154 3.1 A HISTÓRIA DO BEHAVIORISMO ........................................................................................ 156 3.1.1 Ludwig Wittgenstein e o argumento da linguagem privada ...................................... 157 3.1.2 Gilbert Ryle contra o fantasma na máquina .................................................................. 159 3.2 OBJEÇÕES AO BEHAVIORISMO ............................................................................................ 160 3.2.1 A objeção dos qualia ........................................................................................................... 160 3.2.2 Objeção de Sellars .............................................................................................................. 161 3.2.3 A objeção de Geach-Chisholm ......................................................................................... 162 4 O PROBLEMA FILOSÓFICO DAS OUTRAS MENTES ......................................................... 163 4.1 A ASCENSÃO E QUEDA DO ARGUMENTO DA ANALOGIA ........................................ 164 4.2 NEGAÇÃO DA ASSIMETRIA ENTRE O AUTOCONHECIMENTO E O CONHECIMENTO DE OUTRAS MENTES ............................................................................ 166 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 167 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 172 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 173 UNIDADE 3 — FILOSOFIA DA MENTE II .................................................................................. 175 TÓPICO 1 — FUNCIONALISMO E CAUSAÇÃO MENTAL .................................................... 177 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 177 2 UMA BREVE HISTÓRIA DO FUNCIONALISMO .................................................................. 178 3 ARGUMENTOS A FAVOR DO FUNCIONALISMO ............................................................... 181 3.1 O ARGUMENTO CAUSAL ....................................................................................................... 181 3.2 O ARGUMENTO DA MÚLTIPLA REALIZABILIDADE ..................................................... 182 4 AS VARIEDADES DO FUNCIONALISMO............................................................................... 185 4.1 O FUNCIONALISMO DA MÁQUINA DE TURING ........................................................... 186 4.2 FUNCIONALISMO ANALÍTICO VERSUS FUNCIONALISMO EMPÍRICO ................... 187 5 ARGUMENTOS CONTRA O FUNCIONALISMO .................................................................. 188 5.1 ADAPTAÇÃO DO ARGUMENTO DOS ZUMBIS CONTRA O FUNCIONALISMO...... 188 5.2 ADAPTAÇÃO DO ARGUMENTO DO QUARTO CHINÊS CONTRA O FUNCIONALISMO .................................................................................................................... 189 6 A CAUSAÇÃO MENTAL ............................................................................................................... 191 6.1 O FECHAMENTO CAUSAL DO MUNDO FÍSICO .............................................................. 192 6.2 VISÕES BÁSICAS DA INTERAÇÃO ....................................................................................... 193 6.2.1 Interacionismo .................................................................................................................... 194 6.2.2 Paralelismo.......................................................................................................................... 194 6.2.3 Epifenomenalismo ............................................................................................................. 195 6.2.4 Reducionismo ..................................................................................................................... 196 6.3 QUALIA E EPIFENOMENALISMO ........................................................................................ 196 6.3.1 O Zimbo de Dennett .......................................................................................................... 198 6.4 MONISMO ANÔMALO ............................................................................................................199 6.5 O ARGUMENTO DA EXCLUSÃO CAUSAL-EXPLANATÓRIA ....................................... 202 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 204 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 205 TÓPICO 2 — MATERIALISMO ELIMINATIVO, PERCEPÇÃO, IMAGEM MENTAL E EMOÇÃO ................................................................................................................. 207 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 207 2 O MATERIALISMO ELIMINATIVO CONTEMPORÂNEO .................................................. 208 2.1 A PSICOLOGIA POPULAR COMO UMA TEORIA ............................................................. 209 2.2 O CONTRASTE ENTRE REDUÇÃO E ELIMINAÇÃO ........................................................ 210 2.3 MATERIALISMO ELIMINATIVO DO QUALIA ................................................................... 216 3 PERCEPÇÃO, IMAGEM MENTAL E EMOÇÃO ...................................................................... 220 3.1 PERCEPÇÃO ............................................................................................................................... 220 3.1.1 Realismo direto e o argumento da ilusão ....................................................................... 220 3.1.2 Teorias filosóficas da percepção ....................................................................................... 222 3.2 IMAGENS MENTAIS ................................................................................................................. 225 3.2.1 Quão semelhantes são as imagens mentais com outros estados mentais?................ 226 3.2.2 As imagens mentais são a base para estados mentais como os pensamentos? ........ 227 3.2.3 Até que ponto, se houver, as imagens mentais são genuinamente imaginárias ou semelhantes a fotografias? .......................................................................................... 228 3.3 EMOÇÃO ..................................................................................................................................... 230 3.3.1 O que distingue emoções de outros estados mentais? ................................................. 230 3.3.2 O que distingue emoções diferentes umas das outras? ............................................... 231 3.3.3 As dificuldades em dar uma explicação unificada das emoções ................................ 231 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 233 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 234 TÓPICO 3 — DETERMINISMO E LIVRE-ARBÍTRIO ............................................................... 235 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 235 2 FONTES DO DETERMINISMO................................................................................................... 236 2.1 DETERMINISMO FÍSICO ......................................................................................................... 238 2.2 DETERMINISMO TEOLÓGICO .............................................................................................. 238 2.3 DETERMINISMO LÓGICO....................................................................................................... 239 2.4 DETERMINISMO ÉTICO .......................................................................................................... 239 2.5 DETERMINISMO PSICOLÓGICO ........................................................................................... 240 3 COMPATIBILISMO ........................................................................................................................ 240 4 INCOMPATIBILISMO ................................................................................................................... 241 4.1 O ARGUMENTO DA ORIGEM OU DA CADEIA CAUSAL ............................................... 242 4.2 O ARGUMENTO DA CONSEQUÊNCIA ............................................................................... 243 5 O LIVRE-ARBÍTRIO ....................................................................................................................... 244 5.1 O QUE É O ARBÍTRIO? ............................................................................................................. 244 5.2 EM QUE CONSISTE O “LIVRE” DO ARBÍTRIO? ................................................................. 246 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 249 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 256 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 258 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 259 1 UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • introduzir as noções básicas de filosofia da ciência e raciocínio científico; • apresentar as questões centrais da explicação na ciência; • identificar os processos de mudanças científicas e os principais problemas filosóficos; • compreender o realismo científico e as críticas à ciência. Esta unidade está dividida em três tópicos e, no fim de cada um deles, você encontrará autoatividades que reforçarão o seu aprendizado. TÓPICO 1 – CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO TÓPICO 2 – EXPLICAÇÃO, REALISMO E ANTIRREALISMO NA CIÊNCIA TÓPICO 3 – MUDANÇA CIENTÍFICA E PROBLEMAS FILOSÓFICOS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 — UNIDADE 1 CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, neste primeiro tópico, é preciso se concentrar na proposta de uma introdução à investigação filosófica da ciência. Para isso, primeiramente, elucidaremos o próprio objeto dessa investigação: o que é a ciência? A seguir, levantaremos a reflexão sobre os problemas ou questões que perfazem o trabalho de filosofar sobre a ciência, apresentando, assim, os temas que serão explorados no decorrer desta primeira unidade. Finalmente, apresentaremos as principais formulações da questão do raciocínio científico, além da centralidade desse tema para a filosofia da ciência. Muito bem, você está pronto? Então, vamos lá! 2 O QUE É CIÊNCIA? O que é ciência? Essa pergunta pode parecer fácil de responder: todo mundo sabe que assuntos como física, química e biologia constituem ciência, enquanto assuntos como arte, música e teologia não. Como filósofos, perguntamos o que é ciência, mas esse não é o tipo de resposta que queremos. Não estamos pedindo uma mera lista das atividades que, geralmente, são chamadas de "ciência". Estamos perguntando qual característica comum todas as coisas, nessa lista, compartilham, ou seja, o que é que faz de algo uma ciência? Assim, nossa questão não é tão trivial. Você ainda pode pensar que a questão é relativamente simples. Certamente, a ciência é apenas a tentativa de entender, explicar e prever o mundo em que vivemos. É, certamente, uma resposta razoável, mas será que é apenas isso? Afinal, várias religiões também tentam entender e explicaro mundo, mas a religião não é, geralmente, considerada um ramo da ciência. Da mesma forma, astrologia e adivinhação são tentativas de prever o futuro, mas a maioria das pessoas não descreveria essas atividades como ciência. Os historiadores tentam entender e explicar o que aconteceu no passado, mas a história não é, geralmente, classificada como ciência. Tal como acontece com muitas questões filosóficas, a questão "o que é ciência?" acaba por ser mais complicada do que parece à primeira vista (FRENCH, 2009). UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 4 Muitas pessoas acreditam que as características distintivas da ciência estão nos métodos específicos que os cientistas usam para investigar o mundo. Essa sugestão é plausível. Muitas ciências empregam métodos distintos de uma investigação que não são encontrados em disciplinas não científicas. Um exemplo óbvio é o uso de experimentos, que, historicamente, marcam um ponto de virada no desenvolvimento da ciência moderna. Nem todas as ciências são experimentais – os astrônomos, obviamente, não podem fazer experimentos nos céus, mas têm que se contentar com a observação cuidadosa. O mesmo acontece com muitas ciências sociais. Outra característica importante da ciência é a construção de teorias. Os cientistas não registram, simplesmente, os resultados da experiência e da observação em um diário de bordo – eles, geralmente, querem explicar esses resultados em termos de uma teoria geral. Isso nem sempre é fácil de fazer, mas existiram alguns sucessos notáveis. Um dos principais problemas da filosofia da ciência é entender as técnicas como experimentação, observação e construção de teorias que permitiram, ao cientista, desvendar muitos dos segredos da natureza (CHALMERS, 1993). 2.1 AS ORIGENS DA CIÊNCIA MODERNA Nas escolas e universidades de hoje, a ciência é ensinada de uma maneira basicamente a-histórica. Os livros didáticos, apresentam as ideias- chave de uma disciplina científica da forma mais conveniente possível, com pouca menção ao longo e muitas vezes tortuoso processo histórico que levou à sua descoberta. Como estratégia pedagógica, isso faz sentido. Mas alguma apreciação da história das ideias científicas é útil para entender as questões que interessam aos filósofos da ciência. De fato, como veremos mais adiante neste livro, argumenta-se que a atenção à história da ciência é indispensável para fazer uma boa filosofia da ciência. As origens da ciência moderna estão em um período de rápido desenvolvimento científico que ocorreu na Europa entre os anos de 1500 e 1750. Agora, referimo-nos como a revolução científica (ROSA, 2012b). É claro que as investigações científicas foram realizadas nos tempos antigos e medievais, também, a Revolução Científica não veio do nada. Nesses períodos anteriores, a visão de mundo dominante era o aristotelismo, em homenagem ao antigo filósofo grego Aristóteles, que apresentou teorias detalhadas em física, biologia, astronomia e cosmologia (ROSA, 2012a). Todavia, as ideias de Aristóteles pareceriam muito estranhas para um cientista moderno, assim como seus métodos de investigação. Para escolher apenas um exemplo, ele acreditava que todos os corpos terrestres são compostos de apenas quatro elementos: terra, fogo, ar e água (ARISTÓTELES, 2009). Essa visão está obviamente em desacordo com o que a química moderna nos diz. TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 5 O primeiro passo crucial no desenvolvimento da visão científica moderna do mundo foi a revolução copernicana. Em 1542, o astrônomo polonês Nicolaus Copernicus (1473-1543) publicou um livro atacando o modelo geocêntrico do universo, que colocou a terra estacionária no centro do universo com os planetas e o sol em órbita ao redor. A astronomia geocêntrica, também conhecida como astronomia ptolomaica, em homenagem ao antigo astrônomo grego Ptolomeu, estava no coração da visão de mundo aristotélica, e passou praticamente inquestionável por 1.800 anos (ROSA, 2012a). Contudo, Copernicus sugeriu uma alternativa: o sol era o centro fixo do universo, e os planetas, incluindo a Terra, estavam em órbita ao redor do sol. FIGURA 1 – PLANISPHAERIUM COPERNICANUM, ANDREAS CELLARIUS - 1660 (SISTEMA PLANETÁRIO HELIOCÊNTRICO DE COPERNICUS) FONTE: <https://images.app.goo.gl/vMK59fjZq1BdX2NP8>. Acesso em: 27 jul. 2020. Nesse modelo heliocêntrico, a Terra é considerada apenas um outro planeta e, portanto, perde o status único que a tradição lhe concedeu. A teoria de Copernicus encontrou, inicialmente, muita resistência. A Igreja Católica, por exemplo, a considerou como contrária às Escrituras. Em 1616, proibiram livros que defendiam o movimento da Terra, mas, dentro de 100 anos, o copernicanismo se tornou ortodoxia científica estabelecida. A inovação de Copernicus não levou, apenas, a uma melhor astronomia. Indiretamente, levou ao desenvolvimento da física moderna, através do trabalho de Johannes Kepler (1571-1630) e Galileu Galilei (1564-1642). Kepler descobriu que os planetas não se movem em órbitas circulares ao redor do sol, como Copernicus pensava, mas sim, em elipses. Essa foi sua "primeira lei" crucial do movimento planetário; sua segunda e terceira lei especificam as velocidades nas quais os planetas orbitam o sol (ROSA, 2012b). UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 6 Tomadas em conjunto, as leis de Kepler forneceram uma teoria planetária muito superior à que já havia sido avançada antes, resolvendo problemas que haviam confundido os astrônomos por séculos. Galileu era um defensor do copernicanismo por toda a vida, um dos primeiros pioneiros do telescópio. Quando ele apontou seu telescópio para o céu, fez uma riqueza de descobertas surpreendentes, incluindo montanhas na lua, uma vasta gama de estrelas, manchas solares e as luas de Júpiter (GEYMONAT, 1997). Tudo isso conflitava profundamente com a cosmologia aristotélica, e desempenhou um papel crucial na conversão da comunidade científica ao copernicanismo. A contribuição mais duradoura de Galileu, no entanto, não estava na astronomia, mas na mecânica. Ele refutou a teoria aristotélica de que corpos mais pesados caem mais rápido do que os mais leves. No lugar dessa teoria, Galileu fez a sugestão contraintuitiva de que todos os corpos em queda livre cairiam em direção à Terra no mesmo tempo de queda, com aceleração constante, independentemente do seu peso. Claro que, na prática, se você soltar uma pena e uma bala de canhão da mesma altura, a bala de canhão aterrissará primeiro, mas Galileu argumentou que isso se deve, simplesmente, à resistência do ar, pois, no vácuo, aterrissariam juntos. Além disso, ele argumentou que os corpos que caem livremente aceleram uniformemente, ou seja, ganham incrementos iguais de velocidade em tempos iguais; isso é conhecido como Lei da Queda dos Corpos de Galileu (MARICONDA; VASCONCELOS, 2006). Galileu forneceu evidências persuasivas, embora não totalmente conclusivas para essa lei, que formava a peça central da sua teoria da mecânica. FIGURA 2 – O EXPERIMENTO DE GALILEU NA TORRE INCLINADA DE PISA SOBRE A VELOCIDADE DE QUEDA DOS OBJETOS FONTE: http://4.bp.blogspot.com/-MhuUlTqcSgU/UpziERepkLI/AAAAAAAAExE/s-KzZHEfaHk/ s400/galileo+falling+objects.gif . Acesso em: 27 jul. 2020. TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 7 Galileu é, geralmente, considerado o primeiro físico verdadeiramente moderno. Ele foi o primeiro a mostrar que a linguagem da matemática poderia ser usada para descrever o comportamento de objetos reais no mundo material, como corpos em queda, projéteis etc. Para nós, isso parece óbvio, pois as teorias científicas atuais são rotineiramente formuladas em linguagemmatemática, não só na ciência física, mas também na biologia e na economia (MARICONDA; VASCONCELOS, 2006). Todavia, nos tempos de Galileu, isso não era óbvio: a matemática era amplamente considerada para lidar com entidades puramente abstratas e, portanto, inaplicável à realidade física. Outro aspecto inovador do trabalho de Galileu foi sua ênfase na importância de testar hipóteses experimentalmente (ROSA, 2012b). Para o cientista moderno, isso pode parecer novamente óbvio, mas, na época em que Galileu estava trabalhando, a experimentação não era, geralmente, considerada um meio confiável de obter conhecimento. A ênfase de Galileu nos testes experimentais marca o início de uma abordagem empírica para o estudo da natureza. O período após a morte de Galileu viu a revolução científica ganhar rapidamente impulso. O filósofo, matemático e cientista francês René Descartes (1596-1650) desenvolveu uma nova "filosofia mecânica" radical, segundo a qual o mundo físico consiste, simplesmente, de partículas inertes de matéria interagindo e colidindo umas com as outras. As leis que governam o movimento dessas partículas ou "corpúsculos" detinham a chave para entender a estrutura do universo copernicano, acreditava Descartes (BROUGHTON; CARRIERO, 2011). A filosofia mecânica prometia explicar todos os fenômenos observáveis em termos do movimento desses corpúsculos inertes e insensíveis e, rapidamente, tornou-se a visão científica dominante da segunda metade do século XVII; até certo ponto, ainda está conosco hoje. Versões da filosofia mecânica foram adotadas por pessoas como Christiaan Huygens, Pierre Gassendi, Robert Hooke, Robert Boyle e outras (ROSA, 2012a; 2012b). Sua ampla aceitação marcou a queda final da visão de mundo aristotélica. A revolução científica culminou no trabalho de Isaac Newton (1643-1727), cujas realizações permanecem sem paralelo na história da ciência. A obra-prima de Newton foi seus Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, publicada em 1687. Newton concordou com os filósofos mecânicos, que o universo consiste, simplesmente, de partículas em movimento, mas procurou melhorar as leis de movimento de Descartes e as regras de colisão (NEWTON, 2004). O resultado foi uma teoria dinâmica e mecânica de grande potência, baseada nas três leis do movimento de Newton e seu famoso princípio da gravitação universal. De acordo com esse princípio, todo corpo no universo exerce uma atração gravitacional sobre todos os outros corpos; a força da atração entre dois corpos depende do produto de suas massas e da distância entre eles ao quadrado. As leis do movimento, então, especificam como essa força gravitacional afeta os movimentos dos corpos. UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 8 Newton elaborou sua teoria com grande precisão matemática e rigor, inventando a técnica matemática que hoje chamamos de "cálculo". Surpreendentemente, Newton foi capaz de mostrar que as leis do movimento planetário de Kepler e as leis da queda dos corpos de Galileu (ambas com algumas pequenas modificações) eram consequências lógicas de suas leis de movimento e gravitação (GLEICK, 2004). Em outras palavras, as mesmas leis explicariam os movimentos de corpos nos domínios terrestre e celestial, e foram formuladas por Newton em uma forma quantitativa precisa. A física newtoniana forneceu a estrutura da ciência para os próximos 200 anos, substituindo, rapidamente, a física cartesiana. A confiança científica cresceu rapidamente nesse período, em grande parte, devido ao sucesso da teoria de Newton. Acreditava-se, amplamente, ter revelado o verdadeiro funcionamento da natureza e ser capaz de explicar tudo, pelo menos em princípio (ROSA, 2012b; 2012c). Tentativas detalhadas foram feitas, para estender o modo de explicação newtoniano a mais e mais fenômenos. Nos séculos XVIII e XIX vieram avanços científicos notáveis, particularmente, no estudo da química, óptica, energia, termodinâmica e eletromagnetismo. Contudo, na maior parte, esses desenvolvimentos foram considerados dentro de uma concepção amplamente newtoniana do universo. Os cientistas aceitaram a concepção de Newton como essencialmente correta; tudo o que restava para ser feito era preencher os detalhes. A confiança no quadro newtoniano foi abalada nos primeiros anos do século XX, graças a dois novos e revolucionários desenvolvimentos da física: a teoria da relatividade e a mecânica quântica. A teoria da relatividade, descoberta por Einstein, mostrou que a mecânica newtoniana não dá os resultados corretos, quando aplicada a objetos muito massivos, ou objetos que se movem a velocidades muito altas. A mecânica quântica, inversamente, mostra que a teoria newtoniana não funciona quando aplicada em escala muito pequena, a partículas subatômicas (ROSA, 2012d). Tanto a teoria da relatividade, quanto a mecânica quântica, especialmente a última, são teorias muito estranhas e radicais, fazendo afirmações sobre a natureza da realidade que muitas pessoas acham difícil aceitar ou, até mesmo, entender. Seu surgimento causou uma considerável reviravolta conceitual na física, que continua até hoje. Até agora, nosso breve relato da história da ciência enfocou, principalmente, a física. Isso não é um acidente, já que a física é historicamente muito importante e, em certo sentido, a mais fundamental de todas as disciplinas científicas, pois os objetos que outras ciências estudam são, eles próprios, compostos de entidades físicas. Considere botânica, por exemplo. Os botânicos estudam as plantas, que são compostas, basicamente, de moléculas e átomos, que são partículas físicas. Portanto, a botânica é, obviamente, menos fundamental do que a física, embora isso não signifique que seja menos importante. Esse é um ponto ao qual retornaremos mais adiante. Contudo, mesmo uma breve descrição das origens da ciência moderna seria incompleta se omitisse toda menção às ciências não físicas. TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 9 Em biologia, o evento que se destaca é a descoberta da teoria da evolução por seleção natural de Charles Darwin (2004), publicada na obra A Origem das Espécies, de 1859. Até então, acreditava-se, amplamente, que as diferentes espécies haviam sido criadas separadamente por Deus, como o Livro de Gênesis ensina. Contudo, Darwin argumentou que as espécies contemporâneas realmente evoluíram dos ancestrais, através de um processo conhecido como seleção natural. A seleção natural ocorre quando alguns organismos deixam mais descendentes do que outros, dependendo das suas características físicas; se essas características forem herdadas por seus descendentes, ao longo do tempo, a população se tornará cada vez mais adaptada ao seu meio ambiente. Por mais simples que seja esse processo, ao longo de muitas gerações, pode fazer com que uma espécie evolua para uma espécie totalmente nova, argumentou Darwin. Tão persuasiva foi a evidência que Darwin alegou para sua teoria que, no início do século XX, ela era aceita como ortodoxia científica, apesar da considerável oposição teológica. O trabalho subsequente forneceu uma confirmação impressionante da teoria de Darwin, que constitui a peça central da visão biológica moderna do mundo (ROSA, 2012d). O século XX testemunhou outra revolução na biologia, que ainda não está completa: o surgimento da biologia molecular, em particular, a genética molecular. Em 1953, Watson e Crick descobriram a estrutura do DNA, o material hereditário que forma os genes nas células das criaturas vivas (FERREIRA, 2003). A descoberta de Watson e Crick explicou como a informação genética pode ser copiada de uma célula para outra e, portanto, transmitida dos paispara os descendentes, explicando, assim, por que os descendentes tendem a se assemelhar aos pais. Sua descoberta abriu uma excitante nova área de pesquisa biológica. Nos 50 anos desde o trabalho de Watson e Crick, a biologia molecular cresceu rapidamente, transformando nossa compreensão da herança e de como os genes constroem organismos. A recente tentativa de fornecer uma descrição em nível molecular do conjunto completo de genes em um ser humano, conhecido como Projeto Genoma Humano, é uma indicação de até onde a biologia molecular chegou. O século XXI vai ver mais desenvolvimentos interessantes nesse campo. UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 10 FIGURA 3 – JAMES WATSON E FRANCIS CRICK COM A FAMOSA “DUPLA HÉLICE” - SEU MODELO MOLECULAR DA ESTRUTURA DO DNA, DESCOBERTO EM 1953 FONTE: https://f.i.uol.com.br/folha/ilustrissima/images/14024474.jpeg . Acesso em: 27 jul. 2020. Mais recursos foram dedicados à pesquisa científica nos últimos 100 anos do que os séculos anteriores somados juntos. Um resultado foi uma explosão de novas disciplinas científicas, como ciência da computação, inteligência artificial, linguística e neurociência. Possivelmente, o evento mais significativo dos últimos 30 anos é o surgimento da ciência cognitiva, que estuda vários aspectos da cognição humana, como percepção, memória, aprendizagem e raciocínio, e transformou a psicologia tradicional. Grande parte do ímpeto para a ciência cognitiva vem da ideia de que a mente humana é, em alguns aspectos, semelhante a um computador e, portanto, que os processos mentais humanos podem ser compreendidos, comparando-os às operações que os computadores realizam. A ciência cognitiva ainda está em sua infância, mas promete revelar muito sobre o funcionamento da mente. As ciências sociais, especialmente, a economia e a sociologia, também floresceram no século XX, embora muitas pessoas acreditem que ainda estão atrás das ciências naturais em termos de sofisticação e rigor (ECHEVERRÍA, 2003). Essa é uma questão à qual retornaremos mais adiante neste livro. 3 O QUE É FILOSOFIA DA CIÊNCIA? A principal tarefa da filosofia da ciência é analisar os métodos de pesquisa usados em várias ciências. Você pode se perguntar: por que essa tarefa deveria recair sobre os filósofos, e não para os próprios cientistas? Essa é uma boa pergunta. Parte da resposta é que olhar para a ciência a partir de uma perspectiva filosófica permite investigar, mais profundamente, para descobrir suposições que estão implícitas na prática científica, mas que os cientistas não discutem explicitamente (FRENCH, 2009). TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 11 Para ilustrar, considere a experimentação científica. Suponha que um cientista faça uma experiência e obtenha um resultado específico. Ele repete o experimento algumas vezes e continua recebendo o mesmo resultado. Depois disso, ele, provavelmente, parará, confiante de que, se continuar repetindo o experimento, sob as mesmas condições, continuaria obtendo o mesmo resultado. Essa suposição pode parecer óbvia, mas, como filósofos, queremos questioná-la. Por que supor que as futuras repetições do experimento produzirão o mesmo resultado? Como sabemos que isso é verdade? É improvável que o cientista passe muito tempo intrigado com essas questões um tanto curiosas: ele, provavelmente, tem coisas melhores para fazer. São questões essencialmente filosóficas, às quais retornamos adiante. Assim, parte do trabalho da filosofia da ciência é questionar suposições que os cientistas tomam como certas. Contudo, seria errado sugerir que os cientistas nunca discutem questões filosóficas. De fato, historicamente, muitos cientistas têm desempenhado um papel importante no desenvolvimento da filosofia da ciência (WEINERT, 2005). Descartes, Newton e Einstein são exemplos proeminentes. Cada um deles estava profundamente interessado em questões filosóficas, sobre como a ciência deveria proceder, quais os métodos de investigação deveriam usar, quanta confiança deveríamos depositar nesses métodos, se há limites para o conhecimento científico, e assim por diante. Como veremos, essas questões ainda estão no centro da filosofia da ciência contemporânea. Assim, as questões que interessam aos filósofos da ciência não são "meramente filosóficas"; pelo contrário, atraíram a atenção de alguns dos maiores cientistas de todos. Dito isso, deve-se admitir que muitos cientistas, hoje, têm pouco interesse em filosofia da ciência e sabem pouco sobre isso. Embora isso seja lamentável, não é uma indicação de que questões filosóficas não são mais relevantes. Pelo contrário, é uma consequência da natureza cada vez mais especializada da ciência e da polarização entre as ciências e as humanidades, caracterizando o sistema educacional moderno. Você ainda pode estar se perguntando, exatamente, o que é filosofia da ciência? Dizer que "estuda os métodos da ciência", como fizemos, não é, realmente, dizer muito. Em vez de tentar fornecer uma definição mais informativa, é preciso prosseguir em frente para considerar um problema típico da filosofia da ciência. Um excelente livro introdutório sobre a Filosofia da Ciência é Ciência: conceito- chave em filosofia, de Steven French (2009). Essa obra faz parte da coleção conceitos- chave em filosofia, uma série de introduções concisas, acessíveis e interessantes às ideias centrais e aos temas encontrados no estudo da filosofia. DICAS UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 12 3.1 CIÊNCIA E PSEUDOCIÊNCIA Lembre-se da questão com a qual começamos: o que é ciência? Karl Popper (1902-1994), um filósofo da ciência influente do século XX, achava que a característica fundamental de uma teoria científica é que ela deveria ser falsificável (POPPER, 2001). Chamar uma teoria de falsificável não quer dizer que seja falsa. Pelo contrário, isso significa que a teoria faz algumas previsões definidas que são capazes de serem testadas contra a experiência. Se essas previsões se revelarem erradas, então, a teoria foi falsificada ou refutada. Assim, uma teoria falsificável é uma que podemos descobrir ser falsa, não é compatível com todos os possíveis cursos de experiência. Popper (2008) achava que algumas teorias supostamente científicas não satisfaziam essa condição, portanto, não mereciam ser chamadas de ciência, ao contrário, elas eram, meramente, pseudociência. A teoria psicanalítica de Freud foi um dos exemplos favoritos de pseudociência de Popper. De acordo com Popper (1987), a teoria de Freud poderia ser reconciliada com quaisquer descobertas empíricas. Qualquer que seja o comportamento de um paciente, os freudianos poderiam encontrar uma explicação em termos de sua teoria; eles nunca admitiriam que sua teoria estava errada. Popper ilustrou seu argumento com o seguinte exemplo: imagine um homem que empurra uma criança para um rio com a intenção de assassiná-la, e outro homem que sacrifica sua vida para salvar a criança. Os freudianos podem explicar o comportamento de ambos os homens com igual facilidade: o primeiro foi reprimido e, o segundo, alcançou a sublimação. Popper argumentou que, através do uso de conceitos como repressão, sublimação e desejos inconscientes, a teoria de Freud poderia ser tornada compatível com quaisquer dados clínicos; era, portanto, infalsificável. O mesmo aconteceu com a teoria da história de Marx, sustentou Popper (1974). Marx afirmou que, nas sociedades industrializadas em todo o mundo, o capitalismo daria lugar ao socialismo e, finalmente, ao comunismo. Todavia, quando isso não aconteceu, em vez de admitir que a teoria de Marx estava errada, os marxistas inventariam uma explicação ad hoc, para explicar que o motivo sobre o que aconteceu era, na verdade, perfeitamenteconsistente com sua teoria. Por exemplo, eles podem dizer que o inevitável progresso no comunismo foi temporariamente retardado pela ascensão do estado de bem-estar social, que "amoleceu" o proletariado e enfraqueceu seu zelo revolucionário. Nesse tipo de caminho, a teoria de Marx poderia ser compatível com qualquer curso possível de eventos, assim como o de Freud. Portanto, nenhuma dessas teorias se qualifica como genuinamente científica, segundo o critério de Popper. Popper contrastou as teorias de Freud e Marx com a teoria da gravitação de Einstein, também conhecida como relatividade geral. Diferentemente das teorias de Freud e Marx, a teoria de Einstein fez uma previsão bem definida: que raios de luz de estrelas distantes seriam desviados pelo campo gravitacional do TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 13 sol. Normalmente, esse efeito seria impossível de observar, exceto durante um eclipse solar. Em 1919, o astrofísico inglês Sir Arthur Eddington organizou duas expedições para observar o eclipse solar daquele ano, uma para o Brasil e outra para a ilha do Príncipe, ao largo da costa atlântica da África, com o objetivo de testar a previsão de Einstein. A expedição confirmou que aquela luz das estrelas foi, de fato, defletida pelo sol, quase, exatamente, a quantidade que Einstein tinha previsto. Popper ficou muito impressionado com isso (OLIVEIRA, 2012). A teoria de Einstein fez uma previsão precisa e definida, que foi confirmada pelas observações. Se aqueles raios de luz de estrelas não tivessem sido desviados pelo sol, isso teria mostrado que Einstein estava errado. Então, a teoria de Einstein satisfaz o critério da falseabilidade. A tentativa de Popper de demarcar a ciência da pseudociência é, intuitivamente, plausível. Há, certamente, algo suspeito sobre uma teoria que pode ser feita para se ajustar a qualquer dado empírico, mas alguns filósofos consideram o critério de Popper excessivamente simplista (BUNGE, 2007; HAACK, 2014). Popper criticou os freudianos e marxistas por esclarecerem quaisquer dados que parecessem entrar em conflito com suas teorias, em vez de aceitar que as teorias haviam sido refutadas. Isso, certamente, parece um procedimento suspeito. No entanto, há algumas evidências de que esse mesmo procedimento é rotineiramente usado por cientistas "respeitáveis" – que Popper não gostaria de acusar de se engajar em pseudociência – e levou a importantes descobertas científicas. Outro exemplo astronômico pode ilustrar isso. A teoria gravitacional de Newton, que mencionamos anteriormente, fez previsões sobre os caminhos que os planetas deveriam seguir enquanto orbitam o sol. Na maior parte, essas previsões foram confirmadas pela observação. No entanto, a órbita observada de Urano consistentemente diferiu do que a teoria de Newton previu. Esse enigma foi resolvido em 1846, por dois cientistas, Adams, na Inglaterra, e Leverrier, na França, trabalhando de forma independente (FRIANÇA et al., 2008). Eles sugeriram que havia outro planeta, ainda não descoberto, exercendo uma força gravitacional adicional sobre Urano. Adams e Leverrier foram capazes de calcular a massa e posição que esse planeta teria que ter se a atração gravitacional fosse, de fato, responsável pelo estranho comportamento de Urano. Pouco depois, o planeta Netuno foi descoberto, quase exatamente onde Adams e Leverrier haviam previsto. Agora, claramente, não devemos criticar o comportamento de Adams e Leverrier como "não científico", afinal, isso levou à descoberta de um novo planeta, mas eles fizeram exatamente o que Popper criticou os marxistas por fazerem. Eles começaram com uma teoria, a teoria da gravitação de Newton, com uma previsão incorreta sobre a órbita de Urano. Em vez de concluir que a teoria de Newton deveria estar errada, insistiram na teoria e tentaram explicar as observações conflitantes postulando um novo planeta. Da mesma forma, quando o capitalismo não mostrou sinais de dar lugar ao comunismo, UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 14 os marxistas não concluíram que a teoria de Marx deveria estar errada, mas se ativeram à teoria e tentaram explicar as observações conflitantes de outras maneiras. Então, certamente, seria injusto acusar os marxistas de se engajarem em pseudociência se permitir que a ação de Adams e Leverrier contasse como ciência boa e exemplar. Isso sugere que a tentativa de Popper de demarcar a ciência da pseudociência não pode estar certa, apesar da sua plausibilidade inicial, pois o exemplo de Adams e Leverrier não é, de forma alguma, atípico. Em geral, os cientistas, simplesmente, não abandonam suas teorias sempre que entram em conflito com os dados observacionais. Geralmente, eles procuram maneiras de eliminar o conflito sem ter que desistir da sua teoria (WEINERT, 2005). Esse é um ponto para o qual retornaremos em outro tópico, mas vale a pena lembrar que, praticamente, toda teoria da ciência entra em conflito com algumas observações: encontrar uma teoria que se encaixe perfeitamente em todos os dados é extremamente difícil. Obviamente, se uma teoria persistentemente conflitar com mais e mais dados, e nenhuma maneira plausível de explicar o conflito for encontrada, eventualmente, terá que ser rejeitada, mas pouco progresso seria feito se os cientistas abandonassem suas teorias ao primeiro sinal de problema. O fracasso do critério de demarcação de Popper levanta uma questão importante: É possível encontrar alguma característica comum compartilhada por todas as coisas que chamamos de "ciência" e não compartilhada por qualquer outra coisa? Popper assumiu que a resposta a essa pergunta era sim. Ele achava que as teorias de Freud e Marx eram, claramente, não científicas, então, deve haver alguma característica que falta e que as teorias científicas genuínas possuam. Contudo, se aceitamos ou não a avaliação negativa de Freud e Marx feita por Popper, sua suposição de que a ciência tem uma "natureza essencial" é questionável. Afinal, a ciência é uma atividade heterogênea, abrangendo uma ampla gama de diferentes disciplinas e teorias. Pode ser que elas compartilhem alguns padrões definidos que definem o que é uma ciência, mas pode ser que isso não seja o caso. O filósofo Ludwig Wittgenstein (1979) argumentou que não há um conjunto fixo de características que definam o que é ser um "jogo". Em vez disso, há um conjunto de recursos que a maioria é possuído pelos jogos. Contudo, qualquer jogo, em particular, pode não ter nenhum dos recursos do aglomerado e, ainda, ser um jogo. Ele pode ser uma verdade da ciência. Se assim for, um critério simples para demarcar a ciência da pseudociência é improvável de ser encontrado. TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 15 4 RACIOCÍNIO CIENTÍFICO Os cientistas, frequentemente, dizem coisas sobre o mundo que, de outra forma, não teríamos acreditado. Por exemplo, os biólogos dizem que somos parentes próximos dos chimpanzés, os geólogos dizem que a África e a América do Sul eram um único continente, e os cosmólogos dizem que o universo está se expandindo, mas, como os cientistas chegaram a essas conclusões improváveis? Afinal, ninguém nunca viu uma espécie evoluir de outra, ou um único continente dividido em dois, ou o universo ficando maior. A resposta, é claro, é que os cientistas chegaram a essas crenças por um processo de raciocínio ou inferência (HACKING, 2009). Seria bom saber mais sobre esse processo. Qual é, exatamente, a natureza do raciocínio científico? Quanta confiança devemos colocar nas inferências que os cientistas fazem? Esses são ostemas para este tópico. 4.1 DEDUÇÃO E INDUÇÃO Os lógicos fazem uma importante distinção entre os padrões de raciocínio dedutivo e indutivo (MURCHO, 2003). Um exemplo de um raciocínio dedutivo, ou inferência dedutiva, é o seguinte: “todos os franceses gostam de vinho tinto”; Pierre é um francês; → Portanto, Pierre gosta de vinho tinto. As duas primeiras afirmações são chamadas de premissas da inferência, enquanto a terceira é chamada de conclusão. Ela é uma inferência dedutiva, porque tem a seguinte propriedade: se as premissas são verdadeiras, então, a conclusão também deve ser verdadeira. Em outras palavras, se é verdade que todo francês gosta de vinho tinto, e se é verdade que Pierre é francês, conclui-se que Pierre, realmente, gosta de vinho tinto. Isso, às vezes, é expresso dizendo que as premissas da inferência implicam a conclusão. É claro que as premissas dessa inferência quase, certamente, não são verdadeiras, pois é provável que existam franceses que não gostem de vinho tinto, mas essa não é a questão. O que torna a inferência dedutiva é a existência de uma relação apropriada entre premissas e conclusão, ou seja, se as premissas são verdadeiras, a conclusão também deve ser verdadeira. Se as premissas são, realmente, verdadeiras, é um assunto diferente, o que não afeta o status da inferência como dedutiva. Nem todas as inferências são dedutivas. Considere o exemplo a seguir: os primeiros cinco ovos na caixa estavam podres; todos os ovos têm a mesma data de validade estampada; → Portanto, o sexto ovo também estará podre. UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 16 Isso parece um raciocínio perfeitamente sensato, no entanto, não é dedutivo, pois as premissas não implicam a conclusão. Mesmo que os primeiros cinco ovos estivessem estragados, e mesmo se todos os ovos tivessem a mesma data de validade estampada, isso não garante que o sexto ovo também esteja podre. É perfeitamente concebível que o sexto ovo esteja perfeitamente bom. Em outras palavras, é logicamente possível que as premissas dessa inferência sejam verdadeiras e, ainda assim, a conclusão é falsa, de modo que a inferência não é dedutiva. Em vez disso, há uma inferência indutiva. Na inferência indutiva, ou no raciocínio indutivo, passamos de premissas sobre objetos que examinamos para conclusões sobre objetos que não examinamos, no exemplo, os ovos. O raciocínio dedutivo é uma atividade muito mais segura do que o raciocínio indutivo (MURCHO, 2003). Quando raciocinamos dedutivamente, podemos ter a certeza de que, se começarmos com premissas verdadeiras, acabaremos com uma conclusão verdadeira, mas isso não vale para o raciocínio indutivo. Pelo contrário, o raciocínio indutivo é capaz de nos levar das premissas verdadeiras a uma conclusão falsa. Apesar desse defeito, parecemos confiar no raciocínio indutivo ao longo das nossas vidas, muitas vezes, sem, sequer, pensar nisso. Por exemplo, quando você liga o computador pela manhã, tem certeza de que ele não vai explodir na sua cara. Sabe o porquê? Porque você liga o seu computador todas as manhãs e ele nunca explodiu na sua cara até o momento. Contudo, a inferência de “até o momento, meu computador não explodiu quando eu liguei” para “meu computador não vai explodir quando eu o ligar nesse momento” é indutiva, não dedutiva. A premissa dessa inferência não implica tal conclusão. É logicamente possível que o seu computador explodirá dessa vez, mesmo que nunca tenha feito isso anteriormente. Outros exemplos de raciocínio indutivo na vida cotidiana podem ser facilmente encontrados. Quando você gira o volante do seu carro no sentido anti- horário, você assume que o carro vai para a esquerda, e não para a direita. Sempre que você dirige no trânsito, você, efetivamente, aposta sua vida nessa suposição, mas o que te faz tão certo de que é verdade? Se alguém lhe pedisse para justificar o seu juízo, o que você diria? A menos que você seja mecânico, provavelmente, responderia: “toda vez que virei o volante no sentido anti-horário no passado, o carro foi para a esquerda. Portanto, o mesmo acontecerá quando eu girar o volante no sentido anti-horário dessa vez”. Novamente, essa é uma inferência indutiva, não dedutiva. Raciocinar indutivamente parece ser uma parte indispensável da vida cotidiana. Os cientistas também usam o raciocínio indutivo? A resposta parece ser “sim”. Considere a doença genética conhecida como Síndrome de Down (SD). Os geneticistas dizem que as pessoas com SD têm um cromossomo adicional – eles têm 47 em vez dos 46 normais (PASTERNAK, 2002). Como eles sabem disso? A resposta, claro, é que eles examinaram um número elevado de pacientes com SD e descobriram que cada um tinha um cromossomo adicional. TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 17 Eles, então, raciocinaram indutivamente para a conclusão de que todos os portadores de SD, incluindo aqueles que não haviam examinado, tinham um cromossomo adicional. É fácil observar que essa inferência é indutiva. O fato de que as pessoas com SD na amostra estudada tinham 47 cromossomos não prova que todas as pessoas com SD o tenham. É possível, embora improvável, que a amostra não seja representativa. Esse exemplo não é, de forma alguma, isolado. Com efeito, os cientistas usam o raciocínio indutivo sempre que passam de dados limitados para conclusão mais geral, o que eles fazem o tempo todo. Considere, por exemplo, o princípio da gravitação universal de Newton (ROSA, 2012d), relatado anteriormente, que diz que cada corpo no universo exerce uma atração gravitacional sobre todos os outros corpos. Agora, obviamente, Newton não chegou a esse princípio examinando cada corpo em todo o universo, não poderia ter feito isso. Em vez disso, ele viu que o princípio era verdadeiro para os planetas e o sol, e para objetos de vários tipos se movendo perto da superfície da Terra. A partir desses dados, ele inferiu que o princípio se aplica a todos os corpos. Novamente, essa inferência era, obviamente, indutiva: o fato de que o princípio de Newton vale para alguns corpos não garante seu valor para todos os corpos. O papel central da indução na ciência, às vezes, é obscurecido pela maneira como falamos. Por exemplo, você pode ler uma reportagem de jornal que diz que os cientistas encontraram provas experimentais de que o milho geneticamente modificado é seguro para os seres humanos. O que isso significa? É que os cientistas testaram o milho em um número elevado de seres humanos, e, nenhum deles, sofreu qualquer dano. Estritamente falando, isso não prova que o milho é seguro. A reportagem do jornal deveria, realmente, ter dito que os cientistas encontraram evidências extremamente boas de que o milho é seguro para os seres humanos. A palavra "prova" deve ser usada apenas quando estamos lidando com inferências dedutivas. Nesse sentido estrito da palavra, hipóteses científicas raramente, ou nunca, podem ser comprovadas pelos dados (MURCHO, 2003). A maioria dos filósofos considera “óbvio” que a ciência depende muito do raciocínio indutivo, de fato tão óbvio que, dificilmente, precisa ser argumentado. Contudo, notavelmente, isso foi negado pelo filósofo Karl Popper. Popper (2001) afirmou que os cientistas só precisam usar inferências dedutivas. Isso seria bom se fosse verdade, pois inferências dedutivas são muito mais seguras do que as indutivas, como vimos. O argumento básico de Popper (2001) foi esse. Embora não seja possível provar que uma teoria científica é verdadeira a partir de uma amostra de dados limitada, é possível provar que uma teoria é falsa. UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 18 Suponha que uma cientista esteja considerando a teoria de que todos os pedaços de metal conduzem eletricidade.Mesmo que cada peça de metal que examina conduza eletricidade, isso não prova que a teoria será verdadeira, por razões que já vimos. Contudo, se ela encontrar, até mesmo, um pedaço de metal que não conduz eletricidade, isso prova que a teoria é falsa. A inferência de "esse pedaço de metal não conduz eletricidade" à conclusão de que "é falso que todos os pedaços de metal conduzem eletricidade" é dedutiva – a premissa implica a conclusão. Então, se uma cientista está interessada apenas em demonstrar que uma dada teoria é falsa, ela pode ser capaz de realizar seu objetivo sem o uso de inferências indutivas. A fraqueza do argumento de Popper é óbvia, pois os cientistas não estão apenas interessados em mostrar que certas teorias são falsas. Quando um cientista coleta dados experimentais, seu objetivo pode ser mostrar que uma teoria em particular – talvez a teoria do seu arquirrival – é falsa. Contudo, muito mais provável, ele ou ela está tentando convencer as pessoas de que sua teoria é verdadeira. Para fazer isso, terá que recorrer ao raciocínio indutivo de algum tipo. Portanto, a tentativa de Popper de mostrar que a ciência pode passar sem indução não é bem-sucedida. 4.2 O PROBLEMA DE HUME Embora o raciocínio indutivo não seja logicamente impermeável, parece ser uma maneira perfeitamente sensata de formar crenças sobre o mundo. O fato de que o sol tenha surgido todos os dias até agora pode não provar que isso vai ocorrer amanhã, mas, certamente, nos dá uma razão muito boa para pensar que isso acontecerá. Se você se deparar com alguém que professa ser totalmente agnóstico sobre se o sol nascerá ou não, você o consideraria muito estranho, irracional. Contudo, o que justifica essa fé que colocamos na indução? Como deveríamos persuadir alguém que se recusa a raciocinar indutivamente que está errado? O filósofo escocês do século XVIII, David Hume (1711-1776), deu uma resposta simples, mas radical, a essa questão (HUME, 1984). Ele argumentou que o uso da indução não pode ser racionalmente justificado. Hume admitiu que usamos indução o tempo todo, na vida cotidiana e na ciência, mas ele insistiu que isso era apenas uma questão de hábito animal bruto. Se formos desafiados a fornecer uma boa razão para usar a indução, ele pensou, não podemos dar uma resposta satisfatória. Como Hume chegou a essa conclusão surpreendente? Começou observando que sempre que fazemos inferências indutivas, parece que pressupomos o que ele chamou de "Uniformidade da Natureza" (UN) (HUME, 1984). Para ver o que Hume quer dizer com isso, lembre-se de algumas das inferências indutivas da última seção. Tivemos a inferência de "meu computador não explodiu até agora" e "meu computador não explodirá hoje"; de "todas as pessoas com SD examinadas têm um TÓPICO 1 — CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO 19 cromossomo extra" para "todas as pessoas com SD têm um cromossomo extra"; de "todos os corpos observados até agora obedecem à lei da gravitação de Newton" a "todos os corpos obedecem à lei da gravitação de Newton"; e assim por diante. Em cada um desses casos, nosso raciocínio parece depender da suposição de que os objetos que não examinamos serão semelhantes, nos aspectos relevantes, a objetos do mesmo tipo que examinamos. Essa suposição é o que Hume quer dizer com a uniformidade da natureza (UN). Todavia, Hume perguntou: como sabemos que a suposição da UN é, realmente, verdadeira? Podemos, talvez, provar a sua verdade de alguma forma (no sentido estrito de prova)? Não, diz Hume, não podemos, pois é fácil imaginar um universo onde a natureza não é uniforme, mas muda seu curso aleatoriamente de dia para dia. Em tal universo, os computadores, às vezes, podem explodir sem nenhum motivo; a água, às vezes, pode nos intoxicar sem aviso prévio; as bolas de bilhar, às vezes, podem parar de colidir; e assim por diante. Uma vez que tal universo "não uniforme" é concebível, segue-se que não podemos provar, estritamente, a verdade da UN. Se pudéssemos provar que a UN é verdadeira, então, o universo não uniforme seria uma impossibilidade lógica (HUME, 1984). Dado que não podemos provar a UN, podemos, no entanto, esperar encontrar boas evidências empíricas para a sua verdade. Afinal, desde que a UN sempre se manteve fiel até o momento, certamente, isso dá boas razões para pensar que é verdade. Todavia, esse argumento é circular, diz Hume (1984), pois é, em si, um argumento indutivo, e, assim, depende das suposições da UN. Um argumento que pressupõe a UN desde o início, claramente, não pode ser usado para mostrar que a UN é verdadeira. Para colocar o ponto de outra maneira, é, certamente, um fato estabelecido, que a natureza se comportou de maneira uniforme até agora. Contudo, não podemos apelar para esse fato para argumentar que a natureza continuará sendo uniforme, porque isso pressupõe o que aconteceu no passado, é um guia confiável para o que acontecerá no futuro, a pressuposição da uniformidade da natureza. Se tentarmos argumentar pela UN com bases empíricas, acabamos raciocinando em círculo. A força do argumento de Hume (1984) pode ser apreciada, imaginando como você poderia convencer alguém que não confia no raciocínio indutivo. Você, provavelmente, diria: “olhe, o raciocínio indutivo funcionou muito bem até agora”. Usando a indução, cientistas dividiram o átomo, colocaram homens na Lua, inventaram computadores, e assim por diante. Considere, também, que as pessoas que não usaram indução tenderam a ter mortes desagradáveis. Elas comeram arsênico acreditando que isso as alimentaria, saltaram de prédios altos, acreditando que voariam, e assim por diante. Portanto, é claro que você vai ganhar por raciocinar “indutivamente”, mas é claro que isso não convenceria o duvidoso, pois argumentar que a indução é confiável porque funcionou bem até agora é raciocinar de forma indutiva. Tal argumento não teria peso qualquer com alguém que ainda não confia na indução. Esse é o ponto fundamental de Hume. UNIDADE 1 — A FILOSOFIA DA CIÊNCIA 20 Então, a posição é essa. Hume ressalta que nossas inferências indutivas repousam sobre a suposição da UN. Contudo, não podemos provar que a UN é verdadeira, e não podemos produzir evidência empírica para a sua verdade sem argumentos circulares. Portanto, nossas inferências indutivas se baseiam em uma suposição sobre o mundo, para a qual não temos bons fundamentos. Hume (1984) conclui que nossa confiança na indução é apenas fé cega, não admite qualquer justificativa racional. Esse intrigante argumento exerceu poderosa influência sobre a filosofia da ciência e continua a fazê-lo hoje. A tentativa fracassada de Popper (2001), de mostrar que os cientistas só precisam usar inferências dedutivas, foi motivada por sua crença de que Hume havia mostrado a irracionalidade total do raciocínio indutivo. A influência do argumento de Hume não é difícil de entender, pois, normalmente, pensamos em ciência como o próprio paradigma da investigação racional. Colocamos grande fé no que os cientistas nos dizem sobre o mundo. Toda vez que viajamos de avião, colocamos nossas vidas nas mãos dos cientistas que projetaram o avião, mas a ciência depende da indução, e o argumento de Hume parece mostrar que a indução não pode ser racionalmente justificada. Se Hume estiver certo, as bases sobre as quais a ciência é construída não parecem tão sólidas quanto esperávamos. Esse estado de coisas intrigante é conhecido como o problema da indução de Hume. Os filósofos responderam ao problema de Hume, literalmente, utilizando dezenas de maneiras diferentes. Ainda, é uma área ativa de pesquisa (COSTA, 2013). Algumas pessoas acreditam que a chave está no conceito de probabilidade, como podemos ver no trabalho de Howson (2000). Essa sugestão é plausível,
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