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Saúde e Espiritualidade No contexto de abordagem clínica da dimensão espiritual do paciente, é necessário o entendimento do conceito de espiritualidade, para que ele não seja reduzido ou confundido com conceitos de religião ou religiosidade. As duas últimas definições do Quadro 95.1 são de forte aplicabilidade clínica por médicos de família e comunidade. Elas permitem uma inclusão ampla das percepções religiosas e não religiosas que compõem a dimensão espiritual da pessoa, contribuindo para a abordagem integral. Além disso, os autores dessas definições apontam para a importância da abordagem da espiritualidade de modo centrado na pessoa, indo ao encontro das competências esperadas do médico de família e comunidade. Sob a ótica do método clínico centrado na pessoa (MCCP), as crenças e os valores espirituais interferem diretamente na experiência com a doença, trazendo impacto sobre o desfecho clínico de modo positivo (p. ex., “adoecimento pode ser oportunidade de demonstrar a fé”) ou negativo (p. ex., “perda de fé com base no sentimento de abandono por Deus”), conforme a estratégia de coping (enfrentamento) utilizada pela pessoa. Desse modo, a abordagem da espiritualidade consiste em ferramenta do médico de família e comunidade para trabalhar o significado das vivências, as estratégias de coping, ou enfrentamento, o desenvolvimento da resiliência e o reenquadramento de situações disfuncionais vivenciadas. Independente de tantas evidências no campo da R/E na saúde, muitos profissionais ainda têm dificuldade em inserir essa temática na prática clínica. As barreiras, como falta de conhecimento ou treinamento, vêm sendo superadas à medida que o tema ganha espaço nas pesquisas e nas discussões clínicas. A preocupação com o tempo pode ser apaziguada conforme o melhor desempenho no treinamento e a longitudinalidade do cuidado clínico. Contudo, há barreiras que permeiam as concepções do médico sobre seu papel e seus valores pessoais. Essas barreiras podem ser atenuadas na medida em que o médico se disponha a uma atitude de aproximação do tema sem preconceitos. O autoconhecimento sobre as emoções advindas da prática clínica, a necessidade de tomada de consciência do médico no exercício profissional (awareness), a sua postura de atenção plena (mindfulness) e a sua vivência espiritual intrínseca podem ter impacto sobre a forma como o profissional maneja demandas espirituais trazidas pelo paciente, bem como sobre sua disponibilidade para fomentá-las e abordá-las. Embora ainda sejam necessárias mais pesquisas nesse campo, já é possível observar que o autoconhecimento tem papel fundamental para o profissional na abordagem da espiritualidade das pessoas. O médico necessita manter uma prática reflexiva sobre si mesmo e seus valores pessoais, de modo a respeitar as necessidades e as crenças das pessoas, sem impor seu ponto de vista. v Abordagem Para facilitar a abordagem da espiritualidade na prática clínica, muitos autores têm desenvolvido instrumentos para obtenção da história ou anamnese espiritual. A proposta da história espiritual é aprender sobre como os pacientes lidam com suas doenças, os tipos de sistemas de suporte disponíveis para eles na comunidade e quaisquer crenças fortes que possam influenciar os cuidados médicos. A anamnese espiritual faz parte do cuidado em saúde, tendo como objetivos compartilhar e aprender sobre as crenças espirituais e religiosas; avaliar a angústia ou força espiritual; fornece cuidados compassivos; ajudar o paciente a encontrar recursos internos de cura e aceitação; identificar as crenças espirituais/religiosas que afetam o tratamento do paciente e identificar aqueles que precisam de encaminhamento para um capelão ou provedor de cuidados espirituais especializados. Destaca-se ainda a importância da anamnese em auxiliar na descoberta de barreiras ao uso de recursos espirituais e incentivo de práticas espirituais saudáveis. A literatura descreve vários questionários que exemplificam questões para a realização da anamnese espiritual. Entre as ferramentas com maior destaque, três foram desenvolvidas para utilização no âmbito da APS: FICA, HOPE e SPIRITual History. O FICA se destaca por ser o único validado entre os três, em língua inglesa. É preciso ter em mente, de modo geral, que um instrumento de avaliação espiritual deve ser fácil de aplicar, flexível, adaptável, não demorado e ser aplicado de modo dialogado com a pessoa, sem produzir uma abordagem focal, tipo check list. O formato estruturado proposto para a anamnese espiritual deve ser visto como um guia dos tópicos importantes a serem pesquisados, uma vez que esse tema deve sempre ser abordado de forma leve e fluida, respeitando as crenças e o tempo de cada pessoa. Para a aplicação prática dos questionários, é preciso observar a reação da pessoa e a resposta dada, reajustando o formato da próxima questão de acordo com o tom ditado pela própria pessoa. É preciso identificar a linguagem utilizada e como a pessoa a relaciona com sua fé/crença (p. ex., Deus, família, natureza), seguindo, assim, o mesmo enfoque nos demais itens da anamnese. Uma proposta de aplicação clínica dessa visão pode ser exemplificada pelo método 3H, que compreende a vivência espiritual do ser humano como dividida em aspectos cognitivos (head), emotivo-experienciais (heart) e comportamentais (hands). Esse modelo é particularmente interessante por ajudar o profissional de saúde a avaliar as estratégias de coping positivo (R/E sendo fonte de conforto ou suporte) ou negativo (aspectos da R/E que aumentem a carga de sofrimento da pessoa). O aspecto cognitivo decorre de questões filosóficas ou reflexivas, tais como “Porque isso está acontecendo comigo?” ou “O que ocorrerá depois da morte?”. A dimensão emotivo-experiencial decorre do processo de significado que a pessoa dá à sua vivência, como senso de conexão e paz ou de solidão e desespero perante suas crenças. O aspecto comportamental se manifesta pelas ações diretas, como escolha de hábitos de vida (alimentação, aceitar ou não transfusão de sangue), prática de preces ou rituais religiosos. Com essa abordagem, podem ser identificadas estratégias de apoio da pessoa, bem como pensamentos e sentimentos que lhe agravem a experiência, como culpa, medo ou percepção de punição dentro de sua relação com o sagrado (crenças, Deus ou instituição religiosa). Correlacionando esses modelos com a prática clínica na APS, é preciso destacar que a abordagem prática da espiritualidade ocorrerá à medida que o médico de família e comunidade integrar o conhecimento das evidências científicas sobre R/E às habilidades de comunicação e competência cultural. Ø MCCP O MCCP é uma ferramenta clínica importante utilizada na APS para a abordagem espiritual do paciente. O MCCP parece interessante por satisfazer a demanda de um atendimento que contemple de maneira integral as necessidades das pessoas, suas preocupações e vivências relacionadas à saúde ou às doenças. 1. Explorando a Doença e a Experiência da Doença A dimensão de significado que a pessoa atribui à sua fé, crença ou vivência ganha imensa importância. Como profissionais, não cabe julgar o que deveria ou não ser perdoado, mas sim dar suporte para a pessoa “escrever” sua história com autonomia. 2. Entendendo a pessoa como um todo Interrogar oportunamente sobre fé, crenças, valores e significado, para que a abordagem da pessoa seja integral. Conhecer a pessoa como um todo, incorporando a avaliação rotineira do CRE, pode melhorar nosso entendimento e descortinar pontos de resiliência a serem fortalecidos. A partir dessa avaliação, o CRE positivo pode ser encorajado por meio de reforço das práticas salutogênicas da pessoa, como meditação, práticas corporais integrativas, preces, perdão, contemplação, leitura de materiais espirituais ou outras. As práticas significativas para a pessoa também podem ser registradas pelo profissional como pontos de resiliência a seremexploradas durante situações de crise que a pessoa venha a vivenciar ao longo do tratamento. Por outro lado, o profissional também pode identificar e auxiliar na ressignificação das situações de conflito ou sofrimento, desencorajando o CRE negativo. Também pode ser abordada a dimensão relacional e comunitária da pessoa. Nesse passo, inserem-se interrogações sobre relações familiares (crenças semelhantes ou conflitivas), princípios religiosos ou culturais e suporte social, por exemplo, dentro de uma comunidade religiosa ou de um grupo em que a pessoa vivencie sua relação transcendental. 3. Elaborando um plano conjunto de manejo dos problemas Os valores espirituais terão impacto nas decisões da pessoa, podendo influenciar condutas específicas, como não desejar transfusão sanguínea ou tratamento medicamentoso, mas também atuar de modo mais amplo, impactando diretamente no fator volitivo e motivacional. Abordar esses aspectos pode fortalecer a aliança terapêutica e também auxiliar a pessoa na ressignificação de vivências prévias negativas ou que prejudiquem o vínculo com o tratamento clínico. 4. Intensificando a Relação Médico-Paciente A espiritualidade se encontra em esfera bastante subjetiva da experiência humana, sobre a qual o profissional passa a ter de se debruçar. Para melhor desempenhar essa tarefa, o médico deve trabalhar a sua função apostólica, ou seja, não usar de proselitismo para com suas próprias ideias. O encontro médico-pessoa tem papel dialético e de negociação de papéis. Para isso, é preciso que o médico tenha claro que sua postura será de estar ao lado da pessoa, ainda que ela seja refratária às intervenções. “O olhar, a compaixão e o respeito adquirido” pelos pacientes pode fazer toda a diferença na condução de uma situação. Essa postura exige autoconhecimento do profissional, tanto para reconhecer e trabalhar com sua frustração quanto para gerir os processos de transferência e contratransferência. Outra postura essencial é que o profissional se mantenha em situação de igualdade com a pessoa na construção da relação, de modo a garantir um ambiente seguro, livre de julgamento ou depreciação devido à fé ou conjunto de crenças da pessoa. Adotar uma atitude compassiva e empática auxilia o profissional nesse trabalho. ® Resiliência O estado de saúde se relaciona com a resiliência – capacidade humana de se adaptar à tragédia, trauma, adversidade, dificuldade ou estressores significativos. Construir resiliência é um processo individualizado que depende da força, das habilidades e da experiência de cada indivíduo. Ela pode ser promovida por meio de diferentes meios, inclusive por meio da espiritualidade, quando ela faz parte dos valores e crenças da pessoa. O médico de família e comunidade pode contribuir para a construção de resiliência de pessoas auxiliando na ressignificação de situações estressoras que produzam sofrimento ou desequilíbrio. A ressignificação do processo de adoecer, como já mencionado, além de representar uma forma de diminuir o sofrimento, pode também se tornar uma oportunidade de transformação mais profunda da vida, atribuindo sentido e significado à existência e fortalecendo a resiliência. Dar suporte para que as pessoas desenvolvam aprendizado e competências mais amplas, a partir da vivência de processos de adoecimento/sofrimento, torna as oportunidades de cuidado ainda mais ricas. A abordagem da espiritualidade, permitindo o reforço ou a ressignificação de pensamentos, sentimentos e situações, é um desses aspectos. Isso pode promover o empoderamento das pessoas, apoiando que mobilizem seus recursos internos para enfrentar dificuldades diversas, diminuindo a necessidade de medicalização da vida. - Profissional de Saúde As competências esperadas do profissional de saúde crescem continuamente, bem como a demanda por diferentes necessidades de saúde e cuidado das pessoas. As competências esperadas para a abordagem clínica da espiritualidade do paciente são, entre outras: empatia, compreensão, presença e percepção da própria espiritualidade. À medida que a complexidade para o exercício da prática clínica aumenta, o médico também se percebe sobrecarregado, inseguro ou incompleto. Aprender a olhar para seus recursos internos, como a dimensão espiritual, por exemplo, com autoconhecimento, pode ser uma estratégia dos profissionais para promoverem resiliência frente aos desafios da prática. û Quando referenciar? Cuidado espiritual especializado deve ser empregado quando há questões conflituosas específicas do campo do pensamento filosófico ou dogmático da religião. Quando surgem necessidades religiosas específicas, como preces ou rituais (p. ex., unção de um enfermo), é mais apropriado consultar um profissional treinado em cuidado espiritual, como um líder religioso ou um capelão. O suporte da equipe multiprofissional também é componente dessa rede de atenção, por exemplo, quando há envolvimento de saúde mental, necessidade de adaptação física para a prática religiosa ou necessidade de mobilização da rede de suporte social. Fonte: Tratado de medicina de família e comunidade : princípios, formação e prática [recurso eletrônico] / Organizadores, Gustavo Gusso, José Mauro Ceratti Lopes, Lêda Chaves Dias; [coordenação editorial: Lêda Chaves Dias]. – 2. ed. – Porto Alegre : Artmed, 2019. 2 v.
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