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Sumário entrevista Adriana Calcanhotto cinema Nostalgia da máquina retrato do artista Donizete Galvão coluna Marcia Tiburi Alcir Pécora Christian Dunker dossiê Judith Butler Feminismo como provocação A filósofa que rejeita classificações Uma sequência de atos O percurso da performatividade Incertezas políticas e a relacionalidade Queerificando Antígona livros Memórias de tempos sombrios À beira do ataque de fúria O espantalho da informação laboratório de jornalismo cultural Uma ode psicodélica As várias faces da era digital oficina literária Fábio Oliveira colaboraram nesta edição entrevista Adriana Calcanhotto A arca tropicalista de Adriana Calcanhotto MARCUS PRETO Se os anos 1980 foram dominados pelo rock, coube à geração 1990 trazer de volta, ao centro da nossa música pop, os elementos brasileiros (o samba, sobretudo – mas não só ele) descartados na década anterior. Adriana Calcanhotto, um dos principais nomes desse ambiente de transição, foi ainda mais ousada em seu projeto artístico. Seguindo a cartilha tropicalista, a cantora e compositora gaúcha levou, ao rádio e à televisão, suas fusões de canção popular com poesia (Waly Salomão, Antonio Cicero, Carlos Drummond de Andrade, Gertrude Stein) e suas referências às artes plásticas (Helio Oiticica) e ao cinema (Joaquim Pedro de Andrade), entre outros. Em 2004, Adriana lançou o primeiro álbum infantil – o primeiro dos três que assina com o heterônimo Adriana Partimpim. O repertório vem do mundo adulto: canções como “Fico assim sem você”, da dupla Claudinho e Buchecha, “Bim bom”, de João Gilberto, e “Taj Mahal”, de Jorge Ben Jor. Sinal de seu esforço para romper as fronteiras entre a criança e o adulto, entre o pop e o erudito. Nesse mesmo espírito, Adriana lançou, no mês passado, uma versão atualizada da Arca de Noé, clássico álbum infantil de Vinicius de Moraes (1913 – 1980). Na nova Arca, ela canta a inédita “Elefantinho” e assume a produção. O disco tem adesões de Maria Bethânia, Gal Costa, Marisa Monte, Caetano Veloso, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Arnaldo Antunes e outros. Sei que a ideia de refazer a Arca de Noé veio de Susana Moraes, filha de Vinicius. Mas, a meu ver, essa ideia se encaixa exatamente em, pelo menos, dois aspectos fundamentais da sua empreitada artística, por questionar as fronteiras entre: 1) poesia e canção; e 2) música “para adulto e para criança”. Foram esses aspectos que te moveram a produzir o disco? Quais outros? Foram, sim. Um outro foi justamente a minha admiração pela obra de Vinicius de Moraes escrita para crianças, que foi forte influência na aventura Partimpim. A voz com que ele fala e as coisas que diz sobre a vida, sobre a natureza, sobre presa e predador, daquele jeito Vinicius, profundo, mas “relax”, meio moleque, são geniais. O gesto dele me encanta. No projeto, você canta uma parceria póstuma com Vinicius, “Elefantinho”. Deve ser um tanto delicado interagir com a obra de um artista morto, penso eu. Sobretudo, por se tratar de Vinicius de Moraes, um nome ligado a um dos ápices (se não o próprio cume) da nossa canção popular: a bossa nova. Surgem ansiedades específicas ao lidar com isso? Não necessariamente. Cada compositor faria uma coisa para o “Elefantinho”, e Partimpim fez a dela. Estou musicando um poema, não o poeta. A propósito, tenho outra parceria com Vinicius, para “adultos”. Francis Hime fez, com o poeta, uma melodia que ficou sem letra e que, anos depois, me pediu para letrar. Aí sim, ansiedades específicas. Ansiedades específicas? Francis, muito organizado e polido, me deu seis meses para fazer a letra, mas só fiz no último dia, aos quarenta e seis minutos do segundo tempo. Ia ligar para ele dizendo “não consegui”, aí a letra saiu. Em seu novo show, você canta uma parceria inédita com Waly Salomão. Sua relação com ele foi fundamental para que você desenhasse sua própria identidade artística, certo? De qual tipo de influência ele te impregnou? Adoro o poema e musiquei já há algum tempo, já havia cantado essa música em shows com Macalé. Mariana de Moraes gravou a canção no disco que ela está preparando, e ficou muito bonito. Ela lê todo o pedaço do poema que não musiquei. Éramos complementares como temperamentos – e isso já era rico o suficiente. Ele era muito exigente comigo, e isso foi a coisa mais amorosa que me deu. Sinto muita falta do meu amigo. Waly gostava de mudar o mundo o tempo inteiro. Do que me impregnou? Da insubordinação, eu acho. Ele era exigente com você e a defendia dos outros. Eu me lembro de vocês em uma entrevista de TV, bem no começo de sua carreira. A cada pergunta enviesada do repórter, Waly disparava versos de músicas suas: “Adriana não gosta do bom gosto! Adriana não gosta de bom senso! Adriana não gosta dos bons modos!”. Naquele dia, percebi que ele tinha comprado o seu discurso poético, que se identificava mesmo com seu texto. Quando ele te percebeu? Não lembro. Mas, a partir disso que você está contando, imagino que tenha sido por aí, quando escrevi “Senhas”. Anos depois, ele adorou [a canção] “Vamos comer Caetano” e começou a me chamar de Tinhosa. Voltando ao verso: “Eu não gosto do bom gosto”, essa mensagem havia sido levada, com muita eficiência, pela Tropicália, uns 25 anos antes, mas, àquela altura (“Senhas” é de 1992), já precisava ser reafirmada. O medo do mau gosto nos atrapalhará para sempre? Penso que atrapalha, sim, infelizmente. As pessoas precisam continuar a classificar as coisas como “chique” ou “cafona”, e eu não conheço coisa mais cafona do que isso. É redutor, defendido, inseguro. Jean Genet era chique? Arthur Bispo do Rosário era chique? Amy Winehouse era chique? Essa questão me cansa um pouco. Antonio Cicero sempre me pareceu um contraponto à personalidade do Waly, embora os dois fossem grandes e inseparáveis amigos. Posso repetir a pergunta que fiz acima? De qual tipo de influência ele te impregnou? Um contraponto à personalidade de Waly... Qualquer coisa era um contraponto àquele furacão amoroso. Mas a chave entre os dois, entre nós, era o humor. Nossos encontros para trabalhar (ou não) eram mais ou menos assim: um falando sem parar, feito uma metralhadora, sem nenhum tipo de filtro; o outro pensando bem o que dizer e, quando conseguia uma brecha, em geral, dizendo uma maluquice; e uma escutando. De repente, gargalhadas de chorar. Cicero compartilha seu vasto conhecimento e cultura, passa livros que acha que devo ler, sugere coisas, fala da Grécia, dos poetas antigos, de filosofia, e é maravilhosa companhia de viagem. Hoje em dia, a bem da verdade, nosso assunto mais importante são nossos gatos. Em entrevista com Cicero, que fiz para a CULT, falamos sobre a canção “Inverno” – para mim, o melhor fruto da parceria de vocês. Provavelmente, todos os seus fãs sabem cantá-la de cor. Mas todos aqueles com quem conversei entendem a letra como a descrição de um fim de relacionamento – quando, na verdade, ela trata do momento inicial, do princípio da paixão, do atordoamento. Cicero me disse, então, que “o inconsciente e o acaso têm parte da autoria de qualquer obra de arte, de modo que é sempre possível que alguém descubra coisas que hajam escapado ao próprio autor”. Há muito desse inconsciente agindo em sua obra? Tenho a impressão de que isso acontece com qualquer obra, ou, então, algo saiu errado. Concordo com Cicero quando diz que “o inconsciente e o acaso têm parte da autoria de qualquer obra de arte”. Lembro-me de um diretor artístico da minha gravadora explicando que, por exemplo, quando Roberto Carlos canta uma canção que começa com “Outra vez”, da Isolda, cada ouvinte, a partir desse mote, entrará na frequência que deseja. E, a partir daí, ouvirá a canção muitas vezes, conforme o que quer ouvir – e não necessariamente o que a letra da canção está dizendo. Em entrevista recente, perguntei a Luiz Tatit como os compositores da nova geração da música brasileira estavam lidando com a poesia concreta. Ele respondeu que, embora Caetano Veloso tenha sido um dos primeiros a casar concretismo e canção popular,Arnaldo Antunes é a referência forte para esses jovens, porque seu método de lidar com o concretismo na música resulta em algo realmente pop, que pode ser consumido por todo mundo. Os métodos de Arnaldo, eu imagino, também te influenciaram para que você criasse sua própria relação entre canção e poesia concreta. Estou maluco? Mas quem não está maluco? Arnaldo é um artista que me influenciou desde os Titãs, depois na corajosa carreira solo, no trabalho plástico, no trabalho para as crianças, nos livros publicados, no jeito que dança, nas roupas que veste, nas canções que manda para Maria Bethânia (em vez de mandar para mim). Estou sempre de olho nele, sou muito fã, ele é um fofo. Você e artistas como Marisa Monte, Cássia Eller, Zélia Duncan, Chico César, Pedro Luís, Paulinho Moska, Zeca Baleiro, Carlinhos Brown e mesmo o Arnaldo, em carreira solo, foram responsáveis por trazer de volta elementos brasileiros ao centro do nosso pop. Esse fio foi perdido nos anos 1980. Penso ter sido esse o primeiro legado importante da sua geração. O que acha? Acho que a MPB ficou em baixa no momento em que só se tocava rock/pop brasileiro. Era ainda o tempo em que as rádios eram monocórdicas, todas iguais, tocando um único “ritmo do momento”. Hoje, cada um ouve o que quer e tudo ao mesmo tempo. Ficou claro que a MPB nunca deixou de produzir coisas muito importantes, mesmo quando perdeu espaço nas rádios. Sua primeira experiência na literatura, Saga lusa, foi escrito num estado alterado: você estava em plena crise de pânico. Não estar com os pés no chão foi o que lhe deu, além do mote, a coragem para escrever um livro? Porque tem isso: se alguém dissesse que o livro era ruim, você poderia dizer: “Eu estava louca, não enche!”. E mais: um próximo livro está nos planos? [risos] Adoro, porque você pergunta e já responde. A literatura, e não a minha escritura, foi o que me salvou naquele momento difícil em que eu não controlava minha própria mente. Nunca tinha passado por isso e não pretendo passar outra vez, mas, enfim, o emaranhado de textos do mundo que está no subconsciente coletivo foi a minha tábua de salvação. Estou lançando a Antologia ilustrada da poesia brasileira para crianças de qualquer idade, que é um livro que não escrevi, mas que estou feliz de ter inventado. De todas as coisas que fiz na vida, esta me parece ser a mais útil, sendo que sou paga para criar coisas sem utilidade alguma. Conta mais dessa antologia... Ana Cecilia, editora da Casa da Palavra, me ligou, perguntando se eu teria uma ideia, algum projeto de livro para crianças. E respondi que sim. Porque, há muito tempo, eu tentava encontrar uma antologia, de nossos poetas, ilustrada, com poemas que não necessariamente tivessem sido escritos para elas, mas pelos quais elas pudessem se encantar. Lançada em julho na Flipinha, chama-se Antologia ilustrada da poesia brasileira para crianças de qualquer idade e é um sonho realizado. Acredito que, quanto mais cedo se entra em contato com a poesia, melhor. Melhor para as crianças, portanto, melhor para o mundo. As maneiras de lidar com a música mudaram definitivamente na década passada. A revolução começou pela indústria, mas já se imprime no ofício do artista, na maneira de criar e de pensar a arte. Como isso se deu com você, uma artista nascida da indústria forte, do rádio, da novela? Vou indo. Quando comecei minha trajetória, não havia a internet, os celulares, o mundo virtual. Tecnologia sempre houve, uma caneta é tecnologia, mas acho interessante testemunhar tantas mudanças. Tudo o que vi, em termos de avanço digital, não esperava ver, achava que se daria no tempo dos meus netos. Mas elas já modificaram profundamente sua maneira de criar? Ou é a caneta que ainda vale? A internet é uma grande ferramenta de pesquisa. Quando eu escrevia com canetas, não sonhava que um dia poderia acessar, de casa, a Biblioteca Nacional da França, a Ambrosiana, de Milão, ou a de Alexandria. Mudou minha maneira de trabalhar – para o bem, quero crer. A caneta, uso para dar autógrafos e fazer set lists. Você busca caminhos, observando o que a nova geração de artistas vem fazendo na música brasileira? Muito, porque agora cada um inventa seu método, cada um quer ser o que é, quer se inventar, cada vez mais vejo menos clones de ídolos e acho o máximo. Um excelente álbum, novo, vivo, pode ser gravado em um laptop, em casa. Acho isso sensacional. Mas eu gosto é do silêncio. Quem te impressiona nesse novo cenário? Gosto de Ava Rocha, Alice Caymmi, Thaís Gulin, Mallu Magalhães, Max, Qinho, estão faltando nomes, claro, minha memória é uma pá furada, mas, em suma, gosto da galera que gosta de saltar sem rede. cinema Nostalgia da máquina LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR. Em A invenção de Hugo Cabret, de 2011, Martin Scorsese prestou sua justa homenagem a Georges Méliès, o grande prestidigitador do cinema em seus primórdios. Ambientado numa estação de trem do começo do século passado, o filme lança mão do 3D e das tecnologias digitais mais avançadas para, num evidente paradoxo, compor o canto elegíaco da antiga era mecânica da qual o cinema, no contexto de seu surgimento, funcionara como uma espécie de epítome. A narrativa se constrói em torno de uma série de emblemas dessa era mecânica (o relógio, a locomotiva, o autômato), deixando clara a vontade de Scorsese de falar de uma época em que o homem, para produzir a energia e o movimento que alimentam a vida moderna, dependia de todo um maquinário intrincado e pesado, que operava numa lógica bem distinta do atual paradigma do mundo digital, pautado na leveza e na flexibilidade de seus dispositivos. Em Holy Motors, de 2012, cujo título já diz tudo, Leos Carax manifesta uma mesma nostalgia pelos aparatos mecânicos que tinham sido responsáveis pela existência do cinema. Mas ele enxerga esse desaparecimento da máquina de maneira muito mais complexa e melancólica que Scorsese. Inventado por homens de formação científica e de espírito empreendedor (Thomas Edison, irmãos Lumière), o cinema oferece a artistas como Carax, de verve romântica, a possibilidade de utilizar as energias do mundo de forma criativa e transformadora. Uma utopia maquínica que a era digital desencorajaria. Howard Hawks, um dos mestres da Hollywood clássica, dividiu sua juventude entre a escola de engenharia e as pistas de corrida automobilística, até descobrir que o cinema condensava as duas coisas: uma máquina que propiciava tanto a invenção e a descoberta, a arquitetura de lugares e de durações quanto a experiência da velocidade e do perigo. Filmar era estabelecer uma relação de confronto com o mundo, tendo a máquina-cinema como mediadora irrefutável. Mesmo no “cinema-verdade”, de Jean Rouch, que, dentro de sua perspectiva etnográfica, procurou diminuir o peso do aparato cinematográfico e minimizar sua presença intimidadora, a máquina se fazia passagem obrigatória. Em Crônica de um verão, de 1961, que começa com uma enquete nas ruas de Paris, um senhor se assusta com o microfone que a entrevistadora aproxima dele. “É só um microfone”, ela diz. É só um microfone, mas é o suficiente para instaurar o conflito entre o cineasta e o outro. Hoje, quem quiser “assustar” alguém com uma câmera e um microfone terá de viajar muitas léguas. A máquina sumiu, ou tornou- se invisível (real ou simbolicamente). A vasta oferta de câmeras portáteis, que cabem no bolso, é só o epifenômeno de uma profunda transformação no modo de pensar e de conceber as imagens. A aclimatação da câmera na mobília da vida social cotidiana gera outra forma de mediação entre o olhar e o mundo. Uma mediação mais leve, por assim dizer – seja porque a câmera realmente diminuiu de tamanho e peso seja porque nos acostumamos a ela a tal ponto que não mais percebemos sua “ameaça”. GESTO INAUGURAL Na época em que Walter Benjamin escreveu o célebre ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, a presença ostensiva da máquina era algo incontornável nos sets de filmagem. “Representar à luz dos refletores e, ao mesmo tempo, atender àsexigências do microfone é uma prova extremamente rigorosa”, afirmou Benjamin. O ator de cinema não atuava para uma plateia, mas para uma máquina. Sua performance precisava ser convincente não apenas aos olhos do diretor e dos técnicos, mas, sobretudo, à luz da “verdade mecânica” da câmera. O triunfo do intérprete, nessas condições adversas, aparecia, assim, como a vingança do homem sobre a máquina, para o gozo coletivo de uma massa de espectadores que passara o dia nos balcões e nas fábricas, vendendo sua força de trabalho a um mundo maquinizado e automatizado. Chaplin, na obra-prima Tempos modernos, de 1936, já havia mostrado as duas faces da moeda: a submissão do trabalhador a uma jornada exaustiva, em que ele só interage com máquinas, afeta sua saúde mental e física (após repetir mecanicamente o mesmo gesto durante horas, Carlitos degringola e provoca uma grande confusão na fábrica), mas produz também, nesse contágio maquínico, que resulta num comportamento anárquico do corpo, uma explosão de energia com potencial revolucionário. Não à toa, houve um elogio da máquina e da eletricidade, tanto nas vanguardas heroicas (a exemplo do construtivismo russo) como no cinema dos anos 1920 (de Jean Epstein a Dziga Vertov). A máquina é aí associada à ideia de mudança, de motor da história, de força transformadora. E o cinema, máquina de visão, não fica encarregado apenas de captar ou restituir a realidade, mas, acima de tudo, de reconstruí-la na mise en scène e na montagem. Um filme, segundo Eisenstein, deve fabricar conceitos e estimular uma nova percepção/compreensão do mundo. Vertov, igualmente interessado no cinema como catalisador de sinapses e sensações, elabora em O homem com a câmera, de 1929, uma sinfonia urbana nutrida pelas correntes de energia coletivas, geradas pela interação dos homens com os meios de transporte, produção e comunicação modernos, tudo confluindo na poesia visual de um novo mundo mecanizado. Em ambos, o cinema é a máquina que redime a civilização industrial ao se oferecer – na mais perfeita dialética do materialismo histórico – como ferramenta de transformação do pensamento coletivo e de propagação do impulso revolucionário. Já no contexto do cinema moderno, Godard, depois de realizar Acossado, de 1960, com materiais leves e total despojamento, sentiu necessidade de trabalhar com uma câmera que pesasse toneladas – e de flertar com a estrutura de produção industrial –, executando aqueles lentíssimos travellings de O desprezo, de 1963. Ele precisou sentir o peso da criação. O esforço com que se filmava na época das grandes câmeras e dos aparatos dispendiosos é uma “dificuldade de criação” da qual Godard sente falta na era dos dispositivos portáteis e facilmente manuseáveis. Não que ele alimente um sentimento passadista, pelo contrário: ele assimila os novos materiais e, mais do que isso, leva-os às últimas consequências. Basta ver o trabalho plástico que extrai das imagens e sons obtidos com uma câmera de celular na primeira parte de Filme socialismo, de 2010. Filmar é encontrar problemas e aceitar o desafio de solucioná-los. Ao se diminuírem os problemas, diminui-se também a energia – física, psíquica, libidinal, hermenêutica – investida nas imagens (por quem as fabrica e por quem as consome). Como, então, devolver o seu peso ao mundo filmado, o seu desconforto, como restabelecer a distância mínima entre a vontade de imagem e sua possibilidade real (distância cuja percepção é o gesto inaugural do impulso criativo), como reencontrar as constrições que estimulam o artista, em plena era da leveza e da diluição das câmeras no cotidiano? A resposta, talvez, resida em outro tipo de maquinação: aquela operada pela inteligência. É isso, pelo menos, o que Abbas Kiarostami parece já vir demonstrando desde os anos 1990, com filmes que são verdadeiros dispositivos conceituais, unindo um trabalho abstrato de agenciamento intelectual à construção material de uma máquina de cinema formada, em geral, por um carro e uma câmera. Máquinas de inteligência que suprem a lacuna deixada pelo fim dos “motores sagrados”. retrato do artista Donizete Galvão Palavras sujas de realidade CLAUDIO DANIEL Donizete Galvão desenvolve, em sua poesia, um catálogo de motes obsessivos, em que se destacam tempo, memória, cidade, insetos, animais, pequenos acontecimentos da jornada ordinária e a busca da epifania possível numa era de “homens inacabados”. Mircea Eliade, no Tratado de história das religiões, define epifania (do grego epi, sobre, phaino, brilhar) como a manifestação inesperada do divino ou o acesso súbito à sabedoria, tal como as revelações obtidas em sonhos, transes xamânicos ou experiências e rituais com alucinógenos. O conceito de epifania passou a ser usado na modernidade por autores como James Joyce, num contexto laico e profano, para designar percepções estéticas que causam uma reação emocional intensa de horror ou de deslumbramento. A escrita de Donizete Galvão apresenta diferentes momentos epifânicos, em geral, relacionados à contemplação da natureza (“Caminho de vacas, / cascos / cavando / trilhas / na grama”), à escuta das canções de Nina Simone (“Voz de soda cáustica / roendo a carne / até cavar um fosso”), ao convívio com as obras de artistas plásticos, como Paulo Pasta ou Renina Katz (“Paisagem irreal, / onde se respira / um ar rarefeito: / o mundo suspenso / por um fio / no limiar da dissolução”), mas especialmente à observação de cenas que são retiradas de sua condição imediata e reconfiguradas em alegorias, como acontece em “O grito”: “O porco guincha / e sob a pata dianteira / sai a golfada de sangue / que enche a bacia. // Horas depois, / pronto o chouriço, / comemos o sangue preto, / as tripas, o grito” (do livro Ruminações). Esse poema, de fortes cores expressionistas, não é apenas a descrição minuciosa de um acontecimento que o autor pode ter presenciado (ou não) em sua cidade natal, Borda da Mata, situada no interior mineiro; é também a construção do pensamento por meio de imagens e impressões sensoriais que envolvem a imaginação do leitor, fazendo com que ele compartilhe a degustação das tripas misturadas ao grito, metáfora do desconforto da condição humana. CONSCIÊNCIA DE LINGUAGEM Em Azul navalha, livro de estreia de Donizete Galvão, publicado em 1988, o tema principal é a cidade – o espaço perdido da infância, agora transformado em cenário mental (“Ele fundou uma cidade na memória, / território de sonhos que a tudo acolhe. / Ruas que são matas / que são rios / que são abismos / em ilógica geografia”). Em As faces do rio, publicado em 1990, o autor amadurece a consciência de linguagem em peças de maior elaboração formal, como a notável composição “Prisioneiro na pedra”, de versos breves, enigmáticos, e de construção elíptica: “Na pedra, / ele espreita: / peixe, pássaro, lua. / Seu olho-flecha / nunca fere a presa. / Pois que tudo se move; / rio, céu, satélite / e até mesmo a pedra. / Não se move o homem, / cego à teia / que à sua volta cresce”. A pedra é um elemento que comparece em diversos poemas de Donizete Galvão (especialmente em seu terceiro livro publicado, Do silêncio da pedra, de 1996), geralmente associada à “esterilidade do deserto e, em última instância, à morte”, mas também a aspectos positivos, como “anteparo e abrigo”, segundo Paulo Vizioli. A pedra se contrapõe à água, outro símbolo frequente na poesia de Donizete Galvão: se a pedra é silêncio e imobilidade, a água é ruído, movimento, devir temporal, rio heraclítico em que entramos e não entramos, somos e não somos: “Tudo que nos é dado a maré leva / e devolve como restolho”. Em A carne e o tempo, livro publicado, em 1997, com a reprodução de uma aquarela de Paul Klee, o tema central é o caráter efêmero dos viventes e do mundo (“Somos homens de frágil arquitetura / tessitura de finos fios de vidro, / renda tramada por aranhas”), embora o sagrado também compareça – não como promessa de redenção futura, mas como possibilidade de encantamento na vida presente com as pequenas coisas que nos iluminam,como a lembrança de figos maduros, a contemplação da chuva de primavera, ouvir a música de Villa-Lobos, assistir à dança de Madhavi Mudgal ou observar as litografias de Renina Katz. Para Donizete Galvão, há “um deus de pedra / (...) deus que não pune / deus que não salva”. PERGUNTAS SEM RESPOSTAS Ruminações, publicado em 1999, é o livro mais telúrico do autor, formado por pequenas narrativas que incorporam paisagens do interior mineiro, sem cair em fácil retórica nativista: o poeta transforma o regional em universal em composições como “Reboco” (“Para quem não tem muito, / tudo tem serventia: / a argila, a bosta da vaca, / o perfume da grama”), “Escoiceados” (“Levamos / bons coices. / Meu pai e eu. / Os dois / nunca subimos / na vida”) e “Autorretrato como boi” (“No curral da insônia / rumino palavras pastadas / na ribanceira dos dias”). Um poema notável deste livro, pela técnica de construção da narrativa, é “Sexta-feira da paixão”: “A mulher que ganhou os peixes / não traz os olhos cabisbaixos / nem os ombros arqueados. / Treze peixes finos e prateados / deslizaram para dentro da sacola. / (...) Usará a frigideira preta / que fica no armário da pia? / Vai passar os peixes na farinha, / fritá-los e servi-los bem sequinhos”. O poema é arquitetado na forma de perguntas sem respostas, em que a descrição minuciosa do cenário se mistura a um engenho imaginativo que completa as lacunas com hipóteses ficcionais (“Quem dividirá os peixes com ela? / O marido aposentado? Os filhos?”). A aparente simplicidade do poema oculta o seu caráter alegórico, no sentido próprio da palavra: construção do pensamento por meio de metáforas ou imagens, recurso frequente na poesia e na pintura barroca. O lirismo de Donizete Galvão, centrado na carnadura das palavras e das coisas, chega a um grau de ebulição em Mundo mudo, de 2003, e, sobretudo, em O homem inacabado, de 2010, de onde extraímos essas linhas: “Num átimo, / a picada da serpente. / Abre-se a ferida / que nunca sara / Que não supura. / Coleção de escaras / que saem à unha / e renascem / novas crostas. (...) A dor: / veneno. / Ninguém quer / sua companhia”. Donizete Galvão nasceu em Borda da Mata, sul de Minas, em 1955. Desde 1979, reside em São Paulo. Seu livro de estreia, Azul navalha, de 1988, recebeu o prêmio, da APCA, de revelação de autor e foi indicado ao Jabuti. Publicou também, entre outros títulos, As faces do rio, de 1990, Do silêncio da pedra, de 1996, A carne e o tempo, de 1997, também indicado para o Jabuti, Ruminações, de 1999, Mundo mudo, de 2003, indicado ao Portugal Telecom, e O homem inacabado, de 2010, que ficou entre os dez finalistas do Portugal Telecom e ganhou o Prêmio Brasília de Literatura em 2012. Com Fernando Vilela, é autor do livro de poemas infantis Mania de bicho, de 2009. O autor publicou também a plaquete Alta noite, na coleção Poesia Viva, editada pela Curadoria de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo. Os eleitos porque há muitos de nós as catástrofes os acidentes e as crenças – este desejo esgrouvinhado entre as tripas – desatam as fúrias na requisição diária de mortes nos acampamentos onde crianças trazem terríveis notícias no olhar porque há muitos de nós ferimos a terra com os cascos entre balas e incêndios pisoteamos as novas crias temos sorte não somos gado de corte Pássaros urbanos ave nenhuma faz seu ninho nas gruas das construções elas próprias – aves pernaltas – erguem moradas de pedra as gruas têm as plumas mais vistosas da cidade outras, incanoras, habitam as junções dos viadutos entre trapos e papelão muitos pedem pela extinção dessa espécie tão pouco afeita às gaiolas Não sabe O amor que não sabe morrer persiste no olhar do cão abandonado que, ao menor gesto, abana o rabo na espera do afago. Está no vaso de planta esquecido no sobrado sem moradores. O amor que não sabe morrer não pretende tocar o céu. Quer ficar aqui mesmo – pedestre, incauto e reles. Não ouve a ladainha dos mortos. Nem quer a extrema-unção. coluna Homo sedens MARCIA TIBURI Tratar o ato de sentar como uma questão culturalmente relevante pode soar como mera brincadeira. Quem, começando a levá-la a sério, se perguntar “quanto tempo de nossas vidas passamos sentados?” ou “quantas cadeiras há no mundo?”, por mais que consiga respostas estatisticamente impressionantes, não terá, contudo, atingido o cerne da questão inusitada que nos faz pensar nas formas assumidas pelo sedentarismo como caráter da cultura. Na contramão do nomadismo, o sedentarismo faz parte da história de nossa civilização. Mais do que parte da história, é uma postura que caracteriza nosso tempo presente. A maior parte de nossos gestos corporais acaba no assento; passamos muitas horas do dia sentados, tudo, em nossas vidas, convida-nos a sentar. Mas esse convite agradável ao descanso tem significados mais complexos: sentamos em casa, na rua, nas escolas, sentamo-nos diante de máquinas; sobretudo, hoje em dia, sentamo-nos diante de telas. Norval Baitello Junior, professor da PUC de São Paulo, escreveu, em seu livro O pensamento sentado (Unisinos, 2012), sobre o lugar do “assento” em uma cultura sedentária. Sua crítica vai na direção de um pensamento sentado que, para ele, seria o pensamento acomodado. Recuperando a expressão alemã usada por Nietzsche para falar da “vida sedentária” – Sitzfleisch – ele explora a tradução por “carne de assento” que, literalmente, leva à usual “bunda”. Bunda tem um vasto alcance no Brasil. Mesmo que soe deselegante, não seria um erro considerar a atualidade de um “pensamento-bunda”, aquele pensamento cansado que, no extremo, expressa o que entendemos no cotidiano, no âmbito da irresponsabilidade do “bundão”. O caráter “assentado” é o da “discursividade previsível e acomodada”, a que reduz o ato de pensar em nossa época, contra sua natureza mais íntima. O “decréscimo da mobilidade” do corpo é, segundo ele, também do pensar, cuja imprevisibilidade e capacidade de surpreender estariam em baixa. Conhecemos essa acomodação, sabemos que ela é necessária ao poder, ao sistema econômico e político, que esperam corpos dóceis e mentes paradas, repetindo acomodadamente mais do mesmo que mantém tudo no mesmo lugar: sentado. Pensar na reflexão aos saltos do livro de Baitello é uma atitude dinâmica, como seria o movimento de nosso corpo, inquieto e propenso a caminhar, pular, correr e saltar. A capacidade humana, que está ligada a todo o nosso processo de aprendizagem em relação à vida, de explorar o entorno, é diminuída quando tudo se reduz a “assento”. O primata que somos se ressente de não poder mover-se. REGRA DA CULTURA Baitello nos lembra que sentar e sedar têm a mesma origem etimológica: sedere. Assim, comentando que somos “Homo sedens”, a atrofia dos músculos e dos movimentos surge como uma espécie de regra da cultura. Quando observamos o nosso dia a dia, sentados por todos os lados, diante de computadores, da televisão, dentro de carros, temos certeza que a mobilidade corporal que nos caracterizaria, e que ainda se coloca como nossa potência, cede lugar à estranha mobilidade incorporal da máquina. As máquinas se movem em nosso lugar, tornamo-nos imóveis: esperamos sentados a máquina que nos substitui. De certo modo, participamos passivamente de um “devir” imóvel, que não nos leva a lugar nenhum, senão àquele onde já fomos previamente postos. Por fim, forçados a sentar, vivendo o elogio da disciplina, resistimos enquanto seres sentados em nome de um esforço. Valorizamos aquele que consegue aguentar a sala de aula, a cadeira no trabalho burocrático. Somos, por fim, vítimas do que Baitello apontou como uma “conjunção perversa”, em que o sedentarismo de nossos corpos alia- se à hiperatividade visual. Anestesiados diante das máquinas, vivemos na direção contrária de nossa própria capacidade nômade. Talvez fugir desse mundo seja um desejo soterrado por cadeiras numa avalanche mole ao qual nosso corpo se adequa por ter medo de seus próprias potências. Bom lembrar que fugir é sempre um direito. coluna Vanitas II ALCIRPÉCORA (In claris cessat interpretatio) Assim que saiu a última CULT, antes mesmo que eu a tivesse visto, um amigo me contou que já tinha lido minha coluna sobre Padre Vieira e Jim Morrison. Primeiro, eu não entendi. Depois, quando ele me explicou, lendo devagarinho, ao telefone, o índice da revista que falava em “apelos vibrantes” de “Padre Vieira” e de “Jim Morrison”, fiquei tartamudo, o telefone zumbindo no meu ouvido. Padre Vieira ainda vá lá... – pensei, tentando assimilar o golpe. Mas, de fato, não se tratava exatamente dele, senão eu o chamaria assim mesmo, como sempre fiz, como ele é conhecido, e não pelo prenome que poderia servir a qualquer Antonio –, incluindo a mim, que também sou Antonio, sob o nome que calhou de pegar. Era um Antonio qualquer porque, naquele momento de que eu falava, Vieira havia sido expulso da Companhia de Jesus. O mandado de desligamento apenas não se consumou por interferência direta de D. João IV, o qual deixou bem claro para os superiores da província portuguesa da Companhia que a punição a Vieira seria interpretada como uma censura frontal a El-Rei, pois o jesuíta nada fizera sem o seu consentimento ou que não fosse por ordem sua. Então, quando escrevi “Vanitas”, eu não queria falar de Vieira propriamente, mas desse momento em que ele perde o nome de padre, o sobrenome de pregador afamado e a proteção de sua ordem. Ele era só um que fora excluído, alguém que já não servia para irmão e sócio. E então, nessa única vez, em toda a sua longa vida de achaques, arroubos e ousadias, ele disse aquilo que eu contei: que não era nada sem a Companhia de Jesus e, enfim, que, ao ser posto para fora dela, preferia ser um cachorro, vivendo à sombra do seu portão, do que habitar os palácios que lhe eram oferecidos por El-Rei. Não queria falar mais uma vez de Vieira, de quem já falei demais, mas apenas desse momento peculiar em que alguém encontra num vira-lata afeiçoado ao dono, que o despreza, a melhor imagem para si. Por mais nome e nomeada que ele tivesse antes ou depois desse episódio, nesse exato instante de que eu falava, ele não era ninguém: era uma simples figura de cão batido pela gerência. E Jim Morrison? De onde saiu o tipo? Como foi se intrometer em meu texto, que não falava dele? Do nome de Jim, me dirão. Mas não é bem assim. Talvez de um protótipo pop do nome, mas não propriamente do nome. Pois Jim é, ainda mais que Antonio, índice de um nome qualquer. Para quem não se desse conta disso, fiz até uma identificação direta no texto escrevendo “Zé – Jim”, como quem diz: ter nome de Jim é ser quase tão anônimo como ser Zé. Eu nem sonhava em falar de um rock star no papel de rock star e muito menos de um roqueiro hippie como Morrison. Hippies se identificam com estrelas, com flores no cabelo – ou seja, com inocência, natureza, fantasia, imaginação, poesia, blá-blá-blá. No máximo, quando se dizem nascidos para ser selvagens, querem comprar uma moto bacana e sair por aí, a viver uma suposta liberdade com “ele” maiúsculo. No caso de Morrison, era o “L” que o levava a gritar para o auditório de meninas que ele ia matar o pai e depois comer a mãe. Era só um bordão psicanalítico, mas elas amavam aquilo e gritavam de volta, cheias de tesão. O Jim-Zé de quem eu falava nada tem de hippie. Com mais propriedade, pode-se dizer que é mais um enterro da ideia de hippie. Não é da paz, nem do amor. Late, mas antes morde. Busca o que destrói, sem poupar a si mesmo – e, por isso (eu me esqueci de dizer da outra vez), ele é mais coxo que um demônio desancado pela espada do arcanjo Miguel. Certo dia, Jim-Zé percebeu que estava disposto a fechar os olhos, acabar com a confusão da cabeça e apenas ser – plenamente – um vira-lata. Vira-lata meu. Não sonha, não tem signo, não se lembra de ter nascido de mãe. É tão reles e tão perdido que não acha que vai perder grande coisa se perder a vida dormindo num estacionamento de bar de bêbados à beira da estrada. Num dia quente, como o de ontem, Jim ainda sente comichões de esfregar as costas na areia quente, de ficar roçando e lambendo as partes ao sol. Se pudesse pedir alguma coisa, o que decerto não pode, talvez pedisse o pau que já se acostumara a receber no lombo, antes de eu o recolher em minha casa. Entenderam o caso? Quem viu o índice da última CULT, como aquele meu amigo que me telefonou, pode ter sido levado a um equívoco. Foi apenas para esclarecê-lo que esbocei esta segunda vanitas. Morrison definitivamente nunca esteve em meu canil. Go home, hippie! Aqui, vivem apenas meus dois vira-latas e eu, dura sociedade de desnomeados. coluna A política cultural, do déficit narrativo ao excesso cínico CHRISTIAN DUNKER Em sua última coluna, Vladimir Safatle sugeriu a necessidade de uma partilha preliminar quando se trata de examinar as relações entre política e estética. Entendi que isso nos protegeria de certos equívocos básicos na matéria, por exemplo, encontrar uma “voz” que oriente, direcione e simbolize a transformação social, engendrando processos de identificação facilmente manipuláveis pela cultura da estética de resultados. Contra isso, seria preciso abordar o problema por meio da genealogia indireta, do diagnóstico de circulações artísticas resistentes e da semiologia crítica acerca de nosso estado de ruína cultural desesperançada. Gostaria de discutir a tese de que isso depende de uma consciência preliminar de que “o capital perdeu sua força narrativa”. Como entender essa frase do protagonista do filme Cosmópolis? Isso quer dizer que o capital tornou-se indiferente à história de sua autoprodução? Ou que todas as histórias se misturam para justificar suas razões cínicas? A hipótese do déficit narrativo interpreta a ruína cultural como perda de potência articulatória entre o real e sua reconstrução reparadora a que chamamos de arte. A conjectura do excesso cínico, ao contrário, percebe que todas as verdades são comensuráveis entre si, desde que nos coloquemos do ponto de vista metalinguístico do capital. Essa alternativa está bem representada no filme. O milionário está preso no trânsito, por causa do funeral de seu músico predileto cujo hit toca sem parar em seu elevador privativo, mas que não o leva a um instante sequer de luto narrativo. Por outro lado, sua jovem esposa não pode se dar ao luxo de se desviar de sua carreira na poesia, portanto, não lhe sobram energias para manter relações sexuais com o marido, que, cinicamente, usa isso para transar com outras mulheres. Há uma versão nacional desta oposição. Artistas consagrados se reúnem para proteger suas próprias vidas de biógrafos que querem usá-las sem pagar direitos “autorais”. Sentimos que há razão no fato de que o biografado receba alguma coisa pelo “uso público” de sua vida. Mas reconhecemos também que há algo profundamente errado em tratar a própria narrativa de uma vida como matéria-prima mercantil na qual celebridade gera mais celebridade. A narrativa de vida, especialmente quando nela se entranham misteriosamente as razões de uma obra de sucesso, ainda assim, parece necessária ao novo espírito do capitalismo. Há um excesso cínico na história, que, em sua origem, é formada por premissas razoáveis de ambas as partes. Talvez esse excesso decorra da institucionalização jurídica do assunto, ou quiçá da separação demasiadamente funcional entre quem vive uma vida e quem tem o direito de contá-la. Uma vida exclusivamente voltada para a produção artística, representada pela entrada em um sistema das artes, indissociável de seu mais-de-gozar biográfico, é uma vida que perdeu alguma coisa, como vida compartilhada. E, ainda mais, uma vida que não se sabe arruinada. Na mesma semana, Luiz Ruffato fez seu discurso incendiário na Feira de Frankfurt, dedicada ao Brasil. E, nele, intuímos uma ligação entre o reconhecimento internacional de nossa literatura e certa tensão com as condições sociais de desigualdade, segregação e injustiça que atestariam nosso “atraso cultural”. Novamente, pode-se invocar a indiferença entre as condições estéticas de uma obra e suascondições sociais de produção, entre os temas e as formas, autonomia ou subordinação da linguagem na arte. Aqui, o problema não está na dissociação, mas na ausência de uma narrativa que articule vida e obra, produção e circulação, sem que a política ocupe uma função institucionalizante e manipulativa. Pressentimos que Ruffato tem razão em sua maneira de lembrar “onde estamos”, para além de nossos casos bem sucedidos e de nossa imagem emergente. Ele nos faz voltar ao caráter particular de nossa própria miséria cultural. Mas pressentimos também o caráter profundamente insuficiente dessa lembrança. Sua verdade, mesmo que corrosiva, não nos leva a articular o papel da literatura diante do “estado das coisas”. Seria preciso pensar uma maneira de desativar esse dispositivo por meio do qual nosso déficit narrativo na matéria cultural não seja impulso nem justificativa para o retorno invertido como excesso cínico. dossiê Judith Butler Feminismo como provocação MARCIA TIBURI É bem possível que aquele que se disponha a conhecer a obra de Judith Butler a receba, em um primeiro momento, como uma provocação. Os livros publicados até agora pela filósofa norte- americana, nascida em 1956, não são fáceis de ler. De um lado, a espontaneidade irônica com que ela escreve não é comum no meio do debate acadêmico e intelectual; de outro, os conteúdos de seu pensamento são os mais desafiadores, os mais sagrados e os mais caros para toda uma tradição. Verdade que o tema central da obra de Butler é o “gênero”, mas, olhando de perto, gênero não é um problema do campo da “sexualidade”, é um problema político e, mais perigosamente, um problema ontológico. Isso quer dizer que o seu feminismo é, de todos os que surgiram até agora, o que levou mais a sério as potencialidades críticas do próprio feminismo. Butler não tem medo do feminismo, tampouco de sua crítica ou de seus efeitos teóricos e práticos. Nas mãos da pensadora, o feminismo é, sem dúvida, uma luta pelos direitos das mulheres, como sempre foi, mas é também uma desmontagem do que chamamos de “mulheres”. Por fim, dos homens e, no extremo, do gênero como um todo. A questão de gênero não será apenas um problema do ativismo, o que já seria demais para o pensamento da dominação masculinista, mas também, e mais gravemente, um questionamento da identidade e do princípio que rege sua lógica. A riqueza da obra de Butler consiste justamente no caráter provocativo que tem movido uma quantidade considerável de estudiosos pelo mundo afora. Esse caráter é, ao mesmo tempo, uma maneira de traduzir aquilo que entenderemos a partir de um dos seus conceitos mais importantes. Trata-se da questão da “performatividade”. Assim, a primeira coisa que devemos saber para entender do que Judith Butler está falando é que as palavras provocam ações e atuações. Que as palavras agem. Que todas as teorias existentes causam algo em sujeitos concretos. E que a teoria da própria Butler faz o mesmo, mas não esconde que o faz. Nesse sentido, ela sabe que está provocando. E quem ela provoca? O poder, enquanto este se confunde com a “verdade” sobre algo como identidade sexual de gênero. A filósofa norte-americana, que também é judia e lésbica, vem, portanto, provocando uma mudança radical no cenário dos estudos de gênero, e no feminismo de um modo geral. Sem deixar de ser feminista, Butler é uma teórica crítica que critica justamente certos aspectos do feminismo ao qual se filia. Para quem pensa que as feministas não podem ser críticas do feminismo, essa posição pode parecer uma contradição, o que, na verdade, apenas demonstra que a questão da crítica imanente do feminismo – aquela crítica que supera seu objeto ao mesmo tempo que guarda algo dele – ainda não foi bem compreendida. O ponto central da crítica de Butler reside no fato de que o feminismo que ainda trabalha com o “binarismo” de gênero – com a ideia de que “homem” e “mulher”, “masculino” e “feminino” são a verdade da sexualidade – incorre na reprodução daquilo mesmo que quer criticar. Neste sentido, o feminismo da filósofa apenas pode ser pensado em seu sentido expandido. Não como uma defesa de algo como “feminino”, nem como uma simples defesa das “mulheres” cuja identidade de gênero ela questionará. O feminismo de Butler é a defesa de uma desmontagem de todo tipo de identidade de gênero que oprime as singularidades humanas que não se encaixam, que não são “adequadas” ou “corretas” no cenário da bipolaridade no qual acostumamo-nos a entender as relações entre pessoas concretas. É justamente a adequação que estará na mira de Butler, enquanto todo o esforço da filosofia tradicional, que pesa sobre a questão do sexo e do gênero, se deu na direção de uma supressão das singularidades. PERFORMATIVIDADE DO GÊNERO Para sustentar sua crítica, Butler precisa, portanto, desmontar algumas ideias, e a principal delas será a de gênero. Quando, nos anos 1960, se começou a falar em gênero, o termo era usado para se referir ao “papel” social e cultural que se dispunha sobre o sexo, como que para explicá-lo. O sexo era ainda tomado como natural no sentido de ser um destino que acabaria por fundar o gênero. O sexo era a verdade da natureza, como muitos ainda pensam no âmbito do senso comum. A ideia de gênero veio dar conta do caráter produzido da sexualidade. O essencialismo com que se costumava ver o sexo já havia sido posto em questão quando Beauvoir disse, em O segundo sexo, que ninguém nasce mulher, mas se torna mulher. Foucault, igualmente importante para Judith Butler, mostrou, em sua História da sexualidade, que até mesmo o sexo, tanto quanto a sexualidade, foi produzido por um tipo de discurso. Nem sexualidade, nem sexo seriam verdades essenciais, mas apenas construções históricas. Tratar o histórico como natural sempre é estratégia do poder. O esforço da teoria de Butler, neste contexto, foi o da desnaturalização como uma desmistificação do sexo e do gênero, que seriam, em momentos diferentes, tratados como destino. A partir de então, eles seriam construções discursivas entre as quais não haveria diferença. A ideia fundamental da pensadora é a de que o discurso habita o corpo e que, de certo modo, faz esse corpo, confunde-se com ele. Por isso, a diferença entre sexo e gênero não seria mais o caminho para a luta feminista. Mas o respeito aos corpos cuja liberdade depende, em última instância, de serem livres do discurso que os constitui. Ou de simplesmente poderem existir em um mundo que os nega, e que os nega pelo discurso que não é, de modo algum, apenas uma fala qualquer. O que ela chama de performatividade do gênero, partindo de aspectos da teoria da linguagem de J. L. Austin, famoso autor da teoria dos atos de fala, diz respeito ao caráter ativo da relação entre o sujeito e a sociedade, enquanto esta última é organizada dentro de normas e de leis que funcionam pelo discurso. É impossível, neste sentido, ser “generificado”, ou seja, sofrer os efeitos do gênero fora do discurso. Pois não há gênero sem discurso, e o discurso é, justamente, o que infunde, como um dispositivo, aquilo que é o gênero. Se antes os corpos eram vítimas da ciência da anatomia que legislava sobre eles, agora passaram a ser vítima da generificação como uma espécie de segunda natureza que se diz como verdade quanto ao “gênero”. Por meio das análises de Butler, podemos empreender a reflexão sobre o que é ser homem e ser mulher, hétero ou homossexual, desde que se torne possível questionar não apenas as identidades “homem” e “mulher”, ou outras, mas também o próprio sentido do verbo “ser” quando se diz que alguém “é” isso ou aquilo. No momento em que alguém se identifica ou se deixa hétero-identificar, esse alguém está se inscrevendo apenas em um cenário ontológico, que é promovido pelo discurso e toda a sua materialidade no âmbito da ação e da vida. Mas isso quer dizer também que tudo poderia ser diferente em um cenário democrático, em que as pessoas concretas pudessem se expressar livremente, também por meio de seus corpos, para além dos discursos que os controlamsob a produção daquilo que Butler chama de “efeitos ontológicos”. Nesse sentido, em sua prática teórica, ela agirá fazendo “abusos” ontológicos contra o status quo. A filosofia é, em sua visão, a chance de produzir um contraimaginário ao privilégio ontológico de uns – como se um modo de existir fosse o único correto – contra o simplesmente ser dos outros, que, na contramão da “norma” ontológica, são tratados como aberração ou anomalia. A prática de enviar crianças e jovens ao psiquiatra ou ao padre para correção, por exemplo, é um mecanismo de exclusão. Ao mesmo tempo, aquele que simplesmente assume uma identidade contra a exclusão corre o risco de ficar preso a ela. Um dos problemas que a filosofia de Butler nos lega se refere justamente a essa identidade quando sabemos que ela serve, em certos momentos, para libertar, como, por exemplo, no momento em que alguém se afirma mulher, no âmbito do feminismo, na luta por direitos, mas também para excluir esse mesmo sujeito, colocando-o de volta num lugar de opressão e escravidão onde o próprio feminismo prometia emancipar seu sujeito. Neste sentido, podemos dizer que o feminismo da filósofa é negativo e, ainda assim, dialético. O CORPO ABJETO Portanto, uma das preocupações centrais do pensamento teórico- prático de Butler se refere ao corpo sexuado enquanto esse corpo é tornado “abjeto”. A categoria do abjeto vem referir-se à existência corporal daqueles que não são encaixáveis na estrutura binária “homem-mulher”. Neste sentido, a teoria de Butler é, ao mesmo tempo, como deve ser qualquer teoria feminista, uma teoria engajada na defesa de um sujeito oprimido. A propósito, na contramão de Derrida, um dos pensadores que mais a influenciou, Butler acredita que é necessário continuar usando o conceito de “sujeito”, vendo nesta criticável categoria humanista a chance de colocar as categorias do humanismo contra ele mesmo. A crítica ao sujeito, promovida por muitos filósofos contemporâneos, diz respeito à ideia de filosofia da consciência de que existe uma consciência autônoma e livre chamada de sujeito. “Sujeito” é certamente uma categoria insuficiente, mas é justamente ela que é negada pelo humanismo aos corpos abjetos, aqueles que seriam, no contexto das definições, menos que humanos. A crítica de Butler ao humanismo refere-se a essa classificação por exclusão. Neste caso, a diferença de Butler com o feminismo que defende, sobretudo, as “mulheres” é que ela defende, além das mulheres, todos aqueles que não se enquadram nos discursos que invocam a “natureza” fixa do corpo. Neste sentido, ela defende as potencialidades dos corpos fora das teorias ontológicas clássicas que sempre se pautam por uma ideia de natureza feminina ou masculina. E até mesmo de uma natureza homossexual. Mas a teoria da pensadora vai além da questão da sexualidade e bem pode ajudar a pensar o lugar de todos aqueles que não se encaixam no padrão do homem branco e europeu. Além dos transexuais, os judeus, os negros, os árabes e até mesmo os pobres entram no campo de suas preocupações como corpos que são considerados, pelo “poder”, como desimportantes, vidas que deveriam ser corrigidas ou que não mereceriam serem vividas. Aquele que ataca física ou simbolicamente um homossexual, uma travesti, um negro, uma prostituta, uma mulher sob uma burca, ou, ainda, uma mulher que não é feminina ou sensual (como se as pessoas estivessem obrigadas ao estereótipo) certamente tem em sua base um modo de pensar assegurado por essa visão de mundo compartilhada pelo patriarcado, pelo capitalismo, pelo poder em geral. A cultura, em todas as formas de discurso, do jurídico ao científico, e dos meios de comunicação, ajuda na produção do “abjeto” como um tipo de diferenciação na qual se confina o excluído. O excluído é produzido no discurso: seu lugar é o silêncio que, em termos sociais muito concretos, realiza-se na injustiça de não poder existir. Essa diferenciação precisa ser analisada e desmontada. Somente aí é que algo como a liberdade de existir como se é entrará em cena. Não apenas porque existem muitas pessoas fora das classificações, mas porque é preciso desmontar as classificações para dar lugar à expressão singular contra todo um campo da experiência silenciada e, assim, proibida de existir ou condenada à morte. Os textos que compõem este dossiê centram-se na análise de alguns aspectos da obra de Judith Butler. Cada um, a sua maneira, aproxima- nos das reflexões da pensadora, que tem aberto caminhos de reflexão fundamental sobre a vida de nossos corpos “generificados”, identificados como mulheres e presos nas malhas daquilo mesmo que combatem. No texto de Guacira Louro, temos a chance de nos aproximar do olhar perturbador de Butler como pensadora da subversão; no texto de Joana Plaza podemos ver a conexão entre o “performativo” e a “vulnerabilidade” dos corpos à linguagem; Leticia Sabsay nos fará pensar nas “normas de gênero” e sua possibilidade de re-significação; por fim, Susana de Castro nos oferece uma leitura sobre Antígona, desde que Butler a leu de um ponto de vista queer. No todo, e em cada uma de suas partes, fica evidente o respeito das autoras e sua dívida para com uma filósofa que está abalando as estruturas do pensamento ocidental. A filósofa que rejeita classificações CARLA RODRIGUES Uma das medidas de recepção da obra de um autor é a sua tradução, que provoca novas obras em torno de seu pensamento, produz ecos e reflexões. Desde que foi lançado, em 1993, nos Estados Unidos, o livro Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, da filósofa Judith Butler, foi editado em 23 países, entre os quais o Brasil. Desde então, suas proposições sobre gênero como performance, suas críticas ao ideal identitário e sua abordagem sobre a normatividade de gênero se disseminaram em diferentes campos de estudo: filosofia, antropologia, teoria feminista e teoria queer, da qual, particularmente, se tornou símbolo. Embora não seja seu primeiro livro, foi em Problemas de gênero que muitas das ideias da filósofa ganharam projeção, inaugurando um debate rico para o campo dos estudos de gênero. Ao deslocar o problema de gênero do campo das diferenças sexuais para o da heterossexualidade normativa, Butler renova a pauta feminista por questioná-la sem, no entanto, abandoná-la. Professora na Universidade da Califórnia, onde é co-diretora do Departamento de Teoria Crítica, Judith Butler é anunciada na França como continuadora do pensamento de Michel Foucault – o que ela recusa – e é tida, por muitos autores, como pós-feminista – o que ela também rejeita como classificação. Nesta entrevista, ela expressa seu vigor ao tratar de questões como a crítica à identidade e a afirmação política de sua condição de lésbica, bem como problematiza a naturalidade do desejo heterossexual e a patologização do transtorno de identidade de gênero. Entendo sua filosofia como parte de uma grande linha de pensamento de crítica à identidade e ao humanismo. A crítica à identidade é política, é importante porque pensa os próprios termos em que as identidades são forjadas. No entanto, a senhora também se apresenta e defende determinadas identidades, como lésbica ou judia. Há um paradoxo em criticar as identidades e, ao mesmo tempo, usá-las como estratégia política? Precisamos, inicialmente, estabelecer a distinção entre uma crítica da identidade e uma crítica do humanismo. Por exemplo, podemos imaginar certos humanistas criticando a identidade precisamente porque algumas delas atrapalham nossa compreensão da humanidade comum. Então os dois projetos são diferentes. Quando falamos numa crítica da identidade, não significa que desejamos nos livrar de toda e qualquer identidade. Pelo contrário, uma crítica da identidade interroga as condições sob as quais elas se formam, as situações nas quais são afirmadas, e avaliamos a promessa política e os limites que tais asserções implicam. Crítica não é abolição. Por fim, faz grande diferença se alguém toma “ser uma lésbica” ou “ser um judeu” como fundamento ou base detodas as suas outras visões políticas, ou se, ativamente, compreende que as categorias são historicamente formadas e ainda estão em processo. Então, minha perspectiva é a de que não é útil basear todas as demandas políticas de alguém em uma posição de identidade, mas faz sentido levantar, como uma questão política explícita, como as identidades foram formadas, e ainda são construídas, e que lugar elas devem ter num espectro político mais amplo. Por exemplo, as alianças tendem a ser descritas como a união de várias identidades, mas uma razão pela qual elas são dinâmicas, mesmo democráticas, é que as identidades são transformadas à luz dessa união e, muitas vezes, tornam-se menos importantes quando são constituídas com certos objetivos em mente, como a privatização, a homofobia ou o estado de violência. Em que medida ser lésbica foi o que lhe motivou a repensar os termos da separação sexo/gênero tais quais propostos por Simone de Beauvoir? Ou, em outras palavras, podemos colocar o seu pensamento, sobre a obra da filósofa francesa, como parte de um arcabouço crítico e também excludente ao movimento feminista? Grande parte do meu trabalho se dedica a compreender o que frases como “ser uma lésbica” possam significar. Sim, sou chamada assim, e chamo-me assim em algumas ocasiões, mas não estou certa de que a expressão me descreve no nível do ser! De fato, eu me preocupo com aqueles momentos nos quais o discurso tem o poder de estabelecer “o que eu sou” ou “o que você é” – esperamos que nossos desejos e vidas permaneçam, de algum modo, sem serem capturados por esse tipo de discurso. Não tenho uma posição sobre Simone de Beauvoir, mas acho algumas de suas formulações extremamente úteis. Então, penso que a sua ideia de que alguém “se torna” uma mulher é importante, abrindo a possibilidade de se tornar algo diferente de uma mulher, talvez um homem, ou talvez algo que exija outra forma de prática de nomeação. Não me importa se Simone de Beauvoir concordaria com a última afirmação ou se podemos encontrar justificativas em sua obra para tal assertiva. O trabalho dela tornou o meu possível. Meu trabalho é diferente, e sou grata pelo que ela ofereceu. A senhora se define como feminista? Geralmente não defino a mim mesma, mas se você está perguntando se aceito ser chamada feminista, certamente que sim. Não me compreendo como uma pós-feminista. A senhora se debate com o problema de ter a sua obra classificada como “teoria queer”. Por quê? Não é um problema, mas não existia “teoria queer” enquanto eu escrevia Problemas de gênero. Soube apenas depois de sua publicação que ela foi chamada assim. Então, para mim, é interessante como tais categorias de pensamento subitamente vêm à tona e como alguém pode se encontrar categorizado de uma forma que eu não poderia ter antecipado. Não tenho problemas com isso. Alguns lacanianos desqualificam as críticas feministas ao pensamento de Lacan, afirmando que as feministas não leram ou, se leram, não o entenderam. Afinal, por que o embate com a teoria psicanalítica é tão importante para a teoria feminista? Primeiro, é importante notar que há um amplo espectro de teorias psicanalíticas. Na França e em algumas partes da América Latina, as escolas lacanianas se tornaram hegemônicas, mas, no resto do mundo, esse não é o caso. Há pensadores feministas e queer que não se baseiam primariamente em Lacan, e há outros que o empregam de forma seletiva, considerando algumas posições úteis e outras não. Eu mesma li Freud, Laplanche e Winnicott para grande parte de meu trabalho mais recente, e eles foram extremamente úteis para tentar compreender modos relacionais de ser, que não são baseados no ego e que buscam estabelecer possibilidades de desejo e de sociabilidade fora da estrutura do narcisismo. Lembremos também como os teóricos queer Leo Bersani e Lee Edelman mostraram claramente que, para Freud, a sexualidade não está “naturalmente” ligada à reprodução. Ela tem objetivos que muitas vezes não são compatíveis com a reprodução heterossexual, e isso produz um obstáculo permanente para aqueles que querem afirmar a existência de formas naturais de desejo masculino e feminino ou da própria heterossexualidade. Desde que a senhora publicou Undiagnosing Gender, houve mudanças no DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) em relação à patologização do chamado transtorno de gênero. Qual a sua opinião sobre os termos do DSM-5? Acredita que é necessário manter a disforia de gênero como doença a fim de garantir o apoio dos serviços médicos às cirurgias de mudança de sexo? Minha visão é a de que as instituições sociais e médicas devem afirmar o transgênero como uma importante realidade psíquica e social e fornecer assistência que permita a transição livre da patologização. Considero muito doloroso que as pessoas tenham de se submeter a essa patologização para obter assistência e reconhecimento. Hegel foi um filósofo marcante na obra de Lacan e também na sua. Em que medida as proposições hegelianas sobre o sujeito influenciam seu pensamento? Escrevi minha dissertação sobre a teoria do desejo e do reconhecimento em Hegel. Na época, estava interessada, principalmente, nos modos pelos quais o desejo de reconhecimento é frequentemente vencido, embora permaneça como possibilidade de ser satisfeito apenas na vida ética ou no que chamamos de sociabilidade. Então, uma implicação dessa posição hegeliana é a de indagar sob quais condições o reconhecimento do desejo seria possível? Para a população LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) e para as mulheres, bem como para todas as pessoas, essa é uma questão de grande relevância. Ao mesmo tempo, as categorias disponíveis para o reconhecimento do desejo são invariavelmente limitadas, sofrem transformações e devem ser compreendidas como se constituindo a partir de um processo histórico. Portanto, algumas vezes, a categoria pela qual alguém busca reconhecimento o conduz à derrota do desejo ou o interrompe no percurso. Talvez o desejo exceda qualquer categoria possível de reconhecimento. Se assim é o caso, como isso altera nossa ideia do lugar de tais categorias na política? Nesse sentido, a senhora se considera uma continuadora da obra de Michel Foucault? Eu não continuo, de fato, a obra de ninguém. Encontro tensões muito importantes no pensamento de Foucault e as sigo. Não pertenço, de fato, a uma escola. Foucault continua a ser muito importante para mim. Em relação a Jacques Derrida, a senhora assistiu a muitos de seus cursos nos Estados Unidos. Poderia localizar qual a influência especificamente no seu trabalho de desconstrução do par sexo/gênero? Assisti a muitas de suas conferências e creio que ele ajudou a ensinar uma geração inteira de acadêmicos a ler. Portanto, também tem minha gratidão. Não estou certa de que me engajo numa “desconstrução” do par sexo/gênero, mas certamente emprego formas desconstrutivas de leitura para mostrar como a autoidentidade de categorias sociais revela-se mais complexa do que pareceria à primeira vista. É por isso que, apesar de ser chamada de lésbica, e de chamar a mim mesma assim (embora não diariamente e não em todas as circunstâncias), relutaria em instalar o lesbianismo na ordem do ser. Isso não porque as lésbicas não existam – estamos em toda parte. É porque devemos ser cuidadosas sobre aquilo que queremos expressar com o termo, deixando-o ser um campo de contestação e deixando-o como parte de uma situação histórica na qual ele se efetiva. Isso é diferente da ontologia, e a desconstrução nos ajuda a percebê-lo. Traduzido por Cadu Ortolan. Uma sequência de atos GUACIRA LOPES LOURO Uma garota indisciplinada que não seguia regras e costumava contestar os professores. Uma garota-problema, ainda que reconhecida como inteligente. Assim Judith Butler se lembra de ter sido caracterizada na infância. Por matar aulas e desobedecer às ordens, o diretor da escola advertiu seus pais que ela poderia vir a ser uma delinquente. Havia que desviá-la do mau caminho, e ocorretivo encontrado foi obrigá-la a ter aulas particulares com o rabino. No entanto, contrariando o que pensavam, o castigo pareceu-lhe “uma coisa formidável”. Ela adorava ouvir o rabino, fazia-lhe as mais incríveis perguntas e, acolhida por ele, discutia temas improváveis para quem estava apenas entrando na adolescência. O caráter inquieto, um toque de rebeldia, a constante desconfiança em relação ao que é posto como estabelecido e definitivo parecem ter se tornado seus traços mais marcantes. Se a menina gostava de fazer perguntas, a mulher continuou se mostrando uma questionadora incorrigível; a intelectual passou a pôr em xeque “verdades” consagradas; e a escritora... Bem, seus textos tornaram-se mais famosos pelas indagações que propõem do que pelas soluções ou respostas que eventualmente fornecem. Avessa a palavras de ordem, essa mulher, dita feminista, também não se absteve de pôr em questão algumas das consagradas proclamações do feminismo. Em 1990, ela lançou Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade [Gender Trouble], um livro pleno de questionamentos e provocações que até hoje é, provavelmente, sua obra mais conhecida. Na capa da edição original, da Routledge, uma foto antiga de duas crianças trajando vestidos. Um menino e uma menina? Ou não? Dizem os créditos que se trata do retrato de duas irmãs, uma delas com “jeito” de garoto e a outra com aparência mais “feminina”. A foto perturba o olhar. Perturba a noção de gênero. Sugere gender trouble. O que é gênero afinal? É algo com que nascemos? Algo que nos é designado definitivamente, de uma vez por todas? Algo que aparentamos, por ações, gestos, comportamentos, moda? Como se faz um gênero? Como alguém se torna um sujeito de gênero? E quando isso acontece? O que sexo tem a ver com gênero? Judith Butler mergulhou nessas questões e em muitas outras. Ensaiou respostas, mas longe de se mostrar satisfeita, continuou, ao longo de vários livros e incontáveis artigos, entrevistas e palestras, refazendo as perguntas, complicando o jogo, invertendo a lógica. Claro que ela leu Simone de Beauvoir e, como tantas outras pensadoras, também se remete à clássica afirmação de que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Contudo, sendo uma atravessadora de disciplinas e de áreas, passou a combinar leituras feministas com as de teóricos e teóricas dos mais diversos matizes e é com o aporte desse conjunto heterogêneo que produz suas reflexões, muitas vezes na contracorrente ou até a contrapelo daquilo que leu. É para o “tornar-se mulher”, para o devir que Beauvoir anunciara, que ela volta seu interesse. Entende que esse é um processo contínuo do qual não se pode precisar o fim. Talvez nem mesmo a origem. Mais do que isso, acredita que é um processo do qual nunca se atingiria a meta. E se isso é pensado sobre a mulher, também pode ser pensado sobre o homem. “O gênero”, diz Butler, “é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos, no interior de um quadro regulatório altamente rígido, que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural de ser”. Tornar-se um sujeito feminino ou masculino não é uma coisa que aconteça num só golpe, de uma vez por todas, mas que implica uma construção que, efetivamente, nunca se completa. Butler complica a noção de “identidade de gênero”. Afirma que gênero não é algo que somos, mas algo que fazemos. Não é algo que se “deduz” de um corpo. Não é natural. Em vez disso, é a própria nomeação de um corpo, sua designação como macho ou como fêmea, como masculino ou feminino, que “faz” esse corpo. O gênero é efeito de discursos. O gênero é performativo. É com apoio em Austin e Derrida que Butler desenvolve a noção de performatividade de gênero. Em Austin, ela vai buscar inspiração na teoria dos atos de fala (que distingue entre os enunciados constatativos, aqueles que descrevem um fato, uma situação, e os performativos, aqueles que, ao serem proclamados, produzem, isto é, fazem acontecer aquilo que proclamam). De Derrida (que desconstruíra em parte a teoria de Austin), ela toma emprestadas noções como citacionalidade e reiteração. Relê essas teorias de um modo próprio e explora sua potencialidade para pensar o gênero e o sexo. “INTERPELAÇÃO FUNDANTE” O anúncio “é uma menina” ou “é um menino”, feito por um profissional diante da tela de um aparelho de ultassonografia morfológica, põe em marcha o processo de fazer deste ser um corpo feminino ou masculino, acredita Butler. Esse ato, de caráter performativo, inaugura uma sequência de atos que vai constituir alguém como um sujeito de sexo e de gênero. Para ela, mais do que a descrição de um corpo, tal declaração designa e define o corpo. O anúncio pode ser compreendido como uma espécie de “interpelação fundante”, mas, adverte ela, nada está resolvido de forma absoluta neste momento; a interpelação precisa ser “reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado”. Um grande investimento vai ser empreendido para confirmar tal nomeação. Ela não está absolutamente garantida. Precisará ser repetida, citada e recitada incontáveis vezes, nas mais distintas circunstâncias. E poderá, igualmente, ser negada e subvertida. O devir pode tomar muitas direções. O terreno do gênero é escorregadio e cheio de ambivalências. É interessante pensar que o corpo vem a existir através de um discurso – generificado – que se faz sobre ele. Admitindo esse argumento, parece razoável supor que não há corpo que não seja, desde sempre, generificado, isto é, marcado por, ou feito no, gênero. E é por vias como essa que Butler acaba perturbando a distinção sexo/gênero. O sexo, assim como o gênero, é efeito de discursos. Ela entende que a nomeação de um corpo implica, ao mesmo tempo, o estabelecimento de fronteiras e a repetição de normas de gênero. Impossível esquecer que essa nomeação é feita “no interior de um quadro regulatório altamente rígido”, o da heterossexualidade. Tudo isso, contudo, parece sugerir um determinismo ou uma estabilidade que não combinam com a pensadora dita inquieta e desobediente. Quais as possibilidades de desvio? Como se perturbariam as normas? Onde se encontraria espaço para a subversão? Como ou quando ocorreriam rupturas, repúdios? Butler discorre sobre esses temas em muitos de seus textos e palestras. Mas talvez seja particularmente expressiva quando conta, num depoimento gravado para a televisão francesa, o quanto e como sua família judia buscava integrar-se à sociedade norte-americana. Na tentativa de incorporar as normas de gênero daquela sociedade, lembra que sua mãe, seu pai e também seus avós buscavam se aproximar mais e mais das referências de masculinidade e de feminilidade então predominantes, aquelas que representavam, na sua percepção ou na percepção da época, o que seria desejável. Hollywood era sua referência. Os astros e as estrelas hollywoodianos pareciam expor ou representar as formas mais acabadas dos dois gêneros. Butler recorda, então, as tentativas e as falhas dos homens e das mulheres de sua família. E, ao narrar esse episódio, ela afirma, com veemência, que o fracasso é sempre possível; na verdade, acentua, “o fracasso talvez seja mais interessante”. Performativos de gênero são repetidos constantemente. Citados e recitados em contextos e circunstâncias distintas; no âmbito da família, da escola, da medicina; na mídia, em suas mais diversas expressões; nas regulamentações da justiça ou da religião. Não obterão, contudo, exatamente os mesmos resultados. Os efeitos dos performativos são sempre imprevisíveis. A possibilidade de insucesso, que Derrida já demonstrara ao analisar a teoria de Austin, é explorada por Butler em sua reflexão sobre o gênero. A falha, que é intrínseca aos performativos, pode ser produtiva. É na possibilidade do fracasso que reside o espaço para a ressignificação e para a subversão no terreno dos gêneros e da sexualidade. Mas tudo isso acontece por acaso ou por escolhados sujeitos? Em outras palavras, alguém se empenha deliberadamente em fracassar? Ou tenta ser bem sucedido e fracassa? Serão os fracassos sempre subversivos? Aqui um dos pontos escorregadios e complexos do pensamento de Butler: a possibilidade de agência dos sujeitos. Ela afirma, em vários de seus textos, que o gênero é uma escolha, mas observa que essa não é uma escolha absolutamente livre. É impossível imaginar alguém que, colocado em algum lugar fora do gênero (onde?), seja capaz de escolher o que deseja “ser”. Uma vez que “alguém já é seu gênero, a escolha do ‘estilo de gênero’ é sempre limitada, desde o início”, como diz Sara Salih em seu livro sobre Butler. A possibilidade de agência é, portanto, sempre restringida. O sujeito pode, sim, interpretar as normas existentes; pode ressignificá- las, dotá-las de um significado distinto; pode, eventualmente, organizá-las de um jeito novo, ainda que isso seja feito de modo constrangido e limitado. Efetivamente, estamos sempre fazendo isso. Todos os sujeitos interpretam, de seu jeito, continuamente, as normas regulatórias de sua cultura, de sua sociedade. Mas (e a adversativa é importante) aqueles e aquelas que não “fazem” seu gênero “corretamente” são, muitas vezes, punidos. Os desvios, a depender das circunstâncias em que acontecem, a depender de sua extensão ou intensidade, costumam implicar em danos simbólicos e físicos, morais e sociais. As falhas e desvios podem, por outro lado, se constituir em oportunidade para reconstruções subversivas da identidade; podem até mesmo, aposta Butler, se prestar a uma política de ressignificação dos gêneros. O desprezo e o escárnio usados para nomear quem se desvia das normas de gênero podem ser revertidos. A designação ofensiva pode ser ressignificada. Ainda que os vestígios de um discurso de ódio não sejam completamente apagados, eles podem ser reconfigurados. A nomeação injuriosa pode ser reapropriada de forma afirmativa. Normas de gênero podem também ser citadas em contextos distintos, exibidas de modo a expor, de forma radical, seu caráter fabricado e construído. É o que faz, por exemplo, uma drag queen. A drag se aproxima do objeto que imita e, ao mesmo tempo, o expõe e o critica. Pelo excesso e pelo exagero, escancara as normas de gênero e demonstra seu caráter artificial. Ela pode ser vista como um exemplo de subversão e também de possibilidade de agência. Mas (e de novo a adversativa) a figura da drag não será sempre, necessariamente, subversiva. Por vezes, as formas paródicas de gênero acabam por provocar, tão somente, o riso inconsequente. De algum modo domesticadas ou colonizadas no interior da matriz heterossexual, elas podem, mais uma vez, por vias outras, reforçar as diferenças e as hierarquias. As normas de gênero acabam por se impor sempre, inexoravelmente? É possível driblá-las de algum modo? Quais as possibilidades e os limites para a agência? Quando uma reconstrução é efetivamente subversiva? Quando se constitui em renovada dissimulação das normas? A inquietude de Butler contagia. O percurso da performatividade JOANA PLAZA PINTO O gênero é performativo? A sexualidade é performativa? A performatividade produz o corpo? Efeitos performativos podem ser ou tornarem-se efeitos materiais? Quando se trata de entender a obra de Judith Butler, a palavra performatividade é parada obrigatória. Do livro que a tornou famosa, Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, de 1990, às obras mais recentes, como Frames of War, de 2010, a palavra percorre as discussões e as posições da autora. De onde vem, por qual percurso e qual a importância dessa palavra para a obra dessa fundamental pensadora feminista do século 21? Arrisco, aqui, a traçar um percurso dessa palavra em sua obra, dentro dos limites que o espaço deste artigo e meu conhecimento permitem. O risco é inerente ao se contar uma estória, ao se produzir significado: a cada repetição, há alteração. Essa ideia derridiana, no pano de fundo do percurso de uma palavra cunhada pelo inglês J. L. Austin, é uma margem contagiante das ideias da pensadora sobre o performativo. Em sua veia intelectual “promíscua”, como a própria autora diz, a performatividade é um conceito em desenvolvimento, mutante de sua própria performance teórica, política e editorial, uma instabilidade legada obliquamente de Austin e de sua obra “paciente, aberta, aporética, em constante transformação”, como afirmado por Jacques Derrida. DO ATO PERFORMATIVO À PERFORMATIVIDADE O contexto estadunidense de recepção da obra de J. L. Austin é a paisagem por onde vagueia a performatividade de Butler, pelos tráficos de interpretação e política editorial a que foram submetidas as ideias austinianas nos Estados Unidos. Em 1955, o filósofo inglês J. L. Austin ofereceu suas famosas William James Lectures na Universidade de Harvard. Essas conferências, publicadas em 1962, um ano depois de sua morte, marcaram a história da filosofia contemporânea com seu termo mais conhecido, o performativo. Em confronto com os fetiches verdadeiro- falso e valor-fato da tradição filosófica, Austin propõe uma discussão sobre os enunciados que não são nem verdadeiros nem falsos, não descrevem nem servem para informar, mas sim fazem algo. Ele nomeia tal tipo de enunciado de performative, derivando esse nome do verbo perform, um verbo usual em inglês para ação. Numa intrincada argumentação, Austin defronta o que tinha sido um relativo consenso da filosofia da linguagem até então: usamos a linguagem para dizer o verdadeiro ou o falso. Sua posição pode ser resumida na ideia sintetizada pelo título em inglês da sua obra mais popular, How to Do Things with Words (livro traduzido para o português, pela Editora Artes Médicas, em 1990: Quando dizer é fazer). É com uma preocupação da mesma natureza que Butler inicia seu uso da palavra “performativo”: como se faz (e se desfaz) gênero com palavras? Num artigo de 1988, intitulado “Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist Theory”, ela usa a noção de ato performativo para discutir como o gênero é constituído por atos de repetição estilizada. Aqui, Butler menciona apenas John Searle, o intérprete oficial de Austin nos Estados Unidos, para rapidamente descartar sua interpretação do performativo, porque esta estaria preocupada com os compromissos, entre falantes, feitos através da linguagem. A autora prefere discutir uma teoria da ação, de influência fenomenológica, que seja radical em sua visão da linguagem, que torna o próprio sujeito objeto de seu fazer. É assim que a autora cita o conhecido epíteto de Simone de Beauvoir – “Não se nasce mulher, torna-se uma” – para fundamentar sua posição de que gênero é uma realização performativa compelida pela sanção social e o tabu, e é nesta característica performativa que reside a sua possibilidade de contestação. Em Problemas de gênero, vemos essa ideia desenvolvida e começamos a entender o descarte da interpretação searleana do performativo. Nessa obra, a única inteiramente traduzida no Brasil, Butler propõe o que ela mesma qualifica como uma reformulação feminista do pós-estruturalismo e do próprio feminismo. Entre tantas autoras e autores conhecidos como pós-estruturalistas na cena estadunidense, o opositor preferencial de Searle na disputa pela interpretação de Austin: Jacques Derrida. O filósofo francês participou de uma querela acadêmica internacional com Searle a respeito da obra de Austin. O debate entre eles, entre 1977 e 1990, introduziu nessa cena estadunidense alguns conceitos centrais para se entender a performatividade em Judith Butler: iterabilidade e citacionalidade. A questão entre Searle e Derrida pode ser sintetizada (a custo da profundidade necessária para discuti-la) como uma diferença de projeto filosófico: enquanto Searle procura dar continuidade à obra de Austin nos moldes do valor de verdade proposicional (aquele mesmo que Austin ironiza sem hesitação em seus textos), Derrida procura enfatizar a originalidade antilogicista do texto de Austin.
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