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Cult #185 Judith Butler

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Sumário
entrevista Adriana Calcanhotto
cinema
Nostalgia da máquina
retrato do artista Donizete Galvão
coluna
Marcia Tiburi
Alcir Pécora
Christian Dunker
dossiê Judith Butler
Feminismo como provocação
A filósofa que rejeita classificações
Uma sequência de atos
O percurso da performatividade
Incertezas políticas e a relacionalidade
Queerificando Antígona
livros
Memórias de tempos sombrios
À beira do ataque de fúria
O espantalho da informação
laboratório de jornalismo cultural
Uma ode psicodélica
As várias faces da era digital
oficina literária
Fábio Oliveira
colaboraram nesta edição
entrevista Adriana Calcanhotto
A arca tropicalista de Adriana Calcanhotto
MARCUS PRETO
Se os anos 1980 foram dominados pelo rock, coube à geração 1990
trazer de volta, ao centro da nossa música pop, os elementos
brasileiros (o samba, sobretudo – mas não só ele) descartados na
década anterior.
Adriana Calcanhotto, um dos principais nomes desse ambiente de
transição, foi ainda mais ousada em seu projeto artístico. Seguindo a
cartilha tropicalista, a cantora e compositora gaúcha levou, ao rádio e
à televisão, suas fusões de canção popular com poesia (Waly
Salomão, Antonio Cicero, Carlos Drummond de Andrade, Gertrude
Stein) e suas referências às artes plásticas (Helio Oiticica) e ao
cinema (Joaquim Pedro de Andrade), entre outros.
Em 2004, Adriana lançou o primeiro álbum infantil – o primeiro
dos três que assina com o heterônimo Adriana Partimpim. O
repertório vem do mundo adulto: canções como “Fico assim sem
você”, da dupla Claudinho e Buchecha, “Bim bom”, de João Gilberto,
e “Taj Mahal”, de Jorge Ben Jor. Sinal de seu esforço para romper as
fronteiras entre a criança e o adulto, entre o pop e o erudito.
Nesse mesmo espírito, Adriana lançou, no mês passado, uma
versão atualizada da Arca de Noé, clássico álbum infantil de Vinicius
de Moraes (1913 – 1980). Na nova Arca, ela canta a inédita
“Elefantinho” e assume a produção. O disco tem adesões de Maria
Bethânia, Gal Costa, Marisa Monte, Caetano Veloso, Chico Buarque,
Erasmo Carlos, Arnaldo Antunes e outros.
Sei que a ideia de refazer a Arca de Noé veio de Susana Moraes,
filha de Vinicius. Mas, a meu ver, essa ideia se encaixa
exatamente em, pelo menos, dois aspectos fundamentais da sua
empreitada artística, por questionar as fronteiras entre: 1) poesia
e canção; e 2) música “para adulto e para criança”. Foram esses
aspectos que te moveram a produzir o disco? Quais outros?
Foram, sim. Um outro foi justamente a minha admiração pela obra de
Vinicius de Moraes escrita para crianças, que foi forte influência na
aventura Partimpim. A voz com que ele fala e as coisas que diz sobre
a vida, sobre a natureza, sobre presa e predador, daquele jeito
Vinicius, profundo, mas “relax”, meio moleque, são geniais. O gesto
dele me encanta.
No projeto, você canta uma parceria póstuma com Vinicius,
“Elefantinho”. Deve ser um tanto delicado interagir com a obra
de um artista morto, penso eu. Sobretudo, por se tratar de
Vinicius de Moraes, um nome ligado a um dos ápices (se não o
próprio cume) da nossa canção popular: a bossa nova. Surgem
ansiedades específicas ao lidar com isso?
Não necessariamente. Cada compositor faria uma coisa para o
“Elefantinho”, e Partimpim fez a dela. Estou musicando um poema,
não o poeta. A propósito, tenho outra parceria com Vinicius, para
“adultos”. Francis Hime fez, com o poeta, uma melodia que ficou
sem letra e que, anos depois, me pediu para letrar. Aí sim, ansiedades
específicas.
Ansiedades específicas?
Francis, muito organizado e polido, me deu seis meses para fazer a
letra, mas só fiz no último dia, aos quarenta e seis minutos do
segundo tempo. Ia ligar para ele dizendo “não consegui”, aí a letra
saiu.
Em seu novo show, você canta uma parceria inédita com Waly
Salomão. Sua relação com ele foi fundamental para que você
desenhasse sua própria identidade artística, certo? De qual tipo
de influência ele te impregnou?
Adoro o poema e musiquei já há algum tempo, já havia cantado essa
música em shows com Macalé. Mariana de Moraes gravou a canção
no disco que ela está preparando, e ficou muito bonito. Ela lê todo o
pedaço do poema que não musiquei. Éramos complementares como
temperamentos – e isso já era rico o suficiente. Ele era muito exigente
comigo, e isso foi a coisa mais amorosa que me deu. Sinto muita falta
do meu amigo. Waly gostava de mudar o mundo o tempo inteiro. Do
que me impregnou? Da insubordinação, eu acho.
Ele era exigente com você e a defendia dos outros. Eu me lembro
de vocês em uma entrevista de TV, bem no começo de sua
carreira. A cada pergunta enviesada do repórter, Waly disparava
versos de músicas suas: “Adriana não gosta do bom gosto!
Adriana não gosta de bom senso! Adriana não gosta dos bons
modos!”. Naquele dia, percebi que ele tinha comprado o seu
discurso poético, que se identificava mesmo com seu texto.
Quando ele te percebeu?
Não lembro. Mas, a partir disso que você está contando, imagino que
tenha sido por aí, quando escrevi “Senhas”. Anos depois, ele adorou
[a canção] “Vamos comer Caetano” e começou a me chamar de
Tinhosa.
Voltando ao verso: “Eu não gosto do bom gosto”, essa mensagem
havia sido levada, com muita eficiência, pela Tropicália, uns 25
anos antes, mas, àquela altura (“Senhas” é de 1992), já precisava
ser reafirmada. O medo do mau gosto nos atrapalhará para
sempre?
Penso que atrapalha, sim, infelizmente. As pessoas precisam
continuar a classificar as coisas como “chique” ou “cafona”, e eu não
conheço coisa mais cafona do que isso. É redutor, defendido,
inseguro. Jean Genet era chique? Arthur Bispo do Rosário era
chique? Amy Winehouse era chique? Essa questão me cansa um
pouco.
Antonio Cicero sempre me pareceu um contraponto à
personalidade do Waly, embora os dois fossem grandes e
inseparáveis amigos. Posso repetir a pergunta que fiz acima? De
qual tipo de influência ele te impregnou?
Um contraponto à personalidade de Waly... Qualquer coisa era um
contraponto àquele furacão amoroso. Mas a chave entre os dois, entre
nós, era o humor. Nossos encontros para trabalhar (ou não) eram mais
ou menos assim: um falando sem parar, feito uma metralhadora, sem
nenhum tipo de filtro; o outro pensando bem o que dizer e, quando
conseguia uma brecha, em geral, dizendo uma maluquice; e uma
escutando. De repente, gargalhadas de chorar. Cicero compartilha seu
vasto conhecimento e cultura, passa livros que acha que devo ler,
sugere coisas, fala da Grécia, dos poetas antigos, de filosofia, e é
maravilhosa companhia de viagem. Hoje em dia, a bem da verdade,
nosso assunto mais importante são nossos gatos.
Em entrevista com Cicero, que fiz para a CULT, falamos sobre a
canção “Inverno” – para mim, o melhor fruto da parceria de
vocês. Provavelmente, todos os seus fãs sabem cantá-la de cor.
Mas todos aqueles com quem conversei entendem a letra como a
descrição de um fim de relacionamento – quando, na verdade, ela
trata do momento inicial, do princípio da paixão, do
atordoamento. Cicero me disse, então, que “o inconsciente e o
acaso têm parte da autoria de qualquer obra de arte, de modo
que é sempre possível que alguém descubra coisas que hajam
escapado ao próprio autor”. Há muito desse inconsciente agindo
em sua obra?
Tenho a impressão de que isso acontece com qualquer obra, ou,
então, algo saiu errado. Concordo com Cicero quando diz que “o
inconsciente e o acaso têm parte da autoria de qualquer obra de arte”.
Lembro-me de um diretor artístico da minha gravadora explicando
que, por exemplo, quando Roberto Carlos canta uma canção que
começa com “Outra vez”, da Isolda, cada ouvinte, a partir desse mote,
entrará na frequência que deseja. E, a partir daí, ouvirá a canção
muitas vezes, conforme o que quer ouvir – e não necessariamente o
que a letra da canção está dizendo.
Em entrevista recente, perguntei a Luiz Tatit como os
compositores da nova geração da música brasileira estavam
lidando com a poesia concreta. Ele respondeu que, embora
Caetano Veloso tenha sido um dos primeiros a casar concretismo
e canção popular,Arnaldo Antunes é a referência forte para esses
jovens, porque seu método de lidar com o concretismo na música
resulta em algo realmente pop, que pode ser consumido por todo
mundo. Os métodos de Arnaldo, eu imagino, também te
influenciaram para que você criasse sua própria relação entre
canção e poesia concreta. Estou maluco?
Mas quem não está maluco? Arnaldo é um artista que me influenciou
desde os Titãs, depois na corajosa carreira solo, no trabalho plástico,
no trabalho para as crianças, nos livros publicados, no jeito que
dança, nas roupas que veste, nas canções que manda para Maria
Bethânia (em vez de mandar para mim). Estou sempre de olho nele,
sou muito fã, ele é um fofo.
Você e artistas como Marisa Monte, Cássia Eller, Zélia Duncan,
Chico César, Pedro Luís, Paulinho Moska, Zeca Baleiro,
Carlinhos Brown e mesmo o Arnaldo, em carreira solo, foram
responsáveis por trazer de volta elementos brasileiros ao centro
do nosso pop. Esse fio foi perdido nos anos 1980. Penso ter sido
esse o primeiro legado importante da sua geração. O que acha?
Acho que a MPB ficou em baixa no momento em que só se tocava
rock/pop brasileiro. Era ainda o tempo em que as rádios eram
monocórdicas, todas iguais, tocando um único “ritmo do momento”.
Hoje, cada um ouve o que quer e tudo ao mesmo tempo. Ficou claro
que a MPB nunca deixou de produzir coisas muito importantes,
mesmo quando perdeu espaço nas rádios.
Sua primeira experiência na literatura, Saga lusa, foi escrito num
estado alterado: você estava em plena crise de pânico. Não estar
com os pés no chão foi o que lhe deu, além do mote, a coragem
para escrever um livro? Porque tem isso: se alguém dissesse que o
livro era ruim, você poderia dizer: “Eu estava louca, não enche!”.
E mais: um próximo livro está nos planos?
[risos] Adoro, porque você pergunta e já responde. A literatura, e não
a minha escritura, foi o que me salvou naquele momento difícil em
que eu não controlava minha própria mente. Nunca tinha passado por
isso e não pretendo passar outra vez, mas, enfim, o emaranhado de
textos do mundo que está no subconsciente coletivo foi a minha tábua
de salvação. Estou lançando a Antologia ilustrada da poesia
brasileira para crianças de qualquer idade, que é um livro que não
escrevi, mas que estou feliz de ter inventado. De todas as coisas que
fiz na vida, esta me parece ser a mais útil, sendo que sou paga para
criar coisas sem utilidade alguma.
Conta mais dessa antologia...
Ana Cecilia, editora da Casa da Palavra, me ligou, perguntando se eu
teria uma ideia, algum projeto de livro para crianças. E respondi que
sim. Porque, há muito tempo, eu tentava encontrar uma antologia, de
nossos poetas, ilustrada, com poemas que não necessariamente
tivessem sido escritos para elas, mas pelos quais elas pudessem se
encantar. Lançada em julho na Flipinha, chama-se Antologia
ilustrada da poesia brasileira para crianças de qualquer idade e é
um sonho realizado. Acredito que, quanto mais cedo se entra em
contato com a poesia, melhor. Melhor para as crianças, portanto,
melhor para o mundo.
As maneiras de lidar com a música mudaram definitivamente na
década passada. A revolução começou pela indústria, mas já se
imprime no ofício do artista, na maneira de criar e de pensar a
arte. Como isso se deu com você, uma artista nascida da indústria
forte, do rádio, da novela?
Vou indo. Quando comecei minha trajetória, não havia a internet, os
celulares, o mundo virtual. Tecnologia sempre houve, uma caneta é
tecnologia, mas acho interessante testemunhar tantas mudanças. Tudo
o que vi, em termos de avanço digital, não esperava ver, achava que
se daria no tempo dos meus netos.
Mas elas já modificaram profundamente sua maneira de criar?
Ou é a caneta que ainda vale?
A internet é uma grande ferramenta de pesquisa. Quando eu escrevia
com canetas, não sonhava que um dia poderia acessar, de casa, a
Biblioteca Nacional da França, a Ambrosiana, de Milão, ou a de
Alexandria. Mudou minha maneira de trabalhar – para o bem, quero
crer. A caneta, uso para dar autógrafos e fazer set lists.
Você busca caminhos, observando o que a nova geração de
artistas vem fazendo na música brasileira?
Muito, porque agora cada um inventa seu método, cada um quer ser o
que é, quer se inventar, cada vez mais vejo menos clones de ídolos e
acho o máximo. Um excelente álbum, novo, vivo, pode ser gravado
em um laptop, em casa. Acho isso sensacional. Mas eu gosto é do
silêncio.
Quem te impressiona nesse novo cenário?
Gosto de Ava Rocha, Alice Caymmi, Thaís Gulin, Mallu Magalhães,
Max, Qinho, estão faltando nomes, claro, minha memória é uma pá
furada, mas, em suma, gosto da galera que gosta de saltar sem rede. 
cinema
Nostalgia da máquina
LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR.
Em A invenção de Hugo Cabret, de 2011, Martin Scorsese prestou
sua justa homenagem a Georges Méliès, o grande prestidigitador do
cinema em seus primórdios. Ambientado numa estação de trem do
começo do século passado, o filme lança mão do 3D e das tecnologias
digitais mais avançadas para, num evidente paradoxo, compor o canto
elegíaco da antiga era mecânica da qual o cinema, no contexto de seu
surgimento, funcionara como uma espécie de epítome. A narrativa se
constrói em torno de uma série de emblemas dessa era mecânica (o
relógio, a locomotiva, o autômato), deixando clara a vontade de
Scorsese de falar de uma época em que o homem, para produzir a
energia e o movimento que alimentam a vida moderna, dependia de
todo um maquinário intrincado e pesado, que operava numa lógica
bem distinta do atual paradigma do mundo digital, pautado na leveza
e na flexibilidade de seus dispositivos.
Em Holy Motors, de 2012, cujo título já diz tudo, Leos Carax
manifesta uma mesma nostalgia pelos aparatos mecânicos que tinham
sido responsáveis pela existência do cinema. Mas ele enxerga esse
desaparecimento da máquina de maneira muito mais complexa e
melancólica que Scorsese. Inventado por homens de formação
científica e de espírito empreendedor (Thomas Edison, irmãos
Lumière), o cinema oferece a artistas como Carax, de verve
romântica, a possibilidade de utilizar as energias do mundo de forma
criativa e transformadora. Uma utopia maquínica que a era digital
desencorajaria.
Howard Hawks, um dos mestres da Hollywood clássica, dividiu
sua juventude entre a escola de engenharia e as pistas de corrida
automobilística, até descobrir que o cinema condensava as duas
coisas: uma máquina que propiciava tanto a invenção e a descoberta,
a arquitetura de lugares e de durações quanto a experiência da
velocidade e do perigo. Filmar era estabelecer uma relação de
confronto com o mundo, tendo a máquina-cinema como mediadora
irrefutável. Mesmo no “cinema-verdade”, de Jean Rouch, que, dentro
de sua perspectiva etnográfica, procurou diminuir o peso do aparato
cinematográfico e minimizar sua presença intimidadora, a máquina se
fazia passagem obrigatória. Em Crônica de um verão, de 1961, que
começa com uma enquete nas ruas de Paris, um senhor se assusta
com o microfone que a entrevistadora aproxima dele. “É só um
microfone”, ela diz. É só um microfone, mas é o suficiente para
instaurar o conflito entre o cineasta e o outro.
Hoje, quem quiser “assustar” alguém com uma câmera e um
microfone terá de viajar muitas léguas. A máquina sumiu, ou tornou-
se invisível (real ou simbolicamente). A vasta oferta de câmeras
portáteis, que cabem no bolso, é só o epifenômeno de uma profunda
transformação no modo de pensar e de conceber as imagens. A
aclimatação da câmera na mobília da vida social cotidiana gera outra
forma de mediação entre o olhar e o mundo. Uma mediação mais
leve, por assim dizer – seja porque a câmera realmente diminuiu de
tamanho e peso seja porque nos acostumamos a ela a tal ponto que
não mais percebemos sua “ameaça”.
GESTO INAUGURAL
Na época em que Walter Benjamin escreveu o célebre ensaio “A obra
de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, a presença ostensiva
da máquina era algo incontornável nos sets de filmagem.
“Representar à luz dos refletores e, ao mesmo tempo, atender àsexigências do microfone é uma prova extremamente rigorosa”,
afirmou Benjamin. O ator de cinema não atuava para uma plateia,
mas para uma máquina. Sua performance precisava ser convincente
não apenas aos olhos do diretor e dos técnicos, mas, sobretudo, à luz
da “verdade mecânica” da câmera. O triunfo do intérprete, nessas
condições adversas, aparecia, assim, como a vingança do homem
sobre a máquina, para o gozo coletivo de uma massa de espectadores
que passara o dia nos balcões e nas fábricas, vendendo sua força de
trabalho a um mundo maquinizado e automatizado.
Chaplin, na obra-prima Tempos modernos, de 1936, já havia
mostrado as duas faces da moeda: a submissão do trabalhador a uma
jornada exaustiva, em que ele só interage com máquinas, afeta sua
saúde mental e física (após repetir mecanicamente o mesmo gesto
durante horas, Carlitos degringola e provoca uma grande confusão na
fábrica), mas produz também, nesse contágio maquínico, que resulta
num comportamento anárquico do corpo, uma explosão de energia
com potencial revolucionário. Não à toa, houve um elogio da
máquina e da eletricidade, tanto nas vanguardas heroicas (a exemplo
do construtivismo russo) como no cinema dos anos 1920 (de Jean
Epstein a Dziga Vertov). A máquina é aí associada à ideia de
mudança, de motor da história, de força transformadora. E o cinema,
máquina de visão, não fica encarregado apenas de captar ou restituir a
realidade, mas, acima de tudo, de reconstruí-la na mise en scène e na
montagem. Um filme, segundo Eisenstein, deve fabricar conceitos e
estimular uma nova percepção/compreensão do mundo. Vertov,
igualmente interessado no cinema como catalisador de sinapses e
sensações, elabora em O homem com a câmera, de 1929, uma
sinfonia urbana nutrida pelas correntes de energia coletivas, geradas
pela interação dos homens com os meios de transporte, produção e
comunicação modernos, tudo confluindo na poesia visual de um novo
mundo mecanizado. Em ambos, o cinema é a máquina que redime a
civilização industrial ao se oferecer – na mais perfeita dialética do
materialismo histórico – como ferramenta de transformação do
pensamento coletivo e de propagação do impulso revolucionário.
Já no contexto do cinema moderno, Godard, depois de realizar
Acossado, de 1960, com materiais leves e total despojamento, sentiu
necessidade de trabalhar com uma câmera que pesasse toneladas – e
de flertar com a estrutura de produção industrial –, executando
aqueles lentíssimos travellings de O desprezo, de 1963. Ele precisou
sentir o peso da criação. O esforço com que se filmava na época das
grandes câmeras e dos aparatos dispendiosos é uma “dificuldade de
criação” da qual Godard sente falta na era dos dispositivos portáteis e
facilmente manuseáveis. Não que ele alimente um sentimento
passadista, pelo contrário: ele assimila os novos materiais e, mais do
que isso, leva-os às últimas consequências. Basta ver o trabalho
plástico que extrai das imagens e sons obtidos com uma câmera de
celular na primeira parte de Filme socialismo, de 2010.
Filmar é encontrar problemas e aceitar o desafio de solucioná-los.
Ao se diminuírem os problemas, diminui-se também a energia –
física, psíquica, libidinal, hermenêutica – investida nas imagens (por
quem as fabrica e por quem as consome). Como, então, devolver o
seu peso ao mundo filmado, o seu desconforto, como restabelecer a
distância mínima entre a vontade de imagem e sua possibilidade real
(distância cuja percepção é o gesto inaugural do impulso criativo),
como reencontrar as constrições que estimulam o artista, em plena era
da leveza e da diluição das câmeras no cotidiano? A resposta, talvez,
resida em outro tipo de maquinação: aquela operada pela inteligência.
É isso, pelo menos, o que Abbas Kiarostami parece já vir
demonstrando desde os anos 1990, com filmes que são verdadeiros
dispositivos conceituais, unindo um trabalho abstrato de
agenciamento intelectual à construção material de uma máquina de
cinema formada, em geral, por um carro e uma câmera. Máquinas de
inteligência que suprem a lacuna deixada pelo fim dos “motores
sagrados”. 
retrato do artista Donizete Galvão
Palavras sujas de realidade
CLAUDIO DANIEL
Donizete Galvão desenvolve, em sua poesia, um catálogo de motes
obsessivos, em que se destacam tempo, memória, cidade, insetos,
animais, pequenos acontecimentos da jornada ordinária e a busca da
epifania possível numa era de “homens inacabados”. Mircea Eliade,
no Tratado de história das religiões, define epifania (do grego epi,
sobre, phaino, brilhar) como a manifestação inesperada do divino ou
o acesso súbito à sabedoria, tal como as revelações obtidas em
sonhos, transes xamânicos ou experiências e rituais com
alucinógenos. O conceito de epifania passou a ser usado na
modernidade por autores como James Joyce, num contexto laico e
profano, para designar percepções estéticas que causam uma reação
emocional intensa de horror ou de deslumbramento. A escrita de
Donizete Galvão apresenta diferentes momentos epifânicos, em geral,
relacionados à contemplação da natureza (“Caminho de vacas, /
cascos / cavando / trilhas / na grama”), à escuta das canções de Nina
Simone (“Voz de soda cáustica / roendo a carne / até cavar um
fosso”), ao convívio com as obras de artistas plásticos, como Paulo
Pasta ou Renina Katz (“Paisagem irreal, / onde se respira / um ar
rarefeito: / o mundo suspenso / por um fio / no limiar da dissolução”),
mas especialmente à observação de cenas que são retiradas de sua
condição imediata e reconfiguradas em alegorias, como acontece em
“O grito”: “O porco guincha / e sob a pata dianteira / sai a golfada de
sangue / que enche a bacia. // Horas depois, / pronto o chouriço, /
comemos o sangue preto, / as tripas, o grito” (do livro Ruminações).
Esse poema, de fortes cores expressionistas, não é apenas a descrição
minuciosa de um acontecimento que o autor pode ter presenciado (ou
não) em sua cidade natal, Borda da Mata, situada no interior mineiro;
é também a construção do pensamento por meio de imagens e
impressões sensoriais que envolvem a imaginação do leitor, fazendo
com que ele compartilhe a degustação das tripas misturadas ao grito,
metáfora do desconforto da condição humana.
CONSCIÊNCIA DE LINGUAGEM
Em Azul navalha, livro de estreia de Donizete Galvão, publicado em
1988, o tema principal é a cidade – o espaço perdido da infância,
agora transformado em cenário mental (“Ele fundou uma cidade na
memória, / território de sonhos que a tudo acolhe. / Ruas que são
matas / que são rios / que são abismos / em ilógica geografia”). Em
As faces do rio, publicado em 1990, o autor amadurece a consciência
de linguagem em peças de maior elaboração formal, como a notável
composição “Prisioneiro na pedra”, de versos breves, enigmáticos, e
de construção elíptica: “Na pedra, / ele espreita: / peixe, pássaro, lua.
/ Seu olho-flecha / nunca fere a presa. / Pois que tudo se move; / rio,
céu, satélite / e até mesmo a pedra. / Não se move o homem, / cego à
teia / que à sua volta cresce”. A pedra é um elemento que comparece
em diversos poemas de Donizete Galvão (especialmente em seu
terceiro livro publicado, Do silêncio da pedra, de 1996), geralmente
associada à “esterilidade do deserto e, em última instância, à morte”,
mas também a aspectos positivos, como “anteparo e abrigo”, segundo
Paulo Vizioli. A pedra se contrapõe à água, outro símbolo frequente
na poesia de Donizete Galvão: se a pedra é silêncio e imobilidade, a
água é ruído, movimento, devir temporal, rio heraclítico em que
entramos e não entramos, somos e não somos: “Tudo que nos é dado
a maré leva / e devolve como restolho”. Em A carne e o tempo, livro
publicado, em 1997, com a reprodução de uma aquarela de Paul Klee,
o tema central é o caráter efêmero dos viventes e do mundo (“Somos
homens de frágil arquitetura / tessitura de finos fios de vidro, / renda
tramada por aranhas”), embora o sagrado também compareça – não
como promessa de redenção futura, mas como possibilidade de
encantamento na vida presente com as pequenas coisas que nos
iluminam,como a lembrança de figos maduros, a contemplação da
chuva de primavera, ouvir a música de Villa-Lobos, assistir à dança
de Madhavi Mudgal ou observar as litografias de Renina Katz. Para
Donizete Galvão, há “um deus de pedra / (...) deus que não pune /
deus que não salva”.
PERGUNTAS SEM RESPOSTAS
Ruminações, publicado em 1999, é o livro mais telúrico do autor,
formado por pequenas narrativas que incorporam paisagens do
interior mineiro, sem cair em fácil retórica nativista: o poeta
transforma o regional em universal em composições como “Reboco”
(“Para quem não tem muito, / tudo tem serventia: / a argila, a bosta da
vaca, / o perfume da grama”), “Escoiceados” (“Levamos / bons
coices. / Meu pai e eu. / Os dois / nunca subimos / na vida”) e
“Autorretrato como boi” (“No curral da insônia / rumino palavras
pastadas / na ribanceira dos dias”). Um poema notável deste livro,
pela técnica de construção da narrativa, é “Sexta-feira da paixão”: “A
mulher que ganhou os peixes / não traz os olhos cabisbaixos / nem os
ombros arqueados. / Treze peixes finos e prateados / deslizaram para
dentro da sacola. / (...) Usará a frigideira preta / que fica no armário
da pia? / Vai passar os peixes na farinha, / fritá-los e servi-los bem
sequinhos”. O poema é arquitetado na forma de perguntas sem
respostas, em que a descrição minuciosa do cenário se mistura a um
engenho imaginativo que completa as lacunas com hipóteses
ficcionais (“Quem dividirá os peixes com ela? / O marido
aposentado? Os filhos?”). A aparente simplicidade do poema oculta o
seu caráter alegórico, no sentido próprio da palavra: construção do
pensamento por meio de metáforas ou imagens, recurso frequente na
poesia e na pintura barroca. O lirismo de Donizete Galvão, centrado
na carnadura das palavras e das coisas, chega a um grau de ebulição
em Mundo mudo, de 2003, e, sobretudo, em O homem inacabado, de
2010, de onde extraímos essas linhas: “Num átimo, / a picada da
serpente. / Abre-se a ferida / que nunca sara / Que não supura. /
Coleção de escaras / que saem à unha / e renascem / novas crostas.
(...) A dor: / veneno. / Ninguém quer / sua companhia”. 
Donizete Galvão nasceu em Borda da Mata, sul de Minas, em
1955. Desde 1979, reside em São Paulo. Seu livro de estreia, Azul
navalha, de 1988, recebeu o prêmio, da APCA, de revelação de
autor e foi indicado ao Jabuti. Publicou também, entre outros
títulos, As faces do rio, de 1990, Do silêncio da pedra, de 1996, A
carne e o tempo, de 1997, também indicado para o Jabuti,
Ruminações, de 1999, Mundo mudo, de 2003, indicado ao Portugal
Telecom, e O homem inacabado, de 2010, que ficou entre os dez
finalistas do Portugal Telecom e ganhou o Prêmio Brasília de
Literatura em 2012. Com Fernando Vilela, é autor do livro de
poemas infantis Mania de bicho, de 2009. O autor publicou
também a plaquete Alta noite, na coleção Poesia Viva, editada
pela Curadoria de Literatura e Poesia do Centro Cultural São
Paulo.
Os eleitos
porque há muitos de nós
as catástrofes os acidentes
e as crenças
– este desejo esgrouvinhado entre as tripas –
desatam as fúrias
na requisição diária de mortes
nos acampamentos onde crianças
trazem terríveis notícias no olhar
porque há muitos de nós
ferimos a terra com os cascos
entre balas e incêndios
pisoteamos as novas crias
temos sorte
não somos gado de corte
Pássaros urbanos
ave
nenhuma
faz seu
ninho
nas gruas
das construções
elas próprias
– aves
pernaltas –
erguem
moradas
de pedra
as gruas
têm as
plumas
mais
vistosas
da cidade
outras,
incanoras,
habitam
as junções
dos viadutos
entre trapos
e papelão
muitos
pedem
pela extinção
dessa espécie
tão pouco afeita
às gaiolas
Não sabe
O amor que não sabe morrer
persiste no olhar do cão
abandonado que,
ao menor gesto,
abana o rabo
na espera do afago.
Está no vaso de planta
esquecido no sobrado
sem moradores.
O amor que não sabe morrer
não pretende tocar o céu.
Quer ficar aqui mesmo –
pedestre, incauto e reles.
Não ouve a ladainha dos mortos.
Nem quer a extrema-unção.
coluna
Homo sedens
MARCIA TIBURI
Tratar o ato de sentar como uma questão culturalmente relevante
pode soar como mera brincadeira. Quem, começando a levá-la a
sério, se perguntar “quanto tempo de nossas vidas passamos
sentados?” ou “quantas cadeiras há no mundo?”, por mais que
consiga respostas estatisticamente impressionantes, não terá, contudo,
atingido o cerne da questão inusitada que nos faz pensar nas formas
assumidas pelo sedentarismo como caráter da cultura. Na contramão
do nomadismo, o sedentarismo faz parte da história de nossa
civilização. Mais do que parte da história, é uma postura que
caracteriza nosso tempo presente. A maior parte de nossos gestos
corporais acaba no assento; passamos muitas horas do dia sentados,
tudo, em nossas vidas, convida-nos a sentar. Mas esse convite
agradável ao descanso tem significados mais complexos: sentamos
em casa, na rua, nas escolas, sentamo-nos diante de máquinas;
sobretudo, hoje em dia, sentamo-nos diante de telas.
Norval Baitello Junior, professor da PUC de São Paulo, escreveu,
em seu livro O pensamento sentado (Unisinos, 2012), sobre o lugar
do “assento” em uma cultura sedentária. Sua crítica vai na direção de
um pensamento sentado que, para ele, seria o pensamento
acomodado. Recuperando a expressão alemã usada por Nietzsche
para falar da “vida sedentária” – Sitzfleisch – ele explora a tradução
por “carne de assento” que, literalmente, leva à usual “bunda”. Bunda
tem um vasto alcance no Brasil. Mesmo que soe deselegante, não
seria um erro considerar a atualidade de um “pensamento-bunda”,
aquele pensamento cansado que, no extremo, expressa o que
entendemos no cotidiano, no âmbito da irresponsabilidade do
“bundão”.
O caráter “assentado” é o da “discursividade previsível e
acomodada”, a que reduz o ato de pensar em nossa época, contra sua
natureza mais íntima. O “decréscimo da mobilidade” do corpo é,
segundo ele, também do pensar, cuja imprevisibilidade e capacidade
de surpreender estariam em baixa. Conhecemos essa acomodação,
sabemos que ela é necessária ao poder, ao sistema econômico e
político, que esperam corpos dóceis e mentes paradas, repetindo
acomodadamente mais do mesmo que mantém tudo no mesmo lugar:
sentado.
Pensar na reflexão aos saltos do livro de Baitello é uma atitude
dinâmica, como seria o movimento de nosso corpo, inquieto e
propenso a caminhar, pular, correr e saltar. A capacidade humana,
que está ligada a todo o nosso processo de aprendizagem em relação à
vida, de explorar o entorno, é diminuída quando tudo se reduz a
“assento”. O primata que somos se ressente de não poder mover-se.
REGRA DA CULTURA
Baitello nos lembra que sentar e sedar têm a mesma origem
etimológica: sedere. Assim, comentando que somos “Homo sedens”,
a atrofia dos músculos e dos movimentos surge como uma espécie de
regra da cultura. Quando observamos o nosso dia a dia, sentados por
todos os lados, diante de computadores, da televisão, dentro de
carros, temos certeza que a mobilidade corporal que nos
caracterizaria, e que ainda se coloca como nossa potência, cede lugar
à estranha mobilidade incorporal da máquina. As máquinas se movem
em nosso lugar, tornamo-nos imóveis: esperamos sentados a máquina
que nos substitui. De certo modo, participamos passivamente de um
“devir” imóvel, que não nos leva a lugar nenhum, senão àquele onde
já fomos previamente postos.
Por fim, forçados a sentar, vivendo o elogio da disciplina,
resistimos enquanto seres sentados em nome de um esforço.
Valorizamos aquele que consegue aguentar a sala de aula, a cadeira
no trabalho burocrático.
Somos, por fim, vítimas do que Baitello apontou como uma
“conjunção perversa”, em que o sedentarismo de nossos corpos alia-
se à hiperatividade visual. Anestesiados diante das máquinas,
vivemos na direção contrária de nossa própria capacidade nômade.
Talvez fugir desse mundo seja um desejo soterrado por cadeiras
numa avalanche mole ao qual nosso corpo se adequa por ter medo de
seus próprias potências. Bom lembrar que fugir é sempre um direito. 
coluna
Vanitas II
ALCIRPÉCORA
(In claris cessat interpretatio)
Assim que saiu a última CULT, antes mesmo que eu a tivesse visto,
um amigo me contou que já tinha lido minha coluna sobre Padre
Vieira e Jim Morrison. Primeiro, eu não entendi. Depois, quando ele
me explicou, lendo devagarinho, ao telefone, o índice da revista que
falava em “apelos vibrantes” de “Padre Vieira” e de “Jim Morrison”,
fiquei tartamudo, o telefone zumbindo no meu ouvido.
Padre Vieira ainda vá lá... – pensei, tentando assimilar o golpe.
Mas, de fato, não se tratava exatamente dele, senão eu o chamaria
assim mesmo, como sempre fiz, como ele é conhecido, e não pelo
prenome que poderia servir a qualquer Antonio –, incluindo a mim,
que também sou Antonio, sob o nome que calhou de pegar.
Era um Antonio qualquer porque, naquele momento de que eu
falava, Vieira havia sido expulso da Companhia de Jesus. O mandado
de desligamento apenas não se consumou por interferência direta de
D. João IV, o qual deixou bem claro para os superiores da província
portuguesa da Companhia que a punição a Vieira seria interpretada
como uma censura frontal a El-Rei, pois o jesuíta nada fizera sem o
seu consentimento ou que não fosse por ordem sua.
Então, quando escrevi “Vanitas”, eu não queria falar de Vieira
propriamente, mas desse momento em que ele perde o nome de padre,
o sobrenome de pregador afamado e a proteção de sua ordem. Ele era
só um que fora excluído, alguém que já não servia para irmão e sócio.
E então, nessa única vez, em toda a sua longa vida de achaques,
arroubos e ousadias, ele disse aquilo que eu contei: que não era nada
sem a Companhia de Jesus e, enfim, que, ao ser posto para fora dela,
preferia ser um cachorro, vivendo à sombra do seu portão, do que
habitar os palácios que lhe eram oferecidos por El-Rei.
Não queria falar mais uma vez de Vieira, de quem já falei demais,
mas apenas desse momento peculiar em que alguém encontra num
vira-lata afeiçoado ao dono, que o despreza, a melhor imagem para si.
Por mais nome e nomeada que ele tivesse antes ou depois desse
episódio, nesse exato instante de que eu falava, ele não era ninguém:
era uma simples figura de cão batido pela gerência.
E Jim Morrison? De onde saiu o tipo? Como foi se intrometer em
meu texto, que não falava dele? Do nome de Jim, me dirão. Mas não
é bem assim. Talvez de um protótipo pop do nome, mas não
propriamente do nome. Pois Jim é, ainda mais que Antonio, índice de
um nome qualquer. Para quem não se desse conta disso, fiz até uma
identificação direta no texto escrevendo “Zé – Jim”, como quem diz:
ter nome de Jim é ser quase tão anônimo como ser Zé.
Eu nem sonhava em falar de um rock star no papel de rock star e
muito menos de um roqueiro hippie como Morrison. Hippies se
identificam com estrelas, com flores no cabelo – ou seja, com
inocência, natureza, fantasia, imaginação, poesia, blá-blá-blá. No
máximo, quando se dizem nascidos para ser selvagens, querem
comprar uma moto bacana e sair por aí, a viver uma suposta liberdade
com “ele” maiúsculo. No caso de Morrison, era o “L” que o levava a
gritar para o auditório de meninas que ele ia matar o pai e depois
comer a mãe. Era só um bordão psicanalítico, mas elas amavam
aquilo e gritavam de volta, cheias de tesão.
O Jim-Zé de quem eu falava nada tem de hippie. Com mais
propriedade, pode-se dizer que é mais um enterro da ideia de hippie.
Não é da paz, nem do amor. Late, mas antes morde. Busca o que
destrói, sem poupar a si mesmo – e, por isso (eu me esqueci de dizer
da outra vez), ele é mais coxo que um demônio desancado pela
espada do arcanjo Miguel.
Certo dia, Jim-Zé percebeu que estava disposto a fechar os olhos,
acabar com a confusão da cabeça e apenas ser – plenamente – um
vira-lata. Vira-lata meu. Não sonha, não tem signo, não se lembra de
ter nascido de mãe. É tão reles e tão perdido que não acha que vai
perder grande coisa se perder a vida dormindo num estacionamento
de bar de bêbados à beira da estrada.
Num dia quente, como o de ontem, Jim ainda sente comichões de
esfregar as costas na areia quente, de ficar roçando e lambendo as
partes ao sol. Se pudesse pedir alguma coisa, o que decerto não pode,
talvez pedisse o pau que já se acostumara a receber no lombo, antes
de eu o recolher em minha casa.
Entenderam o caso? Quem viu o índice da última CULT, como
aquele meu amigo que me telefonou, pode ter sido levado a um
equívoco. Foi apenas para esclarecê-lo que esbocei esta segunda
vanitas. Morrison definitivamente nunca esteve em meu canil. Go
home, hippie! Aqui, vivem apenas meus dois vira-latas e eu, dura
sociedade de desnomeados. 
coluna
A política cultural, do déficit narrativo ao
excesso cínico
CHRISTIAN DUNKER
Em sua última coluna, Vladimir Safatle sugeriu a necessidade de uma
partilha preliminar quando se trata de examinar as relações entre
política e estética. Entendi que isso nos protegeria de certos
equívocos básicos na matéria, por exemplo, encontrar uma “voz” que
oriente, direcione e simbolize a transformação social, engendrando
processos de identificação facilmente manipuláveis pela cultura da
estética de resultados. Contra isso, seria preciso abordar o problema
por meio da genealogia indireta, do diagnóstico de circulações
artísticas resistentes e da semiologia crítica acerca de nosso estado de
ruína cultural desesperançada.
Gostaria de discutir a tese de que isso depende de uma consciência
preliminar de que “o capital perdeu sua força narrativa”. Como
entender essa frase do protagonista do filme Cosmópolis? Isso quer
dizer que o capital tornou-se indiferente à história de sua
autoprodução? Ou que todas as histórias se misturam para justificar
suas razões cínicas? A hipótese do déficit narrativo interpreta a ruína
cultural como perda de potência articulatória entre o real e sua
reconstrução reparadora a que chamamos de arte. A conjectura do
excesso cínico, ao contrário, percebe que todas as verdades são
comensuráveis entre si, desde que nos coloquemos do ponto de vista
metalinguístico do capital. Essa alternativa está bem representada no
filme. O milionário está preso no trânsito, por causa do funeral de seu
músico predileto cujo hit toca sem parar em seu elevador privativo,
mas que não o leva a um instante sequer de luto narrativo. Por outro
lado, sua jovem esposa não pode se dar ao luxo de se desviar de sua
carreira na poesia, portanto, não lhe sobram energias para manter
relações sexuais com o marido, que, cinicamente, usa isso para
transar com outras mulheres.
Há uma versão nacional desta oposição. Artistas consagrados se
reúnem para proteger suas próprias vidas de biógrafos que querem
usá-las sem pagar direitos “autorais”. Sentimos que há razão no fato
de que o biografado receba alguma coisa pelo “uso público” de sua
vida. Mas reconhecemos também que há algo profundamente errado
em tratar a própria narrativa de uma vida como matéria-prima
mercantil na qual celebridade gera mais celebridade. A narrativa de
vida, especialmente quando nela se entranham misteriosamente as
razões de uma obra de sucesso, ainda assim, parece necessária ao
novo espírito do capitalismo. Há um excesso cínico na história, que,
em sua origem, é formada por premissas razoáveis de ambas as
partes. Talvez esse excesso decorra da institucionalização jurídica do
assunto, ou quiçá da separação demasiadamente funcional entre quem
vive uma vida e quem tem o direito de contá-la. Uma vida
exclusivamente voltada para a produção artística, representada pela
entrada em um sistema das artes, indissociável de seu mais-de-gozar
biográfico, é uma vida que perdeu alguma coisa, como vida
compartilhada. E, ainda mais, uma vida que não se sabe arruinada.
Na mesma semana, Luiz Ruffato fez seu discurso incendiário na
Feira de Frankfurt, dedicada ao Brasil. E, nele, intuímos uma ligação
entre o reconhecimento internacional de nossa literatura e certa tensão
com as condições sociais de desigualdade, segregação e injustiça que
atestariam nosso “atraso cultural”. Novamente, pode-se invocar a
indiferença entre as condições estéticas de uma obra e suascondições
sociais de produção, entre os temas e as formas, autonomia ou
subordinação da linguagem na arte. Aqui, o problema não está na
dissociação, mas na ausência de uma narrativa que articule vida e
obra, produção e circulação, sem que a política ocupe uma função
institucionalizante e manipulativa. Pressentimos que Ruffato tem
razão em sua maneira de lembrar “onde estamos”, para além de
nossos casos bem sucedidos e de nossa imagem emergente. Ele nos
faz voltar ao caráter particular de nossa própria miséria cultural. Mas
pressentimos também o caráter profundamente insuficiente dessa
lembrança. Sua verdade, mesmo que corrosiva, não nos leva a
articular o papel da literatura diante do “estado das coisas”.
Seria preciso pensar uma maneira de desativar esse dispositivo por
meio do qual nosso déficit narrativo na matéria cultural não seja
impulso nem justificativa para o retorno invertido como excesso
cínico. 
dossiê Judith Butler
Feminismo como provocação
MARCIA TIBURI
É bem possível que aquele que se disponha a conhecer a obra de
Judith Butler a receba, em um primeiro momento, como uma
provocação. Os livros publicados até agora pela filósofa norte-
americana, nascida em 1956, não são fáceis de ler. De um lado, a
espontaneidade irônica com que ela escreve não é comum no meio do
debate acadêmico e intelectual; de outro, os conteúdos de seu
pensamento são os mais desafiadores, os mais sagrados e os mais
caros para toda uma tradição. Verdade que o tema central da obra de
Butler é o “gênero”, mas, olhando de perto, gênero não é um
problema do campo da “sexualidade”, é um problema político e, mais
perigosamente, um problema ontológico. Isso quer dizer que o seu
feminismo é, de todos os que surgiram até agora, o que levou mais a
sério as potencialidades críticas do próprio feminismo. Butler não tem
medo do feminismo, tampouco de sua crítica ou de seus efeitos
teóricos e práticos.
Nas mãos da pensadora, o feminismo é, sem dúvida, uma luta pelos
direitos das mulheres, como sempre foi, mas é também uma
desmontagem do que chamamos de “mulheres”. Por fim, dos homens
e, no extremo, do gênero como um todo. A questão de gênero não
será apenas um problema do ativismo, o que já seria demais para o
pensamento da dominação masculinista, mas também, e mais
gravemente, um questionamento da identidade e do princípio que
rege sua lógica.
A riqueza da obra de Butler consiste justamente no caráter
provocativo que tem movido uma quantidade considerável de
estudiosos pelo mundo afora. Esse caráter é, ao mesmo tempo, uma
maneira de traduzir aquilo que entenderemos a partir de um dos seus
conceitos mais importantes. Trata-se da questão da
“performatividade”. Assim, a primeira coisa que devemos saber para
entender do que Judith Butler está falando é que as palavras
provocam ações e atuações. Que as palavras agem. Que todas as
teorias existentes causam algo em sujeitos concretos. E que a teoria
da própria Butler faz o mesmo, mas não esconde que o faz. Nesse
sentido, ela sabe que está provocando. E quem ela provoca? O poder,
enquanto este se confunde com a “verdade” sobre algo como
identidade sexual de gênero.
A filósofa norte-americana, que também é judia e lésbica, vem,
portanto, provocando uma mudança radical no cenário dos estudos de
gênero, e no feminismo de um modo geral. Sem deixar de ser
feminista, Butler é uma teórica crítica que critica justamente certos
aspectos do feminismo ao qual se filia. Para quem pensa que as
feministas não podem ser críticas do feminismo, essa posição pode
parecer uma contradição, o que, na verdade, apenas demonstra que a
questão da crítica imanente do feminismo – aquela crítica que supera
seu objeto ao mesmo tempo que guarda algo dele – ainda não foi bem
compreendida. O ponto central da crítica de Butler reside no fato de
que o feminismo que ainda trabalha com o “binarismo” de gênero –
com a ideia de que “homem” e “mulher”, “masculino” e “feminino”
são a verdade da sexualidade – incorre na reprodução daquilo mesmo
que quer criticar. Neste sentido, o feminismo da filósofa apenas pode
ser pensado em seu sentido expandido. Não como uma defesa de algo
como “feminino”, nem como uma simples defesa das “mulheres” cuja
identidade de gênero ela questionará. O feminismo de Butler é a
defesa de uma desmontagem de todo tipo de identidade de gênero que
oprime as singularidades humanas que não se encaixam, que não são
“adequadas” ou “corretas” no cenário da bipolaridade no qual
acostumamo-nos a entender as relações entre pessoas concretas. É
justamente a adequação que estará na mira de Butler, enquanto todo o
esforço da filosofia tradicional, que pesa sobre a questão do sexo e do
gênero, se deu na direção de uma supressão das singularidades.
PERFORMATIVIDADE DO GÊNERO
Para sustentar sua crítica, Butler precisa, portanto, desmontar algumas
ideias, e a principal delas será a de gênero. Quando, nos anos 1960, se
começou a falar em gênero, o termo era usado para se referir ao
“papel” social e cultural que se dispunha sobre o sexo, como que para
explicá-lo. O sexo era ainda tomado como natural no sentido de ser
um destino que acabaria por fundar o gênero. O sexo era a verdade da
natureza, como muitos ainda pensam no âmbito do senso comum. A
ideia de gênero veio dar conta do caráter produzido da sexualidade. O
essencialismo com que se costumava ver o sexo já havia sido posto
em questão quando Beauvoir disse, em O segundo sexo, que ninguém
nasce mulher, mas se torna mulher. Foucault, igualmente importante
para Judith Butler, mostrou, em sua História da sexualidade, que até
mesmo o sexo, tanto quanto a sexualidade, foi produzido por um tipo
de discurso. Nem sexualidade, nem sexo seriam verdades essenciais,
mas apenas construções históricas. Tratar o histórico como natural
sempre é estratégia do poder. O esforço da teoria de Butler, neste
contexto, foi o da desnaturalização como uma desmistificação do
sexo e do gênero, que seriam, em momentos diferentes, tratados como
destino. A partir de então, eles seriam construções discursivas entre
as quais não haveria diferença. A ideia fundamental da pensadora é a
de que o discurso habita o corpo e que, de certo modo, faz esse corpo,
confunde-se com ele. Por isso, a diferença entre sexo e gênero não
seria mais o caminho para a luta feminista. Mas o respeito aos corpos
cuja liberdade depende, em última instância, de serem livres do
discurso que os constitui. Ou de simplesmente poderem existir em um
mundo que os nega, e que os nega pelo discurso que não é, de modo
algum, apenas uma fala qualquer.
O que ela chama de performatividade do gênero, partindo de
aspectos da teoria da linguagem de J. L. Austin, famoso autor da
teoria dos atos de fala, diz respeito ao caráter ativo da relação entre o
sujeito e a sociedade, enquanto esta última é organizada dentro de
normas e de leis que funcionam pelo discurso. É impossível, neste
sentido, ser “generificado”, ou seja, sofrer os efeitos do gênero fora
do discurso. Pois não há gênero sem discurso, e o discurso é,
justamente, o que infunde, como um dispositivo, aquilo que é o
gênero. Se antes os corpos eram vítimas da ciência da anatomia que
legislava sobre eles, agora passaram a ser vítima da generificação
como uma espécie de segunda natureza que se diz como verdade
quanto ao “gênero”.
Por meio das análises de Butler, podemos empreender a reflexão
sobre o que é ser homem e ser mulher, hétero ou homossexual, desde
que se torne possível questionar não apenas as identidades “homem”
e “mulher”, ou outras, mas também o próprio sentido do verbo “ser”
quando se diz que alguém “é” isso ou aquilo. No momento em que
alguém se identifica ou se deixa hétero-identificar, esse alguém está
se inscrevendo apenas em um cenário ontológico, que é promovido
pelo discurso e toda a sua materialidade no âmbito da ação e da vida.
Mas isso quer dizer também que tudo poderia ser diferente em um
cenário democrático, em que as pessoas concretas pudessem se
expressar livremente, também por meio de seus corpos, para além dos
discursos que os controlamsob a produção daquilo que Butler chama
de “efeitos ontológicos”. Nesse sentido, em sua prática teórica, ela
agirá fazendo “abusos” ontológicos contra o status quo. A filosofia é,
em sua visão, a chance de produzir um contraimaginário ao privilégio
ontológico de uns – como se um modo de existir fosse o único correto
– contra o simplesmente ser dos outros, que, na contramão da
“norma” ontológica, são tratados como aberração ou anomalia. A
prática de enviar crianças e jovens ao psiquiatra ou ao padre para
correção, por exemplo, é um mecanismo de exclusão. Ao mesmo
tempo, aquele que simplesmente assume uma identidade contra a
exclusão corre o risco de ficar preso a ela. Um dos problemas que a
filosofia de Butler nos lega se refere justamente a essa identidade
quando sabemos que ela serve, em certos momentos, para libertar,
como, por exemplo, no momento em que alguém se afirma mulher,
no âmbito do feminismo, na luta por direitos, mas também para
excluir esse mesmo sujeito, colocando-o de volta num lugar de
opressão e escravidão onde o próprio feminismo prometia emancipar
seu sujeito. Neste sentido, podemos dizer que o feminismo da filósofa
é negativo e, ainda assim, dialético.
O CORPO ABJETO
Portanto, uma das preocupações centrais do pensamento teórico-
prático de Butler se refere ao corpo sexuado enquanto esse corpo é
tornado “abjeto”. A categoria do abjeto vem referir-se à existência
corporal daqueles que não são encaixáveis na estrutura binária
“homem-mulher”. Neste sentido, a teoria de Butler é, ao mesmo
tempo, como deve ser qualquer teoria feminista, uma teoria engajada
na defesa de um sujeito oprimido. A propósito, na contramão de
Derrida, um dos pensadores que mais a influenciou, Butler acredita
que é necessário continuar usando o conceito de “sujeito”, vendo
nesta criticável categoria humanista a chance de colocar as categorias
do humanismo contra ele mesmo. A crítica ao sujeito, promovida por
muitos filósofos contemporâneos, diz respeito à ideia de filosofia da
consciência de que existe uma consciência autônoma e livre chamada
de sujeito. “Sujeito” é certamente uma categoria insuficiente, mas é
justamente ela que é negada pelo humanismo aos corpos abjetos,
aqueles que seriam, no contexto das definições, menos que humanos.
A crítica de Butler ao humanismo refere-se a essa classificação por
exclusão.
Neste caso, a diferença de Butler com o feminismo que defende,
sobretudo, as “mulheres” é que ela defende, além das mulheres, todos
aqueles que não se enquadram nos discursos que invocam a
“natureza” fixa do corpo. Neste sentido, ela defende as
potencialidades dos corpos fora das teorias ontológicas clássicas que
sempre se pautam por uma ideia de natureza feminina ou masculina.
E até mesmo de uma natureza homossexual. Mas a teoria da
pensadora vai além da questão da sexualidade e bem pode ajudar a
pensar o lugar de todos aqueles que não se encaixam no padrão do
homem branco e europeu. Além dos transexuais, os judeus, os negros,
os árabes e até mesmo os pobres entram no campo de suas
preocupações como corpos que são considerados, pelo “poder”, como
desimportantes, vidas que deveriam ser corrigidas ou que não
mereceriam serem vividas. Aquele que ataca física ou
simbolicamente um homossexual, uma travesti, um negro, uma
prostituta, uma mulher sob uma burca, ou, ainda, uma mulher que não
é feminina ou sensual (como se as pessoas estivessem obrigadas ao
estereótipo) certamente tem em sua base um modo de pensar
assegurado por essa visão de mundo compartilhada pelo patriarcado,
pelo capitalismo, pelo poder em geral. A cultura, em todas as formas
de discurso, do jurídico ao científico, e dos meios de comunicação,
ajuda na produção do “abjeto” como um tipo de diferenciação na qual
se confina o excluído. O excluído é produzido no discurso: seu lugar
é o silêncio que, em termos sociais muito concretos, realiza-se na
injustiça de não poder existir. Essa diferenciação precisa ser analisada
e desmontada. Somente aí é que algo como a liberdade de existir
como se é entrará em cena. Não apenas porque existem muitas
pessoas fora das classificações, mas porque é preciso desmontar as
classificações para dar lugar à expressão singular contra todo um
campo da experiência silenciada e, assim, proibida de existir ou
condenada à morte.
Os textos que compõem este dossiê centram-se na análise de alguns
aspectos da obra de Judith Butler. Cada um, a sua maneira, aproxima-
nos das reflexões da pensadora, que tem aberto caminhos de reflexão
fundamental sobre a vida de nossos corpos “generificados”,
identificados como mulheres e presos nas malhas daquilo mesmo que
combatem. No texto de Guacira Louro, temos a chance de nos
aproximar do olhar perturbador de Butler como pensadora da
subversão; no texto de Joana Plaza podemos ver a conexão entre o
“performativo” e a “vulnerabilidade” dos corpos à linguagem; Leticia
Sabsay nos fará pensar nas “normas de gênero” e sua possibilidade de
re-significação; por fim, Susana de Castro nos oferece uma leitura
sobre Antígona, desde que Butler a leu de um ponto de vista queer.
No todo, e em cada uma de suas partes, fica evidente o respeito das
autoras e sua dívida para com uma filósofa que está abalando as
estruturas do pensamento ocidental. 
A filósofa que rejeita classificações
CARLA RODRIGUES
Uma das medidas de recepção da obra de um autor é a sua tradução,
que provoca novas obras em torno de seu pensamento, produz ecos e
reflexões.
Desde que foi lançado, em 1993, nos Estados Unidos, o livro
Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, da
filósofa Judith Butler, foi editado em 23 países, entre os quais o
Brasil. Desde então, suas proposições sobre gênero como
performance, suas críticas ao ideal identitário e sua abordagem sobre
a normatividade de gênero se disseminaram em diferentes campos de
estudo: filosofia, antropologia, teoria feminista e teoria queer, da
qual, particularmente, se tornou símbolo. Embora não seja seu
primeiro livro, foi em Problemas de gênero que muitas das ideias da
filósofa ganharam projeção, inaugurando um debate rico para o
campo dos estudos de gênero. Ao deslocar o problema de gênero do
campo das diferenças sexuais para o da heterossexualidade
normativa, Butler renova a pauta feminista por questioná-la sem, no
entanto, abandoná-la.
Professora na Universidade da Califórnia, onde é co-diretora do
Departamento de Teoria Crítica, Judith Butler é anunciada na França
como continuadora do pensamento de Michel Foucault – o que ela
recusa – e é tida, por muitos autores, como pós-feminista – o que ela
também rejeita como classificação.
Nesta entrevista, ela expressa seu vigor ao tratar de questões como
a crítica à identidade e a afirmação política de sua condição de
lésbica, bem como problematiza a naturalidade do desejo
heterossexual e a patologização do transtorno de identidade de
gênero.
Entendo sua filosofia como parte de uma grande linha de
pensamento de crítica à identidade e ao humanismo. A crítica à
identidade é política, é importante porque pensa os próprios
termos em que as identidades são forjadas. No entanto, a senhora
também se apresenta e defende determinadas identidades, como
lésbica ou judia. Há um paradoxo em criticar as identidades e, ao
mesmo tempo, usá-las como estratégia política?
Precisamos, inicialmente, estabelecer a distinção entre uma crítica da
identidade e uma crítica do humanismo. Por exemplo, podemos
imaginar certos humanistas criticando a identidade precisamente
porque algumas delas atrapalham nossa compreensão da humanidade
comum. Então os dois projetos são diferentes. Quando falamos numa
crítica da identidade, não significa que desejamos nos livrar de toda e
qualquer identidade. Pelo contrário, uma crítica da identidade
interroga as condições sob as quais elas se formam, as situações nas
quais são afirmadas, e avaliamos a promessa política e os limites que
tais asserções implicam. Crítica não é abolição. Por fim, faz grande
diferença se alguém toma “ser uma lésbica” ou “ser um judeu” como
fundamento ou base detodas as suas outras visões políticas, ou se,
ativamente, compreende que as categorias são historicamente
formadas e ainda estão em processo. Então, minha perspectiva é a de
que não é útil basear todas as demandas políticas de alguém em uma
posição de identidade, mas faz sentido levantar, como uma questão
política explícita, como as identidades foram formadas, e ainda são
construídas, e que lugar elas devem ter num espectro político mais
amplo. Por exemplo, as alianças tendem a ser descritas como a união
de várias identidades, mas uma razão pela qual elas são dinâmicas,
mesmo democráticas, é que as identidades são transformadas à luz
dessa união e, muitas vezes, tornam-se menos importantes quando são
constituídas com certos objetivos em mente, como a privatização, a
homofobia ou o estado de violência.
Em que medida ser lésbica foi o que lhe motivou a repensar os
termos da separação sexo/gênero tais quais propostos por Simone
de Beauvoir? Ou, em outras palavras, podemos colocar o seu
pensamento, sobre a obra da filósofa francesa, como parte de um
arcabouço crítico e também excludente ao movimento feminista?
Grande parte do meu trabalho se dedica a compreender o que frases
como “ser uma lésbica” possam significar. Sim, sou chamada assim, e
chamo-me assim em algumas ocasiões, mas não estou certa de que a
expressão me descreve no nível do ser! De fato, eu me preocupo com
aqueles momentos nos quais o discurso tem o poder de estabelecer “o
que eu sou” ou “o que você é” – esperamos que nossos desejos e
vidas permaneçam, de algum modo, sem serem capturados por esse
tipo de discurso. Não tenho uma posição sobre Simone de Beauvoir,
mas acho algumas de suas formulações extremamente úteis. Então,
penso que a sua ideia de que alguém “se torna” uma mulher é
importante, abrindo a possibilidade de se tornar algo diferente de uma
mulher, talvez um homem, ou talvez algo que exija outra forma de
prática de nomeação. Não me importa se Simone de Beauvoir
concordaria com a última afirmação ou se podemos encontrar
justificativas em sua obra para tal assertiva. O trabalho dela tornou o
meu possível. Meu trabalho é diferente, e sou grata pelo que ela
ofereceu.
A senhora se define como feminista?
Geralmente não defino a mim mesma, mas se você está perguntando
se aceito ser chamada feminista, certamente que sim. Não me
compreendo como uma pós-feminista.
A senhora se debate com o problema de ter a sua obra
classificada como “teoria queer”. Por quê?
Não é um problema, mas não existia “teoria queer” enquanto eu
escrevia Problemas de gênero. Soube apenas depois de sua
publicação que ela foi chamada assim. Então, para mim, é
interessante como tais categorias de pensamento subitamente vêm à
tona e como alguém pode se encontrar categorizado de uma forma
que eu não poderia ter antecipado. Não tenho problemas com isso.
Alguns lacanianos desqualificam as críticas feministas ao
pensamento de Lacan, afirmando que as feministas não leram ou,
se leram, não o entenderam. Afinal, por que o embate com a
teoria psicanalítica é tão importante para a teoria feminista?
Primeiro, é importante notar que há um amplo espectro de teorias
psicanalíticas. Na França e em algumas partes da América Latina, as
escolas lacanianas se tornaram hegemônicas, mas, no resto do mundo,
esse não é o caso. Há pensadores feministas e queer que não se
baseiam primariamente em Lacan, e há outros que o empregam de
forma seletiva, considerando algumas posições úteis e outras não. Eu
mesma li Freud, Laplanche e Winnicott para grande parte de meu
trabalho mais recente, e eles foram extremamente úteis para tentar
compreender modos relacionais de ser, que não são baseados no ego e
que buscam estabelecer possibilidades de desejo e de sociabilidade
fora da estrutura do narcisismo. Lembremos também como os
teóricos queer Leo Bersani e Lee Edelman mostraram claramente
que, para Freud, a sexualidade não está “naturalmente” ligada à
reprodução. Ela tem objetivos que muitas vezes não são compatíveis
com a reprodução heterossexual, e isso produz um obstáculo
permanente para aqueles que querem afirmar a existência de formas
naturais de desejo masculino e feminino ou da própria
heterossexualidade.
Desde que a senhora publicou Undiagnosing Gender, houve
mudanças no DSM (Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais) em relação à patologização do chamado
transtorno de gênero. Qual a sua opinião sobre os termos do
DSM-5? Acredita que é necessário manter a disforia de gênero
como doença a fim de garantir o apoio dos serviços médicos às
cirurgias de mudança de sexo?
Minha visão é a de que as instituições sociais e médicas devem
afirmar o transgênero como uma importante realidade psíquica e
social e fornecer assistência que permita a transição livre da
patologização. Considero muito doloroso que as pessoas tenham de se
submeter a essa patologização para obter assistência e
reconhecimento.
Hegel foi um filósofo marcante na obra de Lacan e também na
sua. Em que medida as proposições hegelianas sobre o sujeito
influenciam seu pensamento?
Escrevi minha dissertação sobre a teoria do desejo e do
reconhecimento em Hegel. Na época, estava interessada,
principalmente, nos modos pelos quais o desejo de reconhecimento é
frequentemente vencido, embora permaneça como possibilidade de
ser satisfeito apenas na vida ética ou no que chamamos de
sociabilidade. Então, uma implicação dessa posição hegeliana é a de
indagar sob quais condições o reconhecimento do desejo seria
possível? Para a população LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros) e para as mulheres, bem como
para todas as pessoas, essa é uma questão de grande relevância. Ao
mesmo tempo, as categorias disponíveis para o reconhecimento do
desejo são invariavelmente limitadas, sofrem transformações e devem
ser compreendidas como se constituindo a partir de um processo
histórico. Portanto, algumas vezes, a categoria pela qual alguém
busca reconhecimento o conduz à derrota do desejo ou o interrompe
no percurso. Talvez o desejo exceda qualquer categoria possível de
reconhecimento. Se assim é o caso, como isso altera nossa ideia do
lugar de tais categorias na política?
Nesse sentido, a senhora se considera uma continuadora da obra
de Michel Foucault?
Eu não continuo, de fato, a obra de ninguém. Encontro tensões muito
importantes no pensamento de Foucault e as sigo. Não pertenço, de
fato, a uma escola. Foucault continua a ser muito importante para
mim.
Em relação a Jacques Derrida, a senhora assistiu a muitos de seus
cursos nos Estados Unidos. Poderia localizar qual a influência
especificamente no seu trabalho de desconstrução do par
sexo/gênero?
Assisti a muitas de suas conferências e creio que ele ajudou a ensinar
uma geração inteira de acadêmicos a ler. Portanto, também tem
minha gratidão. Não estou certa de que me engajo numa
“desconstrução” do par sexo/gênero, mas certamente emprego formas
desconstrutivas de leitura para mostrar como a autoidentidade de
categorias sociais revela-se mais complexa do que pareceria à
primeira vista. É por isso que, apesar de ser chamada de lésbica, e de
chamar a mim mesma assim (embora não diariamente e não em todas
as circunstâncias), relutaria em instalar o lesbianismo na ordem do
ser. Isso não porque as lésbicas não existam – estamos em toda parte.
É porque devemos ser cuidadosas sobre aquilo que queremos
expressar com o termo, deixando-o ser um campo de contestação e
deixando-o como parte de uma situação histórica na qual ele se
efetiva. Isso é diferente da ontologia, e a desconstrução nos ajuda a
percebê-lo. 
Traduzido por Cadu Ortolan.
Uma sequência de atos
GUACIRA LOPES LOURO
Uma garota indisciplinada que não seguia regras e costumava
contestar os professores. Uma garota-problema, ainda que
reconhecida como inteligente. Assim Judith Butler se lembra de ter
sido caracterizada na infância. Por matar aulas e desobedecer às
ordens, o diretor da escola advertiu seus pais que ela poderia vir a ser
uma delinquente. Havia que desviá-la do mau caminho, e ocorretivo
encontrado foi obrigá-la a ter aulas particulares com o rabino. No
entanto, contrariando o que pensavam, o castigo pareceu-lhe “uma
coisa formidável”. Ela adorava ouvir o rabino, fazia-lhe as mais
incríveis perguntas e, acolhida por ele, discutia temas improváveis
para quem estava apenas entrando na adolescência.
O caráter inquieto, um toque de rebeldia, a constante desconfiança
em relação ao que é posto como estabelecido e definitivo parecem ter
se tornado seus traços mais marcantes. Se a menina gostava de fazer
perguntas, a mulher continuou se mostrando uma questionadora
incorrigível; a intelectual passou a pôr em xeque “verdades”
consagradas; e a escritora... Bem, seus textos tornaram-se mais
famosos pelas indagações que propõem do que pelas soluções ou
respostas que eventualmente fornecem.
Avessa a palavras de ordem, essa mulher, dita feminista, também
não se absteve de pôr em questão algumas das consagradas
proclamações do feminismo. Em 1990, ela lançou Problemas de
gênero – feminismo e subversão da identidade [Gender Trouble], um
livro pleno de questionamentos e provocações que até hoje é,
provavelmente, sua obra mais conhecida. Na capa da edição original,
da Routledge, uma foto antiga de duas crianças trajando vestidos. Um
menino e uma menina? Ou não? Dizem os créditos que se trata do
retrato de duas irmãs, uma delas com “jeito” de garoto e a outra com
aparência mais “feminina”. A foto perturba o olhar. Perturba a noção
de gênero. Sugere gender trouble.
O que é gênero afinal? É algo com que nascemos? Algo que nos é
designado definitivamente, de uma vez por todas? Algo que
aparentamos, por ações, gestos, comportamentos, moda? Como se faz
um gênero? Como alguém se torna um sujeito de gênero? E quando
isso acontece? O que sexo tem a ver com gênero?
Judith Butler mergulhou nessas questões e em muitas outras.
Ensaiou respostas, mas longe de se mostrar satisfeita, continuou, ao
longo de vários livros e incontáveis artigos, entrevistas e palestras,
refazendo as perguntas, complicando o jogo, invertendo a lógica.
Claro que ela leu Simone de Beauvoir e, como tantas outras
pensadoras, também se remete à clássica afirmação de que “ninguém
nasce mulher: torna-se mulher”. Contudo, sendo uma atravessadora
de disciplinas e de áreas, passou a combinar leituras feministas com
as de teóricos e teóricas dos mais diversos matizes e é com o aporte
desse conjunto heterogêneo que produz suas reflexões, muitas vezes
na contracorrente ou até a contrapelo daquilo que leu. É para o
“tornar-se mulher”, para o devir que Beauvoir anunciara, que ela
volta seu interesse. Entende que esse é um processo contínuo do qual
não se pode precisar o fim. Talvez nem mesmo a origem. Mais do que
isso, acredita que é um processo do qual nunca se atingiria a meta. E
se isso é pensado sobre a mulher, também pode ser pensado sobre o
homem. “O gênero”, diz Butler, “é a contínua estilização do corpo,
um conjunto de atos repetidos, no interior de um quadro regulatório
altamente rígido, que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a
aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural de
ser”.
Tornar-se um sujeito feminino ou masculino não é uma coisa que
aconteça num só golpe, de uma vez por todas, mas que implica uma
construção que, efetivamente, nunca se completa. Butler complica a
noção de “identidade de gênero”. Afirma que gênero não é algo que
somos, mas algo que fazemos. Não é algo que se “deduz” de um
corpo. Não é natural. Em vez disso, é a própria nomeação de um
corpo, sua designação como macho ou como fêmea, como masculino
ou feminino, que “faz” esse corpo. O gênero é efeito de discursos. O
gênero é performativo.
É com apoio em Austin e Derrida que Butler desenvolve a noção de
performatividade de gênero. Em Austin, ela vai buscar inspiração na
teoria dos atos de fala (que distingue entre os enunciados
constatativos, aqueles que descrevem um fato, uma situação, e os
performativos, aqueles que, ao serem proclamados, produzem, isto é,
fazem acontecer aquilo que proclamam). De Derrida (que
desconstruíra em parte a teoria de Austin), ela toma emprestadas
noções como citacionalidade e reiteração. Relê essas teorias de um
modo próprio e explora sua potencialidade para pensar o gênero e o
sexo.
“INTERPELAÇÃO FUNDANTE”
O anúncio “é uma menina” ou “é um menino”, feito por um
profissional diante da tela de um aparelho de ultassonografia
morfológica, põe em marcha o processo de fazer deste ser um corpo
feminino ou masculino, acredita Butler. Esse ato, de caráter
performativo, inaugura uma sequência de atos que vai constituir
alguém como um sujeito de sexo e de gênero. Para ela, mais do que a
descrição de um corpo, tal declaração designa e define o corpo. O
anúncio pode ser compreendido como uma espécie de “interpelação
fundante”, mas, adverte ela, nada está resolvido de forma absoluta
neste momento; a interpelação precisa ser “reiterada por várias
autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar
ou contestar esse efeito naturalizado”. Um grande investimento vai
ser empreendido para confirmar tal nomeação. Ela não está
absolutamente garantida. Precisará ser repetida, citada e recitada
incontáveis vezes, nas mais distintas circunstâncias. E poderá,
igualmente, ser negada e subvertida. O devir pode tomar muitas
direções. O terreno do gênero é escorregadio e cheio de
ambivalências.
É interessante pensar que o corpo vem a existir através de um
discurso – generificado – que se faz sobre ele. Admitindo esse
argumento, parece razoável supor que não há corpo que não seja,
desde sempre, generificado, isto é, marcado por, ou feito no, gênero.
E é por vias como essa que Butler acaba perturbando a distinção
sexo/gênero. O sexo, assim como o gênero, é efeito de discursos.
Ela entende que a nomeação de um corpo implica, ao mesmo
tempo, o estabelecimento de fronteiras e a repetição de normas de
gênero. Impossível esquecer que essa nomeação é feita “no interior de
um quadro regulatório altamente rígido”, o da heterossexualidade.
Tudo isso, contudo, parece sugerir um determinismo ou uma
estabilidade que não combinam com a pensadora dita inquieta e
desobediente. Quais as possibilidades de desvio? Como se
perturbariam as normas? Onde se encontraria espaço para a
subversão? Como ou quando ocorreriam rupturas, repúdios?
Butler discorre sobre esses temas em muitos de seus textos e
palestras. Mas talvez seja particularmente expressiva quando conta,
num depoimento gravado para a televisão francesa, o quanto e como
sua família judia buscava integrar-se à sociedade norte-americana. Na
tentativa de incorporar as normas de gênero daquela sociedade,
lembra que sua mãe, seu pai e também seus avós buscavam se
aproximar mais e mais das referências de masculinidade e de
feminilidade então predominantes, aquelas que representavam, na sua
percepção ou na percepção da época, o que seria desejável.
Hollywood era sua referência. Os astros e as estrelas hollywoodianos
pareciam expor ou representar as formas mais acabadas dos dois
gêneros. Butler recorda, então, as tentativas e as falhas dos homens e
das mulheres de sua família. E, ao narrar esse episódio, ela afirma,
com veemência, que o fracasso é sempre possível; na verdade,
acentua, “o fracasso talvez seja mais interessante”.
Performativos de gênero são repetidos constantemente. Citados e
recitados em contextos e circunstâncias distintas; no âmbito da
família, da escola, da medicina; na mídia, em suas mais diversas
expressões; nas regulamentações da justiça ou da religião. Não
obterão, contudo, exatamente os mesmos resultados. Os efeitos dos
performativos são sempre imprevisíveis. A possibilidade de
insucesso, que Derrida já demonstrara ao analisar a teoria de Austin, é
explorada por Butler em sua reflexão sobre o gênero. A falha, que é
intrínseca aos performativos, pode ser produtiva. É na possibilidade
do fracasso que reside o espaço para a ressignificação e para a
subversão no terreno dos gêneros e da sexualidade.
Mas tudo isso acontece por acaso ou por escolhados sujeitos? Em
outras palavras, alguém se empenha deliberadamente em fracassar?
Ou tenta ser bem sucedido e fracassa? Serão os fracassos sempre
subversivos? Aqui um dos pontos escorregadios e complexos do
pensamento de Butler: a possibilidade de agência dos sujeitos. Ela
afirma, em vários de seus textos, que o gênero é uma escolha, mas
observa que essa não é uma escolha absolutamente livre. É
impossível imaginar alguém que, colocado em algum lugar fora do
gênero (onde?), seja capaz de escolher o que deseja “ser”. Uma vez
que “alguém já é seu gênero, a escolha do ‘estilo de gênero’ é sempre
limitada, desde o início”, como diz Sara Salih em seu livro sobre
Butler. A possibilidade de agência é, portanto, sempre restringida. O
sujeito pode, sim, interpretar as normas existentes; pode ressignificá-
las, dotá-las de um significado distinto; pode, eventualmente,
organizá-las de um jeito novo, ainda que isso seja feito de modo
constrangido e limitado. Efetivamente, estamos sempre fazendo isso.
Todos os sujeitos interpretam, de seu jeito, continuamente, as normas
regulatórias de sua cultura, de sua sociedade.
Mas (e a adversativa é importante) aqueles e aquelas que não
“fazem” seu gênero “corretamente” são, muitas vezes, punidos. Os
desvios, a depender das circunstâncias em que acontecem, a depender
de sua extensão ou intensidade, costumam implicar em danos
simbólicos e físicos, morais e sociais. As falhas e desvios podem, por
outro lado, se constituir em oportunidade para reconstruções
subversivas da identidade; podem até mesmo, aposta Butler, se
prestar a uma política de ressignificação dos gêneros.
O desprezo e o escárnio usados para nomear quem se desvia das
normas de gênero podem ser revertidos. A designação ofensiva pode
ser ressignificada. Ainda que os vestígios de um discurso de ódio não
sejam completamente apagados, eles podem ser reconfigurados. A
nomeação injuriosa pode ser reapropriada de forma afirmativa.
Normas de gênero podem também ser citadas em contextos
distintos, exibidas de modo a expor, de forma radical, seu caráter
fabricado e construído. É o que faz, por exemplo, uma drag queen. A
drag se aproxima do objeto que imita e, ao mesmo tempo, o expõe e
o critica. Pelo excesso e pelo exagero, escancara as normas de gênero
e demonstra seu caráter artificial. Ela pode ser vista como um
exemplo de subversão e também de possibilidade de agência. Mas (e
de novo a adversativa) a figura da drag não será sempre,
necessariamente, subversiva. Por vezes, as formas paródicas de
gênero acabam por provocar, tão somente, o riso inconsequente. De
algum modo domesticadas ou colonizadas no interior da matriz
heterossexual, elas podem, mais uma vez, por vias outras, reforçar as
diferenças e as hierarquias.
As normas de gênero acabam por se impor sempre,
inexoravelmente? É possível driblá-las de algum modo? Quais as
possibilidades e os limites para a agência? Quando uma reconstrução
é efetivamente subversiva? Quando se constitui em renovada
dissimulação das normas? A inquietude de Butler contagia. 
O percurso da performatividade
JOANA PLAZA PINTO
O gênero é performativo? A sexualidade é performativa? A
performatividade produz o corpo? Efeitos performativos podem ser
ou tornarem-se efeitos materiais?
Quando se trata de entender a obra de Judith Butler, a palavra
performatividade é parada obrigatória. Do livro que a tornou famosa,
Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, de
1990, às obras mais recentes, como Frames of War, de 2010, a
palavra percorre as discussões e as posições da autora.
De onde vem, por qual percurso e qual a importância dessa palavra
para a obra dessa fundamental pensadora feminista do século 21?
Arrisco, aqui, a traçar um percurso dessa palavra em sua obra,
dentro dos limites que o espaço deste artigo e meu conhecimento
permitem. O risco é inerente ao se contar uma estória, ao se produzir
significado: a cada repetição, há alteração. Essa ideia derridiana, no
pano de fundo do percurso de uma palavra cunhada pelo inglês J. L.
Austin, é uma margem contagiante das ideias da pensadora sobre o
performativo. Em sua veia intelectual “promíscua”, como a própria
autora diz, a performatividade é um conceito em desenvolvimento,
mutante de sua própria performance teórica, política e editorial, uma
instabilidade legada obliquamente de Austin e de sua obra “paciente,
aberta, aporética, em constante transformação”, como afirmado por
Jacques Derrida.
DO ATO PERFORMATIVO À PERFORMATIVIDADE
O contexto estadunidense de recepção da obra de J. L. Austin é a
paisagem por onde vagueia a performatividade de Butler, pelos
tráficos de interpretação e política editorial a que foram submetidas as
ideias austinianas nos Estados Unidos.
Em 1955, o filósofo inglês J. L. Austin ofereceu suas famosas
William James Lectures na Universidade de Harvard. Essas
conferências, publicadas em 1962, um ano depois de sua morte,
marcaram a história da filosofia contemporânea com seu termo mais
conhecido, o performativo. Em confronto com os fetiches verdadeiro-
falso e valor-fato da tradição filosófica, Austin propõe uma discussão
sobre os enunciados que não são nem verdadeiros nem falsos, não
descrevem nem servem para informar, mas sim fazem algo. Ele
nomeia tal tipo de enunciado de performative, derivando esse nome
do verbo perform, um verbo usual em inglês para ação. Numa
intrincada argumentação, Austin defronta o que tinha sido um relativo
consenso da filosofia da linguagem até então: usamos a linguagem
para dizer o verdadeiro ou o falso. Sua posição pode ser resumida na
ideia sintetizada pelo título em inglês da sua obra mais popular, How
to Do Things with Words (livro traduzido para o português, pela
Editora Artes Médicas, em 1990: Quando dizer é fazer).
É com uma preocupação da mesma natureza que Butler inicia seu
uso da palavra “performativo”: como se faz (e se desfaz) gênero com
palavras? Num artigo de 1988, intitulado “Performative Acts and
Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist
Theory”, ela usa a noção de ato performativo para discutir como o
gênero é constituído por atos de repetição estilizada. Aqui, Butler
menciona apenas John Searle, o intérprete oficial de Austin nos
Estados Unidos, para rapidamente descartar sua interpretação do
performativo, porque esta estaria preocupada com os compromissos,
entre falantes, feitos através da linguagem. A autora prefere discutir
uma teoria da ação, de influência fenomenológica, que seja radical
em sua visão da linguagem, que torna o próprio sujeito objeto de seu
fazer. É assim que a autora cita o conhecido epíteto de Simone de
Beauvoir – “Não se nasce mulher, torna-se uma” – para fundamentar
sua posição de que gênero é uma realização performativa compelida
pela sanção social e o tabu, e é nesta característica performativa que
reside a sua possibilidade de contestação.
Em Problemas de gênero, vemos essa ideia desenvolvida e
começamos a entender o descarte da interpretação searleana do
performativo. Nessa obra, a única inteiramente traduzida no Brasil,
Butler propõe o que ela mesma qualifica como uma reformulação
feminista do pós-estruturalismo e do próprio feminismo. Entre tantas
autoras e autores conhecidos como pós-estruturalistas na cena
estadunidense, o opositor preferencial de Searle na disputa pela
interpretação de Austin: Jacques Derrida. O filósofo francês
participou de uma querela acadêmica internacional com Searle a
respeito da obra de Austin. O debate entre eles, entre 1977 e 1990,
introduziu nessa cena estadunidense alguns conceitos centrais para se
entender a performatividade em Judith Butler: iterabilidade e
citacionalidade. A questão entre Searle e Derrida pode ser sintetizada
(a custo da profundidade necessária para discuti-la) como uma
diferença de projeto filosófico: enquanto Searle procura dar
continuidade à obra de Austin nos moldes do valor de verdade
proposicional (aquele mesmo que Austin ironiza sem hesitação em
seus textos), Derrida procura enfatizar a originalidade antilogicista do
texto de Austin.

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