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Sumário coluna Francisco Bosco Marcia Tiburi perfil Davi Kopenawa entrevista O grito preso de Otto dossiê Gramsci: diálogos inéditos Apresentação Um sardo no mundo grande e terrível Um retrato de Lívio Abramo Cultura e revolução O olhar móvel e ingênuo da hegemonia Antonio Gramsci e a linguística teatro A fantasmagoria do branco literatura Correspondência entre ausentes livros A omissão como presença Tenso, triste e bem-sucedido A partir dos despossuídos Motivos para leitura e escuta colaboraram nesta edição coluna O novo espaço público FRANCISCO BOSCO Desde junho de 2013, a sociedade brasileira apresentou uma transformação. Recusando sistematicamente sua autoimagem cordial e as práticas dela consequentes, bem como criticando com dureza as instituições que as resguardam – tanto do Estado, quanto privadas –, fez emergir um novo espaço público, de maior intensidade democrática, e onde o conjunto múltiplo, complexo e interseccional de seus conflitos passou a ser permanentemente explicitado. É evidente que movimentos de explicitação de conflitos no Brasil – seja de classe, mais tradicionais, como relativos a lutas identitárias, mais recentes – não começaram em 2013. A história do Brasil, como se sabe, é atravessada por revoltas de trabalhadores, rurais e urbanos, por quilombolas, por militantes, por ondas feministas, por movimentos LGBT (esses mais próximos no tempo), por movimentos negros etc. Mas alguns traços tornam possível afirmar que houve uma transformação na natureza desses conflitos. Eles se tornaram permanentes e mais abrangentes. A sociedade brasileira, ou uma boa parte dela, não permite que a tensão arrefeça. Pelo menos dois fatores podem ter propiciado essa mudança. Um deles teria sido a formação de uma nova cultura política, gestada ao longo do governo Lula. É o que se pode desdobrar da leitura de Marcos Nobre: “À medida que foi se firmando um novo modelo de sociedade, social-desenvolvimentista, também foi se firmando na base da sociedade uma nova cultura política que lhe corresponde, enquanto o sistema político permaneceu dominado pelo peemedebismo. O resultado desse movimento de mais de três décadas trouxe com ele uma normalização do peemedebismo, com sua blindagem característica do sistema político contra a sociedade. Mas trouxe igualmente a incompatibilidade entre a nova cultura política correspondente ao social-desenvolvimentismo e a cultura política peemedebista.” O choque entre a blindagem das instituições (não apenas do Estado), sua defesa sistemática dos interesses das elites político- financeiras, e a nova cultura política, clamando por uma democracia de maior intensidade, produziu uma panela de pressão social que não tem como se resolver, na medida em que as instituições não absorvem suas demandas (ao contrário, a partir do golpe, têm apertado progressivamente o garrote sobre quaisquer aspirações igualitárias). Essa panela de pressão, por sua vez, só foi possível devido a outro fator, que, no meu entender, é inequívoco: o surgimento das redes sociais. De novo, a web 2.0 não nasceu em 2013, mas só a partir daí juntou-se às outras condições necessárias para que pudesse se tornar um novo espaço público brasileiro, com características de maior intensidade democrática do que o espaço público tradicional. Este, formado em larga medida pela grande imprensa, foi percebido como um correlato do sistema político, com sua lógica conservadora, manipulando a realidade de acordo com os interesses da elite político- financeira. Ao contrário, as redes sociais são, como afirma Manuel Castells, um sistema de autocomunicação, constitutivamente mais democrático. Tem sido ali que se desenrola um espaço público permanentemente tensionado, que, entre seus atores à esquerda, se recusa a aceitar a manutenção e produção contínua de desigualdades, tanto econômicas como identitárias. Sobre estas últimas, as questões identitárias, elas não surgiram, do mesmo modo, em 2013, e sim em 1968 (de forma mais sistemática e conjunta, claro), mas tanto encontraram nas redes sociais um espaço produtivo de organização e manifestação, quanto se desenvolveram enormemente devido aos bloqueios quase intransponíveis a lutas estruturais num sentido mais universal. Como já observava Foucault, no início dos anos 1980 (o comentário se aplica à nossa realidade presente): “São lutas ‘imediatas’ por duas razões. Em tais lutas, criticam-se as instâncias de poder que lhe são mais próximas, aquelas que exercem sua ação sobre os indivíduos. Elas não objetivam o ‘inimigo mor’, mas o inimigo imediato. Nem esperam encontrar uma solução para seus problemas no futuro (isto é, liberações, revoluções, fim da luta de classe)”. Mas não é apenas devido a uma maior possibilidade estratégica de efetivar-se que as lutas identitárias cresceram. É também porque: a) mesmo as lutas mais gerais de classe não garantem o fim dos mecanismos de poder exercidos contra essas minorias (basta evocar a opressão brutal contra homossexuais em regimes socialistas); e b) o domínio do reconhecimento não se reduz ao âmbito jurídico- institucional. Reconhecimento também envolve a dimensão social. Num país como o Brasil, onde há um descompasso entre a existência de leis e seu efetivo cumprimento, isso me parece especialmente importante. A existência das leis Maria da Penha e Caó, necessárias em si mesmas, não impede a reprodução do machismo e do racismo, em seus níveis de biopoder. A disputa por corações e mentes no plano social é, portanto, decisiva. Entretanto o que tem acontecido no espaço público das redes sociais é, muitas vezes, assustador. Há pessoas atuando no debate com arrogância, autoritarismo, violência desnecessária e até covardia. Como disse, é claro que há a necessidade de explicitar os conflitos; e é claro que isso é o campo da política, onde a lógica é a do antagonismo. Mas arrogância, autoritarismo e violência quase sempre são equivocados em relação ao mérito das questões (geralmente complexas, com argumentos de diversos lados tendo a sua pertinência) e são equivocados, no meu entender, também da perspectiva estratégica (tacam fogo em qualquer possibilidade de construção de consensos mais amplos, renunciam a fazer distinções entre alianças maiores e dissensos de ordem menor e tendem a produzir reatividade imaginária). Finalmente, há que se refletir sobre a dimensão moral de promover linchamentos nesse espaço público, convocando pessoas do mesmo grupo político-identitário para surrar um “inimigo” comum. Isso geralmente alimenta o princípio dogmático que move alguns grupos, pois seus membros unem-se estrategicamente contra o adversário, renunciando a criticar eventuais erros de argumentação e outros erros de seus aliados, bem como a aceitar argumentos e posturas corretas de seus oponentes. Chamo de princípio dogmático a atitude de taxar qualquer crítica pontual como oriunda de um adversário absoluto: discordar, por exemplo, de uma feminista em algum argumento específico pode transformar o discordante, imediatamente, em “esquerdo-macho” ou coisas do tipo. Não estou aqui defendendo uma dissolução dos conflitos. Num artigo com que concordo fundamentalmente, o sociólogo Aldo Fornazieri comentou: “Exigir, neste momento, a despolarização, o debate polido, as maneiras finas e educadas, significa exigir que o povo permaneça bestializado. No Brasil, o povo sempre foi tratado como serviçal, como escravo, como ignorante, como grosseiro, cujo único atributo seria trabalhar e servir. As elites sempre se reservaram o monopólio do luxo, do dinheiro, dos vícios e da corrupção. Pois bem. Nos momentos críticos, de incerteza acentuada acerca do amanhã, essas elites mal-educadas, incluindo a intelectualidade que as serve, exigem boas maneiras daqueles que nunca foram bem tratados. O povo e os ativistas cívicos precisam aprender a tratar com grosseria as elites violentas, luxuriosas, vaidosas, corruptas, expropriadoras, sonegadoras, pois esta é a forma polida que merecem ser tratadas por terem construído uma sociedade injusta e brutalmentedesigual.” De acordo, mas é preciso fazer uma série de distinções. Há polarizações que são desejáveis, uma vez que demarcam nitidamente dois campos (por exemplo, nesse momento a reforma da Previdência, ou, de forma mais geral, a mobilização contra um governo ilegítimo). Mas há outras questões em que elas são equivocadas e contraproducentes, pois anulam categoricamente qualquer denominador comum onde eles certamente existem. Como afirma o cientista político Wilson Gomes, professor da UFBA: “Toda causa legal precisa tanto criar identidade entre os aderentes como criar pontes com os ‘de fora’. Grupo de interesses sociais que não cria pontes acaba virando uma seitinha radical, cercada de suspeita e agressividade por todos os lados”. Em suma, a recusa a verificar distinções, a violência excessiva, as posturas dogmáticas, tudo isso pode acabar tendo como consequência um esvaziamento desse espaço público tão importante que é o das redes sociais (a violência desencoraja a participação), bem como dificulta a construção de alianças para avanços institucionais, e finalmente antipatiza com a causa de setores mais abrangentes da sociedade, que são geralmente aqueles que mais se deve disputar. coluna Chapados: sobre o uso abusivo da linguagem MARCIA TIBURI A “sociedade do espetáculo” mostrou seu caráter de sensacionalidade em um sentido teofisiológico, como demonstrou Christoph Türcke em seu livro Sociedade excitada – filosofia da sensação (ed. Unicamp, 2011). Hoje, não somos mais apenas regidos por imagens, mas verdadeiramente dominados em nosso corpo, por meio de sensações que nos atingem de fora para dentro. O sistema econômico, ele mesmo uma religião com culto e ritual, nos comanda como um obsessor que tivesse se apoderado de cada um. Não é à toa que o exorcismo tenha se tornado um “serviço” em igrejas, da católica à neopentecostal, quando tudo continua a seguir a lógica da mercadoria que significa, sobretudo, que há, religiosamente, um preço a pagar. O capitalismo descobriu o mundo da sensação e passou a reger a vida em sociedade, por meio da administração dos sentidos, de táticas de excitação. Vivemos, como ratos de laboratório, frangos criados sob lâmpadas, excitados pelo cinema e pela televisão que nos capturam e acomodam ao seu sistema. Em termos bem simples, vivemos ansiosos, nervosos, viciados em substâncias, desde drogas até deuses e ídolos e, sobretudo, loucos por emoções. Nas telas de celular, cultuamos a comunicação vazia, vivemos a emissão de expressão deturpada. Viciados em telinhas à mão, coisa que aprendemos com as grandes telas de cinema e televisão, sem consciência de que a excitação cura a excitação. A substância que nos tira a paz é a mesma que nos traz a paz, como nos ensina qualquer vício. Estresse digital será a doença do futuro. A “sociedade fissurada”, em sentido filosófico, se define pela relação com o absoluto que se dá tanto por meio das drogas como substâncias físicas, quanto com Deus e outras ideias que se apresentam como substâncias metafísicas. Nesse contexto, estamos todos “chapados” porque, se estamos fissurados, isso quer dizer que, se havia algo, ele escapa pela fissura. Não temos como “reter” alguma coisa; por exemplo, nosso eu. Chapados, somos uma superfície plana quando antes éramos um organismo com alguma coisa dentro, quem sabe a alma. O preconceito tem a estrutura de nossa relação com a substância, dependemos dele, ficamos como que viciados em ideias e discursos prontos que não passam pelo crivo da reflexão. Repetimos compulsivamente ideias prontas como quem busca o incomparável prazer da primeira vez. O prazer da linguagem que, desacompanhado de pensamento, não existe. Caímos no uso abusivo da linguagem como se ela não gerasse comprometimentos e responsabilidades. Ela serve a muitos como uma droga qualquer que promete recuperar o sentido perdido. Como um grande platô por onde tudo escorrega, a sociedade atual tem um caráter chapado reproduzido em seus indivíduos. As “platitudes” fazem sucesso como mercadoria e serviços: da autoajuda às músicas e filmes da indústria cultural que nada dizem, todos estão apaixonados, emocionados com clichês. O procedimento de copy- paste é o que comanda o mundo da linguagem sem ideias que sustenta as redes sociais e a televisão. O sujeito da sociedade chapada é sem fundo e sem relevo, sem dobras nem reentrâncias. Um sujeito do “irrelevante” transformado em capital. A intimidade, a interioridade, a alma, que dependiam na ideia de profundidade, tornaram-se assuntos caducos. Só o estilo, o fashion, o cool definem seu sentido. Desatentos a esses acontecimentos, nos tornamos escorregadios. Deixamos para trás o caráter que, na era anterior, foi forjado a duras penas. O consumismo torna-se o padrão de toda ação, até dos atos de fala. A reprodutibilidade sem fim de pensamentos vazios, de emoções e ações cuja função é apenas perpetuar o sistema, tudo o que possa evitar o questionamento – ele mesmo um perfurador de superfícies – é o que nos resta. perfil Davi Kopenawa Devir índio PAULO HENRIQUE POMPERMAIER São 9 horas da manhã e São Paulo já vive seu caos voraz. A terra remexe com a passagem dos trens do metrô, multidões de pernas e braços se atropelam, olhos vibram cheios de cores e velocidade. Nos cruzamentos, nas filas de carros, em semáforos acéfalos e na eletricidade líquida a cidade desabrocha em seu ímpeto de movimento. Entre imensos prédios, por trás de uma dessas portas fugazes, no Hotel Atlântica, na Bela Vista, encontra-se Davi Kopenawa, liderança indígena yanomami. Sua presença é ambígua naquele lugar, resiste ao fluxo da cidade com o porte profundo da floresta. No primeiro cumprimento, sentem-se suas mãos robustas, ásperas e atentas. Mataram sozinhas uma anta, ainda na adolescência. Uma caça muito valorizada por seu povo. Quando ele pronuncia algumas palavras, percebe-se uma voz atravessada por gerações. São palavras que vieram de Omama, demiurgo da cosmogonia yanomami. De um tempo em que “nossos maiores amavam suas próprias palavras”, como explica. São transmitidas oralmente através dos séculos, ao se tomar yãkoana. Essa substância ritualística consiste em um pó feito com cascas de árvore secas e pulverizadas. Ao ser inalado, inicia o indígena no conhecimento xamânico de seu povo. “Nossa aula magna é tomar yãkoana durante o dia, para se preparar. Assim que estudamos para buscar mais sabedoria, a sabedoria da árvore, que percorre a floresta, a montanha, o rio”. Quando foi iniciado para ser xamã, aos 27 anos, Davi Kopenawa vivia duas decisões fundamentais e entrecruzadas de sua trajetória. Aceitar a voz de seus ancestrais, ver os espíritos da floresta, xapiri, dançarem diante de seus olhos com as cores vibrantes e brilhosas do conhecimento da mata. E reafirmar sua possibilidade humana, sua identidade, diante da vontade predatória dos brancos. O costume ameríndio, afinal, está mais ligado ao futuro da humanidade do que ao seu passado, como refletia o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz em 1993: “A extinção de cada sociedade marginal e de cada diferença étnica e cultural significa a extinção de uma possibilidade de sobrevivência da espécie inteira. Com cada sociedade que desaparece, destruída ou devorada pela civilização industrial, desaparece uma possibilidade do homem – não só de um passado e um presente, mas um futuro”. Kopena é o nome do espírito da floresta das vespas. Em sua primeira ingestão de yãkoana, foram as imagens desses animais que se apresentaram para ele. Era o apelido que a floresta lhe dava para proteger suas árvores e rios. Kopena: como as vespas, Davi vai proteger sua casa, dar uma ferroada naqueles que cutucarem sua colmeia. É seu apelido feroz, como de um guerreiro primordial. Já seu primeiro nome foi-lhe imposto na infância por pastores de uma organização evangélica norte-americana, a New Tribes Mission. Com o objetivo de converter populações tradicionais ao cristianismo, seus membros constroem missões próximas às habitações indígenas. Foi o que ocorreu, no início de 1960, quandoum grupo da NTM se instalou na aldeia de Marakana, onde Davi nasceu. Passaram, então, a nomear seus habitantes conforme o padrão judaico-cristão. No entanto, tradicionalmente, os yanomami consideram falta de respeito usar seus nomes-apelidos entre si, como ele explica: “A gente só usa o nome de alguém longe dela e de sua família, senão eles ficam bravos. É nosso nome sagrado. Quando a Funai e as missões entraram na nossa terra, os brancos colocaram todos esses nomes que vocês têm, pois não entendem os apelidos tradicionais”. Yanomami, seu último nome, foi escolhido após se tornar xamã, como forma de representar sua etnia, “é nome de pajé, que me liga ao meu povo”. Davi Kopenawa Yanomami. Com sua presença trazia ali a contemporaneidade de tempos remotos, a voz profunda de gerações perenes diante da frenética e movediça São Paulo às 9h da manhã. Sua fala entoa canções há muito esquecidas, e seus gestos cosmogônicos não podem ser separados de sua política yanomami. Desde que a construção da estrada Perimetral Norte, em 1973, “rasgou a pele da terra”, Davi sentiu vontade de lutar pelos direitos dos povos originários. A rodovia, logo abandonada em 1977, cortou o sul de Rondônia, invadindo territórios dos yanomamis que moravam ao longo dos rios Ajarani, Catrimani, Mapulaú e Aracá, o que o impeliu a levar suas palavras ao mundo dos brancos. No pacto que firmou com o etnólogo francês Bruce Albert, projetou sua voz mundialmente com a publicação de A queda do céu (Companhia das Letras, 2015). Ecoou seu testemunho, ambiguamente ancestral e contemporâneo, nos ouvidos moucos do “povo da mercadoria”. Para, assim, revelar a iminente queda do céu, quando não restarem mais índios para mantê-lo acima de nós. E em seu mito cosmogônico está o poder de sua luta política: “Queda do céu é político, é política do povo yanomami que sabe o que aconteceu. Que caiu o céu, acima do povo, e matou todos. E os pajés lutam para manter o céu acima de nós, porque índio conhece a alma da terra, a alma da floresta. Branco só conhece o espírito destruído: pedras preciosas, óleo, petróleo, dinheiro, agrotóxicos”. Albert, que convive com os yanomamis desde 1975, acredita que “Davi é um grande pensador da Amazônia indígena, e também um líder indígena renomado por sua integridade, coragem e visão. Além de xamã experiente, é um líder político determinado”. Crê que foi um privilégio, nas cem horas de entrevista que fizeram, “ouvir a história de sua vida, de sua luta e de suas viagens xamânicas”. O livro foi adaptado pela diretora e coreógrafa Lia Rodrigues e se transformou no espetáculo Para que o céu não caia, apresentado em março último na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) cujos organizadores o convidaram a participar dos diálogos transversais que a mostra se propõe a lançar entre o teatro e outros campos do conhecimento. Eis o motivo de Davi ter cumprido sua décima estadia em São Paulo. Ele falou sobre a queda do céu para espectadores desejosos da sabedoria indígena. “Falar como índio yanomami”, na sua definição. Sobre a adaptação, Davi afirma: “O teatro pode representar imagens da floresta, que eles aprenderam, para mostrar às pessoas que não conhecem árvores, floresta, montanha. Essa pessoa que já sonhou, já viu, e divulga através do teatro”. Entre seus encontros com representantes oficiais e as palestras e conferências que ministra, Davi Kopenawa já percorreu diversos países como Inglaterra, França e Estados Unidos. No Brasil, já esteve várias vezes no Congresso Nacional, confiando suas palavras aos presidentes José Sarney, Collor, Lula. Em 1992, devido a essa militância, conseguiu que as terras yanomamis demarcadas fossem oficializadas, então por Fernando Collor de Mello. Recebeu, em decorrência da sua luta para preservar a mata e os povos originários, o prêmio ambiental Global 500 das Nações Unidas, que, no Brasil, apenas Chico Mendes já havia recebido. Em 2005, novamente, conseguiu um marco importante na luta indígena: a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, habitada por ingaricós, macuxis e taurepangues. Nos últimos governos, no entanto, Davi não sente que houve avanços na luta indígena. “Eu conheço a Dilma, apesar dela não ter trabalhado muito pelo nosso povo, conheço a alma dela, a imagem dela”. “Agora”, complementa, “esse atual presidente nunca vi, ele nunca falou com meu povo, não se interessa por nossas palavras. Me parece sem raiz, colocado ali apenas por grupos de amigos”. A destruição provocada pela Perimetral Norte foi apenas um dos fatores que o levaram a questionar o modo de vida dos não indígenas. Davi cresceu vendo seus pares morrendo pelas pestes dos brancos, xawara. Missões evangélicas, incursões da Funai, expedições da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites. Em diversas ocasiões, epidemias de sarampo, malária e gripe se espalharam pela floresta e dizimaram populações ameríndias inteiras. A mãe e o tio de Davi, seus parentes mais próximos, morreram em um desses surtos quando ele ainda era adolescente. Nessa ocasião, moravam em Toototopi, onde se instalaram depois de passar pelas aldeias Wari Mahi e Marakana, esta última seu local de origem. Em luto, foi para longe de seu vilarejo, em uma peregrinação iniciática típica dos adolescentes yanomamis. Travou conhecimento com alguns grupos de brancos e, então, foi chamado para trabalhar na Fundação Nacional do Índio. Nesse período, passou por diversos postos indianistas, viveu em Manaus e percorreu as veredas amazônicas em suas missões como tradutor e em frentes de pacificação. Uma pulseira que usa no braço esquerdo, composta de uma faixa larga de miçangas pretas, foi presente de um grupo taurepangue com o qual cruzou em uma dessas andanças pela fronteira da Venezuela. Enquanto trabalhou para o órgão indigenista, Davi sentia-se muito atraído pelo costume dos brancos, napë. Entendeu melhor sua língua de fantasmas, o português. Passava mais tempo nos postos, e fez até um curso para saber aplicar medicamentos. No entanto, quando soube da construção da estrada, das destruições causadas pelos garimpeiros em busca de ouro, voltou para sua tribo. No caminho, encontrou um grupo yanomami que ia se estabelecer na aldeia Watoriki, no pé da Serra do Demini, após suas terras terem sido devastadas pelas epidemias. Acompanhou-os e ali conheceu aqueles que viriam a se tornar, respectivamente, sua esposa e seu sogro. Foi este quem o iniciou no xamanismo, o “caminho do morrer e se tornar outro”. Enquanto relembra sua história, as mãos de Davi estão sempre em movimento. Tambo-rilando os dedos na mesa ou gesticulando no ar, elas acompanham suas falas. Ao contar sobre a criação, em 2004, da Hutukara Associação Yanomami, faz um grande círculo com os braços para falar sobre o nome da organização da qual é presidente: “Nós não queremos só proteger meu povo, precisamos proteger a Terra, terra é prioridade para todos nós, não é só sobre yanomamis ou sobre brancos, é sobre todos. Precisamos lutar juntos para manter viva a nossa hutukara, nossa Terra, nosso mundo, para não a destruir, para mantê-la firme. Eu sou liderança e estou lutando, mas não sou pedra, nosso corpo é fraco, diferente de hutukara, que não tem fim”. O filho mais velho, entre os cinco que tem, é quem o acompanha na militância. “Eu já o estou preparando para seguir meu caminho. Não é pra seguir caminho do governo, porque eles querem acabar com a nossa língua. É caminho de luta do povo dele, trabalhar, lutar, representar na cidade. Ele nem foi iniciado no xamanismo para ficar estudando meio ambiente e as políticas dos brancos.” Logo suas mãos têm outro pretexto para a movimentação. O celular, pousado em um canto da mesa de seu quarto de hotel, começa a tocar. No diálogo em yanomami que vem a seguir, ouve-se a voz de um Brasil profundo. Ecoam na cabeça aqueles versos de Mário de Andrade: “Como será a escureza/ Desse mato-virgem do Acre?/ Como serão os aromas/ A macieza ou a aspereza/ Desse chão que é também meu?”. Suas palavras yanomamis, no entanto, eram cortadas porintempestivas marcações temporais em português, como datas, meses e horários. Na linguagem ameríndia, há outra concepção temporal. Precisam recorrer à língua dos brancos para poder cortar o tempo em fatias. Seus 61 anos de idade, por exemplo, são estimados, não fazem parte do imaginário yanomami. Davi estava sendo chamado para uma reunião. “Sou filho único que enfrenta homem grande, mas tem muita gente que me dá uma flecha para poder continuar lutando na cidade”, comenta. Davi iria passar aquela tarde em reuniões e encontros. Depois, logo ao anoitecer, se recolher para o próximo dia, pois é o costume da mata. “Escureceu é todo mundo na rede. De noite descansa, porque é floresta, não pode andar. Os yanomamis dormem cedo, mas antes do amanhecer estamos acordados, ouvindo os pássaros cantando, vendo nossa floresta clareando”. Apesar da felicidade de poder falar na cidade sobre os problemas de seu povo, sua alma só fica tranquila quando volta para junto dos seus e conversa sobre a viagem. “Eu posso imitar como um branco mora nessas casas de pedras estranhas, comer também o que branco come. Estou há 43 anos na luta, então me acostumei a usar essas coisas. Mas é apenas para dormir e ir embora para meu povo”. O índio, então, deixa a cidade grande. Não sem antes sedimentar suas palavras. Espera que, no seio da sociedade branca, possam um dia fazer desabrochar a potência do tornar-se índio. entrevista O grito preso de Otto AMANDA MASSUELA Otto mudou de ares. Para ficar mais próximo da filha, Betina, de 12 anos, saiu do Vidigal, no Rio de Janeiro, e passou a viver em São Paulo, onde leva uma rotina “tranquila e serena”. É na capital que o músico finaliza seu sexto disco de estúdio, Ottomatopeia, produzido por Pupillo, da Nação Zumbi, com previsão de lançamento para maio. “É como se um filho fosse nascer e eu não sei o sexo, mas o amor é grande”, diz o músico à reportagem da CULT. “Trabalho todo dia e não paro nunca. É na crise que sobrevivem os fortes e eu nunca parei para lamentar”. Ottomatopeia vem depois dos elogiados Certa manhã acordei de sonhos intranquilos, de 2009, e The moon 1111, de 2012. Um disco “humano”, diz Otto, que reflete sobre o lugar de cada um em meio ao turbilhão político de nossos tempos “torturantes”. Mas faz isso enquanto fala de amor, que é de onde o músico nascido e criado no agreste pernambucano, em um mundo macho e duro, decifra as coisas com mais facilidade. É verdade que o disco novo é mais rock’n roll? Tem mais guitarra, está mais psicodélico. Mas tem música brasileira antiga, jazz, eletropop, anos 80. É bem contemporâneo, situado nesse momento dentro e fora do Brasil, mas fala muito de amor, que é por onde eu entendo melhor a realidade. É um disco humano, quase que um caminho desses tempos torturantes de agora, em que o ser humano vive essa impotência diante do mercado e da política. Vem bem carregado desse grito preso, do lado marginal do ser humano, os direitos perdidos, os novos códigos, o trans, o hétero. Tento conceituar por aí. Acho que chegamos num período em que conquistamos coisas, o mundo deu uma andada para frente, mas agora está em marcha a ré. As coisas estão regredindo, e o medo, a insegurança e a tortura estão dentro disso aí. Como sente o país hoje? O Brasil deteriorou-se. Afundou, está experimentando o gosto podre dos seus atos irresponsáveis, difamatórios, do seu alto poder corruptivo e das mazelas do tempo, da miséria histórica. Realmente a fratura democrática deste golpe foi profunda. A sensação é que, para existir esse escárnio político, estamos vivendo uma tortura incomensurável, sem precedentes. Tenho a impressão de que uma quadrilha tomou o poder. E a possibilidade de que a justiça seja feita transforma esses aventureiros em criminosos de alta periculosidade. Fora a imprensa que constrange de tão vulgar. Mas ao mesmo tempo que trata desses temas, o disco fala de amor. Nesse turbilhão precisamos ver com amor, enxergar as coisas com mais humanidade. A mudança para São Paulo impactou de alguma maneira a produção do Ottomatopeia? Profissionalmente, sim. Pupillo [produtor do disco] está aqui, meu empresário está aqui. São Paulo tem um vigor de trabalho que acelerou mais esse processo. Eu estava no Vidigal, mas estava muito só, com a minha filha Betina longe, vivendo aqui. E o Vidigal é meio isolado, com aquele marzão, o que é muito bom, mas São Paulo me deu um ‘vai à luta’. Como está sendo esse contato com a Betina? Estamos começando a nos entender, ela está começando a aceitar a casa. Está melhorando. Ela tem 12 anos e parece uma garota de 16 do meu tempo. Ela tem muita informação. E acho que as próximas décadas vão ser mais rápidas ainda. Daqui a pouco ela tem 18 e já está me alcançando. Você se preocupa em dar uma educação, digamos, feminista a ela? Feminista acho que ela já é. Betina já é muito indomada, é dura comigo, é dura com qualquer um. Mas essa coisa do feminismo ela vai adquirir com o tempo, com as amigas e com as próprias experiências. Eu não sou um pai careta – isso eu não poderia ser –, não sou um pai proibitivo e acho que vejo muito mais pelo lado do filho do que dos pais. O mais importante é estar ao lado dela. Por exemplo, ela já não tem essa coisa de gênero, namorada ou namorado, ela não enxerga mais isso. Qualquer coisa ela já diz: “isso é bullying” ou “isso é racismo”. Ela poderia ouvir e ficar calada, mas fala. A mãe dela [a atriz Alessandra Negrini] também tem um lado muito forte – e não é nem feminista, não sei nem julgar –, mas dentro desse tempo eu acho a Betina bem situada, bem rígida. Elas já estão vindo assim. Fui à manifestação do dia 8 de Março na Avenida Paulista [em São Paulo] e vi muitas meninas da idade dela ali, de rosto pintado, segurando cartazes. Você percebe as meninas da geração dela mais atentas a esses temas? Com a informação que elas têm hoje, vai ser um processo natural essa busca por igualdade. É bonito ver. Passei muito tempo da minha vida – sou de 1968 – num mundo machista, e hoje eu vivo aprendendo a conter esses sentimentos. Tento ser um homem mais dócil. Você foi criado para ser ‘cabra macho’? Eu vi meu pai agredir minha mãe e isso mexeu muito comigo. Talvez a minha sensibilidade venha dessas questões. Eu fui criado num mundo macho, pernambucano, duro, mas eu sempre tive uma boa relação, por escolha, com as mulheres. No Recife tinha muito aquelas festas em que ficavam homens de um lado e mulheres de outro, e eu sempre ficava do lado delas. Acho a escolha da mulher mais sensata do que a irresponsabilidade do homem. Tive uma mãe muito parceira, que me mostrou como ela tinha mais força do que a gente, como tinha mais força do que meu pai. Confio muito mais numa mulher política, administradora, do que em um homem. Mas acho que ser homem é uma coisa muito valorosa também. Conheço muitos pais e amantes valorosos – lá mesmo no Nordeste conheci pais de família geniais. Isso também me formou muito. Não foi um exemplo da minha casa, foi o exemplo que vi na vida. E há um valor aí que temos que buscar como homens. Tem coisas das quais me afastei, não consigo ficar numa mesa de bar falando de futebol e de mulher. Você já disse em algumas entrevistas que às vezes se sente uma persona non grata nesses “clubes do Bolinha” masculinos. Ainda sente isso? Claro, eu sou isolado [risos]. Eu tive que me afirmar na música, nos lugares, e qualquer coisa neguinho já vinha pra cima de mim. Tive a oportunidade, mesmo não tendo uma família de músicos, de cantar e de tocar, mas eu sempre tive que mostrar muito. Quando fiz meu primeiro disco [Samba pra burro, de 1999], senti que ele veio com uma luminosidade, mas que por não ser muito comercial eu tinha que trazer algo melhor, e aí já comecei a levar lapada. Tem aquela coisa de que primeiro você mata a cobra e depois mostra o pau. Eu mostrei o pau e neguinho fez “olha, sem a cobra não dá”. Fui lá matei a cobra, trouxe a cobra morta. Neguinho disse “Otto, essa cobra podia estar morta”. Agora eu chego matando a cobra na frente de todo mundo, esganando [risos].Eu tenho que ter essa entrega. Eu canto, danço o show todo, tiro a roupa, jogo água na cabeça. Eu saio morto. Tenho 49 anos e não faço tantos exercícios, é uma luta, mas essa essência muito intensa talvez eu esteja parando. Eu tinha uma gana de virar cantor e de construir um público, eu não era aquele carinha que já era músico desde pequeno, mas agora estou começando a entender que posso ter mais calma porque esses discos já mostraram algumas coisas bem fortes. Eu sou de uma nação, tenho uma música, uma cultura, um público. Existem todas essas mazelas do nosso país, da nossa vida e eu estou aqui para... [pausa]. Eu defendo, eu canto, eu junto gente, eu tenho opinião, o que é até meio arriscado. Você deixa bem claros os seus posicionamentos políticos. Mas muito, eu me posiciono, eu sofro pra caramba. Principalmente com a inverdade, a forma como a nossa democracia e o voto foram usurpados. Tivemos um blogueiro sendo conduzido coercitivamente até a Polícia Federal, já começaram a pegar jornalistas. Esse meu disco tem um lado maravilhoso de luz, e outro que eu remeto a 1964, por exemplo, porque se a gente não falar de tortura, de censura, a coisa vai acochar mais. Que a gente fique atento a esse Estado conservador, culpado, covarde, que ataca as minorias. O que mais me pega é que os ricos vão continuar ricos e protegidos, cada vez mais. Mas para isso existe um povo que vai continuar desprotegido e pobre. É otimista em relação ao futuro? A arte, mesmo no naufrágio e na tragédia iminentes, é otimista. Somos restauradores do universo e acredito que o mundo se transformará em breve. Esse mundo anda precisando de paz e consciência. O Brasil vai virar essa página triste. Esses caras são as faces conservadoras de um mundo que já mudou, são os últimos canalhas do gênero. Mas virá um mundo novo cheio de esperança e paz. dossiê Gramsci: diálogos inéditos Apresentação ALVARO BIANCHI O pensamento de Antonio Gramsci é hoje um campo internacional e interdisciplinar de estudos, vasto e diversificado. Organizar um dossiê a respeito implica, portanto, fazer escolhas difíceis. A recepção desse pensamento no Brasil data do início dos anos 1960 e a maneira como ele foi lido mudou muito com o tempo. Certas leituras foram consolidadas, outras abandonadas, novos temas se incorporaram às agendas de pesquisa, inovações metodológicas tiveram lugar, enfim, talvez seja mais adequado falar de recepções, no plural. Mas o que é relevante mostrar atualmente para o leitor brasileiro? Parti do pressuposto, que me parece inquestionável, de que a Revista CULT tem um público bem informado e interessado em acompanhar os debates filosóficos e culturais do mundo contemporâneo. E procurei apresentar, a partir desse pressuposto, uma pequena amostra dos novos estudos gramscianos no Brasil e na Itália, em uma espécie de diálogo transatlântico. Meu artigo apresenta a trajetória desses estudos, o estado atual da pesquisa e os dilemas da internacionalização desses estudos. E para compor o dossiê convidei pessoas que têm contribuído com novos temas e novas abordagens para a discussão. Primeiro, Guido Liguori, da International Gramsci Society-Italia e um dos organizadores do maravilhoso Dicionário gramsciano. Convidei, também, Daniela Mussi, pesquisadora brasileira, especialista na crítica literária e cultural escrita pelo sardo e autora do estudo mais atual e robusto produzido no nosso país a respeito do jovem Gramsci. E, por último, Giancarlo Schirrù cujas investigações têm valorizado a contribuição de nosso autor para os estudos linguísticos, uma área que tem chamado cada vez mais a atenção. O resultado final é um quadro variado que permite ao leitor reconhecer o estado atual das pesquisas e suas novas direções. Um sardo no mundo grande e terrível ALVARO BIANCHI Na prisão à qual foi condenado pelo fascismo, Antonio Gramsci manifestou repetida preocupação com a educação de seus filhos e sobrinhos. Em uma carta a respeito, endereçada a sua esposa Giulia Schucht no ano de 1936, escreveu que o filho de sua irmã não havia vivido “fora da vida mesquinha e estreita de uma cidade da Sardenha, sem comparação com uma cidade mundial onde confluem enormes correntes de cultura, interesses e sentimentos”. Gramsci sabia sobre o que estava escrevendo. Quando muito jovem deixou sua Sardenha natal para realizar seus estudos em Turim, carregava consigo uma visão de mundo meridional, profundamente ancorada na vida de sua terra e dos problemas do Mezzogiorno. Na cidade mundial encontrou uma cultura cosmopolita, a qual se expressava naquelas duas grandes instituições que tanto o impressionaram: a universidade e a fábrica. Seu meridionalismo, entretanto, não desapareceu. Temperado pelo cosmopolitismo urbano, perdeu seu caráter mesquinho e estreito, tornou-se consciente de si e fundiu-se aos poucos com uma cultura tendencialmente internacional. A guerra e a revolução na Rússia foram os catalisadores dessa consciência. Nesse amálgama de uma cultura local com forças internacionais está uma das razões para a vitalidade que o pensamento de Antonio Gramsci demonstra na periferia do capitalismo, oitenta anos após sua morte. Há um pouco de Mezzogiorno em cada cultura subalterna. Algo que permite nos identificarmos empaticamente com o sardo. No “mundo grande e terrível”, como gostava de dizer, é possível encontrar um refúgio naquela cultura local ou nacional na qual a experiência vivida moldou um modo de ser e pensar. Mas é apenas nesse mundo ameaçador que uma cultura pode se converter em uma força hegemônica. É apenas quando supera os estreitos, marco do localismo, que ela pode se universalizar e tornar-se dirigente. NACIONAL E INTERNACIONAL Essa tensão entre o nacional e o internacional que caracteriza o pensamento de Antonio Gramsci também pode ser encontrada nos estudos dedicados a sua obra. O ritmo de desenvolvimento desses estudos é desigual e combinado. Itália é, obviamente, um centro irradiador, mas contraditoriamente é nesse centro que o caráter nacional se manifesta com maior intensidade. Quando em meados dos anos 1990 Guido Liguori escreveu Gramsci contesso, um livro no qual procurava fazer o sumário dos estudos gramscianos na Itália, concluiu-o apontando que um novo ciclo de estudos estava dando seus primeiros sinais. Livres dos constrangimentos da política imediata, as pesquisas puderam se voltar com mais paciência ao próprio texto, evitando forçá-lo para fazê-lo concordar com teses previamente definidas. Na filologia histórica, essas pesquisas encontraram um método capaz de incrementar o conhecimento do autor, incorporar inovações temáticas e enfrentar novos problemas de investigação. Os avanços na pesquisa documental, a descoberta de novas fontes e critérios mais rigorosos na definição da autoria dos textos criaram um contexto favorável para esses estudos. Esse novo ciclo culminou na nova Edizione nazionale degli scritti di Antonio Gramsci, publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana. Trata-se de uma iniciativa aprovada pelo Senado da República e levada a cabo por um comitê científico reunindo os principais estudiosos da Itália. A nova edição pretende reunir pela primeira vez todos os escritos de Gramsci e sua correspondência, organizando-os criticamente. Está dividida em três seções, a primeira destinada aos escritos reunindo os artigos que escreveu para a imprensa, os documentos partidários que redigiu e o ensaio sobre a questão meridional, com sete volumes; a segunda aos Cadernos do cárcere, incluindo os inéditos cadernos de tradução, com outros sete volumes; e uma terceira seção com o epistolário, com nove volumes. Até o momento foram publicados os Cadernos de tradução, dois volumes do epistolário e um volume com os escritos do ano de 1917. O impacto dessa publicação será notável e visível nos estudos gramscianos futuros. Os primeiros sinais desse impacto podem ser vistos na identificação pela pesquisadora Maria Luisa Righi de algumas cartas de amor que eram endereçadas por Gramsci a Eugenia Schucht, irmã de Giulia, com quemafinal se casou. Trata-se de um episódio biográfico interessante, que pode ter tido algum impacto nas complexas relações que se estabeleceram entre a família Schucht e o sardo quando ele estava na prisão. O cartão-postal endereçado a Eugenia é o documento-chave de um interessante livro recentemente publicado por Noemi Ghetti, La cartolina di Gramsci. As pesquisas em torno da edição nacional também alimentaram a biografia político-intelectual que Leonardo Rapone escreveu sobre o “jovem Gramsci” (O Jovem Gramsci: cinco anos que parecem séculos 1914-1919) e a biografia de Giuseppe Vacca sobre os anos do cárcere (Vida e pensamento de Antonio Gramsci 1926-1937) ambas traduzidas para o português e publicadas pela editora Contraponto, bem como a aguardada biografia escrita por Francesco Giasi, que deverá sair em breve na Itália. O período no qual o sardo viveu em Viena e Moscou, até agora pouco conhecido, tem recebido novas luzes com essas pesquisas. Sabe-se mais hoje a respeito de sua proximidade com o grupo de intelectuais que se organizava em torno de Anatol Lunatcharski, do seu interesse pelo debate dos linguistas russos e, principalmente, a respeito de sua atividade como representante do Partido Comunista da Itália no Comitê Executivo da Internacional Comunista na segunda metade de 1922. A maior expectativa, como era de se esperar, está na nova edição dos Cadernos do cárcere, preparada por Gianni Francioni, Giuseppe Cospito e Fabio Frosini. Na prisão Gramsci registrou sua reflexão em cadernos escolares com uma letra caprichada e perfeitamente legível. O texto praticamente não tem rasuras indicando que a escrita era precedida de longa reflexão. Mais tarde reescreveu muitas dessas notas em cadernos chamados especiais, reagrupando-as tematicamente, fundindo textos e aprimorando argumentos. Uma vez que se trata de uma obra inacabada e aberta, a sequência cronológica das notas tornou-se de grande importância para revelar o ritmo do pensamento, identificar ênfases e estabelecer as formulações mais elaboradas. Gramsci escrevia em vários cadernos ao mesmo tempo, alguns eram subdivididos em várias partes, fazia anotações nas margens, pulava às vezes as folhas iniciais para preenchê-las mais tarde. Esse modus operandi provocou enormes dificuldades para a datação dos diferentes parágrafos que compõem o texto. A ordem cronológica dos cadernos, já identificada em edições precedentes, não é igual à ordem da escrita. A nova edição nacional dos Cadernos do cárcere procurará recompor essa ordem cronológica da escrita, preservando a unidade de cada caderno e rearranjando os blocos de parágrafos no interior destes. A publicação dos Cadernos de tradução já permitiu uma visão mais completa do trabalho de Gramsci. Até então prevalecia a ideia de que esses cadernos registravam apenas exercícios com vistas ao estudo do russo, do alemão e, em menor medida, do inglês. Eles reuniam, entre outros textos, a tradução de um número da revista Die Literarische Welt, sobre a literatura norte-americana; fábulas dos irmãos Grimm; um livro de linguística histórica de Franz Nikolaus Finck; e uma coletânea de textos de Marx. Quando esse elenco de obras é comparado com o plano de trabalho que Gramsci redigiu na primeira página dos Cadernos percebe-se, como apontou Giuseppe Cospito, “uma série de analogias não causais” entre a escolha dos textos traduzidos e aquele plano de trabalho. Essa pequena descoberta jogou uma nova luz sobre a variedade das fontes utilizadas pelo prisioneiro durante sua pesquisa. Espera-se agora a publicação dos cadernos miscelâneos, aqueles que reúnem notas esparsas, prevista para abril deste ano, e dos cadernos especiais, nos quais Gramsci procedeu à reorganização temática. Para a comunidade de pesquisadores, as principais descobertas, referentes à datação dos parágrafos e ao seu reordenamento no interior de cada caderno, não serão novidade. Já foram apresentadas pelos organizadores em artigos e discutidas pelos investigadores que têm acompanhado o trabalho editorial. Mas o impacto para um número maior de estudiosos, principalmente jovens, pode ser importante. O trabalho editorial não deixa de ser uma leitura do texto. Principalmente em uma situação como esta, na qual se trata de uma obra inacabada e fragmentária. Vozes importantes, entre elas a do falecido Valentino Gerratana, questionaram o projeto afirmando que este considerava verdadeiras hipóteses de datação que em alguns casos não poderiam ser materialmente comprovadas. Mas, depois de quase trinta anos de discussões, um certo consenso foi sendo construído em torno dos critérios da nova edição nacional. Seu principal mérito está em permitir uma reconstrução mais acurada da história interna dos Cadernos, destacando fortemente a dimensão diacrônica do texto gramsciano em detrimento daquela sincrônica. Perde força, assim, a ideia de que Gramsci produziu uma obra sistemática e valoriza-se seu caráter fragmentário e incompleto, mas nem por isso menos elaborado ou instigante. A publicação da nova edição italiana dos escritos de Gramsci é também um risco. Quando o interesse pela obra do sardo arrefeceu em seu país natal, em grande medida devido ao colapso daquele que havia sido seu partido, foram os estudos levados a cabo no exterior os responsáveis pela maior difusão de seu pensamento. Na Argentina, no Brasil, no Chile e no México foi valorizado o pensamento político e historiográfico de Antonio Gramsci, e importantes estudos sobre a formação social desses países foram levados a cabo ao mesmo tempo que ele se tornou imprescindível para pensar a democracia na América Latina. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, suas ideias inspiraram os estudos culturais e abriram as portas para abordagens inovadoras e extremamente influentes. Na Índia, os subaltern studies promoveram uma abordagem original para o estudo dos grupos sociais subalternos. Traduzido para diversos contextos nacionais, o pensamento gramsciano internacionalizou-se. Não foi apenas uma simples operação técnica de passagem de uma língua a outra, mas sim uma verdadeira tradução cultural na qual o texto, lido em diferente contexto, adquiria novos significados. Embora extremamente originais, essas abordagens resultantes da internacionalização dos estudos gramscianos nem sempre foram fieis à letra do texto. O caso mais notável talvez seja o da noção de hegemonia, a qual adquiriu, a partir de Raymond Williams, um significado muito diferente daquele que tinha nos Cadernos do cárcere. Apesar disso, frequentemente, autores anglo-saxões citam Williams para se referir ao “conceito de hegemonia de Antonio Gramsci”. Nas últimas duas décadas, entretanto, novos pesquisadores fora da Itália assumiram o pensamento de Gramsci como um objeto de estudo e não apenas uma fonte de inspiração. O resultado tem enriquecido o debate internacional e contribuído de maneira importante para trazer novos temas à agenda de discussão e empurrar o pensamento de Gramsci para “fora da vida mesquinha e estreita”. A intensa circulação de pesquisadores entre Europa, Estados Unidos, Austrália e América Latina tem contribuído para consolidar esse novo cenário. Aqui aparece o risco da nova edição italiana, seu elevado custo e a escassa circulação restringirão enormemente seu acesso. Um novo distanciamento pode ocorrer entre os estudos realizados na Itália e no resto do mundo. Além da barreira linguística, obstáculos materiais podem dificultar o acesso aos novos materiais de pesquisa. O impacto negativo sobre os próprios estudos realizados na Itália seria notável. Nos últimos anos, o ambiente cultural e político italiano alimentou uma série de polêmicas estéreis sobre a vida e a obra de Antonio Gramsci. Discutiu-se muito sobre um suposto caderno no qual Gramsci teria renegado o marxismo e que por isso teria sido surrupiado pela direção do PCI; debateu-se a respeito da conversão do sardo ao catolicismo no leito de morte; e, depois da descoberta da carta de amor a Eugenia, comentou-se sobre sua vida sexual. Tudo isso apareceu naimprensa diária sob a forma de pequenos factoides a respeito dos quais os pesquisadores mais sérios precisaram dar respostas investindo tempo e recursos. Afastadas dos estudos internacionais, as pesquisas realizadas na Itália podem ser rapidamente consumidas por esse tipo de discussões nas quais predominam pequenas questões biográficas ou filigranas filológicas. Por sua vez, os estudos internacionais têm muito a perder afastando-se das pesquisas realizadas no país natal de Gramsci. Foi graças a essas pesquisas que se difundiu internacionalmente uma leitura que procura contextualizar eficazmente o texto, prestando atenção às fontes, ao ambiente cultural da época, aos problemas políticos que absorviam as energias do autor. Um intercâmbio com instituições desse país também permitiu o acesso a periódicos da época, às revistas culturais, a arquivos e a obras de difícil acesso. Mas tudo isso tinha como pressuposto a consolidação de uma linguagem comum e de um modo partilhado de pesquisar. O desaparecimento dessa linguagem comum pode se tornar um obstáculo para o desenvolvimento dos estudos gramscianos no exterior. Não há, entretanto, como recuar. O desenvolvimento dos estudos gramscianos foi o responsável pela nova edição italiana e ela contribuirá de maneira decisiva para o futuro das pesquisas. Mas é preciso estar atento para evitar o isolamento. O lugar do pensamento de Antonio Gramsci só pode ser este mundo grande e terrível. É nele que esse pensamento pode realizar sua vocação. Um retrato de Lívio Abramo DANIELA MUSSI E ALVARO BIANCHI É de autoria de um artista brasileiro um dos mais antigos retratos feitos de Antonio Gramsci. Trata-se de um desenho de Lívio Abramo feito à caneta sobre papel em 1932 intitulado Retrato ideal de Antonio Gramsci. Em 1932, Lívio já desenhava e tinha alguma experiência com a gravura, mas ganhava a vida em São Paulo como jornalista responsável pela seção de telegramas estrangeiros no Diário da Noite. Membro do Partido Comunista Brasileiro há alguns anos, foi em 1932 que Lívio conheceu diversos militantes trotskistas na redação do jornal, dentre eles o crítico Mário Pedrosa. Esta amizade lhe custou as acusações de “trotskista” e de “agente da polícia”, bem como a expulsão do partido no mesmo ano. Em entrevista concedida nos anos 1980, Lívio recordaria que em 1932 “havia aquela corrente obreirista no partido, contra todos os intelectuais”, e também contra artistas como ele. É intrigante pensar nas razões que teriam levado Lívio a propor um “retrato ideal” de Gramsci neste ano tão intenso. Uma sugestão está em sua sensibilidade aos problemas internacionais na época, possibilitada inclusive pelo contato no trabalho com as notícias internacionais. É deste período uma gravura de Lívio dedicada a retratar Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, ativistas anarquistas executados na cadeira elétrica em agosto de 1927 nos Estados Unidos acusados de homicídio em um julgamento controverso e com conotação de perseguição política. De acordo com Lívio em entrevista, sua primeira atividade no jornal foi como chargista, mas o conteúdo político excessivamente explícito de sua representação teria feito o redator do moderado Diário da Noite mudar de ideia. Os retratos de Gramsci e dos dois anarquistas explicam um pouco o ambiente sentimental e político de Lívio, membro de família de descendentes italianos no Brasil, uma comunidade naquela época atenta aos acontecimentos depois da Marcha sobre Roma, em 1922, e a instauração do fascismo no país. Lívio crescera em uma família influenciada por valores anarquistas, o que explica sua aproximação com a política comunista no fim dos anos 1920, mas também sua dificuldade de adaptação às orientações políticas do PCB, que, no início dos anos 1930, sofria forte pressão internacional para a rejeição de qualquer unidade com socialistas e anarquistas. O retrato de Lívio se baseia em uma das poucas imagens de Gramsci divulgadas na imprensa internacional durante a campanha pela sua liberação, uma fotografia de seu passaporte tirada no início dos anos 1920. Na imprensa, particularmente nos jornais socialistas e democráticos editados na Europa, Gramsci era descrito como um mártir da luta contra o fascismo, alguém que “morria lentamente” na prisão. Por vezes apresentado como professor universitário, por vezes como deputado, era muito comum a imprensa retratá-lo à imagem de um grande intelectual e não de um dirigente partidário stricto sensu. Pode ter contribuído para esta representação a aproximação do perfil de Gramsci ao de grandes lideranças democráticas e progressistas francesas. O “retrato ideal” de Lívio retoma justamente a ideia da distância entre representação e sujeito, distância que se converte em esforço de aproximação daquilo que Gramsci significava para os militantes anarquistas, trotskistas e comunistas dissidentes no Brasil. No retrato imaginado a partir da fotografia, os olhos de Gramsci vibram, se impõem sobre rosto e pescoço concebidos de maneira retangular, como um herói soviético, formando as colunas rígidas de uma estrutura corporal imponente. A força física imaginada anda em descompasso com a realidade de um homem pequeno, corcunda e doente e, neste deslocamento, projeta o caráter daquilo que Gramsci representa para além de si mesmo. O retrato propõe a unidade vibrante da resistência ao fascismo à construção do comunismo. Cultura e revolução GUIDO LIGUORI Em 1911, Antonio Gramsci, jovem sardo pobre de meios econômicos, mas de grande inteligência, foi estudar na Universidade de Turim, a melhor universidade italiana da época, graças a uma bolsa de estudos. Em meio a muitas dificuldades materiais, estudou filologia moderna na Faculdade de Letras e Filosofia. Premido tanto pela falta de dinheiro quanto pela paixão política, Gramsci torna-se jornalista na imprensa socialista da capital do Piemonte, a cidade mais industrializada e proletarizada da época, com um forte e organizado movimento operário. Diria mais tarde que, em Turim, frequentara “a escola da classe trabalhadora”. A Primeira Guerra Mundial e, depois, a da eclosão da Revolução Russa farão o resto: dirigente primeiro do Partido Socialista e, depois, do Partido Comunista Italiano, o “desterrado” Antonio Gramsci nunca terminaria seus estudos universitários. Se a “escolha de vida” de combatente socialista levou Gramsci a um caminho diferente daquele de professor de escola ou pesquisador universitário, sua paixão pela cultura e estudo não diminuiria, pois esta era pensada sempre em unidade com a luta pelo socialismo. Lutar pelo socialismo significava para Gramsci não apenas lutar na “frente política” ou na “frente cultural” como diziam então os socialistas, mas abrir uma terceira frente de combate: de luta pela cultura socialista, por uma visão de mundo autônoma que conquistasse as mentes das mulheres e dos homens e preparasse o socialismo com a consciência de que efetivamente “um outro mundo é possível”. Em Turim, a cultura de Gramsci se nutriu de muitas e diversas influências, em muitos casos distantes do marxismo que prevalecia na época, fortemente influenciado pelo positivismo e contra o qual se erguia, nos primeiros lustros do século, um forte movimento filosófico e cultural antiobjetivista. O marxismo de Gramsci era, portanto, subjetivista, antideterminista, antieconomicista, influenciado pelo neoidealismo, mas também pelo pragmatismo estadunidense, pelo pensamento do filósofo francês Henri Bergson, pelas ideias do anarcossindicalista Georges Sorel e de Gaetano Salvemini, estudioso e defensor do Mezzogiorno na Itália. Um marxismo original, portanto articulado sobre o primado absoluto e idealista da vontade. Mas a grandeza de Gramsci naqueles anos estava em outro lugar: no olhar atento, de cientista social mais do que de militante apaixonado, com o qual observava a sociedade turinense e italiana e colocava a nu os mecanismos de classe, a baixeza daquela definiria como “pequena política” e os limites históricos das classes dirigentes. REVOLUÇÃO RUSSA Quandoa Revolução Russa de fevereiro de 1917 eclodiu, Gramsci interpretou seus acontecimentos usando as categorias culturais que tinha à disposição, exaltando o primado do sujeito e a dimensão ética do evento, com tons que poderíamos definir como kantianos e fichteanos. Meses depois, diante da Revolução de Outubro, a leitura gramsciana apenas parcialmente foi além dos limites desse marxismo idealista e voluntarista. A Revolução Russa era, nas célebres palavras de Gramsci em dezembro de 1917, “a revolução contra O Capital”, referindo-se ao livro de Karl Marx que estava, segundo o juízo do revolucionário sardo, associado a uma interpretação burguesa, economicista e determinista da realidade social. Lênin, por sua vez, teria demonstrado aquilo que a vontade revolucionária poderia fazer ao não aceitar as correntes do marxismo reformista da época, profundamente incrustrado de positivismo; ao não aceitar a concepção da história para a qual a política e as superestruturas são rigidamente determinadas pela estrutura econômica. Com a Revolução Russa tem início uma nova fase para Gramsci, a fase da descoberta e da leitura de Lênin e, por meio dele, da conquista de um marxismo mais maduro e realista que redimensionou, pouco a pouco, o hipersubjetivismo inicial e começou a dar o justo relevo ao tema das condições objetivas e das relações de forças, tema que estará presente depois, em seus Cadernos do cárcere. Gramsci passará por experiências difíceis e cruciais nos anos seguintes. Em primeiro lugar o biênio vermelho de 1919-1920, quando se torna um dos mais importantes e originais representantes do pensamento conselhista europeu, assumindo concretamente a direção do movimento dos conselhos de fábrica turinenses e desenvolvendo uma concepção do autogoverno da classe trabalhadora original e diversa mesmo com relação ao modelo soviético russo. Os conselhos de fábrica, para Gramsci, muito mais do que os sovietes, aprofundariam suas próprias raízes diretamente no mundo produtivo, na fábrica, e dali se espalhariam para o restante da sociedade, sempre seguindo a organização e a articulação do trabalho. A derrota do movimento operário turinense o fez abrir os olhos, principalmente para a complexidade e variedade da situação italiana, para o fato de que nem toda Itália é Turim, e também para os limites do Partido Socialista Italiano. Desta consciência nascerá o impulso para formar rápida – e talvez apressadamente – um partido comunista na Itália. Da derrota do movimento das fábricas nasce a dramática fase da reação fascista e a derrota histórica que atinge também o movimento operário italiano. Uma situação que levou Gramsci a repensar profundamente e o predispôs a aceitar as lições do último Lênin, aquele da Nova Política Econômica (NEP) e da reflexão sobre as condições para a possibilidade de uma revolução imediata no Ocidente. REALISMO E UTOPIA Passando por todos esses acontecimentos históricos dramáticos, nos anos que vão de 1917 a 1926, quando é preso, Gramsci passa a repensar de modo abrangente sua bagagem teórica juvenil. Alguns fios desse pensamento anterior, e não secundário, serão reencontrados ainda nos escritos do cárcere, mas inseridos agora em um quadro diverso em muitos aspectos. Pode-se dizer que no Gramsci maduro confluem dois grandes componentes, não apenas do marxismo, mas do pensamento político italiano: o realismo, por um lado, e a utopia, por outro. Entendendo por utopia a vontade e a esperança de mudar a situação dada, que rapidamente torna-se o impulso ao fazer política, ou a convicção de que haverá sempre espaço para a ação de um sujeito que deseje mudar uma situação dada, mas que só conseguirá fazê-lo a partir de uma atenta análise das relações de forças existentes. O “excessivo (e, portanto, superficial e mecânico) realismo político” – segundo Gramsci – leva a renunciar à convicção de que seja possível trabalhar para mudar as relações de forças desfavoráveis. Mas a ação política que não parta de um atento reconhecimento das relações de forças conduz a derrotas catastróficas. Agora, ao lado da vontade, no Gramsci maduro está a consciência mais objetiva possível da situação, a análise minuciosa, histórica e social do terreno – principalmente nacional – sobre o qual tem lugar a luta. A luta pela revolução será possível apenas a partir – para usar palavras de Lênin – da “análise concreta da situação concreta”. E esta análise, aplicada primeiro à realidade italiana e depois ao Ocidente capitalista, leva Gramsci a concluir que uma revolução de tipo soviético não se repetiria. ORIENTE E OCIDENTE No cárcere, Gramsci coloca em foco a diferença entre “Oriente” e “Ocidente”, entre países atrasados e avançados e, consequentemente, entre “guerra de movimento” e “guerra de posição”, como descreve usando o léxico de seu tempo e profundamente influenciado pela experiência decisiva da Grande Guerra. Nos Cadernos, chega a afirmar que a Revolução Russa é a última revolução de características oitocentistas, a última “revolução insurrecional”, pelo menos na Europa ou no mundo avançado. Nesses países, a moderna estrutura da sociedade de massas, a nova interpenetração entre Estado e sociedade civil, o peso e a importância dos aparelhos de formação do consenso são fatores que levam o sardo a transformar profundamente o conceito de revolução, não apenas com relação à visão que ele próprio havia tido em seu período juvenil, subjetivista e idealista, mas também com relação à concepção clássica, e muitas vezes estereotipada, da tradição marxista e leninista. Não se trata, aqui, de um afastamento de Gramsci do marxismo ou da tradição revolucionária e desembarque em uma tradição classicamente reformista, como muitas vezes se afirmou. A vontade (revolucionária) não é deixada de lado, mas ela agora parte da consciência do novo terreno em que é chamada a operar e se faz porta-voz do que Gramsci chama de reforma intelectual e moral. A vontade de mudança não deixa de estar ancorada nas classes, seu coração está no mundo econômico e das relações sociais, mas Gramsci vê toda a complexidade da ação política moderna, refuta as concepções economicistas fundadas sobre o binômio crise econômica-revolução e considera fundamentais os aparatos públicos e privados que formam o senso comum difuso. Por este motivo, ainda, considera decisivo lançar o desafio da conquista do consenso por meio de uma elaboração cultural capaz de oferecer uma alternativa abrangente, não apenas econômica, à sociedade capitalista. Desse modo, o revolucionário sardo sublinha a importância decisiva do consenso, da elaboração cultural que saiba oferecer uma nova concepção de mundo, que saiba formar um novo senso comum de massa, sempre a partir daquela leitura da sociedade dividida em classes que toma de Marx, bem como da necessidade da política de alianças que aprende com Lênin. Trata-se de uma concepção que coloca em relevo a importância decisiva do consenso, da elaboração cultural, do senso comum difuso. Esta é a estratégia da conquista da hegemonia. Toda a reflexão de Gramsci, seja em seus aspectos filosóficos e pedagógicos, seja em seus aspectos políticos, não esquece jamais que o objetivo, o fim da revolução (uma revolução não insurrecional, mas concebida como processo e de longa duração) é o autogoverno das mulheres e dos homens, dos produtores associados. Gramsci revoluciona o conceito de revolução e o leva à altura da época presente, em consonância com uma elaboração original de muitas das categorias mais importantes do pensamento político contemporâneo. Em primeiro lugar, elabora a categoria do Estado como Estado integral, de interpenetração dialética entre Estado e sociedade civil. Na prisão, Gramsci compõe um novo “léxico político”. Para estudar esse novo léxico da política moderna, muitos estudiosos e estudiosas de Gramsci escreveram conjuntamente um Dicionário gramsciano (Boitempo, 2017) que ajuda a compreender a linguagem de Gramsci e o que pretendia verdadeiramente dizer com a palavra revolução: uma mudança profunda da sociedade e domundo que partisse da cultura, do senso comum, da ideologia, capaz de evitar a revolução passiva e de conduzir os subalternos a uma nova hegemonia. Todas estas “palavras de Gramsci” que devemos conhecer e usar ainda hoje. Tradução Alvaro Bianchi O olhar móvel e ingênuo da hegemonia DANIELA MUSSI Em um artigo publicado em 1924 na revista Rivoluzione Liberale, o jovem intelectual liberal piemontês Piero Gobetti descreveu Antonio Gramsci como o mais destacado do grupo de jovens socialistas que havia tomado parte no movimento de greves e ocupações de fábrica de Turim no biênio vermelho de 1919 e 1920. Gobetti era amigo e também adversário político e intelectual de Gramsci e, por esse motivo, sua admiração era acompanhada de certo desdém pela figura do dirigente socialista e, também, por boa dose de perplexidade: “Gramsci tem a cabeça de um revolucionário, seu retrato parece construído pela vontade, talhado rudemente e fatalmente por uma necessidade íntima que deve ser aceita sem discussão: o cérebro sugou o corpo. O líder dominante sobre os membros doentes parece construído segundo relações lógicas necessárias para um plano social e retém deste esforço uma rude e impenetrável seriedade: somente os olhos móveis e ingênuos, contidos e escondidos pela amargura, interrompem por vezes, com a bondade do pessimista, o vigor firme da sua racionalidade.” Gobetti conhecera Gramsci durante a Primeira Guerra Mundial em Turim. A idade insuficiente de um e o corpo doente do outro haviam impedido o alistamento e a ida para a trincheira para ambos. Por este motivo, os dois viviam e intervinham nos conflitos do chamado front interno, no ambiente de transformações e complicações múltiplas – econômicas, políticas, culturais – geradas pelo conflito na Itália. Os desdobramentos trágicos da guerra haviam provocado uma crise profunda nas correntes políticas e intelectuais europeias, sentida também na Itália. Liberais, católicas, socialistas e nacionalistas não eram capazes de interpretar e resolver de fato os problemas gerados pela guerra no país; estes se avolumavam: as tragédias humanas da morte e da miséria, bem como o fantasma da revolução. Naqueles anos de guerra, Gramsci iniciou sua atividade como cronista da imprensa socialista de Turim. Seus artigos nos jornais Avanti! e Il Grido del Popolo miravam a hipocrisia e o cinismo de articulistas e acadêmicos da época. A origem sarda e os problemas de saúde que o acompanharam desde o nascimento pareciam impulsionar Gramsci com mais fervor crítico ainda contra o comodismo e o elitismo subjacente às análises de muitos dirigentes e intelectuais sobre a vida popular, particularmente a periférica. A frágil condição pessoal dava o tom do desenvolvimento de sua personalidade política. As crônicas do jovem jornalista sardo miravam com frequência dois antagonistas: neutralistas – para quem a Itália não deveria se posicionar politicamente diante do conflito mundial – e interventistas – que defendiam a participação militar dos italianos na guerra contra os alemães. Em seus artigos, Gramsci procurou desconstruir a polarização aceita como óbvia pela opinião pública desde antes da guerra entre estes dois círculos intelectuais: nas polêmicas entre neutralistas e interventistas, Gramsci via muito estardalhaço midiático e pouca atenção para uma certa sincronia. O comodismo dos primeiros parecia, em sua opinião, fortalecer o militarismo dos segundos. A agressividade nacionalista dos interventistas sustentava o massacre dos soldados no exterior, enquanto o pacifismo comodista dos neutralistas operava a decapitação política das classes subalternas na Itália. Intervencionismo e neutralismo, apesar da aparência contrastante, atuavam na política como complementares. Neste difícil cenário, em que a aparência confundia a compreensão da essência, Gramsci investigava o mecanismo que operava para que duas visões de mundo díspares fossem capazes de atuar em confluência perversa. UM MARXISTA OCIDENTAL? Em 1926, Antonio Gramsci – então um importante dirigente comunista – foi preso e passaria mais de uma década como prisioneiro de Mussolini. Neste intervalo, obteve permissão para escrever e preencheu, durante aproximadamente seis anos, 19 cadernos de tipo escolar com apontamentos sobre os temas mais diversos, sendo alguns mais presentes que outros, algumas notas mais organizadas e encadeadas que outras, muitas anotações reescritas. Gramsci sofreu um derrame e faleceu em abril de 1937, poucas semanas depois de ter sido transferido da prisão para uma casa de saúde. Não viu a Segunda Guerra Mundial, portanto, e nunca teve controle sobre a publicação do que escreveu na prisão, suas cartas ou sobre as coletâneas de seus artigos jornalísticos. Com o fim da guerra, a partir do final dos anos 1950, muitos dos escritos de Gramsci passaram a ser publicados e traduzidos em outras línguas. Com as primeiras análises deste material, tornou-se comum entre os intérpretes de seu pensamento o argumento de que haveria uma profunda descontinuidade entre aqueles artigos jornalísticos do período da Primeira Guerra até meados dos anos 1920 e os Cadernos do cárcere (1929-1935). Essa interpretação partia da ideia de que Gramsci teria sido, no primeiro momento, tributário das ideias neoidealistas de Benedetto Croce e Giovanni Gentile, mas que, em seguida, teria rompido drasticamente com esta perspectiva para se tornar verdadeiramente marxista nos Cadernos. Essa leitura constituiu o núcleo de uma operação cultural protagonizada pelos intelectuais vinculados ao Partido Comunista Italiano (PCI), que tinha por objetivo afirmar uma “supremacia” comunista diante do pensamento liberal. Para estes, ao longo dos anos, Gramsci teria caminhado do polo idealismo/liberalismo/socialismo no sentido do materialismo/marxismo/comunismo. Por meio desta elaboração, todo o pensamento político da resistência ao fascismo poderia ser reorganizado dentro de um espectro formado pela distância entre os dois opostos: a tradição idealista-socialista e a tradição materialista- comunista. Os principais problemas dessa operação cultural são dois: primeiro, a linearidade com que o pensamento de Gramsci foi tratado, como se os escritos carcerários representassem uma espécie de testamento a ser interpretado como palavra final, bem-acabada e única; e a arbitrariedade com que se propôs que Gramsci teria desenvolvido suas ideias a partir de uma oposição lógica e linear entre liberalismo e marxismo. As raízes dessa elaboração retrospectiva estavam fincadas na necessidade sentida pelos dirigentes do PCI nos anos 1960. Por um lado, era preciso justificar de alguma maneira a unidade política ampla que derrotara o fascismo no final dos anos 1940 sem rever abertamente as polêmicas da década 1930 ao redor do problema do “social-fascismo”. Com o fim da guerra, era preciso mostrar que comunistas haviam se aliado aos liberais e católicos sem perder o controle da situação, pois, como Gramsci teria mostrado “claramente”, os marxistas seriam, por natureza, superiores às demais correntes. Por outro lado, e ainda mais importante, era preciso justificar as alianças eleitorais que se projetavam no horizonte sem com isso abrir espaço para questionamentos sobre a viabilidade destas. Os comunistas poderiam aliar-se no governo aos católicos ou liberais no governo, pois, como Gramsci teria demonstrado, os marxistas seriam, naturalmente, dominantes. Não por acaso, quando os dilemas dessa experiência política do compromisso, arquitetada e coordenada pelos comunistas italianos no pós-guerra, passaram em revista crítica nos anos 1970, as ideias e mesmo a história de Antonio Gramsci foram interpretadas como responsáveis pelos erros políticos. Em uma inversão curiosa, já que sustentada sobre a mesma estrutura argumentativa dos teóricos do PCI, os críticos passaram a dizer que Gramsci teria tentado, mas nunca conseguido, se tornar um marxista radical. Quando muito, como sustentou Perry Anderson, Gramsci teria chegado perto de um marxismo confuso ao elaborar o conceitode hegemonia, mas seu apego ao neoidealismo nunca teria sido completamente superado. No limite, Gramsci teria permanecido um reformista, um “marxista ocidental”. UMA VOZ NA MARGEM Também nos anos 1970, um conjunto de intelectuais situados na margem das discussões dos marxismos oficial e antioficial passa a prestar atenção em Gramsci e a ler seus escritos. Alguns – como é o caso do crítico literário Raymond Williams – deixaram de lado as supostas “confusões” para incorporar de maneira criativa o conceito de hegemonia na pesquisa sobre a vida cultural das classes populares. Outros – e aqui um bom exemplo é o historiador indiano Ranajit Guha – passaram a se interessar por passagens menos discutidas e aparentemente inofensivas dos escritos carcerários gramscianos, como as que tratavam das possibilidades de uma história das classes subalternas. A aproximação desinteressada e criativa destes e de outros intelectuais, tais como Stuart Hall, E. P. Thompson, Gayatri Spivak e Pierre Bourdieu, para citar alguns, com as ideias de Gramsci fez com que muitos de seus conceitos e noções se dissolvessem e penetrassem de maneira invisível parte importante do pensamento político e das ciências sociais do final do século 20. Em comum, esta difusão teve a ambição de explorar as dinâmicas da vida popular sob ângulos analíticos menos burocráticos e mais sensíveis às complexas dimensões que estruturam a política na periferia e na margem. Em paralelo, a pesquisa filológica que, nos últimos trinta anos, se dedicou a renovar a pesquisa especializada italiana dos escritos pré- carcerários e dos Cadernos do cárcere operou uma transformação aguda na maneira como as ideias de Antonio Gramsci passaram a ser recebidas pelas novas gerações de leitores e pesquisadores de seu pensamento. A queda do Muro de Berlim foi também a queda do monopólio dos “herdeiros de Gramsci”. As ideias de Gramsci puderam se manter vivas e renovar a caixa de ferramentas do pensamento, portanto, porque, num primeiro momento, foram traduzidas de maneira livre e herética nas línguas de diferentes experiências intelectuais críticas e engajadas e, em segundo, porque estas ideias foram religadas ao universo e trajetória singulares de seu autor. Quando, em 1924, Gobetti retratou o amigo e adversário político não deixou de notar com certa surpresa que Gramsci despontava como líder dominante sem ser um “líder dominante”. Gramsci não fora soldado e tampouco se tornaria um general. Pensando nisso, Gobetti o aproximava não da figura do estadista, mas da imagem do profeta. As palavras e ações de Gramsci, de fato, nunca viriam a dirigir baionetas e canhões vitoriosos no campo de batalha. Mas elas se manteriam vivas para gerações e gerações de “olhos móveis e ingênuos”, pois Gramsci era já um legítimo representante da revolução derrotada que amaldiçoa os vencedores. Como disse Romain Rolland pouco depois de sua morte em abril 1937: “Nosso Gramsci não está morto e não foi derrotado”. Antonio Gramsci e a linguística GIANCARLO SCHIRRÙ Ao leitor dos Cadernos do cárcere pode acontecer muitas vezes de se encontrar com notas e apontamentos que parecem particularmente extravagantes, e em qualquer caso, muito longe dos motivos que o levaram às páginas de Gramsci. O efeito pode aumentar grandemente para aqueles que olham para cadernos a partir de continentes distantes, que não têm familiaridade especial com a cultura italiana, e talvez se interessem principalmente pelos aspectos estritamente políticos de reflexão que ocorrem lá. Não é difícil pensar que alguns tenham lido os nomes de Alfredo Oriani, Alfredo Panzini, Mino Maccari apenas nos escritos de Gramsci na prisão, e estejam interessados neles somente para tentar entender o significado de certas passagens desses textos. Certamente, os três literatos recém- nomeados caíram em um esquecimento merecido na segunda metade do século 20, como muitos dos participantes da sociedade literária dos anos de fascismo. No entanto, os seus debates constituíram para Gramsci o movimento vivo do próprio presente, sem o qual, para ele, não seria possível interpretar o passado e ter uma ideia realista da história italiana: “o presente contém todo o passado e do passado realiza-se no presente aquilo que é ‘essencial’ sem nenhum resíduo de um ‘desconhecido’ que seria a verdadeira ‘essência’. O que foi ‘perdido’, ou seja, o que não foi transmitido dialeticamente no processo histórico, era, em si, irrelevante”. Entre as notas mais desconcertantes para um leitor não especialista, existem aqueles que se dedicam à linguística. A razão é diferente da que se acabou de ver: os nomes dos estudiosos aos quais Gramsci se refere – Antonino Pagliaro, Matteo Bartoli, Giulio Bertoni, Giacomo Devoto, Vittore Pisani – ainda estão presentes nas bibliografias atuais da linguística histórica. Seus nomes e suas obras, no entanto, são conhecidos apenas pelos especialistas nessa disciplina. Deve-se considerar que, apesar de Gramsci escrever sobre muitos temas na prisão – política, história, filosofia, economia, literatura, folclore, religião, jornalismo... –, havia recebido uma formação profissional apenas em linguística. Isto é claramente visível nos juízos específicos que formula sobre as personalidades nomeadas acima, todas geralmente muito agudas e em sua maioria confirmadas pela tradição posterior. LINGUÍSTICA HISTÓRICA Gramsci foi em sua juventude um estudante de linguística histórica: formado na Universidade de Turim, sob a orientação de Matteo Bartoli, uma das maiores personalidades da linguística na Itália da época. Recentemente foi editada, de forma crítica, na edição nacional dos escritos de Gramsci publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana, a apostila do curso ministrado por Bartoli no ano letivo de 1912-1913. Essa brochura, com a qual os alunos daquele ano tiveram que se preparar para o exame de glotologia (termo usado na grade curricular italiana para denominar a linguística histórica), foi impressa originalmente com a técnica da litografia a partir de uma matriz manuscrita. A mão que redigiu a matriz gráfica é claramente identificável com a do jovem Antonio Gramsci (que também assinou a única cópia conhecida), então um estudante que havia frequentado aquela disciplina universitária, e que tinha sido encarregado pelo professor para transcrever o conteúdo das lições. Na primeira parte desse livro fala-se de fonologia e morfologia histórica românica, com referência à conjugação verbal dos franceses. A segunda parte expõe um grande esboço da situação linguística da Península Balcânica: com referências ao romeno, ao veneziano, ao judaico-espanhol presente nos Bálcãs depois da migração sefardita da Espanha, do eslavo, do albanês e do grego. O tema constituía uma das áreas nas quais Bartoli havia se especializado como um estudioso do dálmata, uma antiga língua românica presente na costa do Adriático oriental, extinta entre os séculos 19 e 20. A partir das cartas de Gramsci desses anos, é possível saber que ele havia começado alguns estudos sobre o sardo, sua língua nativa, e tinha, em particular, a intenção de realizar um trabalho sobre as “palavras e coisas” dedicadas à tecelagem, terminologia que incluiria todo o processo de produção, do cultivo à fiação do linho e ao tear. Também a partir de sua correspondência, sabemos que ele havia sido encarregado de conferir os vocábulos sardos reunidos por Wilhelm Meyer-Lübke, o professor de linguística românica de Viena com o qual Bartoli estudara, para seu dicionário etimológico românico (Romanisches Etymologisches Wörterbuch, primeira edição em Heidelberg entre 1911 e 1920). A entrada da Itália na guerra, em 1915, provocou em Gramsci, no entanto, um gradual distanciamento dos estudos e, embora ainda em 1918 esperasse se formar em linguística, nunca teria sucesso nesta empreitada, dedicando toda sua energia à atividade revolucionária. Desde o final de 1915, na verdade, ele havia começado sua colaboração com o jornal do Partido Socialista Italiano, o Avanti! e em 1917 se tornou o diretor
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