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Cult #222 Antonio Gramsci

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Sumário
coluna
Francisco Bosco
Marcia Tiburi
perfil Davi Kopenawa
entrevista
O grito preso de Otto
dossiê Gramsci: diálogos inéditos
Apresentação
Um sardo no mundo grande e terrível
Um retrato de Lívio Abramo
Cultura e revolução
O olhar móvel e ingênuo da hegemonia
Antonio Gramsci e a linguística
teatro
A fantasmagoria do branco
literatura
Correspondência entre ausentes
livros
A omissão como presença
Tenso, triste e bem-sucedido
A partir dos despossuídos
Motivos para leitura e escuta
colaboraram nesta edição
coluna
O novo espaço público
FRANCISCO BOSCO
Desde junho de 2013, a sociedade brasileira apresentou uma
transformação. Recusando sistematicamente sua autoimagem cordial
e as práticas dela consequentes, bem como criticando com dureza as
instituições que as resguardam – tanto do Estado, quanto privadas –,
fez emergir um novo espaço público, de maior intensidade
democrática, e onde o conjunto múltiplo, complexo e interseccional
de seus conflitos passou a ser permanentemente explicitado.
É evidente que movimentos de explicitação de conflitos no Brasil –
seja de classe, mais tradicionais, como relativos a lutas identitárias,
mais recentes – não começaram em 2013. A história do Brasil, como
se sabe, é atravessada por revoltas de trabalhadores, rurais e urbanos,
por quilombolas, por militantes, por ondas feministas, por
movimentos LGBT (esses mais próximos no tempo), por movimentos
negros etc. Mas alguns traços tornam possível afirmar que houve uma
transformação na natureza desses conflitos. Eles se tornaram
permanentes e mais abrangentes. A sociedade brasileira, ou uma boa
parte dela, não permite que a tensão arrefeça.
Pelo menos dois fatores podem ter propiciado essa mudança. Um
deles teria sido a formação de uma nova cultura política, gestada ao
longo do governo Lula. É o que se pode desdobrar da leitura de
Marcos Nobre: “À medida que foi se firmando um novo modelo de
sociedade, social-desenvolvimentista, também foi se firmando na
base da sociedade uma nova cultura política que lhe corresponde,
enquanto o sistema político permaneceu dominado pelo
peemedebismo. O resultado desse movimento de mais de três décadas
trouxe com ele uma normalização do peemedebismo, com sua
blindagem característica do sistema político contra a sociedade. Mas
trouxe igualmente a incompatibilidade entre a nova cultura política
correspondente ao social-desenvolvimentismo e a cultura política
peemedebista.”
O choque entre a blindagem das instituições (não apenas do
Estado), sua defesa sistemática dos interesses das elites político-
financeiras, e a nova cultura política, clamando por uma democracia
de maior intensidade, produziu uma panela de pressão social que não
tem como se resolver, na medida em que as instituições não absorvem
suas demandas (ao contrário, a partir do golpe, têm apertado
progressivamente o garrote sobre quaisquer aspirações igualitárias).
Essa panela de pressão, por sua vez, só foi possível devido a outro
fator, que, no meu entender, é inequívoco: o surgimento das redes
sociais. De novo, a web 2.0 não nasceu em 2013, mas só a partir daí
juntou-se às outras condições necessárias para que pudesse se tornar
um novo espaço público brasileiro, com características de maior
intensidade democrática do que o espaço público tradicional. Este,
formado em larga medida pela grande imprensa, foi percebido como
um correlato do sistema político, com sua lógica conservadora,
manipulando a realidade de acordo com os interesses da elite político-
financeira. Ao contrário, as redes sociais são, como afirma Manuel
Castells, um sistema de autocomunicação, constitutivamente mais
democrático. Tem sido ali que se desenrola um espaço público
permanentemente tensionado, que, entre seus atores à esquerda, se
recusa a aceitar a manutenção e produção contínua de desigualdades,
tanto econômicas como identitárias.
Sobre estas últimas, as questões identitárias, elas não surgiram, do
mesmo modo, em 2013, e sim em 1968 (de forma mais sistemática e
conjunta, claro), mas tanto encontraram nas redes sociais um espaço
produtivo de organização e manifestação, quanto se desenvolveram
enormemente devido aos bloqueios quase intransponíveis a lutas
estruturais num sentido mais universal. Como já observava Foucault,
no início dos anos 1980 (o comentário se aplica à nossa realidade
presente): “São lutas ‘imediatas’ por duas razões. Em tais lutas,
criticam-se as instâncias de poder que lhe são mais próximas, aquelas
que exercem sua ação sobre os indivíduos. Elas não objetivam o
‘inimigo mor’, mas o inimigo imediato. Nem esperam encontrar uma
solução para seus problemas no futuro (isto é, liberações, revoluções,
fim da luta de classe)”.
Mas não é apenas devido a uma maior possibilidade estratégica de
efetivar-se que as lutas identitárias cresceram. É também porque: a)
mesmo as lutas mais gerais de classe não garantem o fim dos
mecanismos de poder exercidos contra essas minorias (basta evocar a
opressão brutal contra homossexuais em regimes socialistas); e b) o
domínio do reconhecimento não se reduz ao âmbito jurídico-
institucional. Reconhecimento também envolve a dimensão social.
Num país como o Brasil, onde há um descompasso entre a existência
de leis e seu efetivo cumprimento, isso me parece especialmente
importante. A existência das leis Maria da Penha e Caó, necessárias
em si mesmas, não impede a reprodução do machismo e do racismo,
em seus níveis de biopoder. A disputa por corações e mentes no plano
social é, portanto, decisiva.
Entretanto o que tem acontecido no espaço público das redes
sociais é, muitas vezes, assustador. Há pessoas atuando no debate
com arrogância, autoritarismo, violência desnecessária e até covardia.
Como disse, é claro que há a necessidade de explicitar os conflitos; e
é claro que isso é o campo da política, onde a lógica é a do
antagonismo. Mas arrogância, autoritarismo e violência quase sempre
são equivocados em relação ao mérito das questões (geralmente
complexas, com argumentos de diversos lados tendo a sua
pertinência) e são equivocados, no meu entender, também da
perspectiva estratégica (tacam fogo em qualquer possibilidade de
construção de consensos mais amplos, renunciam a fazer distinções
entre alianças maiores e dissensos de ordem menor e tendem a
produzir reatividade imaginária).
Finalmente, há que se refletir sobre a dimensão moral de promover
linchamentos nesse espaço público, convocando pessoas do mesmo
grupo político-identitário para surrar um “inimigo” comum. Isso
geralmente alimenta o princípio dogmático que move alguns grupos,
pois seus membros unem-se estrategicamente contra o adversário,
renunciando a criticar eventuais erros de argumentação e outros erros
de seus aliados, bem como a aceitar argumentos e posturas corretas
de seus oponentes. Chamo de princípio dogmático a atitude de taxar
qualquer crítica pontual como oriunda de um adversário absoluto:
discordar, por exemplo, de uma feminista em algum argumento
específico pode transformar o discordante, imediatamente, em
“esquerdo-macho” ou coisas do tipo.
Não estou aqui defendendo uma dissolução dos conflitos. Num
artigo com que concordo fundamentalmente, o sociólogo Aldo
Fornazieri comentou: “Exigir, neste momento, a despolarização, o
debate polido, as maneiras finas e educadas, significa exigir que o
povo permaneça bestializado. No Brasil, o povo sempre foi tratado
como serviçal, como escravo, como ignorante, como grosseiro, cujo
único atributo seria trabalhar e servir. As elites sempre se reservaram
o monopólio do luxo, do dinheiro, dos vícios e da corrupção. Pois
bem. Nos momentos críticos, de incerteza acentuada acerca do
amanhã, essas elites mal-educadas, incluindo a intelectualidade que
as serve, exigem boas maneiras daqueles que nunca foram bem
tratados. O povo e os ativistas cívicos precisam aprender a tratar com
grosseria as elites violentas, luxuriosas, vaidosas, corruptas,
expropriadoras, sonegadoras, pois esta é a forma polida que merecem
ser tratadas por terem construído uma sociedade injusta e brutalmentedesigual.”
De acordo, mas é preciso fazer uma série de distinções. Há
polarizações que são desejáveis, uma vez que demarcam nitidamente
dois campos (por exemplo, nesse momento a reforma da Previdência,
ou, de forma mais geral, a mobilização contra um governo ilegítimo).
Mas há outras questões em que elas são equivocadas e
contraproducentes, pois anulam categoricamente qualquer
denominador comum onde eles certamente existem. Como afirma o
cientista político Wilson Gomes, professor da UFBA: “Toda causa
legal precisa tanto criar identidade entre os aderentes como criar
pontes com os ‘de fora’. Grupo de interesses sociais que não cria
pontes acaba virando uma seitinha radical, cercada de suspeita e
agressividade por todos os lados”.
Em suma, a recusa a verificar distinções, a violência excessiva, as
posturas dogmáticas, tudo isso pode acabar tendo como consequência
um esvaziamento desse espaço público tão importante que é o das
redes sociais (a violência desencoraja a participação), bem como
dificulta a construção de alianças para avanços institucionais, e
finalmente antipatiza com a causa de setores mais abrangentes da
sociedade, que são geralmente aqueles que mais se deve disputar. 
coluna
Chapados: sobre o uso abusivo da linguagem
MARCIA TIBURI
A “sociedade do espetáculo” mostrou seu caráter de sensacionalidade
em um sentido teofisiológico, como demonstrou Christoph Türcke em
seu livro Sociedade excitada – filosofia da sensação (ed. Unicamp,
2011). Hoje, não somos mais apenas regidos por imagens, mas
verdadeiramente dominados em nosso corpo, por meio de sensações
que nos atingem de fora para dentro. O sistema econômico, ele
mesmo uma religião com culto e ritual, nos comanda como um
obsessor que tivesse se apoderado de cada um. Não é à toa que o
exorcismo tenha se tornado um “serviço” em igrejas, da católica à
neopentecostal, quando tudo continua a seguir a lógica da mercadoria
que significa, sobretudo, que há, religiosamente, um preço a pagar.
O capitalismo descobriu o mundo da sensação e passou a reger a
vida em sociedade, por meio da administração dos sentidos, de táticas
de excitação. Vivemos, como ratos de laboratório, frangos criados
sob lâmpadas, excitados pelo cinema e pela televisão que nos
capturam e acomodam ao seu sistema. Em termos bem simples,
vivemos ansiosos, nervosos, viciados em substâncias, desde drogas
até deuses e ídolos e, sobretudo, loucos por emoções. Nas telas de
celular, cultuamos a comunicação vazia, vivemos a emissão de
expressão deturpada. Viciados em telinhas à mão, coisa que
aprendemos com as grandes telas de cinema e televisão, sem
consciência de que a excitação cura a excitação. A substância que nos
tira a paz é a mesma que nos traz a paz, como nos ensina qualquer
vício. Estresse digital será a doença do futuro.
A “sociedade fissurada”, em sentido filosófico, se define pela
relação com o absoluto que se dá tanto por meio das drogas como
substâncias físicas, quanto com Deus e outras ideias que se
apresentam como substâncias metafísicas. Nesse contexto, estamos
todos “chapados” porque, se estamos fissurados, isso quer dizer que,
se havia algo, ele escapa pela fissura. Não temos como “reter” alguma
coisa; por exemplo, nosso eu. Chapados, somos uma superfície plana
quando antes éramos um organismo com alguma coisa dentro, quem
sabe a alma.
O preconceito tem a estrutura de nossa relação com a substância,
dependemos dele, ficamos como que viciados em ideias e discursos
prontos que não passam pelo crivo da reflexão. Repetimos
compulsivamente ideias prontas como quem busca o incomparável
prazer da primeira vez. O prazer da linguagem que, desacompanhado
de pensamento, não existe. Caímos no uso abusivo da linguagem
como se ela não gerasse comprometimentos e responsabilidades. Ela
serve a muitos como uma droga qualquer que promete recuperar o
sentido perdido.
Como um grande platô por onde tudo escorrega, a sociedade atual
tem um caráter chapado reproduzido em seus indivíduos. As
“platitudes” fazem sucesso como mercadoria e serviços: da autoajuda
às músicas e filmes da indústria cultural que nada dizem, todos estão
apaixonados, emocionados com clichês. O procedimento de copy-
paste é o que comanda o mundo da linguagem sem ideias que
sustenta as redes sociais e a televisão. O sujeito da sociedade chapada
é sem fundo e sem relevo, sem dobras nem reentrâncias. Um sujeito
do “irrelevante” transformado em capital. A intimidade, a
interioridade, a alma, que dependiam na ideia de profundidade,
tornaram-se assuntos caducos. Só o estilo, o fashion, o cool definem
seu sentido. Desatentos a esses acontecimentos, nos tornamos
escorregadios. Deixamos para trás o caráter que, na era anterior, foi
forjado a duras penas.
O consumismo torna-se o padrão de toda ação, até dos atos de fala.
A reprodutibilidade sem fim de pensamentos vazios, de emoções e
ações cuja função é apenas perpetuar o sistema, tudo o que possa
evitar o questionamento – ele mesmo um perfurador de superfícies –
é o que nos resta. 
perfil Davi Kopenawa
Devir índio
PAULO HENRIQUE POMPERMAIER
São 9 horas da manhã e São Paulo já vive seu caos voraz. A terra
remexe com a passagem dos trens do metrô, multidões de pernas e
braços se atropelam, olhos vibram cheios de cores e velocidade. Nos
cruzamentos, nas filas de carros, em semáforos acéfalos e na
eletricidade líquida a cidade desabrocha em seu ímpeto de
movimento.
Entre imensos prédios, por trás de uma dessas portas fugazes, no
Hotel Atlântica, na Bela Vista, encontra-se Davi Kopenawa, liderança
indígena yanomami. Sua presença é ambígua naquele lugar, resiste ao
fluxo da cidade com o porte profundo da floresta. No primeiro
cumprimento, sentem-se suas mãos robustas, ásperas e atentas.
Mataram sozinhas uma anta, ainda na adolescência. Uma caça muito
valorizada por seu povo.
Quando ele pronuncia algumas palavras, percebe-se uma voz
atravessada por gerações. São palavras que vieram de Omama,
demiurgo da cosmogonia yanomami. De um tempo em que “nossos
maiores amavam suas próprias palavras”, como explica. São
transmitidas oralmente através dos séculos, ao se tomar yãkoana.
Essa substância ritualística consiste em um pó feito com cascas de
árvore secas e pulverizadas. Ao ser inalado, inicia o indígena no
conhecimento xamânico de seu povo.
“Nossa aula magna é tomar yãkoana durante o dia, para se
preparar. Assim que estudamos para buscar mais sabedoria, a
sabedoria da árvore, que percorre a floresta, a montanha, o rio”.
Quando foi iniciado para ser xamã, aos 27 anos, Davi Kopenawa
vivia duas decisões fundamentais e entrecruzadas de sua trajetória.
Aceitar a voz de seus ancestrais, ver os espíritos da floresta, xapiri,
dançarem diante de seus olhos com as cores vibrantes e brilhosas do
conhecimento da mata. E reafirmar sua possibilidade humana, sua
identidade, diante da vontade predatória dos brancos.
O costume ameríndio, afinal, está mais ligado ao futuro da
humanidade do que ao seu passado, como refletia o poeta e ensaísta
mexicano Octavio Paz em 1993: “A extinção de cada sociedade
marginal e de cada diferença étnica e cultural significa a extinção de
uma possibilidade de sobrevivência da espécie inteira. Com cada
sociedade que desaparece, destruída ou devorada pela civilização
industrial, desaparece uma possibilidade do homem – não só de um
passado e um presente, mas um futuro”.
Kopena é o nome do espírito da floresta das vespas. Em sua
primeira ingestão de yãkoana, foram as imagens desses animais que
se apresentaram para ele. Era o apelido que a floresta lhe dava para
proteger suas árvores e rios. Kopena: como as vespas, Davi vai
proteger sua casa, dar uma ferroada naqueles que cutucarem sua
colmeia. É seu apelido feroz, como de um guerreiro primordial.
Já seu primeiro nome foi-lhe imposto na infância por pastores de
uma organização evangélica norte-americana, a New Tribes Mission.
Com o objetivo de converter populações tradicionais ao cristianismo,
seus membros constroem missões próximas às habitações indígenas.
Foi o que ocorreu, no início de 1960, quandoum grupo da NTM se
instalou na aldeia de Marakana, onde Davi nasceu.
Passaram, então, a nomear seus habitantes conforme o padrão
judaico-cristão. No entanto, tradicionalmente, os yanomami
consideram falta de respeito usar seus nomes-apelidos entre si, como
ele explica: “A gente só usa o nome de alguém longe dela e de sua
família, senão eles ficam bravos. É nosso nome sagrado. Quando a
Funai e as missões entraram na nossa terra, os brancos colocaram
todos esses nomes que vocês têm, pois não entendem os apelidos
tradicionais”. Yanomami, seu último nome, foi escolhido após se
tornar xamã, como forma de representar sua etnia, “é nome de pajé,
que me liga ao meu povo”.
Davi Kopenawa Yanomami. Com sua presença trazia ali a
contemporaneidade de tempos remotos, a voz profunda de gerações
perenes diante da frenética e movediça São Paulo às 9h da manhã.
Sua fala entoa canções há muito esquecidas, e seus gestos
cosmogônicos não podem ser separados de sua política yanomami.
Desde que a construção da estrada Perimetral Norte, em 1973,
“rasgou a pele da terra”, Davi sentiu vontade de lutar pelos direitos
dos povos originários. A rodovia, logo abandonada em 1977, cortou o
sul de Rondônia, invadindo territórios dos yanomamis que moravam
ao longo dos rios Ajarani, Catrimani, Mapulaú e Aracá, o que o
impeliu a levar suas palavras ao mundo dos brancos.
No pacto que firmou com o etnólogo francês Bruce Albert,
projetou sua voz mundialmente com a publicação de A queda do céu
(Companhia das Letras, 2015). Ecoou seu testemunho, ambiguamente
ancestral e contemporâneo, nos ouvidos moucos do “povo da
mercadoria”. Para, assim, revelar a iminente queda do céu, quando
não restarem mais índios para mantê-lo acima de nós. E em seu mito
cosmogônico está o poder de sua luta política: “Queda do céu é
político, é política do povo yanomami que sabe o que aconteceu. Que
caiu o céu, acima do povo, e matou todos. E os pajés lutam para
manter o céu acima de nós, porque índio conhece a alma da terra, a
alma da floresta. Branco só conhece o espírito destruído: pedras
preciosas, óleo, petróleo, dinheiro, agrotóxicos”.
Albert, que convive com os yanomamis desde 1975, acredita que
“Davi é um grande pensador da Amazônia indígena, e também um
líder indígena renomado por sua integridade, coragem e visão. Além
de xamã experiente, é um líder político determinado”. Crê que foi um
privilégio, nas cem horas de entrevista que fizeram, “ouvir a história
de sua vida, de sua luta e de suas viagens xamânicas”.
O livro foi adaptado pela diretora e coreógrafa Lia Rodrigues e se
transformou no espetáculo Para que o céu não caia, apresentado em
março último na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo
(MITsp) cujos organizadores o convidaram a participar dos diálogos
transversais que a mostra se propõe a lançar entre o teatro e outros
campos do conhecimento. Eis o motivo de Davi ter cumprido sua
décima estadia em São Paulo. Ele falou sobre a queda do céu para
espectadores desejosos da sabedoria indígena. “Falar como índio
yanomami”, na sua definição.
Sobre a adaptação, Davi afirma: “O teatro pode representar
imagens da floresta, que eles aprenderam, para mostrar às pessoas
que não conhecem árvores, floresta, montanha. Essa pessoa que já
sonhou, já viu, e divulga através do teatro”.
Entre seus encontros com representantes oficiais e as palestras e
conferências que ministra, Davi Kopenawa já percorreu diversos
países como Inglaterra, França e Estados Unidos. No Brasil, já esteve
várias vezes no Congresso Nacional, confiando suas palavras aos
presidentes José Sarney, Collor, Lula. Em 1992, devido a essa
militância, conseguiu que as terras yanomamis demarcadas fossem
oficializadas, então por Fernando Collor de Mello.
Recebeu, em decorrência da sua luta para preservar a mata e os
povos originários, o prêmio ambiental Global 500 das Nações Unidas,
que, no Brasil, apenas Chico Mendes já havia recebido. Em 2005,
novamente, conseguiu um marco importante na luta indígena: a
homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, habitada por
ingaricós, macuxis e taurepangues.
Nos últimos governos, no entanto, Davi não sente que houve
avanços na luta indígena. “Eu conheço a Dilma, apesar dela não ter
trabalhado muito pelo nosso povo, conheço a alma dela, a imagem
dela”. “Agora”, complementa, “esse atual presidente nunca vi, ele
nunca falou com meu povo, não se interessa por nossas palavras. Me
parece sem raiz, colocado ali apenas por grupos de amigos”.
A destruição provocada pela Perimetral Norte foi apenas um dos
fatores que o levaram a questionar o modo de vida dos não indígenas.
Davi cresceu vendo seus pares morrendo pelas pestes dos brancos,
xawara. Missões evangélicas, incursões da Funai, expedições da
Comissão Brasileira Demarcadora de Limites. Em diversas ocasiões,
epidemias de sarampo, malária e gripe se espalharam pela floresta e
dizimaram populações ameríndias inteiras.
A mãe e o tio de Davi, seus parentes mais próximos, morreram em
um desses surtos quando ele ainda era adolescente. Nessa ocasião,
moravam em Toototopi, onde se instalaram depois de passar pelas
aldeias Wari Mahi e Marakana, esta última seu local de origem. Em
luto, foi para longe de seu vilarejo, em uma peregrinação iniciática
típica dos adolescentes yanomamis. Travou conhecimento com
alguns grupos de brancos e, então, foi chamado para trabalhar na
Fundação Nacional do Índio.
Nesse período, passou por diversos postos indianistas, viveu em
Manaus e percorreu as veredas amazônicas em suas missões como
tradutor e em frentes de pacificação. Uma pulseira que usa no braço
esquerdo, composta de uma faixa larga de miçangas pretas, foi
presente de um grupo taurepangue com o qual cruzou em uma dessas
andanças pela fronteira da Venezuela.
Enquanto trabalhou para o órgão indigenista, Davi sentia-se muito
atraído pelo costume dos brancos, napë. Entendeu melhor sua língua
de fantasmas, o português. Passava mais tempo nos postos, e fez até
um curso para saber aplicar medicamentos. No entanto, quando soube
da construção da estrada, das destruições causadas pelos garimpeiros
em busca de ouro, voltou para sua tribo. No caminho, encontrou um
grupo yanomami que ia se estabelecer na aldeia Watoriki, no pé da
Serra do Demini, após suas terras terem sido devastadas pelas
epidemias. Acompanhou-os e ali conheceu aqueles que viriam a se
tornar, respectivamente, sua esposa e seu sogro. Foi este quem o
iniciou no xamanismo, o “caminho do morrer e se tornar outro”.
Enquanto relembra sua história, as mãos de Davi estão sempre em
movimento. Tambo-rilando os dedos na mesa ou gesticulando no ar,
elas acompanham suas falas. Ao contar sobre a criação, em 2004, da
Hutukara Associação Yanomami, faz um grande círculo com os
braços para falar sobre o nome da organização da qual é presidente:
“Nós não queremos só proteger meu povo, precisamos proteger a
Terra, terra é prioridade para todos nós, não é só sobre yanomamis ou
sobre brancos, é sobre todos. Precisamos lutar juntos para manter
viva a nossa hutukara, nossa Terra, nosso mundo, para não a destruir,
para mantê-la firme. Eu sou liderança e estou lutando, mas não sou
pedra, nosso corpo é fraco, diferente de hutukara, que não tem fim”.
O filho mais velho, entre os cinco que tem, é quem o acompanha na
militância. “Eu já o estou preparando para seguir meu caminho. Não é
pra seguir caminho do governo, porque eles querem acabar com a
nossa língua. É caminho de luta do povo dele, trabalhar, lutar,
representar na cidade. Ele nem foi iniciado no xamanismo para ficar
estudando meio ambiente e as políticas dos brancos.”
Logo suas mãos têm outro pretexto para a movimentação. O
celular, pousado em um canto da mesa de seu quarto de hotel, começa
a tocar. No diálogo em yanomami que vem a seguir, ouve-se a voz de
um Brasil profundo. Ecoam na cabeça aqueles versos de Mário de
Andrade: “Como será a escureza/ Desse mato-virgem do Acre?/
Como serão os aromas/ A macieza ou a aspereza/ Desse chão que é
também meu?”.
Suas palavras yanomamis, no entanto, eram cortadas porintempestivas marcações temporais em português, como datas, meses
e horários. Na linguagem ameríndia, há outra concepção temporal.
Precisam recorrer à língua dos brancos para poder cortar o tempo em
fatias. Seus 61 anos de idade, por exemplo, são estimados, não fazem
parte do imaginário yanomami. Davi estava sendo chamado para uma
reunião. “Sou filho único que enfrenta homem grande, mas tem muita
gente que me dá uma flecha para poder continuar lutando na cidade”,
comenta.
Davi iria passar aquela tarde em reuniões e encontros. Depois, logo
ao anoitecer, se recolher para o próximo dia, pois é o costume da
mata. “Escureceu é todo mundo na rede. De noite descansa, porque é
floresta, não pode andar. Os yanomamis dormem cedo, mas antes do
amanhecer estamos acordados, ouvindo os pássaros cantando, vendo
nossa floresta clareando”.
Apesar da felicidade de poder falar na cidade sobre os problemas
de seu povo, sua alma só fica tranquila quando volta para junto dos
seus e conversa sobre a viagem. “Eu posso imitar como um branco
mora nessas casas de pedras estranhas, comer também o que branco
come. Estou há 43 anos na luta, então me acostumei a usar essas
coisas. Mas é apenas para dormir e ir embora para meu povo”. O
índio, então, deixa a cidade grande. Não sem antes sedimentar suas
palavras. Espera que, no seio da sociedade branca, possam um dia
fazer desabrochar a potência do tornar-se índio. 
entrevista
O grito preso de Otto
AMANDA MASSUELA
Otto mudou de ares. Para ficar mais próximo da filha, Betina, de 12
anos, saiu do Vidigal, no Rio de Janeiro, e passou a viver em São
Paulo, onde leva uma rotina “tranquila e serena”. É na capital que o
músico finaliza seu sexto disco de estúdio, Ottomatopeia, produzido
por Pupillo, da Nação Zumbi, com previsão de lançamento para maio.
“É como se um filho fosse nascer e eu não sei o sexo, mas o amor é
grande”, diz o músico à reportagem da CULT. “Trabalho todo dia e
não paro nunca. É na crise que sobrevivem os fortes e eu nunca parei
para lamentar”.
Ottomatopeia vem depois dos elogiados Certa manhã acordei de
sonhos intranquilos, de 2009, e The moon 1111, de 2012. Um disco
“humano”, diz Otto, que reflete sobre o lugar de cada um em meio ao
turbilhão político de nossos tempos “torturantes”. Mas faz isso
enquanto fala de amor, que é de onde o músico nascido e criado no
agreste pernambucano, em um mundo macho e duro, decifra as coisas
com mais facilidade.
É verdade que o disco novo é mais rock’n roll?
Tem mais guitarra, está mais psicodélico. Mas tem música brasileira
antiga, jazz, eletropop, anos 80. É bem contemporâneo, situado nesse
momento dentro e fora do Brasil, mas fala muito de amor, que é por
onde eu entendo melhor a realidade. É um disco humano, quase que
um caminho desses tempos torturantes de agora, em que o ser
humano vive essa impotência diante do mercado e da política. Vem
bem carregado desse grito preso, do lado marginal do ser humano, os
direitos perdidos, os novos códigos, o trans, o hétero. Tento
conceituar por aí. Acho que chegamos num período em que
conquistamos coisas, o mundo deu uma andada para frente, mas
agora está em marcha a ré. As coisas estão regredindo, e o medo, a
insegurança e a tortura estão dentro disso aí.
Como sente o país hoje?
O Brasil deteriorou-se. Afundou, está experimentando o gosto podre
dos seus atos irresponsáveis, difamatórios, do seu alto poder
corruptivo e das mazelas do tempo, da miséria histórica. Realmente a
fratura democrática deste golpe foi profunda. A sensação é que, para
existir esse escárnio político, estamos vivendo uma tortura
incomensurável, sem precedentes. Tenho a impressão de que uma
quadrilha tomou o poder. E a possibilidade de que a justiça seja feita
transforma esses aventureiros em criminosos de alta
periculosidade. Fora a imprensa que constrange de tão vulgar.
Mas ao mesmo tempo que trata desses temas, o disco fala de
amor.
Nesse turbilhão precisamos ver com amor, enxergar as coisas com
mais humanidade.
A mudança para São Paulo impactou de alguma maneira a
produção do Ottomatopeia?
Profissionalmente, sim. Pupillo [produtor do disco] está aqui, meu
empresário está aqui. São Paulo tem um vigor de trabalho que
acelerou mais esse processo. Eu estava no Vidigal, mas estava muito
só, com a minha filha Betina longe, vivendo aqui. E o Vidigal é meio
isolado, com aquele marzão, o que é muito bom, mas São Paulo me
deu um ‘vai à luta’.
Como está sendo esse contato com a Betina?
Estamos começando a nos entender, ela está começando a aceitar a
casa. Está melhorando. Ela tem 12 anos e parece uma garota de 16 do
meu tempo. Ela tem muita informação. E acho que as próximas
décadas vão ser mais rápidas ainda. Daqui a pouco ela tem 18 e já
está me alcançando.
Você se preocupa em dar uma educação, digamos, feminista a
ela?
Feminista acho que ela já é. Betina já é muito indomada, é dura
comigo, é dura com qualquer um. Mas essa coisa do feminismo ela
vai adquirir com o tempo, com as amigas e com as próprias
experiências. Eu não sou um pai careta – isso eu não poderia ser –,
não sou um pai proibitivo e acho que vejo muito mais pelo lado do
filho do que dos pais. O mais importante é estar ao lado dela. Por
exemplo, ela já não tem essa coisa de gênero, namorada ou
namorado, ela não enxerga mais isso. Qualquer coisa ela já diz: “isso
é bullying” ou “isso é racismo”. Ela poderia ouvir e ficar calada, mas
fala. A mãe dela [a atriz Alessandra Negrini] também tem um lado
muito forte – e não é nem feminista, não sei nem julgar –, mas dentro
desse tempo eu acho a Betina bem situada, bem rígida. Elas já estão
vindo assim.
Fui à manifestação do dia 8 de Março na Avenida Paulista [em
São Paulo] e vi muitas meninas da idade dela ali, de rosto
pintado, segurando cartazes. Você percebe as meninas da geração
dela mais atentas a esses temas?
Com a informação que elas têm hoje, vai ser um processo natural essa
busca por igualdade. É bonito ver. Passei muito tempo da minha vida
– sou de 1968 – num mundo machista, e hoje eu vivo aprendendo a
conter esses sentimentos. Tento ser um homem mais dócil.
Você foi criado para ser ‘cabra macho’?
Eu vi meu pai agredir minha mãe e isso mexeu muito comigo. Talvez
a minha sensibilidade venha dessas questões. Eu fui criado num
mundo macho, pernambucano, duro, mas eu sempre tive uma boa
relação, por escolha, com as mulheres. No Recife tinha muito aquelas
festas em que ficavam homens de um lado e mulheres de outro, e eu
sempre ficava do lado delas. Acho a escolha da mulher mais sensata
do que a irresponsabilidade do homem. Tive uma mãe muito parceira,
que me mostrou como ela tinha mais força do que a gente, como tinha
mais força do que meu pai. Confio muito mais numa mulher política,
administradora, do que em um homem. Mas acho que ser homem é
uma coisa muito valorosa também. Conheço muitos pais e amantes
valorosos – lá mesmo no Nordeste conheci pais de família geniais.
Isso também me formou muito. Não foi um exemplo da minha casa,
foi o exemplo que vi na vida. E há um valor aí que temos que buscar
como homens. Tem coisas das quais me afastei, não consigo ficar
numa mesa de bar falando de futebol e de mulher.
Você já disse em algumas entrevistas que às vezes se sente uma
persona non grata nesses “clubes do Bolinha” masculinos. Ainda
sente isso?
Claro, eu sou isolado [risos]. Eu tive que me afirmar na música, nos
lugares, e qualquer coisa neguinho já vinha pra cima de mim. Tive a
oportunidade, mesmo não tendo uma família de músicos, de cantar e
de tocar, mas eu sempre tive que mostrar muito. Quando fiz meu
primeiro disco [Samba pra burro, de 1999], senti que ele veio com
uma luminosidade, mas que por não ser muito comercial eu tinha que
trazer algo melhor, e aí já comecei a levar lapada. Tem aquela coisa
de que primeiro você mata a cobra e depois mostra o pau. Eu mostrei
o pau e neguinho fez “olha, sem a cobra não dá”. Fui lá matei a cobra,
trouxe a cobra morta. Neguinho disse “Otto, essa cobra podia estar
morta”. Agora eu chego matando a cobra na frente de todo mundo,
esganando [risos].Eu tenho que ter essa entrega. Eu canto, danço o
show todo, tiro a roupa, jogo água na cabeça. Eu saio morto. Tenho
49 anos e não faço tantos exercícios, é uma luta, mas essa essência
muito intensa talvez eu esteja parando. Eu tinha uma gana de virar
cantor e de construir um público, eu não era aquele carinha que já era
músico desde pequeno, mas agora estou começando a entender que
posso ter mais calma porque esses discos já mostraram algumas
coisas bem fortes. Eu sou de uma nação, tenho uma música, uma
cultura, um público. Existem todas essas mazelas do nosso país, da
nossa vida e eu estou aqui para... [pausa]. Eu defendo, eu canto, eu
junto gente, eu tenho opinião, o que é até meio arriscado.
Você deixa bem claros os seus posicionamentos políticos.
Mas muito, eu me posiciono, eu sofro pra caramba. Principalmente
com a inverdade, a forma como a nossa democracia e o voto foram
usurpados. Tivemos um blogueiro sendo conduzido coercitivamente
até a Polícia Federal, já começaram a pegar jornalistas. Esse meu
disco tem um lado maravilhoso de luz, e outro que eu remeto a 1964,
por exemplo, porque se a gente não falar de tortura, de censura, a
coisa vai acochar mais. Que a gente fique atento a esse Estado
conservador, culpado, covarde, que ataca as minorias. O que mais me
pega é que os ricos vão continuar ricos e protegidos, cada vez mais.
Mas para isso existe um povo que vai continuar desprotegido e pobre.
É otimista em relação ao futuro?
A arte, mesmo no naufrágio e na tragédia iminentes, é otimista.
Somos restauradores do universo e acredito que o mundo se
transformará em breve. Esse mundo anda precisando de paz e
consciência. O Brasil vai virar essa página triste. Esses caras são as
faces conservadoras de um mundo que já mudou, são os últimos
canalhas do gênero. Mas virá um mundo novo cheio de esperança e
paz. 
dossiê Gramsci: diálogos inéditos
Apresentação
ALVARO BIANCHI
O pensamento de Antonio Gramsci é hoje um campo internacional e
interdisciplinar de estudos, vasto e diversificado. Organizar um dossiê
a respeito implica, portanto, fazer escolhas difíceis. A recepção desse
pensamento no Brasil data do início dos anos 1960 e a maneira como
ele foi lido mudou muito com o tempo. Certas leituras foram
consolidadas, outras abandonadas, novos temas se incorporaram às
agendas de pesquisa, inovações metodológicas tiveram lugar, enfim,
talvez seja mais adequado falar de recepções, no plural. Mas o que é
relevante mostrar atualmente para o leitor brasileiro? Parti do
pressuposto, que me parece inquestionável, de que a Revista CULT
tem um público bem informado e interessado em acompanhar os
debates filosóficos e culturais do mundo contemporâneo. E procurei
apresentar, a partir desse pressuposto, uma pequena amostra dos
novos estudos gramscianos no Brasil e na Itália, em uma espécie de
diálogo transatlântico. Meu artigo apresenta a trajetória desses
estudos, o estado atual da pesquisa e os dilemas da
internacionalização desses estudos. E para compor o dossiê convidei
pessoas que têm contribuído com novos temas e novas abordagens
para a discussão. Primeiro, Guido Liguori, da International Gramsci
Society-Italia e um dos organizadores do maravilhoso Dicionário
gramsciano. Convidei, também, Daniela Mussi, pesquisadora
brasileira, especialista na crítica literária e cultural escrita pelo sardo e
autora do estudo mais atual e robusto produzido no nosso país a
respeito do jovem Gramsci. E, por último, Giancarlo Schirrù cujas
investigações têm valorizado a contribuição de nosso autor para os
estudos linguísticos, uma área que tem chamado cada vez mais a
atenção. O resultado final é um quadro variado que permite ao leitor
reconhecer o estado atual das pesquisas e suas novas direções. 
Um sardo no mundo grande e terrível
ALVARO BIANCHI
Na prisão à qual foi condenado pelo fascismo, Antonio Gramsci
manifestou repetida preocupação com a educação de seus filhos e
sobrinhos. Em uma carta a respeito, endereçada a sua esposa Giulia
Schucht no ano de 1936, escreveu que o filho de sua irmã não havia
vivido “fora da vida mesquinha e estreita de uma cidade da Sardenha,
sem comparação com uma cidade mundial onde confluem enormes
correntes de cultura, interesses e sentimentos”.
Gramsci sabia sobre o que estava escrevendo. Quando muito jovem
deixou sua Sardenha natal para realizar seus estudos em Turim,
carregava consigo uma visão de mundo meridional, profundamente
ancorada na vida de sua terra e dos problemas do Mezzogiorno. Na
cidade mundial encontrou uma cultura cosmopolita, a qual se
expressava naquelas duas grandes instituições que tanto o
impressionaram: a universidade e a fábrica. Seu meridionalismo,
entretanto, não desapareceu. Temperado pelo cosmopolitismo urbano,
perdeu seu caráter mesquinho e estreito, tornou-se consciente de si e
fundiu-se aos poucos com uma cultura tendencialmente internacional.
A guerra e a revolução na Rússia foram os catalisadores dessa
consciência.
Nesse amálgama de uma cultura local com forças internacionais
está uma das razões para a vitalidade que o pensamento de Antonio
Gramsci demonstra na periferia do capitalismo, oitenta anos após sua
morte. Há um pouco de Mezzogiorno em cada cultura subalterna.
Algo que permite nos identificarmos empaticamente com o sardo. No
“mundo grande e terrível”, como gostava de dizer, é possível
encontrar um refúgio naquela cultura local ou nacional na qual a
experiência vivida moldou um modo de ser e pensar. Mas é apenas
nesse mundo ameaçador que uma cultura pode se converter em uma
força hegemônica. É apenas quando supera os estreitos, marco do
localismo, que ela pode se universalizar e tornar-se dirigente.
NACIONAL E INTERNACIONAL
Essa tensão entre o nacional e o internacional que caracteriza o
pensamento de Antonio Gramsci também pode ser encontrada nos
estudos dedicados a sua obra. O ritmo de desenvolvimento desses
estudos é desigual e combinado. Itália é, obviamente, um centro
irradiador, mas contraditoriamente é nesse centro que o caráter
nacional se manifesta com maior intensidade. Quando em meados dos
anos 1990 Guido Liguori escreveu Gramsci contesso, um livro no
qual procurava fazer o sumário dos estudos gramscianos na Itália,
concluiu-o apontando que um novo ciclo de estudos estava dando
seus primeiros sinais. Livres dos constrangimentos da política
imediata, as pesquisas puderam se voltar com mais paciência ao
próprio texto, evitando forçá-lo para fazê-lo concordar com teses
previamente definidas. Na filologia histórica, essas pesquisas
encontraram um método capaz de incrementar o conhecimento do
autor, incorporar inovações temáticas e enfrentar novos problemas de
investigação. Os avanços na pesquisa documental, a descoberta de
novas fontes e critérios mais rigorosos na definição da autoria dos
textos criaram um contexto favorável para esses estudos.
Esse novo ciclo culminou na nova Edizione nazionale degli scritti
di Antonio Gramsci, publicada pelo Istituto della Enciclopedia
Italiana. Trata-se de uma iniciativa aprovada pelo Senado da
República e levada a cabo por um comitê científico reunindo os
principais estudiosos da Itália. A nova edição pretende reunir pela
primeira vez todos os escritos de Gramsci e sua correspondência,
organizando-os criticamente. Está dividida em três seções, a primeira
destinada aos escritos reunindo os artigos que escreveu para a
imprensa, os documentos partidários que redigiu e o ensaio sobre a
questão meridional, com sete volumes; a segunda aos Cadernos do
cárcere, incluindo os inéditos cadernos de tradução, com outros sete
volumes; e uma terceira seção com o epistolário, com nove volumes.
Até o momento foram publicados os Cadernos de tradução, dois
volumes do epistolário e um volume com os escritos do ano de 1917.
O impacto dessa publicação será notável e visível nos estudos
gramscianos futuros. Os primeiros sinais desse impacto podem ser
vistos na identificação pela pesquisadora Maria Luisa Righi de
algumas cartas de amor que eram endereçadas por Gramsci a Eugenia
Schucht, irmã de Giulia, com quemafinal se casou. Trata-se de um
episódio biográfico interessante, que pode ter tido algum impacto nas
complexas relações que se estabeleceram entre a família Schucht e o
sardo quando ele estava na prisão. O cartão-postal endereçado a
Eugenia é o documento-chave de um interessante livro recentemente
publicado por Noemi Ghetti, La cartolina di Gramsci.
As pesquisas em torno da edição nacional também alimentaram a
biografia político-intelectual que Leonardo Rapone escreveu sobre o
“jovem Gramsci” (O Jovem Gramsci: cinco anos que parecem
séculos 1914-1919) e a biografia de Giuseppe Vacca sobre os anos do
cárcere (Vida e pensamento de Antonio Gramsci 1926-1937) ambas
traduzidas para o português e publicadas pela editora Contraponto,
bem como a aguardada biografia escrita por Francesco Giasi, que
deverá sair em breve na Itália.
O período no qual o sardo viveu em Viena e Moscou, até agora
pouco conhecido, tem recebido novas luzes com essas pesquisas.
Sabe-se mais hoje a respeito de sua proximidade com o grupo de
intelectuais que se organizava em torno de Anatol Lunatcharski, do
seu interesse pelo debate dos linguistas russos e, principalmente, a
respeito de sua atividade como representante do Partido Comunista da
Itália no Comitê Executivo da Internacional Comunista na segunda
metade de 1922.
A maior expectativa, como era de se esperar, está na nova edição
dos Cadernos do cárcere, preparada por Gianni Francioni, Giuseppe
Cospito e Fabio Frosini. Na prisão Gramsci registrou sua reflexão em
cadernos escolares com uma letra caprichada e perfeitamente legível.
O texto praticamente não tem rasuras indicando que a escrita era
precedida de longa reflexão. Mais tarde reescreveu muitas dessas
notas em cadernos chamados especiais, reagrupando-as
tematicamente, fundindo textos e aprimorando argumentos. Uma vez
que se trata de uma obra inacabada e aberta, a sequência cronológica
das notas tornou-se de grande importância para revelar o ritmo do
pensamento, identificar ênfases e estabelecer as formulações mais
elaboradas.
Gramsci escrevia em vários cadernos ao mesmo tempo, alguns
eram subdivididos em várias partes, fazia anotações nas margens,
pulava às vezes as folhas iniciais para preenchê-las mais tarde. Esse
modus operandi provocou enormes dificuldades para a datação dos
diferentes parágrafos que compõem o texto. A ordem cronológica dos
cadernos, já identificada em edições precedentes, não é igual à ordem
da escrita. A nova edição nacional dos Cadernos do cárcere
procurará recompor essa ordem cronológica da escrita, preservando a
unidade de cada caderno e rearranjando os blocos de parágrafos no
interior destes.
A publicação dos Cadernos de tradução já permitiu uma visão
mais completa do trabalho de Gramsci. Até então prevalecia a ideia
de que esses cadernos registravam apenas exercícios com vistas ao
estudo do russo, do alemão e, em menor medida, do inglês. Eles
reuniam, entre outros textos, a tradução de um número da revista Die
Literarische Welt, sobre a literatura norte-americana; fábulas dos
irmãos Grimm; um livro de linguística histórica de Franz Nikolaus
Finck; e uma coletânea de textos de Marx. Quando esse elenco de
obras é comparado com o plano de trabalho que Gramsci redigiu na
primeira página dos Cadernos percebe-se, como apontou Giuseppe
Cospito, “uma série de analogias não causais” entre a escolha dos
textos traduzidos e aquele plano de trabalho. Essa pequena descoberta
jogou uma nova luz sobre a variedade das fontes utilizadas pelo
prisioneiro durante sua pesquisa.
Espera-se agora a publicação dos cadernos miscelâneos, aqueles
que reúnem notas esparsas, prevista para abril deste ano, e dos
cadernos especiais, nos quais Gramsci procedeu à reorganização
temática. Para a comunidade de pesquisadores, as principais
descobertas, referentes à datação dos parágrafos e ao seu
reordenamento no interior de cada caderno, não serão novidade. Já
foram apresentadas pelos organizadores em artigos e discutidas pelos
investigadores que têm acompanhado o trabalho editorial. Mas o
impacto para um número maior de estudiosos, principalmente jovens,
pode ser importante.
O trabalho editorial não deixa de ser uma leitura do texto.
Principalmente em uma situação como esta, na qual se trata de uma
obra inacabada e fragmentária. Vozes importantes, entre elas a do
falecido Valentino Gerratana, questionaram o projeto afirmando que
este considerava verdadeiras hipóteses de datação que em alguns
casos não poderiam ser materialmente comprovadas. Mas, depois de
quase trinta anos de discussões, um certo consenso foi sendo
construído em torno dos critérios da nova edição nacional. Seu
principal mérito está em permitir uma reconstrução mais acurada da
história interna dos Cadernos, destacando fortemente a dimensão
diacrônica do texto gramsciano em detrimento daquela sincrônica.
Perde força, assim, a ideia de que Gramsci produziu uma obra
sistemática e valoriza-se seu caráter fragmentário e incompleto, mas
nem por isso menos elaborado ou instigante.
A publicação da nova edição italiana dos escritos de Gramsci é
também um risco. Quando o interesse pela obra do sardo arrefeceu
em seu país natal, em grande medida devido ao colapso daquele que
havia sido seu partido, foram os estudos levados a cabo no exterior os
responsáveis pela maior difusão de seu pensamento. Na Argentina, no
Brasil, no Chile e no México foi valorizado o pensamento político e
historiográfico de Antonio Gramsci, e importantes estudos sobre a
formação social desses países foram levados a cabo ao mesmo tempo
que ele se tornou imprescindível para pensar a democracia na
América Latina. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, suas ideias
inspiraram os estudos culturais e abriram as portas para abordagens
inovadoras e extremamente influentes. Na Índia, os subaltern studies
promoveram uma abordagem original para o estudo dos grupos
sociais subalternos.
Traduzido para diversos contextos nacionais, o pensamento
gramsciano internacionalizou-se. Não foi apenas uma simples
operação técnica de passagem de uma língua a outra, mas sim uma
verdadeira tradução cultural na qual o texto, lido em diferente
contexto, adquiria novos significados. Embora extremamente
originais, essas abordagens resultantes da internacionalização dos
estudos gramscianos nem sempre foram fieis à letra do texto. O caso
mais notável talvez seja o da noção de hegemonia, a qual adquiriu, a
partir de Raymond Williams, um significado muito diferente daquele
que tinha nos Cadernos do cárcere. Apesar disso, frequentemente,
autores anglo-saxões citam Williams para se referir ao “conceito de
hegemonia de Antonio Gramsci”.
Nas últimas duas décadas, entretanto, novos pesquisadores fora da
Itália assumiram o pensamento de Gramsci como um objeto de estudo
e não apenas uma fonte de inspiração. O resultado tem enriquecido o
debate internacional e contribuído de maneira importante para trazer
novos temas à agenda de discussão e empurrar o pensamento de
Gramsci para “fora da vida mesquinha e estreita”. A intensa
circulação de pesquisadores entre Europa, Estados Unidos, Austrália
e América Latina tem contribuído para consolidar esse novo cenário.
Aqui aparece o risco da nova edição italiana, seu elevado custo e a
escassa circulação restringirão enormemente seu acesso. Um novo
distanciamento pode ocorrer entre os estudos realizados na Itália e no
resto do mundo. Além da barreira linguística, obstáculos materiais
podem dificultar o acesso aos novos materiais de pesquisa. O impacto
negativo sobre os próprios estudos realizados na Itália seria notável.
Nos últimos anos, o ambiente cultural e político italiano alimentou
uma série de polêmicas estéreis sobre a vida e a obra de Antonio
Gramsci. Discutiu-se muito sobre um suposto caderno no qual
Gramsci teria renegado o marxismo e que por isso teria sido
surrupiado pela direção do PCI; debateu-se a respeito da conversão
do sardo ao catolicismo no leito de morte; e, depois da descoberta da
carta de amor a Eugenia, comentou-se sobre sua vida sexual. Tudo
isso apareceu naimprensa diária sob a forma de pequenos factoides a
respeito dos quais os pesquisadores mais sérios precisaram dar
respostas investindo tempo e recursos. Afastadas dos estudos
internacionais, as pesquisas realizadas na Itália podem ser
rapidamente consumidas por esse tipo de discussões nas quais
predominam pequenas questões biográficas ou filigranas filológicas.
Por sua vez, os estudos internacionais têm muito a perder
afastando-se das pesquisas realizadas no país natal de Gramsci. Foi
graças a essas pesquisas que se difundiu internacionalmente uma
leitura que procura contextualizar eficazmente o texto, prestando
atenção às fontes, ao ambiente cultural da época, aos problemas
políticos que absorviam as energias do autor. Um intercâmbio com
instituições desse país também permitiu o acesso a periódicos da
época, às revistas culturais, a arquivos e a obras de difícil acesso. Mas
tudo isso tinha como pressuposto a consolidação de uma linguagem
comum e de um modo partilhado de pesquisar. O desaparecimento
dessa linguagem comum pode se tornar um obstáculo para o
desenvolvimento dos estudos gramscianos no exterior.
Não há, entretanto, como recuar. O desenvolvimento dos estudos
gramscianos foi o responsável pela nova edição italiana e ela
contribuirá de maneira decisiva para o futuro das pesquisas. Mas é
preciso estar atento para evitar o isolamento. O lugar do pensamento
de Antonio Gramsci só pode ser este mundo grande e terrível. É nele
que esse pensamento pode realizar sua vocação. 
Um retrato de Lívio Abramo
DANIELA MUSSI E ALVARO BIANCHI
É de autoria de um artista brasileiro um dos mais antigos retratos
feitos de Antonio Gramsci. Trata-se de um desenho de Lívio Abramo
feito à caneta sobre papel em 1932 intitulado Retrato ideal de Antonio
Gramsci. Em 1932, Lívio já desenhava e tinha alguma experiência
com a gravura, mas ganhava a vida em São Paulo como jornalista
responsável pela seção de telegramas estrangeiros no Diário da Noite.
Membro do Partido Comunista Brasileiro há alguns anos, foi em
1932 que Lívio conheceu diversos militantes trotskistas na redação do
jornal, dentre eles o crítico Mário Pedrosa. Esta amizade lhe custou as
acusações de “trotskista” e de “agente da polícia”, bem como a
expulsão do partido no mesmo ano. Em entrevista concedida nos anos
1980, Lívio recordaria que em 1932 “havia aquela corrente obreirista
no partido, contra todos os intelectuais”, e também contra artistas
como ele.
É intrigante pensar nas razões que teriam levado Lívio a propor um
“retrato ideal” de Gramsci neste ano tão intenso. Uma sugestão está
em sua sensibilidade aos problemas internacionais na época,
possibilitada inclusive pelo contato no trabalho com as notícias
internacionais. É deste período uma gravura de Lívio dedicada a
retratar Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, ativistas anarquistas
executados na cadeira elétrica em agosto de 1927 nos Estados Unidos
acusados de homicídio em um julgamento controverso e com
conotação de perseguição política. De acordo com Lívio em
entrevista, sua primeira atividade no jornal foi como chargista, mas o
conteúdo político excessivamente explícito de sua representação teria
feito o redator do moderado Diário da Noite mudar de ideia.
Os retratos de Gramsci e dos dois anarquistas explicam um pouco o
ambiente sentimental e político de Lívio, membro de família de
descendentes italianos no Brasil, uma comunidade naquela época
atenta aos acontecimentos depois da Marcha sobre Roma, em 1922, e
a instauração do fascismo no país. Lívio crescera em uma família
influenciada por valores anarquistas, o que explica sua aproximação
com a política comunista no fim dos anos 1920, mas também sua
dificuldade de adaptação às orientações políticas do PCB, que, no
início dos anos 1930, sofria forte pressão internacional para a rejeição
de qualquer unidade com socialistas e anarquistas.
O retrato de Lívio se baseia em uma das poucas imagens de
Gramsci divulgadas na imprensa internacional durante a campanha
pela sua liberação, uma fotografia de seu passaporte tirada no início
dos anos 1920. Na imprensa, particularmente nos jornais socialistas e
democráticos editados na Europa, Gramsci era descrito como um
mártir da luta contra o fascismo, alguém que “morria lentamente” na
prisão. Por vezes apresentado como professor universitário, por vezes
como deputado, era muito comum a imprensa retratá-lo à imagem de
um grande intelectual e não de um dirigente partidário stricto sensu.
Pode ter contribuído para esta representação a aproximação do perfil
de Gramsci ao de grandes lideranças democráticas e progressistas
francesas.
O “retrato ideal” de Lívio retoma justamente a ideia da distância
entre representação e sujeito, distância que se converte em esforço de
aproximação daquilo que Gramsci significava para os militantes
anarquistas, trotskistas e comunistas dissidentes no Brasil. No retrato
imaginado a partir da fotografia, os olhos de Gramsci vibram, se
impõem sobre rosto e pescoço concebidos de maneira retangular,
como um herói soviético, formando as colunas rígidas de uma
estrutura corporal imponente. A força física imaginada anda em
descompasso com a realidade de um homem pequeno, corcunda e
doente e, neste deslocamento, projeta o caráter daquilo que Gramsci
representa para além de si mesmo. O retrato propõe a unidade
vibrante da resistência ao fascismo à construção do comunismo. 
Cultura e revolução
GUIDO LIGUORI
Em 1911, Antonio Gramsci, jovem sardo pobre de meios
econômicos, mas de grande inteligência, foi estudar na Universidade
de Turim, a melhor universidade italiana da época, graças a uma
bolsa de estudos. Em meio a muitas dificuldades materiais, estudou
filologia moderna na Faculdade de Letras e Filosofia. Premido tanto
pela falta de dinheiro quanto pela paixão política, Gramsci torna-se
jornalista na imprensa socialista da capital do Piemonte, a cidade
mais industrializada e proletarizada da época, com um forte e
organizado movimento operário. Diria mais tarde que, em Turim,
frequentara “a escola da classe trabalhadora”. A Primeira Guerra
Mundial e, depois, a da eclosão da Revolução Russa farão o resto:
dirigente primeiro do Partido Socialista e, depois, do Partido
Comunista Italiano, o “desterrado” Antonio Gramsci nunca
terminaria seus estudos universitários.
Se a “escolha de vida” de combatente socialista levou Gramsci a
um caminho diferente daquele de professor de escola ou pesquisador
universitário, sua paixão pela cultura e estudo não diminuiria, pois
esta era pensada sempre em unidade com a luta pelo socialismo.
Lutar pelo socialismo significava para Gramsci não apenas lutar na
“frente política” ou na “frente cultural” como diziam então os
socialistas, mas abrir uma terceira frente de combate: de luta pela
cultura socialista, por uma visão de mundo autônoma que
conquistasse as mentes das mulheres e dos homens e preparasse o
socialismo com a consciência de que efetivamente “um outro mundo
é possível”.
Em Turim, a cultura de Gramsci se nutriu de muitas e diversas
influências, em muitos casos distantes do marxismo que prevalecia na
época, fortemente influenciado pelo positivismo e contra o qual se
erguia, nos primeiros lustros do século, um forte movimento
filosófico e cultural antiobjetivista. O marxismo de Gramsci era,
portanto, subjetivista, antideterminista, antieconomicista,
influenciado pelo neoidealismo, mas também pelo pragmatismo
estadunidense, pelo pensamento do filósofo francês Henri Bergson,
pelas ideias do anarcossindicalista Georges Sorel e de Gaetano
Salvemini, estudioso e defensor do Mezzogiorno na Itália.
Um marxismo original, portanto articulado sobre o primado
absoluto e idealista da vontade. Mas a grandeza de Gramsci naqueles
anos estava em outro lugar: no olhar atento, de cientista social mais
do que de militante apaixonado, com o qual observava a sociedade
turinense e italiana e colocava a nu os mecanismos de classe, a
baixeza daquela definiria como “pequena política” e os limites
históricos das classes dirigentes.
REVOLUÇÃO RUSSA
Quandoa Revolução Russa de fevereiro de 1917 eclodiu, Gramsci
interpretou seus acontecimentos usando as categorias culturais que
tinha à disposição, exaltando o primado do sujeito e a dimensão ética
do evento, com tons que poderíamos definir como kantianos e
fichteanos. Meses depois, diante da Revolução de Outubro, a leitura
gramsciana apenas parcialmente foi além dos limites desse marxismo
idealista e voluntarista. A Revolução Russa era, nas célebres palavras
de Gramsci em dezembro de 1917, “a revolução contra O Capital”,
referindo-se ao livro de Karl Marx que estava, segundo o juízo do
revolucionário sardo, associado a uma interpretação burguesa,
economicista e determinista da realidade social. Lênin, por sua vez,
teria demonstrado aquilo que a vontade revolucionária poderia fazer
ao não aceitar as correntes do marxismo reformista da época,
profundamente incrustrado de positivismo; ao não aceitar a
concepção da história para a qual a política e as superestruturas são
rigidamente determinadas pela estrutura econômica.
Com a Revolução Russa tem início uma nova fase para Gramsci, a
fase da descoberta e da leitura de Lênin e, por meio dele, da conquista
de um marxismo mais maduro e realista que redimensionou, pouco a
pouco, o hipersubjetivismo inicial e começou a dar o justo relevo ao
tema das condições objetivas e das relações de forças, tema que estará
presente depois, em seus Cadernos do cárcere.
Gramsci passará por experiências difíceis e cruciais nos anos
seguintes. Em primeiro lugar o biênio vermelho de 1919-1920,
quando se torna um dos mais importantes e originais representantes
do pensamento conselhista europeu, assumindo concretamente a
direção do movimento dos conselhos de fábrica turinenses e
desenvolvendo uma concepção do autogoverno da classe trabalhadora
original e diversa mesmo com relação ao modelo soviético russo. Os
conselhos de fábrica, para Gramsci, muito mais do que os sovietes,
aprofundariam suas próprias raízes diretamente no mundo produtivo,
na fábrica, e dali se espalhariam para o restante da sociedade, sempre
seguindo a organização e a articulação do trabalho.
A derrota do movimento operário turinense o fez abrir os olhos,
principalmente para a complexidade e variedade da situação italiana,
para o fato de que nem toda Itália é Turim, e também para os limites
do Partido Socialista Italiano. Desta consciência nascerá o impulso
para formar rápida – e talvez apressadamente – um partido comunista
na Itália. Da derrota do movimento das fábricas nasce a dramática
fase da reação fascista e a derrota histórica que atinge também o
movimento operário italiano. Uma situação que levou Gramsci a
repensar profundamente e o predispôs a aceitar as lições do último
Lênin, aquele da Nova Política Econômica (NEP) e da reflexão sobre
as condições para a possibilidade de uma revolução imediata no
Ocidente.
REALISMO E UTOPIA
Passando por todos esses acontecimentos históricos dramáticos, nos
anos que vão de 1917 a 1926, quando é preso, Gramsci passa a
repensar de modo abrangente sua bagagem teórica juvenil. Alguns
fios desse pensamento anterior, e não secundário, serão reencontrados
ainda nos escritos do cárcere, mas inseridos agora em um quadro
diverso em muitos aspectos.
Pode-se dizer que no Gramsci maduro confluem dois grandes
componentes, não apenas do marxismo, mas do pensamento político
italiano: o realismo, por um lado, e a utopia, por outro. Entendendo
por utopia a vontade e a esperança de mudar a situação dada, que
rapidamente torna-se o impulso ao fazer política, ou a convicção de
que haverá sempre espaço para a ação de um sujeito que deseje
mudar uma situação dada, mas que só conseguirá fazê-lo a partir de
uma atenta análise das relações de forças existentes.
O “excessivo (e, portanto, superficial e mecânico) realismo
político” – segundo Gramsci – leva a renunciar à convicção de que
seja possível trabalhar para mudar as relações de forças
desfavoráveis. Mas a ação política que não parta de um atento
reconhecimento das relações de forças conduz a derrotas
catastróficas. Agora, ao lado da vontade, no Gramsci maduro está a
consciência mais objetiva possível da situação, a análise minuciosa,
histórica e social do terreno – principalmente nacional – sobre o qual
tem lugar a luta. A luta pela revolução será possível apenas a partir –
para usar palavras de Lênin – da “análise concreta da situação
concreta”. E esta análise, aplicada primeiro à realidade italiana e
depois ao Ocidente capitalista, leva Gramsci a concluir que uma
revolução de tipo soviético não se repetiria.
ORIENTE E OCIDENTE
No cárcere, Gramsci coloca em foco a diferença entre “Oriente” e
“Ocidente”, entre países atrasados e avançados e, consequentemente,
entre “guerra de movimento” e “guerra de posição”, como descreve
usando o léxico de seu tempo e profundamente influenciado pela
experiência decisiva da Grande Guerra. Nos Cadernos, chega a
afirmar que a Revolução Russa é a última revolução de características
oitocentistas, a última “revolução insurrecional”, pelo menos na
Europa ou no mundo avançado. Nesses países, a moderna estrutura da
sociedade de massas, a nova interpenetração entre Estado e sociedade
civil, o peso e a importância dos aparelhos de formação do consenso
são fatores que levam o sardo a transformar profundamente o
conceito de revolução, não apenas com relação à visão que ele
próprio havia tido em seu período juvenil, subjetivista e idealista, mas
também com relação à concepção clássica, e muitas vezes
estereotipada, da tradição marxista e leninista.
Não se trata, aqui, de um afastamento de Gramsci do marxismo ou
da tradição revolucionária e desembarque em uma tradição
classicamente reformista, como muitas vezes se afirmou. A vontade
(revolucionária) não é deixada de lado, mas ela agora parte da
consciência do novo terreno em que é chamada a operar e se faz
porta-voz do que Gramsci chama de reforma intelectual e moral. A
vontade de mudança não deixa de estar ancorada nas classes, seu
coração está no mundo econômico e das relações sociais, mas
Gramsci vê toda a complexidade da ação política moderna, refuta as
concepções economicistas fundadas sobre o binômio crise
econômica-revolução e considera fundamentais os aparatos públicos e
privados que formam o senso comum difuso. Por este motivo, ainda,
considera decisivo lançar o desafio da conquista do consenso por
meio de uma elaboração cultural capaz de oferecer uma alternativa
abrangente, não apenas econômica, à sociedade capitalista. Desse
modo, o revolucionário sardo sublinha a importância decisiva do
consenso, da elaboração cultural que saiba oferecer uma nova
concepção de mundo, que saiba formar um novo senso comum de
massa, sempre a partir daquela leitura da sociedade dividida em
classes que toma de Marx, bem como da necessidade da política de
alianças que aprende com Lênin.
Trata-se de uma concepção que coloca em relevo a importância
decisiva do consenso, da elaboração cultural, do senso comum difuso.
Esta é a estratégia da conquista da hegemonia.
Toda a reflexão de Gramsci, seja em seus aspectos filosóficos e
pedagógicos, seja em seus aspectos políticos, não esquece jamais que
o objetivo, o fim da revolução (uma revolução não insurrecional, mas
concebida como processo e de longa duração) é o autogoverno das
mulheres e dos homens, dos produtores associados. Gramsci
revoluciona o conceito de revolução e o leva à altura da época
presente, em consonância com uma elaboração original de muitas das
categorias mais importantes do pensamento político contemporâneo.
Em primeiro lugar, elabora a categoria do Estado como Estado
integral, de interpenetração dialética entre Estado e sociedade civil.
Na prisão, Gramsci compõe um novo “léxico político”. Para
estudar esse novo léxico da política moderna, muitos estudiosos e
estudiosas de Gramsci escreveram conjuntamente um Dicionário
gramsciano (Boitempo, 2017) que ajuda a compreender a linguagem
de Gramsci e o que pretendia verdadeiramente dizer com a palavra
revolução: uma mudança profunda da sociedade e domundo que
partisse da cultura, do senso comum, da ideologia, capaz de evitar a
revolução passiva e de conduzir os subalternos a uma nova
hegemonia. Todas estas “palavras de Gramsci” que devemos
conhecer e usar ainda hoje. 
Tradução Alvaro Bianchi
O olhar móvel e ingênuo da hegemonia
DANIELA MUSSI
Em um artigo publicado em 1924 na revista Rivoluzione Liberale, o
jovem intelectual liberal piemontês Piero Gobetti descreveu Antonio
Gramsci como o mais destacado do grupo de jovens socialistas que
havia tomado parte no movimento de greves e ocupações de fábrica
de Turim no biênio vermelho de 1919 e 1920. Gobetti era amigo e
também adversário político e intelectual de Gramsci e, por esse
motivo, sua admiração era acompanhada de certo desdém pela figura
do dirigente socialista e, também, por boa dose de perplexidade:
“Gramsci tem a cabeça de um revolucionário, seu retrato parece
construído pela vontade, talhado rudemente e fatalmente por uma
necessidade íntima que deve ser aceita sem discussão: o cérebro
sugou o corpo. O líder dominante sobre os membros doentes parece
construído segundo relações lógicas necessárias para um plano social
e retém deste esforço uma rude e impenetrável seriedade: somente os
olhos móveis e ingênuos, contidos e escondidos pela amargura,
interrompem por vezes, com a bondade do pessimista, o vigor firme
da sua racionalidade.”
Gobetti conhecera Gramsci durante a Primeira Guerra Mundial em
Turim. A idade insuficiente de um e o corpo doente do outro haviam
impedido o alistamento e a ida para a trincheira para ambos. Por este
motivo, os dois viviam e intervinham nos conflitos do chamado front
interno, no ambiente de transformações e complicações múltiplas –
econômicas, políticas, culturais – geradas pelo conflito na Itália.
Os desdobramentos trágicos da guerra haviam provocado uma crise
profunda nas correntes políticas e intelectuais europeias, sentida
também na Itália. Liberais, católicas, socialistas e nacionalistas não
eram capazes de interpretar e resolver de fato os problemas gerados
pela guerra no país; estes se avolumavam: as tragédias humanas da
morte e da miséria, bem como o fantasma da revolução.
Naqueles anos de guerra, Gramsci iniciou sua atividade como
cronista da imprensa socialista de Turim. Seus artigos nos jornais
Avanti! e Il Grido del Popolo miravam a hipocrisia e o cinismo de
articulistas e acadêmicos da época. A origem sarda e os problemas de
saúde que o acompanharam desde o nascimento pareciam
impulsionar Gramsci com mais fervor crítico ainda contra o
comodismo e o elitismo subjacente às análises de muitos dirigentes e
intelectuais sobre a vida popular, particularmente a periférica. A
frágil condição pessoal dava o tom do desenvolvimento de sua
personalidade política.
As crônicas do jovem jornalista sardo miravam com frequência
dois antagonistas: neutralistas – para quem a Itália não deveria se
posicionar politicamente diante do conflito mundial – e interventistas
– que defendiam a participação militar dos italianos na guerra contra
os alemães. Em seus artigos, Gramsci procurou desconstruir a
polarização aceita como óbvia pela opinião pública desde antes da
guerra entre estes dois círculos intelectuais: nas polêmicas entre
neutralistas e interventistas, Gramsci via muito estardalhaço midiático
e pouca atenção para uma certa sincronia. O comodismo dos
primeiros parecia, em sua opinião, fortalecer o militarismo dos
segundos.
A agressividade nacionalista dos interventistas sustentava o
massacre dos soldados no exterior, enquanto o pacifismo comodista
dos neutralistas operava a decapitação política das classes subalternas
na Itália. Intervencionismo e neutralismo, apesar da aparência
contrastante, atuavam na política como complementares. Neste difícil
cenário, em que a aparência confundia a compreensão da essência,
Gramsci investigava o mecanismo que operava para que duas visões
de mundo díspares fossem capazes de atuar em confluência perversa.
UM MARXISTA OCIDENTAL?
Em 1926, Antonio Gramsci – então um importante dirigente
comunista – foi preso e passaria mais de uma década como
prisioneiro de Mussolini. Neste intervalo, obteve permissão para
escrever e preencheu, durante aproximadamente seis anos, 19
cadernos de tipo escolar com apontamentos sobre os temas mais
diversos, sendo alguns mais presentes que outros, algumas notas mais
organizadas e encadeadas que outras, muitas anotações reescritas.
Gramsci sofreu um derrame e faleceu em abril de 1937, poucas
semanas depois de ter sido transferido da prisão para uma casa de
saúde. Não viu a Segunda Guerra Mundial, portanto, e nunca teve
controle sobre a publicação do que escreveu na prisão, suas cartas ou
sobre as coletâneas de seus artigos jornalísticos.
Com o fim da guerra, a partir do final dos anos 1950, muitos dos
escritos de Gramsci passaram a ser publicados e traduzidos em outras
línguas. Com as primeiras análises deste material, tornou-se comum
entre os intérpretes de seu pensamento o argumento de que haveria
uma profunda descontinuidade entre aqueles artigos jornalísticos do
período da Primeira Guerra até meados dos anos 1920 e os Cadernos
do cárcere (1929-1935). Essa interpretação partia da ideia de que
Gramsci teria sido, no primeiro momento, tributário das ideias
neoidealistas de Benedetto Croce e Giovanni Gentile, mas que, em
seguida, teria rompido drasticamente com esta perspectiva para se
tornar verdadeiramente marxista nos Cadernos.
Essa leitura constituiu o núcleo de uma operação cultural
protagonizada pelos intelectuais vinculados ao Partido Comunista
Italiano (PCI), que tinha por objetivo afirmar uma “supremacia”
comunista diante do pensamento liberal. Para estes, ao longo dos
anos, Gramsci teria caminhado do polo
idealismo/liberalismo/socialismo no sentido do
materialismo/marxismo/comunismo. Por meio desta elaboração, todo
o pensamento político da resistência ao fascismo poderia ser
reorganizado dentro de um espectro formado pela distância entre os
dois opostos: a tradição idealista-socialista e a tradição materialista-
comunista.
Os principais problemas dessa operação cultural são dois: primeiro,
a linearidade com que o pensamento de Gramsci foi tratado, como se
os escritos carcerários representassem uma espécie de testamento a
ser interpretado como palavra final, bem-acabada e única; e a
arbitrariedade com que se propôs que Gramsci teria desenvolvido
suas ideias a partir de uma oposição lógica e linear entre liberalismo e
marxismo.
As raízes dessa elaboração retrospectiva estavam fincadas na
necessidade sentida pelos dirigentes do PCI nos anos 1960. Por um
lado, era preciso justificar de alguma maneira a unidade política
ampla que derrotara o fascismo no final dos anos 1940 sem rever
abertamente as polêmicas da década 1930 ao redor do problema do
“social-fascismo”. Com o fim da guerra, era preciso mostrar que
comunistas haviam se aliado aos liberais e católicos sem perder o
controle da situação, pois, como Gramsci teria mostrado
“claramente”, os marxistas seriam, por natureza, superiores às demais
correntes. Por outro lado, e ainda mais importante, era preciso
justificar as alianças eleitorais que se projetavam no horizonte sem
com isso abrir espaço para questionamentos sobre a viabilidade
destas. Os comunistas poderiam aliar-se no governo aos católicos ou
liberais no governo, pois, como Gramsci teria demonstrado, os
marxistas seriam, naturalmente, dominantes.
Não por acaso, quando os dilemas dessa experiência política do
compromisso, arquitetada e coordenada pelos comunistas italianos no
pós-guerra, passaram em revista crítica nos anos 1970, as ideias e
mesmo a história de Antonio Gramsci foram interpretadas como
responsáveis pelos erros políticos. Em uma inversão curiosa, já que
sustentada sobre a mesma estrutura argumentativa dos teóricos do
PCI, os críticos passaram a dizer que Gramsci teria tentado, mas
nunca conseguido, se tornar um marxista radical. Quando muito,
como sustentou Perry Anderson, Gramsci teria chegado perto de um
marxismo confuso ao elaborar o conceitode hegemonia, mas seu
apego ao neoidealismo nunca teria sido completamente superado. No
limite, Gramsci teria permanecido um reformista, um “marxista
ocidental”.
UMA VOZ NA MARGEM
Também nos anos 1970, um conjunto de intelectuais situados na
margem das discussões dos marxismos oficial e antioficial passa a
prestar atenção em Gramsci e a ler seus escritos. Alguns – como é o
caso do crítico literário Raymond Williams – deixaram de lado as
supostas “confusões” para incorporar de maneira criativa o conceito
de hegemonia na pesquisa sobre a vida cultural das classes populares.
Outros – e aqui um bom exemplo é o historiador indiano Ranajit
Guha – passaram a se interessar por passagens menos discutidas e
aparentemente inofensivas dos escritos carcerários gramscianos,
como as que tratavam das possibilidades de uma história das classes
subalternas.
A aproximação desinteressada e criativa destes e de outros
intelectuais, tais como Stuart Hall, E. P. Thompson, Gayatri Spivak e
Pierre Bourdieu, para citar alguns, com as ideias de Gramsci fez com
que muitos de seus conceitos e noções se dissolvessem e penetrassem
de maneira invisível parte importante do pensamento político e das
ciências sociais do final do século 20. Em comum, esta difusão teve a
ambição de explorar as dinâmicas da vida popular sob ângulos
analíticos menos burocráticos e mais sensíveis às complexas
dimensões que estruturam a política na periferia e na margem.
Em paralelo, a pesquisa filológica que, nos últimos trinta anos, se
dedicou a renovar a pesquisa especializada italiana dos escritos pré-
carcerários e dos Cadernos do cárcere operou uma transformação
aguda na maneira como as ideias de Antonio Gramsci passaram a ser
recebidas pelas novas gerações de leitores e pesquisadores de seu
pensamento. A queda do Muro de Berlim foi também a queda do
monopólio dos “herdeiros de Gramsci”.
As ideias de Gramsci puderam se manter vivas e renovar a caixa de
ferramentas do pensamento, portanto, porque, num primeiro
momento, foram traduzidas de maneira livre e herética nas línguas de
diferentes experiências intelectuais críticas e engajadas e, em
segundo, porque estas ideias foram religadas ao universo e trajetória
singulares de seu autor.
Quando, em 1924, Gobetti retratou o amigo e adversário político
não deixou de notar com certa surpresa que Gramsci despontava
como líder dominante sem ser um “líder dominante”. Gramsci não
fora soldado e tampouco se tornaria um general. Pensando nisso,
Gobetti o aproximava não da figura do estadista, mas da imagem do
profeta. As palavras e ações de Gramsci, de fato, nunca viriam a
dirigir baionetas e canhões vitoriosos no campo de batalha. Mas elas
se manteriam vivas para gerações e gerações de “olhos móveis e
ingênuos”, pois Gramsci era já um legítimo representante da
revolução derrotada que amaldiçoa os vencedores. Como disse
Romain Rolland pouco depois de sua morte em abril 1937: “Nosso
Gramsci não está morto e não foi derrotado”. 
Antonio Gramsci e a linguística
GIANCARLO SCHIRRÙ
Ao leitor dos Cadernos do cárcere pode acontecer muitas vezes de se
encontrar com notas e apontamentos que parecem particularmente
extravagantes, e em qualquer caso, muito longe dos motivos que o
levaram às páginas de Gramsci. O efeito pode aumentar grandemente
para aqueles que olham para cadernos a partir de continentes
distantes, que não têm familiaridade especial com a cultura italiana, e
talvez se interessem principalmente pelos aspectos estritamente
políticos de reflexão que ocorrem lá. Não é difícil pensar que alguns
tenham lido os nomes de Alfredo Oriani, Alfredo Panzini, Mino
Maccari apenas nos escritos de Gramsci na prisão, e estejam
interessados neles somente para tentar entender o significado de
certas passagens desses textos. Certamente, os três literatos recém-
nomeados caíram em um esquecimento merecido na segunda metade
do século 20, como muitos dos participantes da sociedade literária
dos anos de fascismo. No entanto, os seus debates constituíram para
Gramsci o movimento vivo do próprio presente, sem o qual, para ele,
não seria possível interpretar o passado e ter uma ideia realista da
história italiana: “o presente contém todo o passado e do passado
realiza-se no presente aquilo que é ‘essencial’ sem nenhum resíduo de
um ‘desconhecido’ que seria a verdadeira ‘essência’. O que foi
‘perdido’, ou seja, o que não foi transmitido dialeticamente no
processo histórico, era, em si, irrelevante”.
Entre as notas mais desconcertantes para um leitor não especialista,
existem aqueles que se dedicam à linguística. A razão é diferente da
que se acabou de ver: os nomes dos estudiosos aos quais Gramsci se
refere – Antonino Pagliaro, Matteo Bartoli, Giulio Bertoni, Giacomo
Devoto, Vittore Pisani – ainda estão presentes nas bibliografias atuais
da linguística histórica. Seus nomes e suas obras, no entanto, são
conhecidos apenas pelos especialistas nessa disciplina. Deve-se
considerar que, apesar de Gramsci escrever sobre muitos temas na
prisão – política, história, filosofia, economia, literatura, folclore,
religião, jornalismo... –, havia recebido uma formação profissional
apenas em linguística. Isto é claramente visível nos juízos específicos
que formula sobre as personalidades nomeadas acima, todas
geralmente muito agudas e em sua maioria confirmadas pela tradição
posterior.
LINGUÍSTICA HISTÓRICA
Gramsci foi em sua juventude um estudante de linguística histórica:
formado na Universidade de Turim, sob a orientação de Matteo
Bartoli, uma das maiores personalidades da linguística na Itália da
época. Recentemente foi editada, de forma crítica, na edição nacional
dos escritos de Gramsci publicada pelo Istituto della Enciclopedia
Italiana, a apostila do curso ministrado por Bartoli no ano letivo de
1912-1913. Essa brochura, com a qual os alunos daquele ano tiveram
que se preparar para o exame de glotologia (termo usado na grade
curricular italiana para denominar a linguística histórica), foi
impressa originalmente com a técnica da litografia a partir de uma
matriz manuscrita. A mão que redigiu a matriz gráfica é claramente
identificável com a do jovem Antonio Gramsci (que também assinou
a única cópia conhecida), então um estudante que havia frequentado
aquela disciplina universitária, e que tinha sido encarregado pelo
professor para transcrever o conteúdo das lições. Na primeira parte
desse livro fala-se de fonologia e morfologia histórica românica, com
referência à conjugação verbal dos franceses. A segunda parte expõe
um grande esboço da situação linguística da Península Balcânica:
com referências ao romeno, ao veneziano, ao judaico-espanhol
presente nos Bálcãs depois da migração sefardita da Espanha, do
eslavo, do albanês e do grego. O tema constituía uma das áreas nas
quais Bartoli havia se especializado como um estudioso do dálmata,
uma antiga língua românica presente na costa do Adriático oriental,
extinta entre os séculos 19 e 20. A partir das cartas de Gramsci desses
anos, é possível saber que ele havia começado alguns estudos sobre o
sardo, sua língua nativa, e tinha, em particular, a intenção de realizar
um trabalho sobre as “palavras e coisas” dedicadas à tecelagem,
terminologia que incluiria todo o processo de produção, do cultivo à
fiação do linho e ao tear. Também a partir de sua correspondência,
sabemos que ele havia sido encarregado de conferir os vocábulos
sardos reunidos por Wilhelm Meyer-Lübke, o professor de linguística
românica de Viena com o qual Bartoli estudara, para seu dicionário
etimológico românico (Romanisches Etymologisches Wörterbuch,
primeira edição em Heidelberg entre 1911 e 1920).
A entrada da Itália na guerra, em 1915, provocou em Gramsci, no
entanto, um gradual distanciamento dos estudos e, embora ainda em
1918 esperasse se formar em linguística, nunca teria sucesso nesta
empreitada, dedicando toda sua energia à atividade revolucionária.
Desde o final de 1915, na verdade, ele havia começado sua
colaboração com o jornal do Partido Socialista Italiano, o Avanti! e
em 1917 se tornou o diretor

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