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Sumário coluna Francisco Bosco Marcia Tiburi Vladimir Safatle entrevista Sueli Carneiro dossiê Variações sobre a luta de classes Apresentação Direito ao aborto e maternidade: gênero, classe e raça na vida das mulheres O urbano no contexto do subdesenvolvimento Chão de estrelas Da “justiça dos pobres” ao golpe de toga reportagem Laboratório social livros Vozes subterrâneas Entre governados e ingovernáveis Rousseau a passeio colaboraram nesta edição coluna O futebol, o Brasil e o mundo FRANCISCO BOSCO Nos últimos anos, como se sabe, o futebol brasileiro experimentou uma profunda crise, sem precedentes em toda a sua história, desde que, com a conquista de sua primeira Copa do Mundo, superou o complexo de vira-latas e assumiu o protagonismo do esporte mais popular da terra. Durante esse período, conhecemos, é claro, melhores e piores momentos. Tivemos derrotas inesperadas, fases de renovação, um longo período sem vencer a Copa do Mundo. Mas as derrotas, mesmo as contundentes, eram pontuais e se deviam a fatores como times desorganizados, jogadores negligentes, brilhos fugazes de adversários sem grande tradição. Era a época dos “vexames”: derrota para Honduras, goleada para o Chile etc. Houve também breves períodos de entressafra, em que apareciam no cânone dos cânones que é a seleção brasileira jogadores sem renome e sem qualidade técnica à altura. E sobre nossas sucessivas derrotas em Copas do Mundo – até o tetra de 1994 que inaugurou três finais consecutivas – elas se deveram mais ao acaso constitutivo do futebol do que a problemas estruturais indicadores de transformações profundas. A partir dos anos 1990, entretanto, começava a se chocar o ovo da serpente. Seu embrião se revelava na expressão “não tem mais time bobo”, que alguns, sentados no trono de uma suposta soberania vitalícia, procuravam desacreditar. O fato, contudo, era que a globalização havia intensificado as trocas culturais no futebol; as informações circulavam, técnicos e jogadores passavam por equipes de todo o mundo, e com isso foi-se formando um patamar médio de técnica e tática que diminuiu o fosso antes existente entre países de tradição futebolística e outros desprovidos dela. Já não se podia, como observou a boutade de Felipão, “amarrar cachorro com linguiça”. Nada disso, entretanto, nos impediu de retomarmos (sem que nunca a tivéssemos realmente perdido) a hegemonia do futebol mundial disputando três finais de Copas seguidas e vencendo duas delas. Em todas, contamos com a excepcionalidade técnica de craques como Romário, Bebeto, Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho. Naquela que seria a esperada quarta final, uma geração extremamente talentosa sucumbiu de forma estranha, simbolizada pelo enigma depressivo de Ronaldinho. O mesmo Ronaldinho, sem o saber, estava envolvido na grande transformação por que o futebol passaria. O fim do seu time no Barcelona, comandado por Rijkaard, daria início à revolução de Guardiola, Xavi, Messi e companhia. Foi essa revolução que fez o Brasil perder o compasso da história e mergulhar por longos seis ou sete anos na maior crise de sua história. Essa crise teve dois marcos principais. O primeiro, em 2011, quando o Santos de Neymar e Ganso (as maiores promessas de nosso futebol) levou um verdadeiro sapeca-iá-iá do Barcelona de Guardiola. Não foi uma derrota normal, nem mesmo uma goleada normal. O time do Santos mal tocou na bola o jogo inteiro. Levou, como disse Neymar ao fim do jogo (numa atitude que deveria representar – mas não representou – a forma de o país encarar o que estava acontecendo), “uma aula de futebol”. O segundo, claro, foi o 7 × 1 contra a Alemanha, quando o bumerangue da antiga boutade voltou com todo o peso de uma reviravolta da história e atingiu em cheio a cabeça perdida de Felipão. No caso, a linguiça que ele amarrou foi simbolizada pela escalação de Bernard, vulgo “alegria nas pernas”, consolidando de vez uma incompreensão tática profunda, prontamente devorada pelo cachorro alemão, que ainda teve, como viemos a saber depois, “humildade em gol”. Muito se disse, durante esse período, que tínhamos nos afastado de nossa própria tradição de “futebol-arte”. Chamaram Mano Menezes, que entregou à malta o espelho perdido do protagonismo-espetáculo. Deu errado. Chamaram Felipão e Parreira, insistindo na perspectiva de que a história não existe, e portanto o Brasil precisava apenas voltar a ser o que já fora. Levamos a maior goleada da história. Chamaram, por fim e de novo (!), Dunga, porque o clamor por “raça” e autoritarismo é o último recurso da incompreensão. A CBF se comportou, nesse tempo, como a Corte Celestial chinesa durante o século de humilhação que teve início com a Guerra do Ópio e só foi se encerrar na revolução maoista: décadas de primazia distorceram o seu senso de realidade e a impediram de reconhecer o movimento da história e a perda do protagonismo. Mas a verdade histórica esteve todo o tempo alhures. Não era que o Brasil tinha se afastado da sua forma de jogar futebol (e por isso entrara em decadência) – é que a forma de se jogar futebol tinha se afastado do modo de ser do Brasil (e por isso o relegara à inferioridade). O futebol como jogo singular em que prevaleciam o improviso, o descompasso entre a produtividade e o resultado, o talento excepcional; esse jogo foi se transformando em mais um esporte em que tem grande peso o planejamento, a racionalidade, o pensamento tático, a organização coletiva. No fundo, é o modo de ser anglo-saxão dominando um dos últimos redutos culturais do mundo que lhe ofereciam resistência. Quando o Barça aplicou no Santos aquele chocolate desnorteante, Guardiola disse que seu time se inspirava no futebol brasileiro de antigamente. Não era verdade. Seu time representava uma transformação histórica, cujo sentido era basicamente o privilégio da tática, da ocupação dos espaços, da valorização da posse de bola, da importância conferida ao passe, mais do que ao drible (por isso, para mim, o símbolo dessa era é Xavi, mais até do que Messi). Essa revolução, como qualquer outra, não surgiu do nada. Ele se apoiou na tradição do futebol europeu, os “donos do campo”, como disse Chico Buarque, diferenciando-os de nós, os “donos da bola”. Na cultura do futebol de “prosa”, em oposição ao de “poesia”, nos termos de Pasolini. Mas essas diferenças nunca antes na história haviam se manifestado do modo como passou a acontecer a partir do time de Guardiola. Esse time marca o advento de uma era da tática, instaurador de uma técnica correspondente. O salto tático não anulou a importância do drible, do improviso, da genialidade – mas como que a submeteu a si mesma: um craque absoluto já não faz a diferença sozinho, contra um time bem armado taticamente. A disposição tática – linhas organizadas, equipe compacta, aproximação, passes curtos, triangulações, muita movimentação etc. – passou a ser condição para o destaque individual. Assim, o próprio sentido da técnica foi transformado. Não existe técnica dissociada de um contexto específico de jogo. O grande jogador dos anos 1960 era grande relativamente às condições do jogo que se apresentavam a ele. O grande jogador contemporâneo deve ser grande diante das condições atuais. Ora, essas mudaram profundamente. É por isso que até mesmo a crise técnica por que passou o futebol brasileiro foi mal interpretada. Não é exatamente que deixamos de produzir craques como produzíamos no passado; é que não é mais possível produzir craques nos mesmos termos que o fazíamos no passado. A posição que mais fez falta ao Brasil nos últimos anos foi a de volante. Enquanto a Europa inventava o paradigma Xavi (de aguda consciência espacial, aproveitamento quase perfeito dos passes, conciliação de intensidade na marcação e capacidade de articulação do meio de campo), nós permanecíamos no antigo paradigma volante “cabeça de bagre” × meia talentoso. Em suma, o próprio sentido da técnica se transformou. Isso explica o porquê de um jogador como Ganso não dar certo no futebol mundial. Seu problema é unicamenteter nascido na década errada. E é por isso tudo que a solução do nó em que se meteu o futebol brasileiro exigiu, sobretudo, um técnico. Os jogadores são os mesmos. Mas se promoveu finalmente um desrecalque da história e entrou o aggiornamento da dimensão tática – por meio de um técnico conhecido, Tite, não por sua figura folclórica, mas por sua linguagem. Foi-se o tempo também da linguagem de Nelson Rodrigues, linguagem-mor da nossa época de ouro futebolística, linguagem do puro prazer barthesiano, em que se nos oferece o espelho maravilhoso de nossa autoimagem cultural, ela mesma também passada, como aquela sociedade meio ociosa, irreverente, cordial, cheia de poesia cotidiana, malícia e improviso. Pois, se o jogo mudou, mudou também a linguagem que o propõe e descreve. Essa transformação, no âmbito da linguagem, se deu nos termos da substituição do paradigma Nelson Rodrigues pelo paradigma Paulo Vinicius Coelho, o PVC, ou, se preferirem, o paradigma Tostão – ambos pioneiros, no Brasil, da análise tática rigorosa, do conhecimento extenso (e, no caso de PVC, ainda do recurso constante a uma dimensão estatística que lhe conferia a hybris típica dos precursores, com todo o estigma aí contido). Tudo somado, eis um raro caso em que o Brasil parece ter conseguido resolver um problema histórico. A conferir. coluna Crítica da razão negra: marcação e contramarcação MARCIA TIBURI Crítica da razão negra, de Achille Mbembe, publicado em 2013, dificilmente será superada no século 21, seja por seu conteúdo, seja por seu caráter ético-político. Divisor de águas na história do pensamento, de agora em diante, toda a reflexão que se leve a sério está colocada em uma posição inconciliável com a tradição da opressão que se constituiu em nome da lógica da raça por ele analisada. Negar o diálogo com os argumentos de Mbembe, de agora em diante, implica a manutenção da mistificação branca que sustentou o poder e o capital no lugar que conhecemos. Crítica da razão negra puxa o fio de linha podre que sustentava a trama racista na história europeia, da qual nós, brasileiros, bem como todos os habitantes das Américas, somos herdeiros, ora como algozes, ora como vítimas. A história do racismo é a história do capitalismo, uma história de submissão dos corpos, de uso e abuso dos seres nele capturados, por meio de operações eminentemente teóricas e discursivas, com efeitos perversos na prática. Ao procedimento de definir alguém como um outro chamamos de marcação. Ao definir esse outro como um negativo, a marcação é o verdadeiro mal radical enquanto aniquilação da humanidade do outro. Marcados são os sujeitos da diferença, tratados constantemente como objetos, coisas, mercadorias. Assim é com aqueles que são marcados como Negros, reféns da lógica perversa da raça, criada para a manutenção de crenças e preconceitos que serve a uns em detrimento de outros. O MAL RADICAL É BRANCO Essa lógica não é apenas racional, ela é também o princípio do mal radical evidente naquilo que Mbembe chamou o “devir negro do mundo”, efeito de um delírio próprio da modernidade europeia que sempre abordou a identidade em termos de espelho, como que inventando o “outro” para sustentar o reconhecimento apenas do “mesmo”. Conseguia-se assim transformar outras pessoas em objetos, coisas e mercadorias que poderiam ser utilizados como animais, energia física para o trabalho. O delírio se comprova, na visão de Mbembe, quando ninguém, nem aqueles que inventaram o Negro, nem os que foram englobados por seu nome, desejaria ser um Negro ou ser tratado como tal. Hoje, aqueles que se autoafirmam a partir da raça, como Negros, sabem que usam um nome que não deram a si mesmos. Muitos tentam fazer o melhor uso possível, um uso político de uma identidade, em princípio, alienada. Ressignificam um nome forjado contra eles, um nome que foi criado com o objetivo de promover um necessário empobrecimento ontológico para os fins do capitalismo sustentado justamente na humilhação daqueles que são usados por ele. O sujeito humilhado, reduzido ao “calabouço da aparência”, sujeitado à “falsificação de si pelo outro” não confronta os donos do poder do capital. Pessoas e grupos marcados como Negros, assim como mulheres, índios e outras minorias políticas, atuam hoje por meio de uma “contramarcação” na intenção de confrontar o poder sustentado na lógica de aviltamento da qual a lógica da raça é um dos elementos mais importantes. Em nome desse dispositivo capitalista foram perpetrados crimes, catástrofes e carnificinas: a escravatura, a colonização e o apartheid são suas provas históricas. A construção pragmática do Negro dependeu de uma armadilha ontológica que apaga aqueles que a ela se submetem como sujeito de direitos, como cidadãos iguais a todos os demais e os localiza como um não ser ao qual, quando muito, é permitido viver sob o paradigma da bondade e da condescendência que serviu historicamente para reafirmar o delírio útil que deu ao mundo branco, preguiçoso e perverso, a acumulação do capital. Hoje, no fundo do poço social que é o efeito objetivo do neoliberalismo para todos, é preciso confrontar essas construções sem mais mascaramentos brancos, para além da hostilidade racial que serve aos donos do poder. coluna O último capítulo VLADIMIR SAFATLE Para muitos, o Brasil parece ter se transformado em uma incógnita Um país que, depois de elevado pela imprensa mundial à condição de potência emergente, virtual quinta economia do mundo, vê-se agora como um território em desagregação acelerada. Um país completamente à deriva. Para outros, ele simplesmente expressa atualmente, de forma mais brutal, os impasses de um processo que deve ser compreendido em sua dinâmica global. Reconstruir o sentido desta dinâmica global é condição necessária para entendermos como um país pode chegar a impasses tão espetaculares em um prazo tão curto de tempo. Pois a história brasileira é, na verdade, o último capítulo de outra história. Ela é o setor mais influente da história latino-americana e esta, por sua vez, está vinculada nessas últimas décadas à ascensão da esquerda ao poder. De fato, a experiência da esquerda latino-americana no governo nestes primeiros anos do século 21 foi o último capítulo da história da esquerda mundial no século 20. O que podemos chamar de “experiência latino-americana de governo de esquerda” presente nos últimos vinte anos em países como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua, Peru, El Salvador, Haiti e Honduras foi o término de uma longa história mundial marcada pela tentativa de consolidar políticas redistributivas, regulação dos agentes econômicos e fortalecimento de poder popular. Que esta história tenha encontrado na América Latina um de seus terrenos fundamentais, eis algo a ser creditado a uma conjunção de dois fatores. Primeiro, a América Latina teve um déficit contínuo de integração popular aos processos de decisão política até a década de 1990. Pois esta integração se deu normalmente de forma frágil, pelas vias do populismo, e de forma intermitente, sendo rompida várias vezes pela ascensão de ditaduras militares, em especial no período de meados dos anos 1960 até o final dos anos 1980. A América Latina foi capaz de preservar uma concentração de poder no interior de grupos de elites cujas raízes, muitas vezes, são encontradas ainda nos períodos coloniais. Tais grupos souberam se associar localmente a “formadores de opinião” (como artistas e intelectuais), construir articulações cerradas entre estado-empresariado-imprensa, garantindo assim sua perenidade. Segundo, enquanto a luta pela integração popular aos processos de decisão política em continentes com a Ásia e a África foi feita no interior de lutas coloniais, a América Latina tinha passado pela descolonização já no século 19. Isto permitiu às lutas populares não serem imediatamente inscritas como lutas eminentemente nacionais ganhando assim, de forma mais clara, a configuração de lutas sociais nas quais questões transnacionais declasse e desigualdade podiam aparecer na linha de frente. Lembremos então como a experiência latino-americana conheceu, nestas últimas décadas, dois eixos principais. No primeiro, encontramos um modelo de polarização social normalmente marcado por reformas estruturais nas instituições do poder e por processos de incorporação popular populista. Encontramos aqui países como Venezuela, Equador, Bolívia e Nicarágua. Este modelo, autodenominado “bolivariano”, vendeu-se como “o socialismo do século 21”, mas foi em larga medida dependente de dinâmicas de constituição de corpos políticos que remetem ao populismo do século 20, com o consequente investimento libidinal massivo em figuras personalizadas do poder, como no caso da Venezuela. Essas dinâmicas identificatórias foram sua força momentânea e sua fraqueza final, pois os processos de identificação personalizada se esgotam no tempo, não podem ser transferidos a outros ocupantes do poder, fazendo da política a gestão contínua do vazio. O caso mais complexo deste grupo, por ser o mais bem-sucedido, é a Bolívia, com sua organização institucional inovadora, seu crescimento econômico ininterrupto e seu conceito de “estado plurinacional”. No segundo eixo, encontramos um modelo de gestão social marcado, ao contrário, pela conservação de estruturas institucionais próprias à democracia liberal e por processos de incorporação popular também caracterizado como populista. Este é modelo próprio, principalmente, ao Brasil e à Argentina, mas em menor grau ao Uruguai, Chile, Peru, El Salvador e, por algum tempo, ao Paraguai. Tal modelo representou uma experiência retardatária que procurou realizar políticas locais de redistribuição respeitando o espaço político próprio à democracia liberal, acreditando que poderia, de certa forma, repetir determinadas estratégias de gestão da social-democracia europeia do pós-guerra. À exceção do Uruguai, que soube mobilizar pautas de reconhecimento e liberalização de costumes para consolidar adesão popular, e do Paraguai, que sofreu um golpe de Estado parlamentar já em 2012, este modelo entrou em colapso mais ou menos ao mesmo tempo em todos os países. Resultado de políticas pós-ditadura, ele foi uma paradoxal e única articulação entre horizonte de social-democracia e populismo. O que não deveria impressionar ninguém, pois pensar a América Latina exige saber operar com paradoxos, com contradições sem superações. Seria bom começar nossa análise assim. O Brasil tem uma tendência particular a se ver como a maior ilha do mundo, procurando desenvolver análises de seus processos político-sociais como se sua estrutura causal fosse completamente endógena. No entanto, melhor seria se procurássemos perceber como se dá nosso modo de integração a movimentos globais, não apenas para denunciar como em certos momentos acabamos por mimetizar processos em atraso, mas principalmente por expor as dinâmicas de esgotamento do que outros apenas começam a sentir. Nesse sentido, o fracasso da experiência latino-americana, em especial em seu setor mais avançado, a saber, este capitaneado pelo Brasil, não é apenas algo que diga respeito a uma região periférica do capitalismo mundial. Ele foi a realização paulatina de que o tempo da democracia liberal e de seus acordos já não existia mais. Nós havíamos chegado tarde demais. Por isso, a experiência latino-americana expôs, de forma mais explícita, o que o resto do mundo começará a descobrir de forma dramática. NÃO HÁ LÁGRIMAS PELO FIM DA DEMOCRACIA LIBERAL Neste contexto, lembremos como a democracia liberal, tal qual a conhecemos, é uma invenção recente que se consolidou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos vitoriosos ao final da guerra. Sua base de sobrevivência foi a capacidade de orientar a política em direção a uma espécie de “luta pela conquista do centro”. Assim, por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional para acabar por serem gestores do dito Estado de Bem-estar Social. Mesmo os partidos comunistas europeus, fortes até o final dos anos 1970, com votações que podiam chegar a 30% (como no caso do Partido Comunista Italiano), operaram no interior dessa lógica de respeito ao horizonte institucional liberal, retirando de circulação toda luta por mutações institucionais profundas, operando no esquadro de uma “coexistência pacífica”, isto até o momento em que perderam de vez sua força e relevância. Da mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a ser respeitado, mesmo agindo com vista à liberalização da economia e a desregulamentação gradativa das defesas trabalhistas contra a espoliação. Há de se lembrar que a constituição do Estado do Bem-estar Social foi, de certa forma, uma criação conjunta entre esquerda e direita. Não é possível contar a história da formação do Estado-providência alemão, por exemplo, sem passar pelas políticas implantadas pelos democratas-cristãos, nem contar a história do seu símile francês sem passar pelo gaullismo. Exatamente por ser uma formação de compromisso, a democracia liberal e seus gestores do Estado do Bem-estar Social estava fadada a durar pouco. Não porque ela produziria letargia econômica e baixa competividade, mas porque o patronato, intocado em suas posses, utilizaria a primeira oportunidade para aumentar rendimentos reduzindo os elementos do custo salarial e criando condições para uma verdadeira reedição dos processos de acumulação primitiva. Ela veio em meados dos anos 1970 através de uma conjunção improvável entre crise econômica e crítica cultural. Uma crise provocada não pelo custo da previdência social, mas pelo conflito Israel-mundo árabe, ou seja, pelas consequências das ambivalências das políticas coloniais no Oriente Médio. A crise do petróleo de 1973, que representará a primeira crise global do pós-guerra, quebrou o ciclo mais constante de crescimento no século 20, produzindo uma insegurança econômica profunda a ser aproveitada por novos discursos de reforma social. Por sua vez, alguns podem achar estranho o papel da crítica cultural neste processo de esgotamento da democracia liberal, mas ele é real. Para tanto, foi necessário uma inversão peculiar, destas que o capitalismo mostrou-se hábil em operar. Maio de 68 produziu no Ocidente a ascensão da crítica à estrutura disciplinar do Estado e das instituições, a recusa da rigidez da sociedade do trabalho e a consciência do caráter extensivo do controle social próprio às figuras do Estado-providência. Ele esperava com isso permitir a emergência de um sujeito político com força de transformação global em direção a modelos capazes de recusar tanto o sistema burocrático soviético como a democracia liberal. Esses sujeitos emergiram, mas com menos força do que imaginavam. Junto a eles emergiram também tanto sujeitos claramente reativos, dispostos a lutar pela preservação da ordem e de suas tradições, quanto simulacros de revolta. Este é o ponto mais importante: analisar tais simulacros de revolta que, mesmo sem expor isto de forma clara, usavam a potência da sedição para empurrar o mundo para fora da democracia liberal. No entanto, não para além dela, mas para aquém. Nesse sentido, lembremos como o primeiro tremor no pacto que sustentou a democracia liberal se deu com a leva neoliberal de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, ao final dos anos 1970. Nos EUA, o pacto criado pelo New Deal, de Franklin Roosevelt, e em larga medida conservado por décadas foi desmontado por uma política de retração do Estado, de desregulação progressiva da economia e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais. Há de se lembrar como, cinco anos depois de assumir o governo do Reino Unido, Thatcher produzira simplesmente o declínio da produção industrial, o fim de fato do salário mínimo, dois anos de recessãoe o pior índice de desemprego da história britânica desde o fim da Segunda Guerra (11,9% em abril de 1984). Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver como vencedores de um embate no qual teriam demonstrado ao mundo que o capitalismo neoliberal era a melhor forma, mesmo a única, de produzir riqueza, inovação e bem-estar. As experiências de esquerda teriam falhado por criarem apenas uma sociedade letárgica, presa na sustentação de um Estado ineficiente e pesado. Ou seja, tais experiências teriam sido ultrapassadas pela lei inexorável da eficiência econômica, lei que desconhece ideologias, que conheceria apenas “resultados”. No entanto, os “resultados” mostram outra coisa. Eles mostram, por exemplo, como o nível de pobreza nos EUA cai progressivamente até meados da década de 1970, voltando a subir exatamente com a ascensão das políticas neoliberais, nunca tendo então caído de forma sustentada. Em 2015, ele atingia 13,5% da população (dados do US Census Bureau, Current Population Survey), mais do que em 2007. Os índices de desigualdade aumentaram exponencialmente nos últimos trinta anos. Mas o fato fundamental só agora fica visível: a ascensão do neoliberalismo como política de Estado representou a destruição contínua da democracia liberal e seus pactos. Restringindo paulatinamente o horizonte de políticas públicas, impondo a versão de que, no que diz respeito à economia, “não há escolha” mesmo diante do caráter suicida do sistema financeiro internacional, explícito desde a crise dos subprimes, o neoliberalismo conseguiu esvaziar a política e suas instituições. Seu mundo é a reedição de um mundo pré-político, no qual as relações sociais se resumem à gestão da segurança e às garantias da perpetuação dos modos atuais de circulação de riqueza. Aos poucos, ficou evidente como a política mundial, depois de esvaziada da possibilidade de decidir modificações efetivas na esfera da economia, tornara-se uma mera pantomima, composta de personagens exímios em demonstrar sua impotência. É neste horizonte de capitulação que a experiência brasileira se insere. Isto ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. O Brasil podia vender ter ultrapassado o primeiro impacto da crise operando políticas proto-keynesianas e de consolidação de capitalismo de Estado. Mas o caminho posterior será outro. Paulatinamente, seu destino foi o mesmo de todos os atores políticos mundiais forçados a aplicar a mesma política de “austeridade”, com suas contenções de investimentos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável. Este processo que agora mostra sua face mais completa começa de maneira evidente no último governo Dilma. entrevista Sueli Carneiro Sobrevivente, testemunha, porta-voz BIANCA SANTANA “Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher?” Este é um excerto do famoso discurso Ain’t I a woman?, proferido em 1851 por Sojourner Truth, mulher negra norte-americana que nasceu sob o jugo da escravidão e se dedicou, depois de conquistar a liberdade, à luta abolicionista e pelos direitos das mulheres. “Sojourner Truth traduz com seu discurso as contradições e especificidades que marcam a experiência histórica de opressão e discriminação das mulheres negras no contexto das relações de gênero. Gostaria que você ilustrasse com aquele discurso a minha fala”, pediu Sueli Carneiro durante a entrevista concedida em uma das salas do Geledés Instituto da Mulher Negra, organização fundada por ela em 1988. Doutora em Educação pela Univer-sidade de São Paulo, Sueli estudou filosofia na graduação na mesma universidade. Impossível falar de militância feminista e antirracista no Brasil sem fazer referência, e prestar reverência, a Sueli. Quando procurada pela Revista CULT ela gentilmente agradeceu o convite, mas disse que preferia não dar entrevistas. “Tudo o que formulei já está escrito. Não sei se minha geração tem muito a contribuir ainda neste momento. Tenho me perguntado: o que não vimos? O que deixamos de fazer para que a situação chegasse a esse ponto?” A aceitação do convite veio depois do apelo para a importância simbólica de ter uma pensadora negra brasileira na capa de uma revista de circulação nacional. “Diria que ocuparmos esses espaços é revolucionário. Poderia ser qualquer uma de nós. O faço, então, pelas mulheres negras.” O que está acontecendo no Brasil? A bem da verdade, é um filme de terror. Por mais que a gente saiba e tenha lido em várias pensadoras e pensadores que a liberdade exige uma vigilância persistente, que a conquista de direitos é uma luta permanente, que retrocessos são possíveis, não estava no horizonte utópico de ninguém, a não ser como pesadelo, a possibilidade de conquistas estarem em risco e algumas já perdidas efetivamente em um espaço tão curto de tempo. Embora tudo isso, digamos, estivesse intelectualmente assentado em nós, depois de tanta luta, depois de vencer uma ditadura militar, de conquistar uma perspectiva de esquerda em termos de proposta de governo, sustentada por um conjunto de compromissos que eram expressão de uma luta emancipatória de uma população historicamente silenciada ou oprimida, marginalizada socialmente; quando pela primeira vez na história desse país a gente pode perceber que haveria a possibilidade de estabelecer uma agenda inclusiva, emancipatória, reparatória na nossa construção violenta, com a escravização de povos africanos, de extermínio de populações indígenas, tudo entra em colapso em breve espaço de tempo. Mesmo neste cenário, há pautas que eram tratadas exclusivamente pelo movimento negro e que ganharam espaço. Não sei se é uma percepção muito otimista, mas a violência do Estado, o genocídio da população negra são questões mais presentes nos movimentos sociais em geral e na esquerda brasileira? Em princípio preciso registrar que essa tem sido, na maior parte do tempo, uma luta solitária dos movimentos negros, dos movimentos de mulheres negras. Também é verdade que nos últimos anos nós temos conseguido (sobretudo, graças à internet) que uma multiplicidade de vozes passem a se expressar, alcancem alguma ressonância e visibilidade na esfera pública. Isso impacta inclusive formadores de opinião hegemônicos, sejam à esquerda ou à direita. Eu entendo que os obriga a dar algum tipo de resposta a essa demanda, tendo em vista também que ninguém vai voltar para dentro do armário. O pessoal da orientação sexual não vai retroceder em suas lutas, as mulheres não vão recuar nas suas agendas; nós não vamos voltar para a senzala. E isso está colocado. Vai ter luta! Eu compreendo que mesmo no campo da esquerda esteja havendo uma apropriação maior das agendas históricas dos movimentos negros. Não foi sempre assim... Veja, é também necessário dizer que a contradição racial esteve aí o tempo todo, desde sempre, e ela não foi vista. Essa é uma reflexão que se exige também. Há uma dívida também teórica, conceitual, que a esquerda tem conosco. Hoje está sendo possível confundir completamente o que seja a luta de classes, com todo um espectro social interessado em nublá-la completamente, inclusive com substituições de conceitos, negando a contradição patrão-empregado, a contradição clássica do capitalismo. Mas o conflito racial não dá para nublar. Ele permanece aqui hoje, estruturando a sociedade brasileira, organizando a própria estrutura de classes sociais. Porque no topo da pirâmide temos uma hegemonia absolutamente branca e nas bases uma maioria absolutamente negra. Então, raça estrutura classe no Brasil. Este problema está aí desde a abolição. Há um déficit de percepção das contradições da sociedade brasileira desde sempre. Porque foipossível construir o pensamento social brasileiro, seja à direita, com o mito da democracia racial, seja à esquerda, via luta de classes, que em comum obscureceu o valor da raça na estruturação das mazelas sociais, das desigualdades, das contradições desse país. A polifonia que o movimento social negro construiu no entorno desse tema impactou. Começa a ecoar para o conjunto da sociedade. A ponto de a gente perceber uma proliferação do debate racial pelos veículos hegemônicos e pelos alternativos a eles. E todos ainda sem muita clareza, sobretudo no nosso campo, de como lidar com a preeminência que a racialidade tem na constituição dos problemas de toda natureza, sobretudo nas violações de direitos humanos. É impossível, por exemplo, pensar o padrão de violação de direitos humanos no Brasil, com a crueldade e o descaso com que se realiza, sem compreender qual a população exposta a isso. Porque seria impossível ter esse mesmo comportamento com uma população branca. Isso se manifesta, de alguma maneira, em como o Fernando Holiday tem sido tratado? Acho que devemos evitar entrar no jogo que o racismo nos propõe ao se utilizar de alguns de nós segundo os seus interesses e fins. Dos racistas só podemos esperar isso. Eu me preocupo mais com os erros que nós cometemos no nosso campo de aliança. Porque eu espero tudo de pior do racista. Esse campo se instituiu de uma forma fascista, em algumas de suas manifestações, e sempre deixou muito claro qual o nosso destino social: extinção ou subalternidade. E cada um de nós seria utilizado contra o outro. Isso sempre foi feito. Se a mobilidade social individual de um negro não pode ser evitada, ela é utilizada para questionar a competência dos demais. A abolição foi isso. Vocês estão livres para apodrecer e morrer nas sarjetas desse país. Os que heroicamente superam ou escapam das barreiras interpostas pelo racismo sempre podem ser usados para atestar a incompetência dos demais: está vendo como a maioria não serve? Agora, o que nós temos que questionar: como podemos construir, no nosso campo, que consideramos libertário, progressista, uma estratégia política em que caibamos, de fato, todos, com respeito, reconhecimento e solidariedade? Você vê lideranças hoje no movimento negro que levem essa construção adiante, a partir do legado que você e sua geração construíram desde os anos 1970/80? Estamos entrando em uma fase que ainda não conhecemos. Há uma nova etapa dessa sociedade. Eu tenho a impressão de que o processo a que a gente está assistindo está apenas no seu início. Ele não alcançou o seu limite. Nós temos um cenário político assustador, em que todo tipo de conservadorismo, reacionarismo, um conjunto de ideologias discricionárias, violentas prosperam impunemente na sociedade. Então é um cenário novo, de absoluta radicalização. O que eu quero dizer com isso? Vou fazer um hiato mesmo. A minha geração passou umas quatro décadas lutando para desmistificar a democracia racial. O cenário hoje é completamente diferente. As ações realizadas pelos movimentos negros nessas últimas quatro décadas tanto buscaram desmistificar a decantada democracia racial brasileira como também formular propostas de correção das desigualdades promovidas pelo racismo, pela discriminação de base racial, como as políticas de ação afirmativa. Essas propostas também organizaram a hegemonia branca. Ela teve que assumir seu racismo, sair em defesa de seus privilégios. A luta pelas cotas, o debate pelas cotas é um paradigma. As políticas de cotas raciais para negros na universidade tiraram os brancos da zona de conforto, e o racismo se manifestou com toda a sua virulência. O poder da branquitude se revelou quando ameaçado de perder os seus 100% de direito, que eles mesmos se outorgaram de cotas nas universidades. Saíram a campo em uma articulação inusitada, nunca vista, de diferentes forças políticas, que nos expuseram a um verdadeiro pelourinho eletrônico contra as cotas. Essa é uma luta que permanece. O risco ronda as políticas de cotas, o risco de retrocesso está evidente e isso vai exigir muita luta e organização política. E o que você diz a essas jovens lideranças? O que eu tenho dito aos jovens ativistas que estão chegando, e felizmente são muitos, é que talvez eles tenham que enfrentar a dimensão mais cruel dessa luta. Porque as relações raciais já não estão mais protegidas pela etiqueta que as governou sob o paradigma do mito da democracia racial. O agravamento desse cenário na direção de um racismo cada dia mais explícito e violento, que está aí se anunciando no horizonte das novas gerações, vai exigir novas propostas de organizações políticas para o seu enfrentamento, em um cenário adverso de perda de credibilidade das formas mais tradicionais de organização política. É um cenário extremamente preocupante, e o emblema maior desse acirramento são os índices de assassinato de jovens negros no Brasil. A boa notícia é que nenhum movimento social se renova tanto quanto o movimento negro. E a segunda boa notícia: nunca tivemos um ativismo tão vibrante e tão capaz de vocalização como neste momento, sobretudo das mulheres negras. Esse conjunto diverso de gente negra em movimento é algo novo que me faz ter esperança na resistência. Essa multiplicidade de agentes, vozes e iniciativas vai ser capaz de engendrar um campo organizado de ação política e resistência que haverá de conter essa ação genocida do Estado, em cumplicidade com grande parte da sociedade brasileira, contra nós. Quem são essas jovens negras? Pode nomear algumas? São muitas! Outro dia eu estava fazendo um exercício, porque estou tão animada, tão feliz com essa multiplicidade de vozes, de pessoas, é uma coisa tão preciosa para nós. Porque até há uma década, nós as velhas feministas, nos reuníamos e falávamos: gente, mas cadê as jovens? Onde elas estão? Eu até escrevi um texto em que ofereço o nosso bastão e naquele momento não sabia para quem. Olhava pra trás e via a mesma velha companheira. Hoje as jovens pegaram o bastão e estão aí, no mundo. É uma coisa muito emocionante. Estou muito grata às deusas e aos deuses por poder estar assistindo a esse florescimento. Sobretudo da presença das mulheres negras na sociedade brasileira. Quem são essas meninas? Você, por exemplo, na CULT. A Djamila Ribeiro, Stephanie Ribeiro, Joice Berth, Ana Paula Lisboa, Luana Tolentino, Natália Neris, Monique Evelle, Taís Araújo, Diane Lima, Maju Coutinho, Sil Bahia. Vai vendo… Luz Ribeiro, Preta Rara, Karol Conka. É uma festa! Viviane Ferreira, cineasta do Dia de Jerusa, Renata Martins, Tia Má. É um festival! Natália Sena, do nosso Portal, Larissa Santiago e as Blogueiras Negras, Erika Malunguinho do Aparelha Luzia. Estou pegando as meninas. Jarid Arraes, quero saber onde está Jarid, amo de paixão. Yasmin Thayná, as meninas da mídia, Adriana Couto. Eu vou esquecer muitas! É um luxo! É uma festa! É lindo! A cena ficou muito bonita, colorida. E a contribuição que a nossa experiência de opressão e também de resistência aporta, a contribuição que temos para dar e enriquecer essa sociedade é extraordinária. Você pode falar mais sobre essa contribuição? Nós somos sobreviventes e somos testemunhas, porta-vozes dos que foram mortos e silenciados. Nós estamos aqui. A elite intelectual deste país, no começo do século 20, só tinha uma preocupação: quanto tempo levaria para esta mancha negra ser extinta. Uns diziam que até 2015 essa mancha negra estaria extirpada. Nós somos sobreviventes. Vivemos e viveremos. Nós não só sobrevivemos como agora estamos em ação. Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós, povo negro, somos a vanguarda das lutas sociais deste país porque somos os que sempre ficaram para trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e efetivo de integração social. Doravante, nada mais será possível sem nós. Eu acho que é isso que essas meninas negras estão expressando com muita força. Você se define como feminista negra. Há quem se considere feminista interseccional, outras preferemo termo mulherismo. Esse debate faz sentido para você? Eu recebo isso tudo como a polifonia maravilhosa que está aí. Eu sou uma feminista negra porque sou antiga, tenho quase 70 anos. Quando as meninas me chamam para falar sobre feminismo interseccional, eu respondo: chamem a Djamila Ribeiro porque ela que é feminista interseccional. Eu nunca usei esse conceito porque eu sou muito anterior à emergência dele, embora os sentidos que ele carrega estejam presentes nos meus textos e de outras mulheres negras da minha geração. Quando a Crenshaw chegou com esse debate da interseccionalidade, eu já estava com essa concepção consolidada de feminismo negro. Mas essa nova geração está agregando novos conceitos. Eu sou filhote da Lélia Gonzalez. Eu sou uma feminista negra antirracista que em determinado momento, na estruturação do instrumento político de luta que eu, com outras mulheres negras, concebi, o Geledés, pensava o que era ser mulher negra no contexto do feminismo branco hegemônico da época. E naquele momento eu entendia que nós tínhamos que construir uma concepção de feminismo extraída da nossa própria experiência, das nossas próprias tradições. O nome Geledés, por exemplo, vem dessa necessidade de demarcar a identidade de um feminismo de mulheres negras, que se sustenta na sua experiência histórica e nas suas tradições. Geledés foi escolhido exatamente porque são organizações de mulheres negras de cunho religioso das sociedades tradicionais iorubá, hoje considerados patrimônio da humanidade. É uma forma de culto ao poder feminino. E eu sempre disse que, inspirada nas nossas matrizes religiosas, nós somos filhas de deusas que permanecem vivas no imaginário popular. Essa é uma matriz, além de religiosa, de pensamento e ação no mundo... Eu escrevi um artigo, “O poder feminino no culto aos orixás”, em que eu digo que não somos costela de ninguém, nós temos domínio, poder, e é com essa noção que a gente pensa Geledés. A gente chega ao feminismo buscando dar essa cara, ao reler todo o ideário feminista à luz da contradição de ser mulher negra. Por isso também escrevi um texto chamado “Enegrecer o feminismo”, em que a ideia é trazer para o feminismo todas as contradições que a racialidade coloca dentro do feminismo branco da época. Em qualquer dimensão da luta das mulheres, ser mulher negra coloca outras contradições, outras necessidades e outras demandas que o feminismo teria que incorporar se quisesse representar as necessidades e os interesses do conjunto das mulheres brasileiras. E tendo em vista que as mulheres negras são maioria entre as mulheres brasileiras, então um feminismo nativo, um feminismo brasileiro, tem que ter, necessariamente, por perspectiva, a agenda das mulheres negras. Por isso, hoje eu entendo que enegrecer o feminismo foi uma tarefa realizada, pois a ação política feminista hoje está profundamente marcada pelas demandas colocadas pelas mulheres negras. Penso que o desafio das mulheres negras agora é, enquanto vanguarda e liderança desse movimento, explicitar e propor o projeto político emancipatório que podemos oferecer para todas as mulheres do Brasil. Creio que esse projeto deve se sustentar na proposição de um novo pacto racial e de um novo contrato sexual, que desaloje as hierarquias de gênero e raça instituídas, em prol da realização da equidade e igualdade de homens e mulheres e negros e brancos. Muitas pessoas apontam que uma vida mais comunitária se coloca como alternativa importante ao capitalismo. Pelo que li no livro da Rosane Borges sobre você, sua infância foi bastante comunitária. Além de diversos irmãos, seus pais sempre acolhiam familiares que vinham de Minas a São Paulo, por exemplo. Para as mulheres negras, o compartilhamento e as redes solidárias sempre foram uma realidade. Não só somos sobreviventes, como conhecemos a vida em comunidade, que pode ser um caminho de futuro. Não é à toa que o lema da Marcha das Mulheres Negras era o Bem Viver. Foi pautado pela Nilma Bentes, uma companheira negra de Belém do Pará muito criativa e ousada politicamente. Ela trouxe essa noção do Bem Viver para a Marcha, uma construção de povos indígenas da América Latina que vem sendo apropriado e recriado por diferentes segmentos sociais de nossa região. A nossa experiência comunitária é produto tanto de valores culturais como da indigência social a que fomos lançados. Tem um livro poderoso, lindíssimo, da antropóloga Ruth Landes, do começo do século 20, chamado A cidade das mulheres, um clássico esquecido, em que ela trabalha com a experiência das mães e das mulheres de santo de Salvador. Ela coloca que as mulheres negras eram um fator de modernização da sociedade soteropolitana da época, na medida em que estavam nas ruas lutando pela sobrevivência. Em um momento em que as mulheres brancas estavam confinadas no espaço doméstico. As mulheres negras sempre estiveram no espaço público... Nós, por contingências muito objetivas da nossa condição de escravizadas ou ex-escravizadas, estávamos nas ruas. Mas as ruas, ou melhor, os mercados sempre foram espaços tradicionais das mulheres nas sociedades africanas, então é possível supor que reminiscências dessa tradição estiveram presentes nas estratégias de resistência e sobrevivência desenvolvidas pelas mulheres negras aqui. Agora, sem dúvida, isso configurou um matriarcado da miséria. Mulheres, geralmente sozinhas, segurando famílias extensas com recursos parcos. Uma realidade que ainda está aí, exigindo a constituição de redes de solidariedade para a sobrevivência, muitas vezes inspiradas nas tradições culturais que pudemos manter, recriar ou constituir aqui, em terras outras. Mas isso tudo perpetua um imaginário que faz com que as mulheres negras sejam muito penalizadas por essa coisa de mulheres fortes, que tudo aguentam, que tudo suportam. Acho que a expressão disso é o discurso da Sojourner “E eu não sou uma mulher?”. Aquele discurso revela também o lado perverso disso. Somos mulheres que lutam, mulheres guerreiras, mulheres que nos trouxeram até aqui, mas a um custo incomensurável. Há tanto a coragem e força com que fomos revestidas, mas também a opressão que existe nisso. Eu costumo falar para as jovens negras, quando tenho a oportunidade: nós temos que lutar pelo direito à fragilidade. Está na hora de as mulheres negras reivindicarem isso. Eu falo para a minha filha: esse negócio de mulher negra pronta para a guerra, que aguenta tudo, acaba aqui (gesticula, batendo no peito). Aqui. Chega. Estamos trabalhando para que vocês reivindiquem outro tipo de coisa, de terem inclusive o direito à fragilidade e ao cuidado. Sua filha Luanda, vive na Noruega. Ao ler sobre ela no livro da Rosane Borges, pensei muito na filha de Alice Walker, Rebecca Walker, que tem um livro chamado Black, White and Jewish. Idem (risos). O pai da Luanda é branco e judeu. Temos muitas boas histórias. Uma delas sempre uso para contar como se produz o branco aqui, a guerra que você precisa travar para assegurar a negritude da sua criança. Eu até já escrevi sobre isso em um artigo chamado “Negros de pele clara”. O biotipo dele é ariano, um judeu egípcio, apátrida. Luanda nasce e ele vai registrar com a minha irmã, Solimar, como testemunha. O pai foi conferir a certidão porque já esperava, no campo da cor do registro, que estaria escrito branca. Ele mostrou para o escrivão que respondeu: “tudo bem, né?” Ele respondeu: “Não. A mãe da minha filha é negra, como a irmã dela que está aqui como testemunha”. O cara refez o registro: parda. Aí o pai: “minha filha não é branca e muito menos parda, porque parda eu nem sei o que é”. O escrivão pergunta: “mas o que o senhor quer que coloque?” Quando ele responde “a minha filha é negra!”, o cara solta a pérola: “mas ela não puxou nem um pouquinho o senhor?” Ou seja: se tivesse “puxado” um pouquinho ela já teria virado branca (risos). Esse seu texto é importantíssimo para pessoas negras de pele clara (risos). Agradeço muito por tê-lo escrito. Foi em homenagem a tantos ativistas negros de pele clara; em especial, a umcasal que eu amo muito, que é o Edson Cardoso e a Regina Adami. Eles têm assim a sua cor, são tinta fraca (risos). E são dos ativistas mais comprometidos que eu conheço pela questão racial, gente que dedicou a vida a essa luta. É muito desrespeitoso questionar a negritude dessas pessoas. É muito desrespeitoso querer desqualificar a identidade dessas pessoas. E é também pela minha filha, em sua legítima defesa (risos). dossiê Variações sobre a luta de classes Apresentação JOÃO ALEXANDRE PESCHANSKI No fim dos anos 1970, circulou pela América do Norte e Europa um cartaz em que se lia, em tradução livre do inglês: “A consciência de classe é saber de que lado da barreira você está (veja página ao lado). A análise de classe é descobrir quem está lá com você”. A ilustração nesse material, produzido pelo coletivo feminista anticapitalista Press Gang, era a de uma mulher negra, cotovelo apoiado sobre uma barreira de madeira rústica, no centro da cena, mão na boca, pensativa. De certo modo, a mensagem desse cartaz ressoava a clássica máxima da interdependência entre teoria e prática revolucionária. Ressoa também no Brasil de hoje urgentemente a tarefa intelectual do cartaz; a ofensiva conservadora que se abateu sobre as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros nos encontra com uma análise de classe desorganizada. Os processos de desorganização da análise de classe são variados, da desmobilização de instrumentos partidários socialistas e comunistas a uma crescente marginalização e até perseguição à tradição marxista na universidade. Dois discursos são especialmente marcantes nesse contexto, o de que as classes sociais são uma abstração irrelevante e o de que em detrimento de uma teoria marcada pelo antagonismo entre interesses materiais deve-se priorizar uma de concertação. Afirmar que classes sociais são uma abstração irrelevante ou, em outros termos, um mero construto acadêmico é sugerir que a partir delas não se identificam mecanismos reais que afetam a vida das pessoas. A tradição marxista considera que as relações sociais em um sistema produtivo definem mecanismos que têm impacto real na vida dos indivíduos, especialmente a exploração e a dominação. Dominação diz respeito à capacidade de controlar as atividades de outras pessoas; exploração remete a uma relação econômica, em que, entre outros elementos, o bem-estar material de um grupo depende da privação material de outro grupo e, no contexto da exclusão dos recursos necessários à sobrevivência, o grupo em situação de privação material “oferece” sua força de trabalho para os detentores dos meios socialmente necessários para a produção econômica. Afirmar que as classes sociais não são reais é, portanto, o mesmo que dizer que mecanismos como a exploração e a dominação, que as definem pelo menos na tradição marxista, são abstrações irrelevantes; isso é no mínimo ingênuo. As classes sociais têm impacto tanto em condições macrossociais quanto microssociais. O nível mais geral é o que, na tradição marxista, se chama estrutura de classe, a localização de agentes sociais em relação aos meios de produção de um sistema econômico. Nesse nível, o que se busca entender é como se dá a distribuição dos recursos produtivos em uma sociedade e como a estrutura econômica influencia o comportamento de instituições e grupos sociais. Nas microfundações da análise, busca-se entender a influência das classes sociais nas ações de indivíduos: a associação entre os interesses individuais e os esperados a partir das condições materiais nas relações de produção; a compreensão subjetiva dos interesses de classe; a formação de organizações para manifestar a solidariedade dos interesses de classe; e as práticas políticas para realizar os interesses de classe, em especial as estratégias a adotar em situações de conflito de interesses. Estrutura, consciência, formação, solidariedade e luta de classe são objetos da análise de classe. O principal desafio da análise de classe não é justificar a relevância real de seus objetos de estudo, mas desenvolver uma formulação suficientemente geral para dar conta de manifestações complexas de relações de classe e estratégias de ação coletiva baseadas em interesses materiais. Esse desafio está associado a um processo de abandono da tese da primazia explicativa das classes sociais: por mais que exploração e dominação sejam mecanismos relevantes, não são os únicos mecanismos relevantes e possivelmente não são os mais importantes para entender a vida social. O abandono da tese da primazia das classes vai na contramão da tradição marxista clássica, para a qual a tendência histórica dos fenômenos sociais é no abstrato explicada pela trajetória das lutas de classes. Correntes da esquerda abdicaram muitas vezes, incluindo na experiência brasileira recente, de elaborar uma formulação realista da economia política e da análise de classes, para apaziguar e equilibrar circunstancialmente os antagonismos inerentes às relações de produção. Essa estratégia de concertação, mantida a partir de uma “hegemonia precária”– na consagrada expressão do sociólogo Ruy Braga –, em que todos os interesses são de alguma maneira contemplados, tem vida curta e, principalmente, não deixa legado teórico para a elaboração das dinâmicas sociais brasileiras. O desafio intelectual de elaborar e articular a análise de classes no Brasil está colocado e, no contexto de um Estado tomado por agentes da austeridade fiscal e do arrocho, assume urgência. Este dossiê, intitulado “Variações sobre a luta de classes”, pretende justamente contribuir com elementos para a formulação da análise de classes premente no Brasil. Assim, investigam-se desenvolvimentos sobre as relações sociais no modo de produção capitalista brasileiro a partir de quatro fenômenos sociais concretos: aborto, cidade, processo de trabalho e justiça. As modalidades de reprodução da força de trabalho implicam necessariamente uma discussão sobre os direitos reprodutivos e mais fundamentalmente sobre as relações entre classes sociais e gênero. A cientista política Flávia Biroli, da Universidade de Brasília, identifica na violência contra as mulheres, em especial na forma política das limitações ao direito ao aborto, a interação da dominação masculina e capitalista. A formação das classes deve levar em conta os espaços dessa formação. Isso aparece no próprio Marx, para quem a concentração dos trabalhadores em fábricas cada vez maiores viria a ser o estopim para a consciência das condições materiais comuns dos trabalhadores – o que, como se sabe, não se concretizou. As políticas urbanas atuam fundamentalmente na produção formativa das classes hoje e, sobre isso, escreve no dossiê o urbanista João Sette Whitaker Ferreira, da Universidade de São Paulo. Ele busca entender a produção do urbano a partir da exploração e da dominação de classes em sistemas capitalistas periféricos, como o brasileiro. O processo de trabalho, em especial as tecnologias sociais para a disciplinarização e intensificação do labor, é o tema do ensaio da socióloga Silvia Viana, da Fundação Getúlio Vargas. Uma questão- chave da sociologia do trabalho é descrever o conjunto de técnicas, ou o regime de produção, que é usado para que os trabalhadores atuem com intensidade produtiva máxima. Com o advento das mídias sociais, é possível que se generalize uma modalidade “colaborativa”de dominação do trabalho: talvez não sejam mais necessárias práticas despóticas ou estratégias para que o trabalhador consinta a produzir com intensidade, pois quem gerencia o trabalhador é o aplicativo manuseado pelo consumidor. Viana avalia a modalidade de controle e intensificação do trabalho associada à uberização da produção, em que os explorados, agora sob a forma de autoempreendedores precários, se midiatizam e espetacularizam em busca de recompensas. O cientista político Frederico de Almeida, da Universidade Estadual de Campinas, investiga o papel do Judiciário na condução política da classe dominante. Diagnostica tanto a constituição desse instrumentode dominação quanto a agenda conservadora que promove. De certo modo, a judicialização da ação classista dominante é um elemento central para a economia política da Operação Lava Jato e do desigual acesso à justiça. O conjunto de textos deste dossiê propõe-se a romper com a expectativa de uma análise de classe sob a égide da dicotomia entre burgueses e proletários. Aliás, isso vai na linha corrente de teóricos anticapitalistas em todo o mundo, que se afastaram da metanarrativa do materialismo histórico clássico. Um esforço primeiro da análise de classes contemporânea, em consonância com a tradição marxista, é possivelmente articular a partir de um compromisso igualitário radical as várias explicações para as manifestações de desigualdade e injustiça econômica, buscando de maneira geral identificar as múltiplas contradições do sistema capitalista. Assim, este dossiê apresenta variações sobre uma mesma temática: os conflitos a partir de interesses materiais em diferentes tipos de relações e situações sociais. Os interesses materiais, nesses recortes do real, coexistem e interagem de maneiras diversas com outras formas de opressão, como gênero, raça e vulnerabilidade social. A crítica ao capitalismo, propõe-se, está na formulação e articulação dessas variações sobre as classes sociais e, especificamente, nas lutas de classes. A urgência do esforço intelectual aqui proposto é que se coloca igualmente à intelectualidade radical o desafio de formular alternativas programáticas à realidade social. A análise de classe serve tanto para identificar os constrangimentos e obstáculos a uma vida social melhor quanto para diferenciar interesses materiais aliados e adversários, para “saber de que lado da barreira você está” e “quem está lá com você”. Diagnosticada a realidade social, com seus déficits de democracia e justiça, torna-se possível formular uma alternativa profundamente democrática e justa e, na análise dos interesses materiais e suas manifestações políticas, entender o que ainda nos impede de estar lá. Direito ao aborto e maternidade: gênero, classe e raça na vida das mulheres FLÁVIA BIROLI As lutas feministas têm colocado em pauta a regulação dos corpos das mulheres segundo lógicas que se definem em condições de privilégio masculino. O controle por parte do Estado, em sociedades nas quais a política institucional tem sido historicamente reduto dos homens, é apenas uma de suas formas. No cotidiano, os valores que justificam e naturalizam esses controles podem ser ativados pelas religiões organizadas, pelos meios de comunicação, pela escola, por pais ou companheiros, por outras mulheres. Ao mesmo tempo, a violência contra as mulheres que não respondem a esse controle se dá no âmbito institucional e no das relações interpessoais. Mas a regulação não se dá apenas pela recusa de certos comportamentos e identidades ou pela punição dos “desvios”. Ela também ocorre pela incitação de formas de vida “aceitáveis”, pelo estímulo a certos modos de construção das identidades individuais e coletivas – o elogio à beleza, ao recato e à domesticidade é uma de suas formas. E desigualdades estruturais, como as desigualdades de classe, constituem violações e restrições de modo que não é possível tomar as desvantagens de gênero como algo que se define independentemente da dominação de classe. O feminismo tem colocado em xeque o entendimento de que as regras universais e abstratas do Estado de Direito tiveram e têm como referência todas as pessoas. Mesmo nas correntes liberais, em que o alcance da crítica pode ser restrito, tem sido exposto o fato de que instituições e normas modernas, no Ocidente, implicaram a recusa de direitos às mulheres enquanto utilizavam a linguagem da universalidade e da neutralidade. Liberalismo e patriarcado não são termos antagônicos, como não são liberdade individual e dominação masculina. Premissas e referências normativas importantes, como a divisão entre o público e o privado e a liberdade de escolha, tiveram, e têm ainda, sentidos muito distintos para mulheres e homens. O quadro se complica quando compreendemos que as formas de seletividade e regulação, que não são neutras numa perspectiva de sexo ou gênero, não o são também em termos de classe, raça, etnia, região do mundo em que se nasce, sexualidade. Isso significa que as mulheres não compõem um grupo homogêneo diante desses mecanismos. Pelo contrário, eles incidem diferentemente sobre mulheres em posições sociais específicas e desiguais. Os corpos são regulados em sociedades nas quais outras formas de opressão e identificação constituem as posições em conjunto com o gênero. Assim, se as relações de gênero não expressam uma natureza diferenciada dos corpos no que diz respeito ao sexo biológico, elas também não se definem ao largo, antes ou depois das determinações de classe e de raça, entre outros eixos significativos das opressões e disputas. Tem sido mais frequente considerar as convergências de gênero e classe nas relações de trabalho. Mas as injustiças reprodutivas estão, sem dúvida, organizadas em uma escala na qual as violações pelo Estado se encontram com a precariedade material, tornando mais agudas as desvantagens das mulheres trabalhadoras, isto é, em uma escala de classe e não apenas de gênero. É tendo em mente esse modo complexo de regulação dos corpos e de produção do gênero que trato aqui de uma das lutas feministas fundamentais, a luta pelo direito ao aborto. Além de sua importância para a vida e para a cidadania das mulheres, ela dá acesso a conexões que considero importantes entre a crítica feminista mais próxima do espectro liberal, em que o direito ao aborto é situado nas lutas pelo direito de escolha das mulheres, e as críticas e lutas que nos têm sido legadas pelo feminismo socialista e pelo feminismo negro. Nestas, fica evidente que o exercício da escolha e, de modo mais amplo, a autonomia das mulheres têm componentes de classe e de raça que são incontornáveis. O direito a controlar a capacidade reprodutiva foi negado a muitas mulheres negras, indígenas, trabalhadoras e pobres na forma da recusa do direito ao aborto, assim como na forma da recusa do direito à maternidade. A linguagem da escolha individual, que organizou largamente o campo da defesa do direito ao aborto pelas mulheres no hemisfério norte a partir de meados do século 20, ressalta o direito a escolher como um contraponto à maternidade compulsória. A importância dessa ênfase na escolha das mulheres e não em um papel social que já pressuporia escolhas é inegável, mas há limitações nessa abordagem uma vez que as condições de escolha podem ser restritas e desfavoráveis, sobretudo para as mais desprivilegiadas entre elas. A assimetria de recursos materiais e simbólicos é um elemento fundamental para compreender as condições em que as escolhas são feitas e, claro, as próprias escolhas. O direito ao aborto é um eixo central da autonomia das mulheres, e creio que essa afirmação possa ser generalizada. A fusão entre o feminino e o maternal tem sido um dispositivo importante de controle sobre as mulheres e a denúncia da maternidade compulsória esteve relacionada desde o início às lutas pela igualdade de gênero. Sem o direito a controlar sua capacidade reprodutiva, a autonomia na definição de suas trajetórias de vida é fundamentalmente comprometida. A participação feminina em outros âmbitos da vida depende se sua capacidade de definir se e quando serão mães. Sendo mães, essa participação é sensível ao modo como o trabalho é dividido na esfera privada e, sobretudo, às normas e políticas públicas para o cuidado com as crianças e para a proteção no mundo do trabalho das mulheres gestantes e mães. A recusa ao direito ao aborto mantém na legislação concepções diferenciadas do indivíduo e do direito que têm de definir o que se passa no e com seu corpo, do direito à integridade física e psíquica e à dignidade. O acesso a esses direitos, quando o aborto é criminalizado, é distinto na letra da lei segundo o sexo dos indivíduos. É o que ocorre nocaso brasileiro, em que o direito ao aborto é criminalizado com três exceções, que são risco de morte da mulher, gestação resultante de estupro e anencefalia fetal. No Congresso, tramitam vários projetos que pretendem criminalizar inclusive esses casos, entre os quais destaco o chamado Estatuto do Nascituro. Mas tem havido passos em defesa desse direito, como Normas Técnicas editadas no início dos anos 2000 pelo Ministério da Saúde para garantir o acesso ao aborto legal e, mais recentemente, uma decisão do Supremo Tribunal Federal que firma o entendimento de que a penalização é inconstitucional. Nos dois casos, reconhece-se que o problema ultrapassa a restrição à cidadania das mulheres como grupo. No Brasil, como em outras partes do mundo, as mulheres realizam abortos a despeito da legislação. A criminalização do aborto, no entanto, compromete de maneira aguda a integridade física e psíquica das mulheres negras e pobres. Para elas, a clandestinidade implica precariedade no atendimento, ampliando os riscos que correm. As complicações devido ao aborto inseguro persistem em um contexto de melhoria no acesso das mulheres a direitos e serviços de saúde nos países latino-americanos. Enquadradas como questão de saúde pública no registro internacional predominante, ganham contornos singulares em um continente no qual o aborto é amplamente criminalizado. As lutas feministas têm sido pelo direito das mulheres a decidir se e quando serão mães. Mas a história dos movimentos em defesa do controle da natalidade se misturou, ao longo do século 20, a políticas racistas de controle populacional. Estima-se que 65 mil pessoas foram esterilizadas por programas para o controle populacional em 33 estados estadunidenses entre os anos 1920 e 1970. Mais recentemente, decisões nos estados de Virgínia e Carolina do Norte determinaram o pagamento de indenizações às vítimas. Na América Latina, mescladas a estratégias estadunidenses para o controle do crescimento populacional no chamado terceiro mundo, houve políticas de controle que promoveram a esterilização de mulheres negras, indígenas e pobres, com recursos da US Agency for International Development (USAID) e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). No Peru, as esterilizações forçadas, estimadas em mais de 400 mil, foram condenadas pela Corte Internacional de Direitos Humanos e reconhecidas formalmente pelo governo peruano em 2003 – embora as denúncias contra Alberto Fujimori tenham sido arquivadas naquele país mais de uma vez nos anos recentes, sob o argumento de que as esterilizações massivas não teriam sido definidas por seu Programa Nacional de Salud Reproductiva y Planificación Familiar, mas por falhas no seu desenho e implementação. O caso peruano gerou registros e depoimentos que detalham a violência de esterilizações cirúrgicas realizadas por meio de chantagens, mentiras, coerção e mesmo aprisionamento das mulheres. A pobreza, as características das políticas de controle reprodutivo e controle populacional e a insegurança na maternagem compõem o ambiente em que a esterilização se fez uma opção para muitas mulheres em países como Porto Rico e Índia, entre os anos 1930 e 1950. No Brasil, ao menos desde os anos 1980, acumulam-se denúncias de esterilização em massa de mulheres das regiões mais pobres do país, levando inclusive à abertura de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional, em 1992. Em 1965, já sob a ditadura instaurada com o golpe de 1964, a International Planned Parenthood Federation passou a atuar no país. Assim surgiu no Brasil a Sociedade de Bem-Estar Familiar, a BEMFAM, que se disseminou principalmente nas regiões Nordeste e Centro-Oeste do país. A partir de então, clínicas privadas levaram a esterilização às mulheres brasileiras, no vácuo de políticas públicas alternativas e com a conivência, e em alguns casos a visão racista e eugênica expressa, de governantes nos níveis nacional e estadual. Foi apenas com a articulação de grupos feministas em defesa dos direitos das mulheres no período de abertura política que a abordagem da saúde reprodutiva se modificou, com destaque para o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado em 1983. Eugenia, racismo e controle social da pobreza fundamentaram, assim, políticas que fizeram dos corpos das mulheres objetos de intervenções sancionadas. Foi diante desses processos que emergiu a noção de “justiça reprodutiva”. Reconhecendo que o controle reprodutivo é fundamental para o exercício da autonomia e que esta, por sua vez, é uma dimensão da cidadania, feministas negras, de origem latina e asiática, têm assumido uma perspectiva interseccional na definição dos direitos reprodutivos e na agenda de suas lutas. Essa perspectiva busca reconhecer a opressão e a violência no âmbito da reprodução. As histórias de opressão expõem, na vida de mulheres concretas, os efeitos das convergências entre gênero, raça, etnia, classe, sexualidade e origem no globo. O exercício da autonomia, por sua vez, não é matizado pelo gênero isoladamente. A posição de classe produz as alternativas para as mulheres, ainda que o patriarcado – ou a dominação masculina – não possibilite equalizar as condições de homens e mulheres de diferentes classes sociais de controlar, entre outras coisas, o acesso a seus corpos. A violência está presente na recusa do direito ao aborto, pela criminalização da decisão das mulheres de interromper uma gravidez, tanto quanto nas esterilizações forçadas ou induzidas, que retiram das mulheres o direito de serem mães. Em todos esses casos, a cidadania é comprometida em seus fundamentos. Mas a omissão do Estado também tem consequências perversas. Sem educação sexual nas escolas, a insegurança e a imprevisibilidade no exercício da sexualidade se ampliam. Quem bloqueia o acesso a essa educação engrossa o caldo da violência, das doenças sexualmente transmissíveis, da gravidez na adolescência, da evasão escolar das meninas. As desigualdades estruturais e a ausência de políticas públicas para compensá-las ou superá-las impedem o exercício seguro da maternagem. Este depende do acesso a trabalho e renda pelas mulheres e do respeito à vida de suas filhas e filhos. No controle de recursos políticos e econômicos estão muitos dos que têm trabalhado pela desregulamentação dos direitos sociais e pela larga prevalência da lógica do lucro e da exploração. São, em muitos casos, os mesmos que têm mobilizado uma suposta defesa da maternidade e da família em sua atuação política reacionária. Tratam sistematicamente de uma fantasia, enquanto atentam contra mulheres e famílias reais. O urbano no contexto do subdesenvolvimento JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA O “espaço urbano” é uma base estrutural e sistêmica de infraestruturas, sobre a qual se assentam as edificações. São redes viárias, de transporte, de informação, de serviços, de água, saneamento, luz, sistemas de coleta de lixo, equipamentos, que permitem a vida na cidade. Tal base não pode ser produzida individualmente. É fruto do trabalho social, pela mão do Estado ou com sua intermediação. Ela permite que se produzam localizações – o “lugar” de cada edifício na cidade – cuja qualidade depende da sua situação na rede, da sua inter-relação com seu entorno. Como as infraestruturas não são homogêneas, as localizações são diferenciadas e disputadas pelo mercado. Seu preço, como todo produto do capitalismo, varia em função de seu valor de uso (dado pela qualidade da infraestrutura e sua situação na rede), da demanda por esse bem e das intervenções regulatórias do Estado. As localizações são, portanto, objeto de disputas, as melhores sendo apropriadas por quem pode pagar por elas, as piores restando para os mais pobres. Além disso, as localizações são produtos que têm valor de troca e que geram, assim, possibilidades de lucros com sua produção e comercialização. Daí três dos conflitos mais recorrentes nas cidades capitalistas: entre os moradores, que disputam entre si as melhores localizações, entre os que fazem usoda cidade como moradia e os que desenvolvem outros tipos de uso (comercial, industrial, etc.) e, por fim, entre os que usam a cidade para viver e os que a veem apenas pelo seu valor de troca. Assim, qualquer cidade no capitalismo tem bairros mais caros, em localizações mais bem servidas por infraestrutura, com melhor acessibilidade, melhores condições paisagísticas, e ocupados pela burguesia, assim como localizações mais afastadas e menos acessíveis, menos servidas por infraestrutura e equipamentos, mais baratas e ocupadas pelas classes populares. Além desse típico conflito de classes, há a permanente tensão imposta pelos setores do mercado imobiliário e da construção civil, atuando para obter lucros com a produção e a venda dessas localizações e especulando sobre seu preço. Nos países centrais do capitalismo, onde o modelo keynesiano do Estado de Bem-estar Social promoveu forte regulação pública, esses conflitos foram e ainda são mediados pelo Estado para, em alguma medida, amenizar as distorções. No esforço de construção de sociedades de consumo de massa para superar a crise estrutural (e urbana) dos anos 1930, a garantia de moradia era uma condição essencial, e foi atendida por políticas públicas de produção e acesso à habitação e um sistema urbano funcional e razoavelmente democrático. O pensamento urbanístico da época defendia o conceito da cidade densamente ocupada em suas áreas centrais, mais bem- dotadas de infraestrutura, como forma de racionalizar e democratizar o seu uso. A casa monofamiliar em grandes lotes, tipicamente burguesa, seria relegada aos subúrbios periféricos. O Estado procurava homogeneizar a oferta de infraestrutura e implantava os chamados instrumentos urbanísticos para regular a produção do espaço urbano. Com tributações diferenciadas, pagamento pelo direito de construir e outros mecanismos do tipo, cobravam-se dos mais ricos taxas para “compensar” o privilégio de usufruir de boas localizações produzidas graças à infraestrutura pública. É bem verdade que tal modelo não reverteu as desigualdades da cidade capitalista, mas com certeza as amenizou. Cinturões operários e subúrbios intermediários de menor qualidade urbanística se contrapunham a bairros de alto padrão, altamente valorizados. Mais adiante, esse sistema não conseguiu deter a onda neoliberal da era Thatcher/Reagan, sucumbindo ao avanço inexorável e predatório do capital financeirizado sobre o urbano. Competição entre cidades, revitalizações gentrificadoras e grandes projetos urbanos tornaram-se o cardápio dominante. Hoje, embora ainda mantenham parte da sua racionalidade democrática, as grandes cidades do mundo desenvolvido vão tornando-se bolhas imobiliárias de alta valorização, inacessíveis à grande maioria dos cidadãos, e cada vez mais confrontadas à pobreza urbana. Fica clara a importância do Estado nesses processos. Porém, no Brasil, este é idealizado segundo o modelo de bem-estar social, das políticas públicas que se sobrepõem aos interesses privados, embora isso nunca tenha ocorrido por aqui. Nosso Estado tem uma natureza bastante diferente e peculiar; muito longe de promover a construção de uma nação autônoma e socialmente justa, ele foi instrumentalizado pelas classes dominantes, de perfil liberal, para servir aos seus interesses. O “Estado patrimonialista” caracteriza-se, para resumir, pela imiscuição sistemática entre o interesse privado e o público, em detrimento do segundo. Seria, portanto, um equívoco acreditar que a extrema desigualdade na oferta de infraestruturas, que caracteriza nossas cidades, é consequência “natural” de um “crescimento populacional acelerado” ou demonstração de alguma “incapacidade” do Estado em enfrentar a questão da desigualdade urbana. Não, a maneira como conduzir a produção do espaço urbano é uma questão de política pública, e reflete as lógicas perversas do patrimonialismo, em que o que interessa é tão somente a estruturação dos bairros ricos, sintomaticamente chamados de “nobres”, deixando-se de fora a população pobre. Há infraestrutura onde se quis que houvesse, não há onde se deixou de fazer, e tais diferenças não são resultado da “falta de planejamento”, como se quer fazer pensar, mas de um planejamento às avessas – se considerado o interesse público – bastante eficaz nos seus objetivos de produzir a segregação. Impactos ambientais crescentes, sistemas de transporte cada vez mais extensos, gestão de serviços urbanos complexos são desafios enormes mesmo nas grandes cidades do mundo desenvolvido. Nos países em desenvolvimento, tornam-se quase intransponíveis, em razão da desigualdade social, que joga – não por casualidade – milhões de pessoas de menor renda em uma condição de vida de extrema precariedade. O patrimonialismo, expresso no que Florestan Fernandes chamou de um “Estado sincrético”, gera outros problemas: clientelismos, corrupção endêmica, inversão das prioridades de investimentos, arrocho financeiro. As marcas dessa lógica bastante perversa de urbanização são muitas, e desde o início do século passado os investimentos públicos nas nossas maiores cidades concentravam-se nos bairros nobres no centro, objetos de vistosos planos urbanísticos importados da Europa. Nas periferias, amontoava-se a população mais pobre, necessária ao funcionamento da cidade, em cortiços ou nas primeiras favelas, sendo expulsas para mais longe à medida que avançava o mercado imobiliário. Com o advento da “industrialização com baixos salários”, em meados do século, a demanda por mão de obra barata para nossa inserção competitiva na economia internacional transformou essas periferias em abrigo para um imenso exército industrial de reserva. Sem investimentos públicos, as periferias autoconstruídas, como já mostrou Francisco de Oliveira, representaram o expediente mais eficaz para manter o baixo custo de reprodução da força de trabalho. No Brasil, a concentração indecente da riqueza se reproduz na injusta divisão espacial urbana. Os investimentos, de maneira ostensiva, se deram exclusivamente nos quadrantes mais ricos das cidades. Como já demonstrou Flávio Villaça, as elites conduziram seu crescimento em simbiose com o mercado imobiliário. Porém, nem mesmo nesses bairros privilegiados criou-se uma urbanidade virtuosa: a opção pelo automóvel em detrimento do transporte público de massa e a absoluta liberalidade para com o mercado imobiliário geraram problemas como o tamponamento dos rios, a impermeabilização desenfreada, a densificação construtiva sem regras e sem limites, a falta de reserva de terras para a produção de moradias para os mais pobres. Ao contrário do modelo urbano do bem-estar social, aqui, as regiões com melhor infraestrutura foram acaparadas pelas elites, que construíram para si, na cidade “nobre” bem infraestruturada, seus bairros-jardins que deveriam estar nos subúrbios. Uma pendularidade disfuncional decorre dessa concentração do capital nos bairros ricos, fazendo milhões de pessoas deslocarem-se diariamente da periferia distante para o seu trabalho, em sistemas de transporte obsoletos e subdimensionados. Enquanto isso, a cidade rica se fortifica, se isola, renega a necessidade do espaço público e da rua. Nela, não há pobres a morar, tampouco negros. Produzimos cidades dignas do apartheid. Para manter tal onipotência espacial, as classes dominantes se fazem valer – graças também ao seu controle sobre o judiciário – de outras marcas do patrimonialismo: a predominância absoluta do direito à propriedade sobre qualquer outro, inclusive o de moradia, e o limite muito tênue e relativo entre legalidade e ilegalidade. Afinal, o que é ilegal? Movimentos de moradia ocupando prédios vazios irregulares das áreas centrais são ilegais, mas não o são resorts, estádios, shopping centers ou grandes condomínios que ocupam sem constrangimento as orlas marítimas ou outras terras públicas nas cidades. Ocupações informais sobre áreas de proteção ambiental são proibidas, mas mansões nas encostas da mata atlântica litorânea ou “rodoanéis” rasgando mananciais não o são. Nas
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