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Cult #223 Sueli Carneiro

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Sumário
coluna
Francisco Bosco
Marcia Tiburi
Vladimir Safatle
entrevista Sueli Carneiro
dossiê Variações sobre a luta de classes
Apresentação
Direito ao aborto e maternidade: gênero, classe e raça na vida das
mulheres
O urbano no contexto do subdesenvolvimento
Chão de estrelas
Da “justiça dos pobres” ao golpe de toga
reportagem
Laboratório social
livros
Vozes subterrâneas
Entre governados e ingovernáveis
Rousseau a passeio
colaboraram nesta edição
coluna
O futebol, o Brasil e o mundo
FRANCISCO BOSCO
Nos últimos anos, como se sabe, o futebol brasileiro experimentou
uma profunda crise, sem precedentes em toda a sua história, desde
que, com a conquista de sua primeira Copa do Mundo, superou o
complexo de vira-latas e assumiu o protagonismo do esporte mais
popular da terra. Durante esse período, conhecemos, é claro, melhores
e piores momentos. Tivemos derrotas inesperadas, fases de
renovação, um longo período sem vencer a Copa do Mundo.
Mas as derrotas, mesmo as contundentes, eram pontuais e se
deviam a fatores como times desorganizados, jogadores negligentes,
brilhos fugazes de adversários sem grande tradição. Era a época dos
“vexames”: derrota para Honduras, goleada para o Chile etc. Houve
também breves períodos de entressafra, em que apareciam no cânone
dos cânones que é a seleção brasileira jogadores sem renome e sem
qualidade técnica à altura. E sobre nossas sucessivas derrotas em
Copas do Mundo – até o tetra de 1994 que inaugurou três finais
consecutivas – elas se deveram mais ao acaso constitutivo do futebol
do que a problemas estruturais indicadores de transformações
profundas.
A partir dos anos 1990, entretanto, começava a se chocar o ovo da
serpente. Seu embrião se revelava na expressão “não tem mais time
bobo”, que alguns, sentados no trono de uma suposta soberania
vitalícia, procuravam desacreditar. O fato, contudo, era que a
globalização havia intensificado as trocas culturais no futebol; as
informações circulavam, técnicos e jogadores passavam por equipes
de todo o mundo, e com isso foi-se formando um patamar médio de
técnica e tática que diminuiu o fosso antes existente entre países de
tradição futebolística e outros desprovidos dela. Já não se podia,
como observou a boutade de Felipão, “amarrar cachorro com
linguiça”.
Nada disso, entretanto, nos impediu de retomarmos (sem que nunca
a tivéssemos realmente perdido) a hegemonia do futebol mundial
disputando três finais de Copas seguidas e vencendo duas delas. Em
todas, contamos com a excepcionalidade técnica de craques como
Romário, Bebeto, Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho. Naquela
que seria a esperada quarta final, uma geração extremamente
talentosa sucumbiu de forma estranha, simbolizada pelo enigma
depressivo de Ronaldinho. O mesmo Ronaldinho, sem o saber, estava
envolvido na grande transformação por que o futebol passaria. O fim
do seu time no Barcelona, comandado por Rijkaard, daria início à
revolução de Guardiola, Xavi, Messi e companhia. Foi essa revolução
que fez o Brasil perder o compasso da história e mergulhar por longos
seis ou sete anos na maior crise de sua história.
Essa crise teve dois marcos principais. O primeiro, em 2011,
quando o Santos de Neymar e Ganso (as maiores promessas de nosso
futebol) levou um verdadeiro sapeca-iá-iá do Barcelona de
Guardiola. Não foi uma derrota normal, nem mesmo uma goleada
normal. O time do Santos mal tocou na bola o jogo inteiro. Levou,
como disse Neymar ao fim do jogo (numa atitude que deveria
representar – mas não representou – a forma de o país encarar o que
estava acontecendo), “uma aula de futebol”.
O segundo, claro, foi o 7 × 1 contra a Alemanha, quando o
bumerangue da antiga boutade voltou com todo o peso de uma
reviravolta da história e atingiu em cheio a cabeça perdida de Felipão.
No caso, a linguiça que ele amarrou foi simbolizada pela escalação de
Bernard, vulgo “alegria nas pernas”, consolidando de vez uma
incompreensão tática profunda, prontamente devorada pelo cachorro
alemão, que ainda teve, como viemos a saber depois, “humildade em
gol”.
Muito se disse, durante esse período, que tínhamos nos afastado de
nossa própria tradição de “futebol-arte”. Chamaram Mano Menezes,
que entregou à malta o espelho perdido do protagonismo-espetáculo.
Deu errado. Chamaram Felipão e Parreira, insistindo na perspectiva
de que a história não existe, e portanto o Brasil precisava apenas
voltar a ser o que já fora. Levamos a maior goleada da história.
Chamaram, por fim e de novo (!), Dunga, porque o clamor por “raça”
e autoritarismo é o último recurso da incompreensão. A CBF se
comportou, nesse tempo, como a Corte Celestial chinesa durante o
século de humilhação que teve início com a Guerra do Ópio e só foi
se encerrar na revolução maoista: décadas de primazia distorceram o
seu senso de realidade e a impediram de reconhecer o movimento da
história e a perda do protagonismo.
Mas a verdade histórica esteve todo o tempo alhures. Não era que o
Brasil tinha se afastado da sua forma de jogar futebol (e por isso
entrara em decadência) – é que a forma de se jogar futebol tinha se
afastado do modo de ser do Brasil (e por isso o relegara à
inferioridade). O futebol como jogo singular em que prevaleciam o
improviso, o descompasso entre a produtividade e o resultado, o
talento excepcional; esse jogo foi se transformando em mais um
esporte em que tem grande peso o planejamento, a racionalidade, o
pensamento tático, a organização coletiva. No fundo, é o modo de ser
anglo-saxão dominando um dos últimos redutos culturais do mundo
que lhe ofereciam resistência.
Quando o Barça aplicou no Santos aquele chocolate desnorteante,
Guardiola disse que seu time se inspirava no futebol brasileiro de
antigamente. Não era verdade. Seu time representava uma
transformação histórica, cujo sentido era basicamente o privilégio da
tática, da ocupação dos espaços, da valorização da posse de bola, da
importância conferida ao passe, mais do que ao drible (por isso, para
mim, o símbolo dessa era é Xavi, mais até do que Messi).
Essa revolução, como qualquer outra, não surgiu do nada. Ele se
apoiou na tradição do futebol europeu, os “donos do campo”, como
disse Chico Buarque, diferenciando-os de nós, os “donos da bola”. Na
cultura do futebol de “prosa”, em oposição ao de “poesia”, nos termos
de Pasolini. Mas essas diferenças nunca antes na história haviam se
manifestado do modo como passou a acontecer a partir do time de
Guardiola. Esse time marca o advento de uma era da tática,
instaurador de uma técnica correspondente. O salto tático não anulou
a importância do drible, do improviso, da genialidade – mas como
que a submeteu a si mesma: um craque absoluto já não faz a diferença
sozinho, contra um time bem armado taticamente. A disposição tática
– linhas organizadas, equipe compacta, aproximação, passes curtos,
triangulações, muita movimentação etc. – passou a ser condição para
o destaque individual.
Assim, o próprio sentido da técnica foi transformado. Não existe
técnica dissociada de um contexto específico de jogo. O grande
jogador dos anos 1960 era grande relativamente às condições do jogo
que se apresentavam a ele. O grande jogador contemporâneo deve ser
grande diante das condições atuais. Ora, essas mudaram
profundamente. É por isso que até mesmo a crise técnica por que
passou o futebol brasileiro foi mal interpretada. Não é exatamente que
deixamos de produzir craques como produzíamos no passado; é que
não é mais possível produzir craques nos mesmos termos que o
fazíamos no passado. A posição que mais fez falta ao Brasil nos
últimos anos foi a de volante. Enquanto a Europa inventava o
paradigma Xavi (de aguda consciência espacial, aproveitamento
quase perfeito dos passes, conciliação de intensidade na marcação e
capacidade de articulação do meio de campo), nós permanecíamos no
antigo paradigma volante “cabeça de bagre” × meia talentoso. Em
suma, o próprio sentido da técnica se transformou. Isso explica o
porquê de um jogador como Ganso não dar certo no futebol mundial.
Seu problema é unicamenteter nascido na década errada.
E é por isso tudo que a solução do nó em que se meteu o futebol
brasileiro exigiu, sobretudo, um técnico. Os jogadores são os
mesmos. Mas se promoveu finalmente um desrecalque da história e
entrou o aggiornamento da dimensão tática – por meio de um técnico
conhecido, Tite, não por sua figura folclórica, mas por sua linguagem.
Foi-se o tempo também da linguagem de Nelson Rodrigues,
linguagem-mor da nossa época de ouro futebolística, linguagem do
puro prazer barthesiano, em que se nos oferece o espelho maravilhoso
de nossa autoimagem cultural, ela mesma também passada, como
aquela sociedade meio ociosa, irreverente, cordial, cheia de poesia
cotidiana, malícia e improviso.
Pois, se o jogo mudou, mudou também a linguagem que o propõe e
descreve. Essa transformação, no âmbito da linguagem, se deu nos
termos da substituição do paradigma Nelson Rodrigues pelo
paradigma Paulo Vinicius Coelho, o PVC, ou, se preferirem, o
paradigma Tostão – ambos pioneiros, no Brasil, da análise tática
rigorosa, do conhecimento extenso (e, no caso de PVC, ainda do
recurso constante a uma dimensão estatística que lhe conferia a hybris
típica dos precursores, com todo o estigma aí contido).
Tudo somado, eis um raro caso em que o Brasil parece ter
conseguido resolver um problema histórico. A conferir. 
coluna
Crítica da razão negra: marcação e
contramarcação
MARCIA TIBURI
Crítica da razão negra, de Achille Mbembe, publicado em 2013,
dificilmente será superada no século 21, seja por seu conteúdo, seja
por seu caráter ético-político. Divisor de águas na história do
pensamento, de agora em diante, toda a reflexão que se leve a sério
está colocada em uma posição inconciliável com a tradição da
opressão que se constituiu em nome da lógica da raça por ele
analisada. Negar o diálogo com os argumentos de Mbembe, de agora
em diante, implica a manutenção da mistificação branca que
sustentou o poder e o capital no lugar que conhecemos. Crítica da
razão negra puxa o fio de linha podre que sustentava a trama racista
na história europeia, da qual nós, brasileiros, bem como todos os
habitantes das Américas, somos herdeiros, ora como algozes, ora
como vítimas.
A história do racismo é a história do capitalismo, uma história de
submissão dos corpos, de uso e abuso dos seres nele capturados, por
meio de operações eminentemente teóricas e discursivas, com efeitos
perversos na prática.
Ao procedimento de definir alguém como um outro chamamos de
marcação. Ao definir esse outro como um negativo, a marcação é o
verdadeiro mal radical enquanto aniquilação da humanidade do outro.
Marcados são os sujeitos da diferença, tratados constantemente como
objetos, coisas, mercadorias. Assim é com aqueles que são marcados
como Negros, reféns da lógica perversa da raça, criada para a
manutenção de crenças e preconceitos que serve a uns em detrimento
de outros.
O MAL RADICAL É BRANCO
Essa lógica não é apenas racional, ela é também o princípio do mal
radical evidente naquilo que Mbembe chamou o “devir negro do
mundo”, efeito de um delírio próprio da modernidade europeia que
sempre abordou a identidade em termos de espelho, como que
inventando o “outro” para sustentar o reconhecimento apenas do
“mesmo”. Conseguia-se assim transformar outras pessoas em objetos,
coisas e mercadorias que poderiam ser utilizados como animais,
energia física para o trabalho. O delírio se comprova, na visão de
Mbembe, quando ninguém, nem aqueles que inventaram o Negro,
nem os que foram englobados por seu nome, desejaria ser um Negro
ou ser tratado como tal.
Hoje, aqueles que se autoafirmam a partir da raça, como Negros,
sabem que usam um nome que não deram a si mesmos. Muitos
tentam fazer o melhor uso possível, um uso político de uma
identidade, em princípio, alienada. Ressignificam um nome forjado
contra eles, um nome que foi criado com o objetivo de promover um
necessário empobrecimento ontológico para os fins do capitalismo
sustentado justamente na humilhação daqueles que são usados por
ele. O sujeito humilhado, reduzido ao “calabouço da aparência”,
sujeitado à “falsificação de si pelo outro” não confronta os donos do
poder do capital.
Pessoas e grupos marcados como Negros, assim como mulheres,
índios e outras minorias políticas, atuam hoje por meio de uma
“contramarcação” na intenção de confrontar o poder sustentado na
lógica de aviltamento da qual a lógica da raça é um dos elementos
mais importantes. Em nome desse dispositivo capitalista foram
perpetrados crimes, catástrofes e carnificinas: a escravatura, a
colonização e o apartheid são suas provas históricas.
A construção pragmática do Negro dependeu de uma armadilha
ontológica que apaga aqueles que a ela se submetem como sujeito de
direitos, como cidadãos iguais a todos os demais e os localiza como
um não ser ao qual, quando muito, é permitido viver sob o paradigma
da bondade e da condescendência que serviu historicamente para
reafirmar o delírio útil que deu ao mundo branco, preguiçoso e
perverso, a acumulação do capital.
Hoje, no fundo do poço social que é o efeito objetivo do
neoliberalismo para todos, é preciso confrontar essas construções sem
mais mascaramentos brancos, para além da hostilidade racial que
serve aos donos do poder. 
coluna
O último capítulo
VLADIMIR SAFATLE
Para muitos, o Brasil parece ter se transformado em uma incógnita
Um país que, depois de elevado pela imprensa mundial à condição de
potência emergente, virtual quinta economia do mundo, vê-se agora
como um território em desagregação acelerada. Um país
completamente à deriva. Para outros, ele simplesmente expressa
atualmente, de forma mais brutal, os impasses de um processo que
deve ser compreendido em sua dinâmica global. Reconstruir o sentido
desta dinâmica global é condição necessária para entendermos como
um país pode chegar a impasses tão espetaculares em um prazo tão
curto de tempo. Pois a história brasileira é, na verdade, o último
capítulo de outra história. Ela é o setor mais influente da história
latino-americana e esta, por sua vez, está vinculada nessas últimas
décadas à ascensão da esquerda ao poder.
De fato, a experiência da esquerda latino-americana no governo
nestes primeiros anos do século 21 foi o último capítulo da história da
esquerda mundial no século 20. O que podemos chamar de
“experiência latino-americana de governo de esquerda” presente nos
últimos vinte anos em países como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai,
Paraguai, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua, Peru, El Salvador,
Haiti e Honduras foi o término de uma longa história mundial
marcada pela tentativa de consolidar políticas redistributivas,
regulação dos agentes econômicos e fortalecimento de poder popular.
Que esta história tenha encontrado na América Latina um de seus
terrenos fundamentais, eis algo a ser creditado a uma conjunção de
dois fatores.
Primeiro, a América Latina teve um déficit contínuo de integração
popular aos processos de decisão política até a década de 1990. Pois
esta integração se deu normalmente de forma frágil, pelas vias do
populismo, e de forma intermitente, sendo rompida várias vezes pela
ascensão de ditaduras militares, em especial no período de meados
dos anos 1960 até o final dos anos 1980. A América Latina foi capaz
de preservar uma concentração de poder no interior de grupos de
elites cujas raízes, muitas vezes, são encontradas ainda nos períodos
coloniais. Tais grupos souberam se associar localmente a “formadores
de opinião” (como artistas e intelectuais), construir articulações
cerradas entre estado-empresariado-imprensa, garantindo assim sua
perenidade.
Segundo, enquanto a luta pela integração popular aos processos de
decisão política em continentes com a Ásia e a África foi feita no
interior de lutas coloniais, a América Latina tinha passado pela
descolonização já no século 19. Isto permitiu às lutas populares não
serem imediatamente inscritas como lutas eminentemente nacionais
ganhando assim, de forma mais clara, a configuração de lutas sociais
nas quais questões transnacionais declasse e desigualdade podiam
aparecer na linha de frente.
Lembremos então como a experiência latino-americana conheceu,
nestas últimas décadas, dois eixos principais. No primeiro,
encontramos um modelo de polarização social normalmente marcado
por reformas estruturais nas instituições do poder e por processos de
incorporação popular populista. Encontramos aqui países como
Venezuela, Equador, Bolívia e Nicarágua. Este modelo,
autodenominado “bolivariano”, vendeu-se como “o socialismo do
século 21”, mas foi em larga medida dependente de dinâmicas de
constituição de corpos políticos que remetem ao populismo do século
20, com o consequente investimento libidinal massivo em figuras
personalizadas do poder, como no caso da Venezuela. Essas
dinâmicas identificatórias foram sua força momentânea e sua
fraqueza final, pois os processos de identificação personalizada se
esgotam no tempo, não podem ser transferidos a outros ocupantes do
poder, fazendo da política a gestão contínua do vazio. O caso mais
complexo deste grupo, por ser o mais bem-sucedido, é a Bolívia, com
sua organização institucional inovadora, seu crescimento econômico
ininterrupto e seu conceito de “estado plurinacional”.
No segundo eixo, encontramos um modelo de gestão social
marcado, ao contrário, pela conservação de estruturas institucionais
próprias à democracia liberal e por processos de incorporação popular
também caracterizado como populista. Este é modelo próprio,
principalmente, ao Brasil e à Argentina, mas em menor grau ao
Uruguai, Chile, Peru, El Salvador e, por algum tempo, ao Paraguai.
Tal modelo representou uma experiência retardatária que procurou
realizar políticas locais de redistribuição respeitando o espaço político
próprio à democracia liberal, acreditando que poderia, de certa forma,
repetir determinadas estratégias de gestão da social-democracia
europeia do pós-guerra. À exceção do Uruguai, que soube mobilizar
pautas de reconhecimento e liberalização de costumes para consolidar
adesão popular, e do Paraguai, que sofreu um golpe de Estado
parlamentar já em 2012, este modelo entrou em colapso mais ou
menos ao mesmo tempo em todos os países. Resultado de políticas
pós-ditadura, ele foi uma paradoxal e única articulação entre
horizonte de social-democracia e populismo. O que não deveria
impressionar ninguém, pois pensar a América Latina exige saber
operar com paradoxos, com contradições sem superações.
Seria bom começar nossa análise assim. O Brasil tem uma
tendência particular a se ver como a maior ilha do mundo, procurando
desenvolver análises de seus processos político-sociais como se sua
estrutura causal fosse completamente endógena. No entanto, melhor
seria se procurássemos perceber como se dá nosso modo de
integração a movimentos globais, não apenas para denunciar como
em certos momentos acabamos por mimetizar processos em atraso,
mas principalmente por expor as dinâmicas de esgotamento do que
outros apenas começam a sentir. Nesse sentido, o fracasso da
experiência latino-americana, em especial em seu setor mais
avançado, a saber, este capitaneado pelo Brasil, não é apenas algo que
diga respeito a uma região periférica do capitalismo mundial. Ele foi
a realização paulatina de que o tempo da democracia liberal e de seus
acordos já não existia mais. Nós havíamos chegado tarde demais. Por
isso, a experiência latino-americana expôs, de forma mais explícita, o
que o resto do mundo começará a descobrir de forma dramática.
NÃO HÁ LÁGRIMAS PELO FIM DA DEMOCRACIA LIBERAL
Neste contexto, lembremos como a democracia liberal, tal qual a
conhecemos, é uma invenção recente que se consolidou a partir do
final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de
acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos vitoriosos ao
final da guerra. Sua base de sobrevivência foi a capacidade de
orientar a política em direção a uma espécie de “luta pela conquista
do centro”. Assim, por exemplo, os partidos de esquerda
paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional
para acabar por serem gestores do dito Estado de Bem-estar Social.
Mesmo os partidos comunistas europeus, fortes até o final dos anos
1970, com votações que podiam chegar a 30% (como no caso do
Partido Comunista Italiano), operaram no interior dessa lógica de
respeito ao horizonte institucional liberal, retirando de circulação toda
luta por mutações institucionais profundas, operando no esquadro de
uma “coexistência pacífica”, isto até o momento em que perderam de
vez sua força e relevância. Da mesma forma, os partidos de direita
foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo
social a ser respeitado, mesmo agindo com vista à liberalização da
economia e a desregulamentação gradativa das defesas trabalhistas
contra a espoliação. Há de se lembrar que a constituição do Estado do
Bem-estar Social foi, de certa forma, uma criação conjunta entre
esquerda e direita. Não é possível contar a história da formação do
Estado-providência alemão, por exemplo, sem passar pelas políticas
implantadas pelos democratas-cristãos, nem contar a história do seu
símile francês sem passar pelo gaullismo.
Exatamente por ser uma formação de compromisso, a democracia
liberal e seus gestores do Estado do Bem-estar Social estava fadada a
durar pouco. Não porque ela produziria letargia econômica e baixa
competividade, mas porque o patronato, intocado em suas posses,
utilizaria a primeira oportunidade para aumentar rendimentos
reduzindo os elementos do custo salarial e criando condições para
uma verdadeira reedição dos processos de acumulação primitiva. Ela
veio em meados dos anos 1970 através de uma conjunção improvável
entre crise econômica e crítica cultural. Uma crise provocada não
pelo custo da previdência social, mas pelo conflito Israel-mundo
árabe, ou seja, pelas consequências das ambivalências das políticas
coloniais no Oriente Médio. A crise do petróleo de 1973, que
representará a primeira crise global do pós-guerra, quebrou o ciclo
mais constante de crescimento no século 20, produzindo uma
insegurança econômica profunda a ser aproveitada por novos
discursos de reforma social.
Por sua vez, alguns podem achar estranho o papel da crítica cultural
neste processo de esgotamento da democracia liberal, mas ele é real.
Para tanto, foi necessário uma inversão peculiar, destas que o
capitalismo mostrou-se hábil em operar. Maio de 68 produziu no
Ocidente a ascensão da crítica à estrutura disciplinar do Estado e das
instituições, a recusa da rigidez da sociedade do trabalho e a
consciência do caráter extensivo do controle social próprio às figuras
do Estado-providência. Ele esperava com isso permitir a emergência
de um sujeito político com força de transformação global em direção
a modelos capazes de recusar tanto o sistema burocrático soviético
como a democracia liberal. Esses sujeitos emergiram, mas com
menos força do que imaginavam. Junto a eles emergiram também
tanto sujeitos claramente reativos, dispostos a lutar pela preservação
da ordem e de suas tradições, quanto simulacros de revolta. Este é o
ponto mais importante: analisar tais simulacros de revolta que,
mesmo sem expor isto de forma clara, usavam a potência da sedição
para empurrar o mundo para fora da democracia liberal. No entanto,
não para além dela, mas para aquém.
Nesse sentido, lembremos como o primeiro tremor no pacto que
sustentou a democracia liberal se deu com a leva neoliberal de
Margareth Thatcher e Ronald Reagan, ao final dos anos 1970. Nos
EUA, o pacto criado pelo New Deal, de Franklin Roosevelt, e em
larga medida conservado por décadas foi desmontado por uma
política de retração do Estado, de desregulação progressiva da
economia e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi
feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os
sindicatos e as categorias profissionais. Há de se lembrar como, cinco
anos depois de assumir o governo do Reino Unido, Thatcher
produzira simplesmente o declínio da produção industrial, o fim de
fato do salário mínimo, dois anos de recessãoe o pior índice de
desemprego da história britânica desde o fim da Segunda Guerra
(11,9% em abril de 1984).
Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver como
vencedores de um embate no qual teriam demonstrado ao mundo que
o capitalismo neoliberal era a melhor forma, mesmo a única, de
produzir riqueza, inovação e bem-estar. As experiências de esquerda
teriam falhado por criarem apenas uma sociedade letárgica, presa na
sustentação de um Estado ineficiente e pesado. Ou seja, tais
experiências teriam sido ultrapassadas pela lei inexorável da
eficiência econômica, lei que desconhece ideologias, que conheceria
apenas “resultados”.
No entanto, os “resultados” mostram outra coisa. Eles mostram, por
exemplo, como o nível de pobreza nos EUA cai progressivamente até
meados da década de 1970, voltando a subir exatamente com a
ascensão das políticas neoliberais, nunca tendo então caído de forma
sustentada. Em 2015, ele atingia 13,5% da população (dados do US
Census Bureau, Current Population Survey), mais do que em 2007.
Os índices de desigualdade aumentaram exponencialmente nos
últimos trinta anos.
Mas o fato fundamental só agora fica visível: a ascensão do
neoliberalismo como política de Estado representou a destruição
contínua da democracia liberal e seus pactos. Restringindo
paulatinamente o horizonte de políticas públicas, impondo a versão
de que, no que diz respeito à economia, “não há escolha” mesmo
diante do caráter suicida do sistema financeiro internacional, explícito
desde a crise dos subprimes, o neoliberalismo conseguiu esvaziar a
política e suas instituições. Seu mundo é a reedição de um mundo
pré-político, no qual as relações sociais se resumem à gestão da
segurança e às garantias da perpetuação dos modos atuais de
circulação de riqueza. Aos poucos, ficou evidente como a política
mundial, depois de esvaziada da possibilidade de decidir
modificações efetivas na esfera da economia, tornara-se uma mera
pantomima, composta de personagens exímios em demonstrar sua
impotência.
É neste horizonte de capitulação que a experiência brasileira se
insere. Isto ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de
alternativas a um modelo econômico falimentar. O Brasil podia
vender ter ultrapassado o primeiro impacto da crise operando
políticas proto-keynesianas e de consolidação de capitalismo de
Estado. Mas o caminho posterior será outro. Paulatinamente, seu
destino foi o mesmo de todos os atores políticos mundiais forçados a
aplicar a mesma política de “austeridade”, com suas contenções de
investimentos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição
de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a
dogma inquestionável. Este processo que agora mostra sua face mais
completa começa de maneira evidente no último governo Dilma. 
entrevista Sueli Carneiro
Sobrevivente, testemunha, porta-voz
BIANCA SANTANA
“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para
subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas,
e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém
jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de
lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma
mulher?”
Este é um excerto do famoso discurso Ain’t I a woman?, proferido
em 1851 por Sojourner Truth, mulher negra norte-americana que
nasceu sob o jugo da escravidão e se dedicou, depois de conquistar a
liberdade, à luta abolicionista e pelos direitos das mulheres.
“Sojourner Truth traduz com seu discurso as contradições e
especificidades que marcam a experiência histórica de opressão e
discriminação das mulheres negras no contexto das relações de
gênero. Gostaria que você ilustrasse com aquele discurso a minha
fala”, pediu Sueli Carneiro durante a entrevista concedida em uma
das salas do Geledés Instituto da Mulher Negra, organização fundada
por ela em 1988.
Doutora em Educação pela Univer-sidade de São Paulo, Sueli
estudou filosofia na graduação na mesma universidade. Impossível
falar de militância feminista e antirracista no Brasil sem fazer
referência, e prestar reverência, a Sueli. Quando procurada pela
Revista CULT ela gentilmente agradeceu o convite, mas disse que
preferia não dar entrevistas. “Tudo o que formulei já está escrito. Não
sei se minha geração tem muito a contribuir ainda neste momento.
Tenho me perguntado: o que não vimos? O que deixamos de fazer
para que a situação chegasse a esse ponto?” A aceitação do convite
veio depois do apelo para a importância simbólica de ter uma
pensadora negra brasileira na capa de uma revista de circulação
nacional. “Diria que ocuparmos esses espaços é revolucionário.
Poderia ser qualquer uma de nós. O faço, então, pelas mulheres
negras.”
O que está acontecendo no Brasil?
A bem da verdade, é um filme de terror. Por mais que a gente saiba e
tenha lido em várias pensadoras e pensadores que a liberdade exige
uma vigilância persistente, que a conquista de direitos é uma luta
permanente, que retrocessos são possíveis, não estava no horizonte
utópico de ninguém, a não ser como pesadelo, a possibilidade de
conquistas estarem em risco e algumas já perdidas efetivamente em
um espaço tão curto de tempo. Embora tudo isso, digamos, estivesse
intelectualmente assentado em nós, depois de tanta luta, depois de
vencer uma ditadura militar, de conquistar uma perspectiva de
esquerda em termos de proposta de governo, sustentada por um
conjunto de compromissos que eram expressão de uma luta
emancipatória de uma população historicamente silenciada ou
oprimida, marginalizada socialmente; quando pela primeira vez na
história desse país a gente pode perceber que haveria a possibilidade
de estabelecer uma agenda inclusiva, emancipatória, reparatória na
nossa construção violenta, com a escravização de povos africanos, de
extermínio de populações indígenas, tudo entra em colapso em breve
espaço de tempo.
Mesmo neste cenário, há pautas que eram tratadas
exclusivamente pelo movimento negro e que ganharam espaço.
Não sei se é uma percepção muito otimista, mas a violência do
Estado, o genocídio da população negra são questões mais
presentes nos movimentos sociais em geral e na esquerda
brasileira?
Em princípio preciso registrar que essa tem sido, na maior parte do
tempo, uma luta solitária dos movimentos negros, dos movimentos de
mulheres negras. Também é verdade que nos últimos anos nós temos
conseguido (sobretudo, graças à internet) que uma multiplicidade de
vozes passem a se expressar, alcancem alguma ressonância e
visibilidade na esfera pública. Isso impacta inclusive formadores de
opinião hegemônicos, sejam à esquerda ou à direita. Eu entendo que
os obriga a dar algum tipo de resposta a essa demanda, tendo em vista
também que ninguém vai voltar para dentro do armário. O pessoal da
orientação sexual não vai retroceder em suas lutas, as mulheres não
vão recuar nas suas agendas; nós não vamos voltar para a senzala. E
isso está colocado. Vai ter luta! Eu compreendo que mesmo no
campo da esquerda esteja havendo uma apropriação maior das
agendas históricas dos movimentos negros.
Não foi sempre assim...
Veja, é também necessário dizer que a contradição racial esteve aí o
tempo todo, desde sempre, e ela não foi vista. Essa é uma reflexão
que se exige também. Há uma dívida também teórica, conceitual, que
a esquerda tem conosco. Hoje está sendo possível confundir
completamente o que seja a luta de classes, com todo um espectro
social interessado em nublá-la completamente, inclusive com
substituições de conceitos, negando a contradição patrão-empregado,
a contradição clássica do capitalismo. Mas o conflito racial não dá
para nublar. Ele permanece aqui hoje, estruturando a sociedade
brasileira, organizando a própria estrutura de classes sociais. Porque
no topo da pirâmide temos uma hegemonia absolutamente branca e
nas bases uma maioria absolutamente negra. Então, raça estrutura
classe no Brasil. Este problema está aí desde a abolição. Há um
déficit de percepção das contradições da sociedade brasileira desde
sempre. Porque foipossível construir o pensamento social brasileiro,
seja à direita, com o mito da democracia racial, seja à esquerda, via
luta de classes, que em comum obscureceu o valor da raça na
estruturação das mazelas sociais, das desigualdades, das contradições
desse país. A polifonia que o movimento social negro construiu no
entorno desse tema impactou. Começa a ecoar para o conjunto da
sociedade. A ponto de a gente perceber uma proliferação do debate
racial pelos veículos hegemônicos e pelos alternativos a eles. E todos
ainda sem muita clareza, sobretudo no nosso campo, de como lidar
com a preeminência que a racialidade tem na constituição dos
problemas de toda natureza, sobretudo nas violações de direitos
humanos. É impossível, por exemplo, pensar o padrão de violação de
direitos humanos no Brasil, com a crueldade e o descaso com que se
realiza, sem compreender qual a população exposta a isso. Porque
seria impossível ter esse mesmo comportamento com uma população
branca.
Isso se manifesta, de alguma maneira, em como o Fernando
Holiday tem sido tratado?
Acho que devemos evitar entrar no jogo que o racismo nos propõe ao
se utilizar de alguns de nós segundo os seus interesses e fins. Dos
racistas só podemos esperar isso. Eu me preocupo mais com os erros
que nós cometemos no nosso campo de aliança. Porque eu espero
tudo de pior do racista. Esse campo se instituiu de uma forma
fascista, em algumas de suas manifestações, e sempre deixou muito
claro qual o nosso destino social: extinção ou subalternidade. E cada
um de nós seria utilizado contra o outro. Isso sempre foi feito. Se a
mobilidade social individual de um negro não pode ser evitada, ela é
utilizada para questionar a competência dos demais. A abolição foi
isso. Vocês estão livres para apodrecer e morrer nas sarjetas desse
país. Os que heroicamente superam ou escapam das barreiras
interpostas pelo racismo sempre podem ser usados para atestar a
incompetência dos demais: está vendo como a maioria não serve?
Agora, o que nós temos que questionar: como podemos construir, no
nosso campo, que consideramos libertário, progressista, uma
estratégia política em que caibamos, de fato, todos, com respeito,
reconhecimento e solidariedade?
Você vê lideranças hoje no movimento negro que levem essa
construção adiante, a partir do legado que você e sua geração
construíram desde os anos 1970/80?
Estamos entrando em uma fase que ainda não conhecemos. Há uma
nova etapa dessa sociedade. Eu tenho a impressão de que o processo a
que a gente está assistindo está apenas no seu início. Ele não alcançou
o seu limite. Nós temos um cenário político assustador, em que todo
tipo de conservadorismo, reacionarismo, um conjunto de ideologias
discricionárias, violentas prosperam impunemente na sociedade.
Então é um cenário novo, de absoluta radicalização. O que eu quero
dizer com isso? Vou fazer um hiato mesmo. A minha geração passou
umas quatro décadas lutando para desmistificar a democracia racial.
O cenário hoje é completamente diferente. As ações realizadas pelos
movimentos negros nessas últimas quatro décadas tanto buscaram
desmistificar a decantada democracia racial brasileira como também
formular propostas de correção das desigualdades promovidas pelo
racismo, pela discriminação de base racial, como as políticas de ação
afirmativa. Essas propostas também organizaram a hegemonia
branca. Ela teve que assumir seu racismo, sair em defesa de seus
privilégios. A luta pelas cotas, o debate pelas cotas é um paradigma.
As políticas de cotas raciais para negros na universidade tiraram os
brancos da zona de conforto, e o racismo se manifestou com toda a
sua virulência. O poder da branquitude se revelou quando ameaçado
de perder os seus 100% de direito, que eles mesmos se outorgaram de
cotas nas universidades. Saíram a campo em uma articulação
inusitada, nunca vista, de diferentes forças políticas, que nos
expuseram a um verdadeiro pelourinho eletrônico contra as cotas.
Essa é uma luta que permanece. O risco ronda as políticas de cotas, o
risco de retrocesso está evidente e isso vai exigir muita luta e
organização política.
E o que você diz a essas jovens lideranças?
O que eu tenho dito aos jovens ativistas que estão chegando, e
felizmente são muitos, é que talvez eles tenham que enfrentar a
dimensão mais cruel dessa luta. Porque as relações raciais já não
estão mais protegidas pela etiqueta que as governou sob o paradigma
do mito da democracia racial. O agravamento desse cenário na
direção de um racismo cada dia mais explícito e violento, que está aí
se anunciando no horizonte das novas gerações, vai exigir novas
propostas de organizações políticas para o seu enfrentamento, em um
cenário adverso de perda de credibilidade das formas mais
tradicionais de organização política. É um cenário extremamente
preocupante, e o emblema maior desse acirramento são os índices de
assassinato de jovens negros no Brasil. A boa notícia é que nenhum
movimento social se renova tanto quanto o movimento negro. E a
segunda boa notícia: nunca tivemos um ativismo tão vibrante e tão
capaz de vocalização como neste momento, sobretudo das mulheres
negras. Esse conjunto diverso de gente negra em movimento é algo
novo que me faz ter esperança na resistência. Essa multiplicidade de
agentes, vozes e iniciativas vai ser capaz de engendrar um campo
organizado de ação política e resistência que haverá de conter essa
ação genocida do Estado, em cumplicidade com grande parte da
sociedade brasileira, contra nós.
Quem são essas jovens negras? Pode nomear algumas?
São muitas! Outro dia eu estava fazendo um exercício, porque estou
tão animada, tão feliz com essa multiplicidade de vozes, de pessoas, é
uma coisa tão preciosa para nós. Porque até há uma década, nós as
velhas feministas, nos reuníamos e falávamos: gente, mas cadê as
jovens? Onde elas estão? Eu até escrevi um texto em que ofereço o
nosso bastão e naquele momento não sabia para quem. Olhava pra
trás e via a mesma velha companheira. Hoje as jovens pegaram o
bastão e estão aí, no mundo. É uma coisa muito emocionante. Estou
muito grata às deusas e aos deuses por poder estar assistindo a esse
florescimento. Sobretudo da presença das mulheres negras na
sociedade brasileira. Quem são essas meninas? Você, por exemplo,
na CULT. A Djamila Ribeiro, Stephanie Ribeiro, Joice Berth, Ana
Paula Lisboa, Luana Tolentino, Natália Neris, Monique Evelle, Taís
Araújo, Diane Lima, Maju Coutinho, Sil Bahia. Vai vendo… Luz
Ribeiro, Preta Rara, Karol Conka. É uma festa! Viviane Ferreira,
cineasta do Dia de Jerusa, Renata Martins, Tia Má. É um festival!
Natália Sena, do nosso Portal, Larissa Santiago e as Blogueiras
Negras, Erika Malunguinho do Aparelha Luzia. Estou pegando as
meninas. Jarid Arraes, quero saber onde está Jarid, amo de paixão.
Yasmin Thayná, as meninas da mídia, Adriana Couto. Eu vou
esquecer muitas! É um luxo! É uma festa! É lindo! A cena ficou
muito bonita, colorida. E a contribuição que a nossa experiência de
opressão e também de resistência aporta, a contribuição que temos
para dar e enriquecer essa sociedade é extraordinária.
Você pode falar mais sobre essa contribuição?
Nós somos sobreviventes e somos testemunhas, porta-vozes dos que
foram mortos e silenciados. Nós estamos aqui. A elite intelectual
deste país, no começo do século 20, só tinha uma preocupação:
quanto tempo levaria para esta mancha negra ser extinta. Uns diziam
que até 2015 essa mancha negra estaria extirpada. Nós somos
sobreviventes. Vivemos e viveremos. Nós não só sobrevivemos como
agora estamos em ação. Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do
movimento feminista nesse país; nós, povo negro, somos a vanguarda
das lutas sociais deste país porque somos os que sempre ficaram para
trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e
efetivo de integração social. Doravante, nada mais será possível sem
nós. Eu acho que é isso que essas meninas negras estão expressando
com muita força.
Você se define como feminista negra. Há quem se considere
feminista interseccional, outras preferemo termo mulherismo.
Esse debate faz sentido para você?
Eu recebo isso tudo como a polifonia maravilhosa que está aí. Eu sou
uma feminista negra porque sou antiga, tenho quase 70 anos. Quando
as meninas me chamam para falar sobre feminismo interseccional, eu
respondo: chamem a Djamila Ribeiro porque ela que é feminista
interseccional. Eu nunca usei esse conceito porque eu sou muito
anterior à emergência dele, embora os sentidos que ele carrega
estejam presentes nos meus textos e de outras mulheres negras da
minha geração. Quando a Crenshaw chegou com esse debate da
interseccionalidade, eu já estava com essa concepção consolidada de
feminismo negro. Mas essa nova geração está agregando novos
conceitos. Eu sou filhote da Lélia Gonzalez. Eu sou uma feminista
negra antirracista que em determinado momento, na estruturação do
instrumento político de luta que eu, com outras mulheres negras,
concebi, o Geledés, pensava o que era ser mulher negra no contexto
do feminismo branco hegemônico da época. E naquele momento eu
entendia que nós tínhamos que construir uma concepção de
feminismo extraída da nossa própria experiência, das nossas próprias
tradições. O nome Geledés, por exemplo, vem dessa necessidade de
demarcar a identidade de um feminismo de mulheres negras, que se
sustenta na sua experiência histórica e nas suas tradições. Geledés foi
escolhido exatamente porque são organizações de mulheres negras de
cunho religioso das sociedades tradicionais iorubá, hoje considerados
patrimônio da humanidade. É uma forma de culto ao poder feminino.
E eu sempre disse que, inspirada nas nossas matrizes religiosas, nós
somos filhas de deusas que permanecem vivas no imaginário popular.
Essa é uma matriz, além de religiosa, de pensamento e ação no
mundo...
Eu escrevi um artigo, “O poder feminino no culto aos orixás”, em que
eu digo que não somos costela de ninguém, nós temos domínio,
poder, e é com essa noção que a gente pensa Geledés. A gente chega
ao feminismo buscando dar essa cara, ao reler todo o ideário
feminista à luz da contradição de ser mulher negra. Por isso também
escrevi um texto chamado “Enegrecer o feminismo”, em que a ideia é
trazer para o feminismo todas as contradições que a racialidade
coloca dentro do feminismo branco da época. Em qualquer dimensão
da luta das mulheres, ser mulher negra coloca outras contradições,
outras necessidades e outras demandas que o feminismo teria que
incorporar se quisesse representar as necessidades e os interesses do
conjunto das mulheres brasileiras. E tendo em vista que as mulheres
negras são maioria entre as mulheres brasileiras, então um feminismo
nativo, um feminismo brasileiro, tem que ter, necessariamente, por
perspectiva, a agenda das mulheres negras. Por isso, hoje eu entendo
que enegrecer o feminismo foi uma tarefa realizada, pois a ação
política feminista hoje está profundamente marcada pelas demandas
colocadas pelas mulheres negras. Penso que o desafio das mulheres
negras agora é, enquanto vanguarda e liderança desse movimento,
explicitar e propor o projeto político emancipatório que podemos
oferecer para todas as mulheres do Brasil. Creio que esse projeto deve
se sustentar na proposição de um novo pacto racial e de um novo
contrato sexual, que desaloje as hierarquias de gênero e raça
instituídas, em prol da realização da equidade e igualdade de homens
e mulheres e negros e brancos.
Muitas pessoas apontam que uma vida mais comunitária se
coloca como alternativa importante ao capitalismo. Pelo que li no
livro da Rosane Borges sobre você, sua infância foi bastante
comunitária. Além de diversos irmãos, seus pais sempre acolhiam
familiares que vinham de Minas a São Paulo, por exemplo. Para
as mulheres negras, o compartilhamento e as redes solidárias
sempre foram uma realidade. Não só somos sobreviventes, como
conhecemos a vida em comunidade, que pode ser um caminho de
futuro.
Não é à toa que o lema da Marcha das Mulheres Negras era o Bem
Viver. Foi pautado pela Nilma Bentes, uma companheira negra de
Belém do Pará muito criativa e ousada politicamente. Ela trouxe essa
noção do Bem Viver para a Marcha, uma construção de povos
indígenas da América Latina que vem sendo apropriado e recriado
por diferentes segmentos sociais de nossa região. A nossa experiência
comunitária é produto tanto de valores culturais como da indigência
social a que fomos lançados. Tem um livro poderoso, lindíssimo, da
antropóloga Ruth Landes, do começo do século 20, chamado A
cidade das mulheres, um clássico esquecido, em que ela trabalha com
a experiência das mães e das mulheres de santo de Salvador. Ela
coloca que as mulheres negras eram um fator de modernização da
sociedade soteropolitana da época, na medida em que estavam nas
ruas lutando pela sobrevivência. Em um momento em que as
mulheres brancas estavam confinadas no espaço doméstico.
As mulheres negras sempre estiveram no espaço público...
Nós, por contingências muito objetivas da nossa condição de
escravizadas ou ex-escravizadas, estávamos nas ruas. Mas as ruas, ou
melhor, os mercados sempre foram espaços tradicionais das mulheres
nas sociedades africanas, então é possível supor que reminiscências
dessa tradição estiveram presentes nas estratégias de resistência e
sobrevivência desenvolvidas pelas mulheres negras aqui. Agora, sem
dúvida, isso configurou um matriarcado da miséria. Mulheres,
geralmente sozinhas, segurando famílias extensas com recursos
parcos. Uma realidade que ainda está aí, exigindo a constituição de
redes de solidariedade para a sobrevivência, muitas vezes inspiradas
nas tradições culturais que pudemos manter, recriar ou constituir aqui,
em terras outras. Mas isso tudo perpetua um imaginário que faz com
que as mulheres negras sejam muito penalizadas por essa coisa de
mulheres fortes, que tudo aguentam, que tudo suportam. Acho que a
expressão disso é o discurso da Sojourner “E eu não sou uma
mulher?”. Aquele discurso revela também o lado perverso disso.
Somos mulheres que lutam, mulheres guerreiras, mulheres que nos
trouxeram até aqui, mas a um custo incomensurável. Há tanto a
coragem e força com que fomos revestidas, mas também a opressão
que existe nisso. Eu costumo falar para as jovens negras, quando
tenho a oportunidade: nós temos que lutar pelo direito à fragilidade.
Está na hora de as mulheres negras reivindicarem isso. Eu falo para a
minha filha: esse negócio de mulher negra pronta para a guerra, que
aguenta tudo, acaba aqui (gesticula, batendo no peito). Aqui. Chega.
Estamos trabalhando para que vocês reivindiquem outro tipo de coisa,
de terem inclusive o direito à fragilidade e ao cuidado.
Sua filha Luanda, vive na Noruega. Ao ler sobre ela no livro da
Rosane Borges, pensei muito na filha de Alice Walker, Rebecca
Walker, que tem um livro chamado Black, White and Jewish.
Idem (risos). O pai da Luanda é branco e judeu. Temos muitas boas
histórias. Uma delas sempre uso para contar como se produz o branco
aqui, a guerra que você precisa travar para assegurar a negritude da
sua criança. Eu até já escrevi sobre isso em um artigo chamado
“Negros de pele clara”. O biotipo dele é ariano, um judeu egípcio,
apátrida. Luanda nasce e ele vai registrar com a minha irmã, Solimar,
como testemunha. O pai foi conferir a certidão porque já esperava, no
campo da cor do registro, que estaria escrito branca. Ele mostrou para
o escrivão que respondeu: “tudo bem, né?” Ele respondeu: “Não. A
mãe da minha filha é negra, como a irmã dela que está aqui como
testemunha”. O cara refez o registro: parda. Aí o pai: “minha filha
não é branca e muito menos parda, porque parda eu nem sei o que é”.
O escrivão pergunta: “mas o que o senhor quer que coloque?”
Quando ele responde “a minha filha é negra!”, o cara solta a pérola:
“mas ela não puxou nem um pouquinho o senhor?” Ou seja: se
tivesse “puxado” um pouquinho ela já teria virado branca (risos).
Esse seu texto é importantíssimo para pessoas negras de pele
clara (risos). Agradeço muito por tê-lo escrito.
Foi em homenagem a tantos ativistas negros de pele clara; em
especial, a umcasal que eu amo muito, que é o Edson Cardoso e a
Regina Adami. Eles têm assim a sua cor, são tinta fraca (risos). E são
dos ativistas mais comprometidos que eu conheço pela questão racial,
gente que dedicou a vida a essa luta. É muito desrespeitoso questionar
a negritude dessas pessoas. É muito desrespeitoso querer
desqualificar a identidade dessas pessoas. E é também pela minha
filha, em sua legítima defesa (risos). 
dossiê Variações sobre a luta de classes
Apresentação
JOÃO ALEXANDRE PESCHANSKI
No fim dos anos 1970, circulou pela América do Norte e Europa um
cartaz em que se lia, em tradução livre do inglês: “A consciência de
classe é saber de que lado da barreira você está (veja página ao lado).
A análise de classe é descobrir quem está lá com você”. A ilustração
nesse material, produzido pelo coletivo feminista anticapitalista Press
Gang, era a de uma mulher negra, cotovelo apoiado sobre uma
barreira de madeira rústica, no centro da cena, mão na boca,
pensativa. De certo modo, a mensagem desse cartaz ressoava a
clássica máxima da interdependência entre teoria e prática
revolucionária. Ressoa também no Brasil de hoje urgentemente a
tarefa intelectual do cartaz; a ofensiva conservadora que se abateu
sobre as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros nos encontra com
uma análise de classe desorganizada.
Os processos de desorganização da análise de classe são variados,
da desmobilização de instrumentos partidários socialistas e
comunistas a uma crescente marginalização e até perseguição à
tradição marxista na universidade. Dois discursos são especialmente
marcantes nesse contexto, o de que as classes sociais são uma
abstração irrelevante e o de que em detrimento de uma teoria marcada
pelo antagonismo entre interesses materiais deve-se priorizar uma de
concertação.
Afirmar que classes sociais são uma abstração irrelevante ou, em
outros termos, um mero construto acadêmico é sugerir que a partir
delas não se identificam mecanismos reais que afetam a vida das
pessoas. A tradição marxista considera que as relações sociais em um
sistema produtivo definem mecanismos que têm impacto real na vida
dos indivíduos, especialmente a exploração e a dominação.
Dominação diz respeito à capacidade de controlar as atividades de
outras pessoas; exploração remete a uma relação econômica, em que,
entre outros elementos, o bem-estar material de um grupo depende da
privação material de outro grupo e, no contexto da exclusão dos
recursos necessários à sobrevivência, o grupo em situação de
privação material “oferece” sua força de trabalho para os detentores
dos meios socialmente necessários para a produção econômica.
Afirmar que as classes sociais não são reais é, portanto, o mesmo que
dizer que mecanismos como a exploração e a dominação, que as
definem pelo menos na tradição marxista, são abstrações irrelevantes;
isso é no mínimo ingênuo.
As classes sociais têm impacto tanto em condições macrossociais
quanto microssociais. O nível mais geral é o que, na tradição
marxista, se chama estrutura de classe, a localização de agentes
sociais em relação aos meios de produção de um sistema econômico.
Nesse nível, o que se busca entender é como se dá a distribuição dos
recursos produtivos em uma sociedade e como a estrutura econômica
influencia o comportamento de instituições e grupos sociais. Nas
microfundações da análise, busca-se entender a influência das classes
sociais nas ações de indivíduos: a associação entre os interesses
individuais e os esperados a partir das condições materiais nas
relações de produção; a compreensão subjetiva dos interesses de
classe; a formação de organizações para manifestar a solidariedade
dos interesses de classe; e as práticas políticas para realizar os
interesses de classe, em especial as estratégias a adotar em situações
de conflito de interesses. Estrutura, consciência, formação,
solidariedade e luta de classe são objetos da análise de classe.
O principal desafio da análise de classe não é justificar a relevância
real de seus objetos de estudo, mas desenvolver uma formulação
suficientemente geral para dar conta de manifestações complexas de
relações de classe e estratégias de ação coletiva baseadas em
interesses materiais. Esse desafio está associado a um processo de
abandono da tese da primazia explicativa das classes sociais: por mais
que exploração e dominação sejam mecanismos relevantes, não são
os únicos mecanismos relevantes e possivelmente não são os mais
importantes para entender a vida social. O abandono da tese da
primazia das classes vai na contramão da tradição marxista clássica,
para a qual a tendência histórica dos fenômenos sociais é no abstrato
explicada pela trajetória das lutas de classes.
Correntes da esquerda abdicaram muitas vezes, incluindo na
experiência brasileira recente, de elaborar uma formulação realista da
economia política e da análise de classes, para apaziguar e equilibrar
circunstancialmente os antagonismos inerentes às relações de
produção. Essa estratégia de concertação, mantida a partir de uma
“hegemonia precária”– na consagrada expressão do sociólogo Ruy
Braga –, em que todos os interesses são de alguma maneira
contemplados, tem vida curta e, principalmente, não deixa legado
teórico para a elaboração das dinâmicas sociais brasileiras. O desafio
intelectual de elaborar e articular a análise de classes no Brasil está
colocado e, no contexto de um Estado tomado por agentes da
austeridade fiscal e do arrocho, assume urgência.
Este dossiê, intitulado “Variações sobre a luta de classes”, pretende
justamente contribuir com elementos para a formulação da análise de
classes premente no Brasil. Assim, investigam-se desenvolvimentos
sobre as relações sociais no modo de produção capitalista brasileiro a
partir de quatro fenômenos sociais concretos: aborto, cidade, processo
de trabalho e justiça.
As modalidades de reprodução da força de trabalho implicam
necessariamente uma discussão sobre os direitos reprodutivos e mais
fundamentalmente sobre as relações entre classes sociais e gênero. A
cientista política Flávia Biroli, da Universidade de Brasília, identifica
na violência contra as mulheres, em especial na forma política das
limitações ao direito ao aborto, a interação da dominação masculina e
capitalista.
A formação das classes deve levar em conta os espaços dessa
formação. Isso aparece no próprio Marx, para quem a concentração
dos trabalhadores em fábricas cada vez maiores viria a ser o estopim
para a consciência das condições materiais comuns dos trabalhadores
– o que, como se sabe, não se concretizou. As políticas urbanas atuam
fundamentalmente na produção formativa das classes hoje e, sobre
isso, escreve no dossiê o urbanista João Sette Whitaker Ferreira, da
Universidade de São Paulo. Ele busca entender a produção do urbano
a partir da exploração e da dominação de classes em sistemas
capitalistas periféricos, como o brasileiro.
O processo de trabalho, em especial as tecnologias sociais para a
disciplinarização e intensificação do labor, é o tema do ensaio da
socióloga Silvia Viana, da Fundação Getúlio Vargas. Uma questão-
chave da sociologia do trabalho é descrever o conjunto de técnicas,
ou o regime de produção, que é usado para que os trabalhadores
atuem com intensidade produtiva máxima. Com o advento das mídias
sociais, é possível que se generalize uma modalidade
“colaborativa”de dominação do trabalho: talvez não sejam mais
necessárias práticas despóticas ou estratégias para que o trabalhador
consinta a produzir com intensidade, pois quem gerencia o
trabalhador é o aplicativo manuseado pelo consumidor. Viana avalia
a modalidade de controle e intensificação do trabalho associada à
uberização da produção, em que os explorados, agora sob a forma de
autoempreendedores precários, se midiatizam e espetacularizam em
busca de recompensas.
O cientista político Frederico de Almeida, da Universidade
Estadual de Campinas, investiga o papel do Judiciário na condução
política da classe dominante. Diagnostica tanto a constituição desse
instrumentode dominação quanto a agenda conservadora que
promove. De certo modo, a judicialização da ação classista dominante
é um elemento central para a economia política da Operação Lava
Jato e do desigual acesso à justiça.
O conjunto de textos deste dossiê propõe-se a romper com a
expectativa de uma análise de classe sob a égide da dicotomia entre
burgueses e proletários. Aliás, isso vai na linha corrente de teóricos
anticapitalistas em todo o mundo, que se afastaram da metanarrativa
do materialismo histórico clássico. Um esforço primeiro da análise de
classes contemporânea, em consonância com a tradição marxista, é
possivelmente articular a partir de um compromisso igualitário
radical as várias explicações para as manifestações de desigualdade e
injustiça econômica, buscando de maneira geral identificar as
múltiplas contradições do sistema capitalista.
Assim, este dossiê apresenta variações sobre uma mesma temática:
os conflitos a partir de interesses materiais em diferentes tipos de
relações e situações sociais. Os interesses materiais, nesses recortes
do real, coexistem e interagem de maneiras diversas com outras
formas de opressão, como gênero, raça e vulnerabilidade social. A
crítica ao capitalismo, propõe-se, está na formulação e articulação
dessas variações sobre as classes sociais e, especificamente, nas lutas
de classes.
A urgência do esforço intelectual aqui proposto é que se coloca
igualmente à intelectualidade radical o desafio de formular
alternativas programáticas à realidade social. A análise de classe
serve tanto para identificar os constrangimentos e obstáculos a uma
vida social melhor quanto para diferenciar interesses materiais aliados
e adversários, para “saber de que lado da barreira você está” e “quem
está lá com você”. Diagnosticada a realidade social, com seus déficits
de democracia e justiça, torna-se possível formular uma alternativa
profundamente democrática e justa e, na análise dos interesses
materiais e suas manifestações políticas, entender o que ainda nos
impede de estar lá. 
Direito ao aborto e maternidade: gênero,
classe e raça na vida das mulheres
FLÁVIA BIROLI
As lutas feministas têm colocado em pauta a regulação dos corpos das
mulheres segundo lógicas que se definem em condições de privilégio
masculino. O controle por parte do Estado, em sociedades nas quais a
política institucional tem sido historicamente reduto dos homens, é
apenas uma de suas formas. No cotidiano, os valores que justificam e
naturalizam esses controles podem ser ativados pelas religiões
organizadas, pelos meios de comunicação, pela escola, por pais ou
companheiros, por outras mulheres. Ao mesmo tempo, a violência
contra as mulheres que não respondem a esse controle se dá no
âmbito institucional e no das relações interpessoais. Mas a regulação
não se dá apenas pela recusa de certos comportamentos e identidades
ou pela punição dos “desvios”. Ela também ocorre pela incitação de
formas de vida “aceitáveis”, pelo estímulo a certos modos de
construção das identidades individuais e coletivas – o elogio à beleza,
ao recato e à domesticidade é uma de suas formas. E desigualdades
estruturais, como as desigualdades de classe, constituem violações e
restrições de modo que não é possível tomar as desvantagens de
gênero como algo que se define independentemente da dominação de
classe.
O feminismo tem colocado em xeque o entendimento de que as
regras universais e abstratas do Estado de Direito tiveram e têm como
referência todas as pessoas. Mesmo nas correntes liberais, em que o
alcance da crítica pode ser restrito, tem sido exposto o fato de que
instituições e normas modernas, no Ocidente, implicaram a recusa de
direitos às mulheres enquanto utilizavam a linguagem da
universalidade e da neutralidade. Liberalismo e patriarcado não são
termos antagônicos, como não são liberdade individual e dominação
masculina. Premissas e referências normativas importantes, como a
divisão entre o público e o privado e a liberdade de escolha, tiveram,
e têm ainda, sentidos muito distintos para mulheres e homens.
O quadro se complica quando compreendemos que as formas de
seletividade e regulação, que não são neutras numa perspectiva de
sexo ou gênero, não o são também em termos de classe, raça, etnia,
região do mundo em que se nasce, sexualidade. Isso significa que as
mulheres não compõem um grupo homogêneo diante desses
mecanismos. Pelo contrário, eles incidem diferentemente sobre
mulheres em posições sociais específicas e desiguais. Os corpos são
regulados em sociedades nas quais outras formas de opressão e
identificação constituem as posições em conjunto com o gênero.
Assim, se as relações de gênero não expressam uma natureza
diferenciada dos corpos no que diz respeito ao sexo biológico, elas
também não se definem ao largo, antes ou depois das determinações
de classe e de raça, entre outros eixos significativos das opressões e
disputas. Tem sido mais frequente considerar as convergências de
gênero e classe nas relações de trabalho. Mas as injustiças
reprodutivas estão, sem dúvida, organizadas em uma escala na qual as
violações pelo Estado se encontram com a precariedade material,
tornando mais agudas as desvantagens das mulheres trabalhadoras,
isto é, em uma escala de classe e não apenas de gênero.
É tendo em mente esse modo complexo de regulação dos corpos e
de produção do gênero que trato aqui de uma das lutas feministas
fundamentais, a luta pelo direito ao aborto. Além de sua importância
para a vida e para a cidadania das mulheres, ela dá acesso a conexões
que considero importantes entre a crítica feminista mais próxima do
espectro liberal, em que o direito ao aborto é situado nas lutas pelo
direito de escolha das mulheres, e as críticas e lutas que nos têm sido
legadas pelo feminismo socialista e pelo feminismo negro. Nestas,
fica evidente que o exercício da escolha e, de modo mais amplo, a
autonomia das mulheres têm componentes de classe e de raça que são
incontornáveis. O direito a controlar a capacidade reprodutiva foi
negado a muitas mulheres negras, indígenas, trabalhadoras e pobres
na forma da recusa do direito ao aborto, assim como na forma da
recusa do direito à maternidade.
A linguagem da escolha individual, que organizou largamente o
campo da defesa do direito ao aborto pelas mulheres no hemisfério
norte a partir de meados do século 20, ressalta o direito a escolher
como um contraponto à maternidade compulsória. A importância
dessa ênfase na escolha das mulheres e não em um papel social que
já pressuporia escolhas é inegável, mas há limitações nessa
abordagem uma vez que as condições de escolha podem ser restritas e
desfavoráveis, sobretudo para as mais desprivilegiadas entre elas. A
assimetria de recursos materiais e simbólicos é um elemento
fundamental para compreender as condições em que as escolhas são
feitas e, claro, as próprias escolhas.
O direito ao aborto é um eixo central da autonomia das mulheres, e
creio que essa afirmação possa ser generalizada. A fusão entre o
feminino e o maternal tem sido um dispositivo importante de controle
sobre as mulheres e a denúncia da maternidade compulsória esteve
relacionada desde o início às lutas pela igualdade de gênero. Sem o
direito a controlar sua capacidade reprodutiva, a autonomia na
definição de suas trajetórias de vida é fundamentalmente
comprometida. A participação feminina em outros âmbitos da vida
depende se sua capacidade de definir se e quando serão mães. Sendo
mães, essa participação é sensível ao modo como o trabalho é
dividido na esfera privada e, sobretudo, às normas e políticas públicas
para o cuidado com as crianças e para a proteção no mundo do
trabalho das mulheres gestantes e mães.
A recusa ao direito ao aborto mantém na legislação concepções
diferenciadas do indivíduo e do direito que têm de definir o que se
passa no e com seu corpo, do direito à integridade física e psíquica e à
dignidade. O acesso a esses direitos, quando o aborto é criminalizado,
é distinto na letra da lei segundo o sexo dos indivíduos. É o que
ocorre nocaso brasileiro, em que o direito ao aborto é criminalizado
com três exceções, que são risco de morte da mulher, gestação
resultante de estupro e anencefalia fetal. No Congresso, tramitam
vários projetos que pretendem criminalizar inclusive esses casos,
entre os quais destaco o chamado Estatuto do Nascituro. Mas tem
havido passos em defesa desse direito, como Normas Técnicas
editadas no início dos anos 2000 pelo Ministério da Saúde para
garantir o acesso ao aborto legal e, mais recentemente, uma decisão
do Supremo Tribunal Federal que firma o entendimento de que a
penalização é inconstitucional. Nos dois casos, reconhece-se que o
problema ultrapassa a restrição à cidadania das mulheres como grupo.
No Brasil, como em outras partes do mundo, as mulheres realizam
abortos a despeito da legislação. A criminalização do aborto, no
entanto, compromete de maneira aguda a integridade física e psíquica
das mulheres negras e pobres. Para elas, a clandestinidade implica
precariedade no atendimento, ampliando os riscos que correm. As
complicações devido ao aborto inseguro persistem em um contexto de
melhoria no acesso das mulheres a direitos e serviços de saúde nos
países latino-americanos. Enquadradas como questão de saúde
pública no registro internacional predominante, ganham contornos
singulares em um continente no qual o aborto é amplamente
criminalizado.
As lutas feministas têm sido pelo direito das mulheres a decidir se e
quando serão mães. Mas a história dos movimentos em defesa do
controle da natalidade se misturou, ao longo do século 20, a políticas
racistas de controle populacional. Estima-se que 65 mil pessoas foram
esterilizadas por programas para o controle populacional em 33
estados estadunidenses entre os anos 1920 e 1970. Mais
recentemente, decisões nos estados de Virgínia e Carolina do Norte
determinaram o pagamento de indenizações às vítimas.
Na América Latina, mescladas a estratégias estadunidenses para o
controle do crescimento populacional no chamado terceiro mundo,
houve políticas de controle que promoveram a esterilização de
mulheres negras, indígenas e pobres, com recursos da US Agency for
International Development (USAID) e do Fundo de População das
Nações Unidas (UNFPA). No Peru, as esterilizações forçadas,
estimadas em mais de 400 mil, foram condenadas pela Corte
Internacional de Direitos Humanos e reconhecidas formalmente pelo
governo peruano em 2003 – embora as denúncias contra Alberto
Fujimori tenham sido arquivadas naquele país mais de uma vez nos
anos recentes, sob o argumento de que as esterilizações massivas não
teriam sido definidas por seu Programa Nacional de Salud
Reproductiva y Planificación Familiar, mas por falhas no seu desenho
e implementação. O caso peruano gerou registros e depoimentos que
detalham a violência de esterilizações cirúrgicas realizadas por meio
de chantagens, mentiras, coerção e mesmo aprisionamento das
mulheres. A pobreza, as características das políticas de controle
reprodutivo e controle populacional e a insegurança na maternagem
compõem o ambiente em que a esterilização se fez uma opção para
muitas mulheres em países como Porto Rico e Índia, entre os anos
1930 e 1950.
No Brasil, ao menos desde os anos 1980, acumulam-se denúncias
de esterilização em massa de mulheres das regiões mais pobres do
país, levando inclusive à abertura de uma Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional, em 1992. Em
1965, já sob a ditadura instaurada com o golpe de 1964, a
International Planned Parenthood Federation passou a atuar no país.
Assim surgiu no Brasil a Sociedade de Bem-Estar Familiar, a
BEMFAM, que se disseminou principalmente nas regiões Nordeste e
Centro-Oeste do país. A partir de então, clínicas privadas levaram a
esterilização às mulheres brasileiras, no vácuo de políticas públicas
alternativas e com a conivência, e em alguns casos a visão racista e
eugênica expressa, de governantes nos níveis nacional e estadual. Foi
apenas com a articulação de grupos feministas em defesa dos direitos
das mulheres no período de abertura política que a abordagem da
saúde reprodutiva se modificou, com destaque para o Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado em 1983.
Eugenia, racismo e controle social da pobreza fundamentaram,
assim, políticas que fizeram dos corpos das mulheres objetos de
intervenções sancionadas. Foi diante desses processos que emergiu a
noção de “justiça reprodutiva”. Reconhecendo que o controle
reprodutivo é fundamental para o exercício da autonomia e que esta,
por sua vez, é uma dimensão da cidadania, feministas negras, de
origem latina e asiática, têm assumido uma perspectiva interseccional
na definição dos direitos reprodutivos e na agenda de suas lutas. Essa
perspectiva busca reconhecer a opressão e a violência no âmbito da
reprodução. As histórias de opressão expõem, na vida de mulheres
concretas, os efeitos das convergências entre gênero, raça, etnia,
classe, sexualidade e origem no globo. O exercício da autonomia, por
sua vez, não é matizado pelo gênero isoladamente. A posição de
classe produz as alternativas para as mulheres, ainda que o
patriarcado – ou a dominação masculina – não possibilite equalizar as
condições de homens e mulheres de diferentes classes sociais de
controlar, entre outras coisas, o acesso a seus corpos.
A violência está presente na recusa do direito ao aborto, pela
criminalização da decisão das mulheres de interromper uma gravidez,
tanto quanto nas esterilizações forçadas ou induzidas, que retiram das
mulheres o direito de serem mães. Em todos esses casos, a cidadania
é comprometida em seus fundamentos. Mas a omissão do Estado
também tem consequências perversas. Sem educação sexual nas
escolas, a insegurança e a imprevisibilidade no exercício da
sexualidade se ampliam. Quem bloqueia o acesso a essa educação
engrossa o caldo da violência, das doenças sexualmente
transmissíveis, da gravidez na adolescência, da evasão escolar das
meninas. As desigualdades estruturais e a ausência de políticas
públicas para compensá-las ou superá-las impedem o exercício
seguro da maternagem. Este depende do acesso a trabalho e renda
pelas mulheres e do respeito à vida de suas filhas e filhos. No
controle de recursos políticos e econômicos estão muitos dos que têm
trabalhado pela desregulamentação dos direitos sociais e pela larga
prevalência da lógica do lucro e da exploração. São, em muitos casos,
os mesmos que têm mobilizado uma suposta defesa da maternidade e
da família em sua atuação política reacionária. Tratam
sistematicamente de uma fantasia, enquanto atentam contra mulheres
e famílias reais. 
O urbano no contexto do subdesenvolvimento
JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA
O “espaço urbano” é uma base estrutural e sistêmica de
infraestruturas, sobre a qual se assentam as edificações. São redes
viárias, de transporte, de informação, de serviços, de água,
saneamento, luz, sistemas de coleta de lixo, equipamentos, que
permitem a vida na cidade. Tal base não pode ser produzida
individualmente. É fruto do trabalho social, pela mão do Estado ou
com sua intermediação. Ela permite que se produzam localizações – o
“lugar” de cada edifício na cidade – cuja qualidade depende da sua
situação na rede, da sua inter-relação com seu entorno. Como as
infraestruturas não são homogêneas, as localizações são diferenciadas
e disputadas pelo mercado. Seu preço, como todo produto do
capitalismo, varia em função de seu valor de uso (dado pela qualidade
da infraestrutura e sua situação na rede), da demanda por esse bem e
das intervenções regulatórias do Estado.
As localizações são, portanto, objeto de disputas, as melhores
sendo apropriadas por quem pode pagar por elas, as piores restando
para os mais pobres. Além disso, as localizações são produtos que
têm valor de troca e que geram, assim, possibilidades de lucros com
sua produção e comercialização. Daí três dos conflitos mais
recorrentes nas cidades capitalistas: entre os moradores, que disputam
entre si as melhores localizações, entre os que fazem usoda cidade
como moradia e os que desenvolvem outros tipos de uso (comercial,
industrial, etc.) e, por fim, entre os que usam a cidade para viver e os
que a veem apenas pelo seu valor de troca.
Assim, qualquer cidade no capitalismo tem bairros mais caros, em
localizações mais bem servidas por infraestrutura, com melhor
acessibilidade, melhores condições paisagísticas, e ocupados pela
burguesia, assim como localizações mais afastadas e menos
acessíveis, menos servidas por infraestrutura e equipamentos, mais
baratas e ocupadas pelas classes populares. Além desse típico conflito
de classes, há a permanente tensão imposta pelos setores do mercado
imobiliário e da construção civil, atuando para obter lucros com a
produção e a venda dessas localizações e especulando sobre seu
preço.
Nos países centrais do capitalismo, onde o modelo keynesiano do
Estado de Bem-estar Social promoveu forte regulação pública, esses
conflitos foram e ainda são mediados pelo Estado para, em alguma
medida, amenizar as distorções. No esforço de construção de
sociedades de consumo de massa para superar a crise estrutural (e
urbana) dos anos 1930, a garantia de moradia era uma condição
essencial, e foi atendida por políticas públicas de produção e acesso à
habitação e um sistema urbano funcional e razoavelmente
democrático. O pensamento urbanístico da época defendia o conceito
da cidade densamente ocupada em suas áreas centrais, mais bem-
dotadas de infraestrutura, como forma de racionalizar e democratizar
o seu uso. A casa monofamiliar em grandes lotes, tipicamente
burguesa, seria relegada aos subúrbios periféricos. O Estado
procurava homogeneizar a oferta de infraestrutura e implantava os
chamados instrumentos urbanísticos para regular a produção do
espaço urbano. Com tributações diferenciadas, pagamento pelo
direito de construir e outros mecanismos do tipo, cobravam-se dos
mais ricos taxas para “compensar” o privilégio de usufruir de boas
localizações produzidas graças à infraestrutura pública.
É bem verdade que tal modelo não reverteu as desigualdades da
cidade capitalista, mas com certeza as amenizou. Cinturões operários
e subúrbios intermediários de menor qualidade urbanística se
contrapunham a bairros de alto padrão, altamente valorizados. Mais
adiante, esse sistema não conseguiu deter a onda neoliberal da era
Thatcher/Reagan, sucumbindo ao avanço inexorável e predatório do
capital financeirizado sobre o urbano. Competição entre cidades,
revitalizações gentrificadoras e grandes projetos urbanos tornaram-se
o cardápio dominante. Hoje, embora ainda mantenham parte da sua
racionalidade democrática, as grandes cidades do mundo
desenvolvido vão tornando-se bolhas imobiliárias de alta valorização,
inacessíveis à grande maioria dos cidadãos, e cada vez mais
confrontadas à pobreza urbana.
Fica clara a importância do Estado nesses processos. Porém, no
Brasil, este é idealizado segundo o modelo de bem-estar social, das
políticas públicas que se sobrepõem aos interesses privados, embora
isso nunca tenha ocorrido por aqui. Nosso Estado tem uma natureza
bastante diferente e peculiar; muito longe de promover a construção
de uma nação autônoma e socialmente justa, ele foi instrumentalizado
pelas classes dominantes, de perfil liberal, para servir aos seus
interesses. O “Estado patrimonialista” caracteriza-se, para resumir,
pela imiscuição sistemática entre o interesse privado e o público, em
detrimento do segundo.
Seria, portanto, um equívoco acreditar que a extrema desigualdade
na oferta de infraestruturas, que caracteriza nossas cidades, é
consequência “natural” de um “crescimento populacional acelerado”
ou demonstração de alguma “incapacidade” do Estado em enfrentar a
questão da desigualdade urbana. Não, a maneira como conduzir a
produção do espaço urbano é uma questão de política pública, e
reflete as lógicas perversas do patrimonialismo, em que o que
interessa é tão somente a estruturação dos bairros ricos,
sintomaticamente chamados de “nobres”, deixando-se de fora a
população pobre. Há infraestrutura onde se quis que houvesse, não há
onde se deixou de fazer, e tais diferenças não são resultado da “falta
de planejamento”, como se quer fazer pensar, mas de um
planejamento às avessas – se considerado o interesse público –
bastante eficaz nos seus objetivos de produzir a segregação.
Impactos ambientais crescentes, sistemas de transporte cada vez
mais extensos, gestão de serviços urbanos complexos são desafios
enormes mesmo nas grandes cidades do mundo desenvolvido. Nos
países em desenvolvimento, tornam-se quase intransponíveis, em
razão da desigualdade social, que joga – não por casualidade –
milhões de pessoas de menor renda em uma condição de vida de
extrema precariedade. O patrimonialismo, expresso no que Florestan
Fernandes chamou de um “Estado sincrético”, gera outros problemas:
clientelismos, corrupção endêmica, inversão das prioridades de
investimentos, arrocho financeiro.
As marcas dessa lógica bastante perversa de urbanização são
muitas, e desde o início do século passado os investimentos públicos
nas nossas maiores cidades concentravam-se nos bairros nobres no
centro, objetos de vistosos planos urbanísticos importados da Europa.
Nas periferias, amontoava-se a população mais pobre, necessária ao
funcionamento da cidade, em cortiços ou nas primeiras favelas, sendo
expulsas para mais longe à medida que avançava o mercado
imobiliário. Com o advento da “industrialização com baixos
salários”, em meados do século, a demanda por mão de obra barata
para nossa inserção competitiva na economia internacional
transformou essas periferias em abrigo para um imenso exército
industrial de reserva. Sem investimentos públicos, as periferias
autoconstruídas, como já mostrou Francisco de Oliveira,
representaram o expediente mais eficaz para manter o baixo custo de
reprodução da força de trabalho.
No Brasil, a concentração indecente da riqueza se reproduz na
injusta divisão espacial urbana. Os investimentos, de maneira
ostensiva, se deram exclusivamente nos quadrantes mais ricos das
cidades. Como já demonstrou Flávio Villaça, as elites conduziram seu
crescimento em simbiose com o mercado imobiliário. Porém, nem
mesmo nesses bairros privilegiados criou-se uma urbanidade virtuosa:
a opção pelo automóvel em detrimento do transporte público de
massa e a absoluta liberalidade para com o mercado imobiliário
geraram problemas como o tamponamento dos rios, a
impermeabilização desenfreada, a densificação construtiva sem regras
e sem limites, a falta de reserva de terras para a produção de moradias
para os mais pobres. Ao contrário do modelo urbano do bem-estar
social, aqui, as regiões com melhor infraestrutura foram acaparadas
pelas elites, que construíram para si, na cidade “nobre” bem
infraestruturada, seus bairros-jardins que deveriam estar nos
subúrbios. Uma pendularidade disfuncional decorre dessa
concentração do capital nos bairros ricos, fazendo milhões de pessoas
deslocarem-se diariamente da periferia distante para o seu trabalho,
em sistemas de transporte obsoletos e subdimensionados. Enquanto
isso, a cidade rica se fortifica, se isola, renega a necessidade do
espaço público e da rua. Nela, não há pobres a morar, tampouco
negros. Produzimos cidades dignas do apartheid.
Para manter tal onipotência espacial, as classes dominantes se
fazem valer – graças também ao seu controle sobre o judiciário – de
outras marcas do patrimonialismo: a predominância absoluta do
direito à propriedade sobre qualquer outro, inclusive o de moradia, e
o limite muito tênue e relativo entre legalidade e ilegalidade. Afinal, o
que é ilegal? Movimentos de moradia ocupando prédios vazios
irregulares das áreas centrais são ilegais, mas não o são resorts,
estádios, shopping centers ou grandes condomínios que ocupam sem
constrangimento as orlas marítimas ou outras terras públicas nas
cidades. Ocupações informais sobre áreas de proteção ambiental são
proibidas, mas mansões nas encostas da mata atlântica litorânea ou
“rodoanéis” rasgando mananciais não o são. Nas

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