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Cult #227 Réquiem para uma nação

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Sumário
coluna
Francisco Bosco
Marcia Tiburi
Bianca Santana
Vladimir Safatle
entrevista Kenarik Boujikian
dossiê Réquiem para uma nação
Apresentação
A democracia de Tancredi e a do doutor Pangloss
O fim da sociedade salarial
Estado pós-democrático e a gestão estatal da pobreza
O Brasil pós-impeachment a partir da vida das mulheres
Por que as ruas se calaram?
Entrevista: Tales Ab’Saber
livros
O divã como ponto de encontro
Revolução invisível
colaboraram nesta edição
coluna
Jogo dos sete erros
FRANCISCO BOSCO
Há algumas semanas, Chico Buarque apresentou uma canção de seu
novo disco, chamada “Tua cantiga”. Tenho a impressão de que, dada
a polarização ideológica e político-partidária da sociedade brasileira,
ele escolheu essa canção como abre-alas por ser uma peça singela,
despretensiosa, com certo sabor antigo (e por ter, além disso, é claro,
uma bela e contagiante melodia) – afastada, portanto, aparentemente,
da chapa quente dos acontecimentos sociais e, logo, de qualquer
possibilidade de desencadear a fúria da parte da sociedade para quem
ele é um petralha, bolivarianista, mamador das tetas da Rouanet ou
outros conspícuos epítetos do novo e sofisticado glossário do espaço
público brasileiro na era das redes digitais e do antipetismo.
Qual o quê. Chico não terá levado em conta que a tentativa de
lavagem de quinhentos anos de roupa suja da sociedade brasileira já
chegou faz tempo às alcovas. Não há lençol e travesseiro que passem
incólumes pela alfândega das problematizações de minorias. A sua
cantiga também não passou. Um artigo publicado por uma mulher
qualificou o compositor de “datado” e apartado da subjetividade da
mulher contemporânea. Como qualquer ataque a um medalhão
encontra repercussão (quantos jornalistas fizeram carreira com essa
premissa infalível…), logo começaram a espoucar, a seu favor e
contra ele, textões nas redes digitais e matérias na imprensa
tradicional. Pronto; em vinte e quatro horas já tinha se armado a treta
da vez. Nas vinte e quatro seguintes, a fogueira, como sempre,
esfriou. Como o compromisso do pensamento não é chegar a tempo,
mas no tempo, lá vão os meus vinte centavos.
Eis os parágrafos centrais da autora Flavia Azevedo no artigo que
deflagrou a polêmica. Primeiro: “Mas, desta vez, no painel das
emoções femininas, Chico apertou um botão controverso. Essa
mulher que ele evoca não sou, não é. Nem a que somos nem a que
queremos ser. Essa que precisa ser salva, que sonha com o reino do
lar, essa que goza ao ouvir ‘largo mulher e filhos’. Botão errado, para
mim. Botão errado para a amiga que disse: ‘achei datada’. Botão
errado para Andréia, que escreveu ‘esse negócio de largar filho não
desceu’”.
E o seguinte: “Chico Buarque sempre se comunicou com a nossa
subjetividade. E é a nossa subjetividade que está falando com ele
agora. E a real é que esse mundo interno mudou. De repente, para um
monte de mulheres, ‘largo filhos’ soou tão romântico quanto um
arroto no meio do beijo. Uma deselegância, uma sacanagem, uma
coisa feia e desnecessária. A gente broxou com a narrativa de um
amor covarde, com o canalha fantasiado de super-herói, com esse
amante infantil e antigo, com esse tipo de amor... datado. Esse cara,
esse personagem trazido por Chico (e tão conhecido entre nós) não
faz mais sucesso. Porque a gente mudou e até o nosso romantismo
está, sim, numa outra vibe.”
O backlash não tardou (às vezes, nas tretas digitais, a reação é mais
forte do que a ação; e me parece ter sido o caso). Uma série de textos
encontrou uma série de problemas no artigo de Flavia Azevedo.
Vamos a eles.
O primeiro seria que a autora teria feito uma leitura literal da letra
da canção. Segundo Marilise Mattos, “Chico não quis dizer que vai
abandonar os filhos, mas que vai deixar tudo para trás para ficar com
a mulher”. Pode ser, mas o texto da canção autoriza a interpretação de
Flavia Azevedo. A expressão “largo mulher e filhos” é, no mínimo,
ambígua, uma vez que, para se separar de alguém e entrar em outra
relação, é preciso “largar” a mulher (a opção poliamor não cabe no
contexto) – mas não os filhos. Não se largam os filhos, a menos que
se queira. Não é absurdo, não é uma interpretação abusiva, portanto,
ler o texto como o fez Flavia Azevedo.
Ela também foi criticada por supostamente confundir a pessoa civil
Chico Buarque com a persona ou o eu lírico da canção. Bem, no
parágrafo que cito acima, ela fala explicitamente no “personagem” de
Chico Buarque. Então a crítica não procede.
Mas há outro ponto, que no fundo é aonde esse quer chegar. A
autora foi muito criticada por confundir uma canção com uma tese
sociológica. Foi a perspectiva assumida, por exemplo, pelo professor
da UFBA Wilson Gomes (por quem, aliás, tenho grande admiração):
“Eu perdi a aula em que versos de uma canção não são mais falas de
uma persona, mas a voz sociológica do compositor nos instruindo
sobre como devemos nos comportar na vida. Sou do tempo em que
dramaturgia era diferente de sociologia.” Obras de arte, contudo, são
complexas, oferecem diversas possibilidades de abordagem: formal,
social, filosófica etc. Não há nada de errado em abordar uma canção
da perspectiva sociológica. Dramaturgia continua diferente de
sociologia. Mas pode conter traços desta última, como uma de suas
dimensões. (O que julgo possível afirmar é que há uma tendência no
Brasil, hoje, a abordar a arte e a cultura mais por suas dimensões
políticas do que estético-formais: o país passa por um processo de
passagem da cultura à política; mas isso é outra história.)
De resto, é oportuno lembrar que o próprio Chico Buarque é
valorizado não apenas por conta de sua perícia formal, mas também
de sua capacidade de flagrar movimentos da história social brasileira
e capturar seus sentidos nesses sofisticados compostos semântico-
formais que são suas canções. Se se pode valorizá-lo por isso, por que
não se poderia criticá-lo por isso?
Houve também alguns que criticaram o uso do pronome pessoal
“nós” por parte de Flavia Azevedo. Com efeito, esse é um pronome
de emprego complicado em contextos de discussões políticas. E, no
campo dos debates identitários, ele às vezes é mobilizado com uma
intenção de intimidação, sem ser descritivamente verdadeiro. O artigo
de Flavia Azevedo, contudo, poderia perfeitamente dispensar esse
pronome. Seus argumentos não precisam ser pronunciados em nome
de um grupo. Ela poderia falar apenas em seu próprio nome, e quem
concordar com ela que compre sua leitura.
Houve ainda quem viu “moralismo” na crítica à canção (Cynara
Menezes, do Socialista Morena). Bem, como o verso “largo mulher e
filhos” não é necessariamente só “modo de dizer”, como já
argumentei, o ponto dela não é o adultério, em si, encenado na letra, e
sim suas consequências morais (largar os filhos). Isso e a perspectiva
geral da letra sobre uma relação heterossexual, em que a mulher será
“rainha” do lar. O problema moral para Flavia Azevedo não é o
adultério, e sim a paternidade.
E, finalmente, num argumento que é uma espécie de inversão de
outro já apresentado aqui, houve quem (Nathalí Macedo, no Diário do
Centro do Mundo) lamentasse a condenação de “uma letra com
métrica perfeita, metáforas finíssimas e arranjos fofos a la Chico
Buarque só porque não foi escrita com o vocabulário que reza a
cartilha [dos movimentos identitários]”. Bem, a dimensão formal, em
sentido estrito (e, dentro dela, o virtuosismo dos versos) não é a única
dimensão de uma obra de arte. Pode-se perfeitamente criticar uma
canção dotada de virtudes materiais em nome de uma abordagem
política. E que não precisa ser sectária. Pode-se também,
perfeitamente e ao contrário, afirmar uma obra de arte por suas
qualidades formais, apesar de sua perspectiva política.
Resumo da ópera: muito barulho por nada. Algumas críticas
incidiram sobre a leitura de Flavia Azevedo (discordo delas); outras,
sobre sua própria legitimidade (mais ainda). Ora, Flavia Azevedo, ou
quem quer que seja, tem todo o direito, em sentido lato, de criticar
uma canção de Chico Buarque, ou de quem quer que seja,por
discordar dela politicamente. Quem se convencer por seus
argumentos, que concorde com ela.
Ps: Particularmente, acho muito bonita a canção. 
coluna
Uma preguiça útil
MARCIA TIBURI
A preguiça é um daqueles históricos pecados capitais que, junto à
gula, à inveja, à soberba, à mentira, à avareza, à heresia e à ira,
sinalizam para uma desmedida indesejável.
Indesejável para quem? É a pergunta que devemos nos fazer. É
verdade que a instituição do pecado foi criada pelo poder eclesial e,
no acordo entre os que administram a fé com os que detêm o capital,
afetos, posturas, estados físicos e emocionais, afetivos ou lógicos,
foram tratados conforme interesses bem específicos. A ideia de
pecado foi criada para definir um antivalor que é relacionado a um
demérito projetado no outro.
Em palavras bem simples, é certo que a colocação da preguiça no rol
dos pecados tem até agora uma função específica. Inventada como o
negativo do trabalho, sob a condição de pecado, a preguiça foi tratada
como o mal capaz de destruí-lo. Como pecado, ela serviu para
facilitar a divisão injusta do trabalho. A demonização da preguiça
servia para controlar as pessoas destinadas ao trabalho, mas nunca foi
considerada um mal para aqueles que não precisariam trabalhar à
medida que eram donos das terras e de outros meios de produção. A
preguiça não seria jamais o nada fazer dos ricos, mas o nome dado ao
indesejável não fazer dos pobres, dos trabalhadores e, sempre,
evidentemente, dos que foram escravizados.
Inventada como um antivalor pelo cristianismo, a preguiça é usada
pelo capitalismo com fins ideológicos. No contexto do que vem sendo
chamado de “meritocracia”, a ideologia que mistura a ilusão
individualista e a servidão ao trabalho, a preguiça se torna o pior dos
males. Contudo, sob a mira do sistema capitalista ocorre uma
astuciosa inversão de valores e a preguiça que era considerada algo
ruim, despercebida, muda de figura.
A mais fundamental das estratégias do poder é a manipulação das
ideias. Nessa linha é que a preguiça dos outros – daqueles que não
constroem discursos, e muitas vezes até os repetem por adesão
irracional e espontânea à ideologia – foi transformada em algo nocivo
enquanto a preguiça dos donos dos meios de produção nunca recebeu
esse nome.
Se podemos falar de preguiça em relação ao trabalho – alguém já
falou da preguiça até mesmo em relação ao sexo –, às coisas que nos
soam cansativas em geral, sejam ideias e ações, teorias ou práticas
que demandariam esforços sem promessa de compensação, devemos
analisar as transformações da preguiça em função de certas
necessidades ideológicas.
Como o poder não dá trégua e o discurso acobertador continua seu
projeto de convencimento dos otários, a preguiça assume novas
formas, mas nem sempre revela seu nome. Uma nova forma de
preguiça surge entre nós. Uma preguiça útil. Se a preguiça dos outros
relativa ao trabalho era ruim, a nova preguiça tornou-se uma coisa
boa enquanto é útil ao sistema econômico e político.
É a preguiça política que encontramos no dia a dia. Em frases como:
“política me dá preguiça”, essa preguiça útil resulta do descaso e
produz descaso com o mundo político e com a condição política de
nossa vida. Aos seus difusores podemos perguntar como chegaram ao
seu elogio. Provavelmente apenas nos olharão cansados, manifestarão
seu desentendimento olhando-nos com desdém.
Em tudo parecida com a negligência, essa forma de preguiça nos
obriga a esquecer o que nos faz sofrer. Um dia é preciso esquecer as
dores do trabalho, no outro as dores da política.
Se, por um lado, a preguiça é um desejo de não fazer pecaminoso, por
outro ela foi transformada em um não agir desejável. Nessa linha, não
deixa de ser curioso que aqueles que alimentam a ideologia
meritocrática ao mesmo tempo fomentem a preguiça política.
Do mesmo modo, é incrível que não haja referência à preguiça
relativa ao árduo e cansativo trabalho do consumo, incluso o do
trabalho no contexto da moderna escravização digital. 
coluna
Todo preso é um preso político
BIANCA SANTANA
Aos 18 anos de idade, a primeira condenação: tentativa de assalto à
mão armada. Meu irmão tentou roubar 120 reais e passou cinco anos
e alguns meses preso. Um mês e meio fora do cárcere, já com 23
anos, encontrou uma batida policial. “Eu não estava com nada, Bi. O
juiz vai me liberar”, escreveu em uma carta. Não devia saber que o
jornal do interior estampara seu retrato, nome e sobrenome ao noticiar
a prisão por tráfico. Meses depois, a condenação a sete anos em
regime fechado. Aos 30 ele deve voltar para casa. Talvez consiga
cuidar de sua filha quando ela tiver dez anos. E aqui pergunto: você
se lembra do que viveu entre 18 e 30 anos? Ou tem consciência do
quanto é estruturante esta fase da vida? O que significou a presença,
ou a ausência, de seu pai, desde seu nascimento até os 10 anos de
idade? Da casa confortável de onde escrevo este texto, desfrutando
dos privilégios de que meu irmão sempre foi privado, sinto raiva. Por
mim. Por ele. Pelas mais de 600 mil pessoas presas no Brasil. Por
suas filhas, mães, pais, irmãs, companheiras. Pela liberdade
expropriada de pessoas negras desde os navios negreiros até hoje.
Não à toa Angela Davis milita pelo que denomina abolicionismo da
prisão.
“Cada sentença um motivo, uma história de lágrima/ sangue, vidas
e glórias, abandono, miséria, ódio/ sofrimento, desprezo, desilusão,
ação do tempo/ Misture bem essa química/ Pronto: eis um novo
detento”. As rimas entoadas pelos Racionais MC’s sugerem a ação do
tempo como um dos ingredientes do cárcere. O documentário norte-
americano A 13ª emenda explicita a história do encarceramento
massivo. Por mais que os dados apresentados, tanto históricos como
estatísticos, digam respeito aos Estados Unidos, os paralelos com a
realidade brasileira são evidentes, mesmo que o racismo nos dois
países tenha se estruturado de formas diferentes. Afinal, aqui, a
segregação racial não foi legal. Mas basta circular em ambientes ricos
– brancos – e pobres – negros – para perceber que ainda vivemos uma
segregação racial amparada por muitas leis, ainda que não seja
obrigatória por lei.
Com a abolição do sistema econômico da escravidão, leis de
vadiagem e vagabundagem colocaram homens negros na cadeia. O
cinema e a imprensa foram importantes para construir o temor no
imaginário social: pessoas negras sempre são uma ameaça. Com o
aumento populacional, cresceram os índices de criminalidade. Crise
econômica, direitos sociais destruídos, mais pobreza e criminalidade.
E o aumento exponencial do encarceramento massivo com a chamada
guerra às drogas. No Brasil, a população carcerária aumentou
267,32% de 2002 a 2016. Dois em cada três presos são negros. Um
em cada três responde por tráfico de drogas. Aquilo que Angela
Davis escreveu, em 2003, sobre os Estados Unidos, no livro Are
prisons obsolete?, ainda sem tradução para a língua portuguesa, vale
também para o Brasil: “Na época imediatamente posterior à
escravidão, os estados do Sul se apressaram a desenvolver um sistema
de justiça penal que poderia restringir legalmente as possibilidades de
liberdade dos escravos recentemente libertos. As pessoas negras se
tornaram objeto prioritário de um sistema de condenação, ao que
muitos chamaram de reencarnação da escravidão.” Sistema que
persiste ainda hoje.
Mas as prisões não são inevitáveis? Não é para onde deve ir quem
comete delitos graves?, alguém pode perguntar. Recorro novamente a
Angela Davis: “Poderíamos chegar a despenalizar o uso de drogas e o
comércio de serviços sexuais? Poderíamos levar a sério estratégias
para favorecer uma justiça restaurativa frente a uma exclusivamente
punitiva? Sermos capazes de desenvolver alternativas efetivas implica
uma transformação, tanto das técnicas para determinar o que é
‘delinquência’, como das condições sociais e econômicas que
conduzem tantas crianças de comunidades pobres, especialmente das
comunidades negras, ao sistema penal juvenil e logo à prisão. O
desafio mais urgente e difícil de alcançar hoje em dia consiste
precisamenteem explorar criativamente novos marcos jurídicos nos
quais a prisão não figure como nossa maior bandeira.”
Neste ponto, você já deve ter se lembrado do filho branco e rico da
desembargadora, flagrado com 130 quilos de maconha, que não ficou
na cadeia. E de Rafael Braga, o único preso político de junho de
2013, condenado a 11 anos e 3 meses por tráfico de drogas e
associação criminosa, mesmo com testemunhas sustentando que o
flagrante foi forjado. Deve ter pensado também nos 63 jovens negros
assassinados por dia no Brasil. Deve ter associado isso tudo às
manifestações racistas de Charlottesville. E à retórica de guerra
propagada cada vez mais contra favelas e periferias, como
justificativa da militarização dos territórios, de execuções, prisões. A
guerra às drogas é a atualização de um projeto genocida. A ela, as
mais expostas e vulneráveis têm sido as mulheres. Para um retrato
sensível das situações a que mulheres têm sido expostas, recomendo a
animação “A Política de Drogas é uma questão de mulheres”, lançada
pelo ITTC (Instituto Terra Trabalho e Cidadania) em junho deste ano,
disponível na internet.
Dentre tantas violências a que estão expostas as mulheres, está, é
evidente, o encarceramento. Em quinze anos, o número de presas
cresceu 567%. A maior parte delas condenada por tráfico.
Especificidades como a menstruação são ignoradas pelo sistema
penitenciário. Outras, como a maternidade e a amamentação, são
tratadas com precariedade. Muitos são os relatos das que foram
obrigadas a parir algemadas. O tempo mínimo de 6 meses para o bebê
conviver com a mãe presa é, na prática, o tempo máximo das que
exercem esse direito. O livro Presos que menstruam: a brutal vida
das mulheres tratadas como homens nas prisões brasileiras, da
jornalista Nana Queiroz, permite uma aproximação desta realidade,
por meio de pequenos relatos que mostram a complexidade e as
experiências de sete presidiárias.
Minha próxima tarefa, ao terminar este texto, é telefonar para o
presídio onde está meu irmão para saber se meu nome já consta no
hall de visitantes. Vou ligar muitas e muitas vezes até ser atendida. E
talvez você não saiba, mas para enviar cartas ou encomendas para
uma pessoa presa é obrigatório ter a autorização do Estado. Para pedir
a autorização, na maior parte dos presídios de São Paulo, é necessário
enviar cópia autenticada do RG e CPF, comprovante de residência,
atestado de antecedentes criminais, duas fotos 3 × 4. E se a pessoa for
transferida, como aconteceu com o meu irmão, você precisa mandar
tudo de novo. Ninguém vai te notificar sobre a transferência. Para
descobrir, um pacote vai voltar pelo correio ou uma visitante vai ser
mandada de volta para casa depois de todas as adversidades de
locomoção até os presídios de beira de estrada. A atendente do
correio pode te olhar com desconfiança, pena, ou então gritar bem
alto para toda a fila ouvir que seu pacote não vai chegar até o
presidiário se o número da cela não estiver no endereço, mesmo que
não seja verdade. #ParemDeNosMatar! E #LibertemRafaelBraga. 
coluna
O que resta da universidade?
VLADIMIR SAFATLE
É claro que a universidade não tem mais lugar no interior do processo
de reprodução material da vida. Em uma dinâmica de produção de
empregos em que os estratos médios são constantemente eliminados a
partir de processos de reengenharia contínua, em que os empregos de
nível salarial mais baixos são, ao mesmo tempo, precarizados e
elevados em seus padrões de exigência de formação e no qual os
estratos mais elevados são oligarquicamente garantidos (ou seja, eles
são alcançados independentemente da formação dos seus ocupantes),
é uma das maiores mistificações de nossa época insistir no binômio
formação/empregabilidade. Para além de um conjunto de empregos
de condições e salários cada vez mais deteriorados, a universidade
não pode garantir ascensão social ou simplesmente sobrevivência
econômica. Os processos de formação necessários para operar no
interior de nosso sistema econômico são, em larga medida, limitados,
pontuais e de rápida absorção. Ou seja, eles poderiam ser feitos sem
universidades, de forma menos onerosa, através de centros de
formação. Os setores fundamentais da economia mundial e os atores
reais da economia nacional sabem que podem sobreviver sem
universidades. Eles podem sobreviver com uma educação disciplinar,
unidimensional e vinculada apenas à expectativa de valorização
simbólica fornecida pela educação superior.
A pequena camada responsável pela organização estratégica da
economia e da gestão social pode ser formada em centros de
excelência construídos para poucos em países centrais, coisa que a
elite brasileira tem feito sistematicamente ao mandar seus filhos
diretamente para estudar fora do país. Mesmo o desenvolvimento de
pesquisas capazes de projetar cenários e permitir circular múltiplas
perspectivas de interpretação em conflito perde o sentido em um
modelo de inserção capitalista no qual as elites locais perderam suas
ilusões de se constituírem como burguesias nacionais e aceitam
melhor serem representantes de modelos de integração global cujos
processos decisórios se dão muito longe daqui.
Neste horizonte, a universidade parece perder seu lugar. No
entanto, talvez seja o caso de acrescentar mais uma variável a este
quadro. Uma variável muitas vezes negligenciada, no entanto
absolutamente central. Pois a perda de lugar da universidade ocorreu,
principalmente, porque saiu de cena a crença na necessidade de
modelos de gestão baseados na conciliação e integração de setores da
população potencialmente desestabilizadores, como os trabalhadores
pobres (geridos através de sindicatos em relações solidamente
estratégicas com o Estado), pequenos camponeses e a classe
intelectual (alocada em universidades garantidas pelo Estado). O que
nos leva à seguinte equação: a universidade perdeu seu lugar porque a
classe intelectual deixou de ser um problema. Somente enquanto ela
foi um problema potencial, devido a sua capacidade de mobilização,
de tensionamento social, de constituição de pautas no interior da
opinião pública, a universidade foi preservada. Quando isto saiu do
horizonte, a universidade se tornou descartável.
Sabemos que a história da universidade como instituição é uma
história recente. Até o começo do século 19 seu lugar era, em larga
medida, o de um centro de formação. Os principais pensadores e
cientistas não eram professores universitários, não tinham cátedras. O
debate intelectual e artístico ocorre, em larga medida, fora de seus
muros. O modelo de Wilheim von Humboldt (representado pela
fundação da Universidade de Berlim, em 1809) pode se impor nas
sociedades ocidentais não apenas por prometer realizar expectativas
de emancipação através de uma formação de cunho humanista, mas
principalmente por saber se colocar como peça fundamental de
constituição da adesão social e desenvolvimento técnico do recente
Estado-nação, assombrado pela possibilidade de sedição interna
produzida pelo contágio dos ideais da Revolução Francesa. A
integração da classe intelectual à universidade será uma forma de
responder aos riscos de sedição que a circulação de ideias de
transformação radical representava. Não por outra razão, uma
impressionante quantidade de intelectuais radicais verá as portas lhe
serem fechadas no interior da universidade alemã do século 19:
Feuerbach, Bruno Bauer, Marx. Pois a integração terá sempre que
lidar com certos limites que só poderão ser incorporados tempos
depois, através de caminhos tortuosos.
Não se trata aqui de fazer uma história da universidade e dos
modos de gestão social a partir da constituição do Estado-nação. No
entanto, gostaria de trazer uma hipótese que pode nos auxiliar a
debater a situação na qual nos encontramos atualmente. Pois podemos
dizer que este modelo de gestão social demonstrou-se particularmente
falho em 1968. Há uma exacerbação da tensão universidade/Estado a
partir de maio de 1968 e, de certa forma, muito de nossa situação
pode ser lida com base neste pano de fundo. Pela primeiravez de
forma clara, as universidades se colocam como espaço de produção
de revoltas contra os modos hegemônicos de reprodução material da
vida.
Lembremos como, durante certo tempo, o modelo do Estado do
Bem-Estar Social, gerado a partir do final da Segunda Guerra, com
seu capitalismo de estado, fora visto como uma espécie de modelo
perfeito de gestão de conflitos sociais. Friedrich Pollock, em um
ensaio clássico, insistia na tese da passagem inexorável de um
“capitalismo privado” para um capitalismo de alta regulação estatal,
fosse ele totalitário (nazifascismo) ou democrático (social-
democracia). Capitalismo no qual as decisões econômicas estariam
submetidas à orientação política das deliberações de gestão e
limitação da força de transformação dos conflitos de classe. Pollock
chega a falar em uma substituição de problemas econômicos por
problemas administrativos, criando um horizonte “racional” de gestão
de conflitos sociais graças às promessas de integração da classe
trabalhadora devido à consolidação de uma lógica da providência e da
assistência social generalizada que teria a capacidade de limitar os
processos de espoliação econômica. Neste horizonte, a função das
universidades era garantir a ascensão social e fornecer um espaço
regulado de liberdade de pensamento.
Neste sentido, maio de 1968 demonstrará a fragilidade desta crença
da possibilidade de regulação de conflitos no interior de um
capitalismo de estado. Pois ele mostrou como as formas de regulação
da classe trabalhadora não foram capazes de impedir a consolidação
de revoltas nos países centrais. Revolta esta que visava ao caráter
disciplinar deste mesmo Estado-providência outrora visto como o
modelo perfeito de gestão social. Ou seja, as revoltas de maio de 68 e
a força de sedição de seus conflitos mostraram os limites das
promessas de integração do capitalismo de estado e de suas
estratégias de providência. Os próximos modelos de gestão nas
sociedades de capitalistas, se quisessem ter eficácia real, deveriam
operar de outra forma. Estava evidente a impotência do discurso de
integração através da identificação com a figura do cidadão do
Estado-nação comum. Seria necessário deslocar os processos de
regulação social para uma outra cena.
Mas, para tanto, seria necessário paulatinamente neutralizar a
universidade e sua classe de intelectuais, quebrar sua força de
mobilização social e empurrá-los paulatinamente à obsolescência.
Muito haveria a se dizer a respeito destes processos que ocorreram
principalmente a partir dos anos de 1980. Eles responderam a
múltiplos ritmos e a dinâmicas específicas em vários países. Um país
que tinha uma presença forte da classe intelectual na vida nacional,
como o Brasil, não poderia seguir os mesmos processos que países de
configuração social distinta. Esta análise, no entanto, ainda está por
ser feita.
No entanto, seria o caso de insistir aqui, e isto vale como uma
crítica que é também uma autocrítica, como tais processos não
poderiam ocorrer sem a demissão da classe intelectual de sua função
histórica de responsável pelo tensionamento de processos políticos. A
classe intelectual contemporânea tende a esconder sua demissão
política por meio da pretensa crítica a desejos de “dirigismo” e a
crítica a uma política baseada na crença da força indutora de
“vanguardas letradas”. Todos nós conhecemos as críticas feitas pelos
próprios intelectuais a seu pretenso papel dirigista. Não há, no
entanto, processo político sem um ato de nomeação do acontecimento
– ato que exige a mobilização da capacidade da classe intelectual de
criar ressonâncias espaço-temporais e, assim, redimensionar
dinâmicas sociais. Uma nomeação não é simplesmente uma
descrição, ainda mais quando estamos a falar de processos políticos
populares. Ela é um ato performativo que redimensiona a capacidade
de transformação dos agentes.
No entanto, a demissão política dos intelectuais foi o resultado da
convergência de três fatores. Primeiro, vivemos em um movimento
global de bloqueio das relações entre universidade e sociedade civil.
Isso se deve a uma forma de gestão social que promete aos
intelectuais a ascensão ao posto de consumidores de serviços globais,
graças à internacionalização das universidades e à submissão delas a
processos de avaliação cujos métodos são tão opacos quanto dignos
do Pai Ubu. Todos nós sabemos bem como os processos de avaliação
são indefensáveis não porque não devamos ser avaliados, mas porque
eles não medem nada de maneira precisa. Como esperar avaliação
racional se submetemos aos mesmos critérios universidades de massa,
com mais de 100.000 alunos e universidades de formação de elite,
com não mais do que 10.000 alunos? O que significa realmente medir
“impacto” através de incidências de citações? O que dizer de sistemas
de avaliação de publicações que não levam em conta livros? Como
medir a influência de uma universidade no interior da vida nacional?
Ou qual o sentido em esperar níveis de circulação de estudantes
estrangeiros da ordem de 25% em países que ainda precisam
encontrar formas de integrar largas camadas de sua população ao
sistema educacional superior?
No entanto, a submissão a tais sistemas opacos de avaliação levou
as universidades a se transformarem, no melhor dos casos, em
“guetos de luxo”: um misto de agências de viagens para colóquios
internacionais e consumo de produtos culturais globais com espaço
para a produção especializada de um saber cujos resultados, muitas
vezes, não são sequer publicados na língua local de seus países, já
que a transformação do inglês em língua franca implica retornar a
uma situação medieval na qual a classe intelectual não pode mais ser
lida pela população nacional da qual ela faz parte, um pouco como na
Idade Média e seus pensadores que escreviam em latim. Com isso, os
intelectuais foram, cada vez mais, perdendo relevância como
referências para a reflexão da sociedade sobre si mesma. Quando as
universidades não se submetiam diretamente a estes modelos, elas
sentiam o risco de serem jogadas à invisibilidade e irrelevância.
O Brasil, que conheceu no passado gerações de intelectuais
públicos de forte capacidade de influência no interior da vida social,
viu seus professores universitários, em larga medida, se demitirem
dessa função, como se sustentá-la fosse expressão de alguma forma
de “ausência de rigor” e diversionismo em relação às atividades
acadêmicas pretensamente reais. Melhor teria sido se a classe
intelectual tivesse sustentado o tripé político que a ela compete, a
saber, trabalho de base com setores desfavorecidos e vulneráveis, luta
pela conquista da opinião pública através da ocupação da imprensa e
articulação internacional em redes de pesquisa, tendo em vista a
análise de processos político-sociais globais.
No entanto, se estes são fatores que podem ser encontrados em
praticamente todos os países com classe intelectual relevante, há um
fator eminentemente local que merece nossa avaliação. Ele se refere à
relação profunda entre classe intelectual e gestão do Estado brasileiro.
A Nova República serviu-se da classe intelectual como um dos
setores mais importantes para o fornecimento de seus quadros de
gestão. O Brasil viu, nos últimos vinte anos, uma impressionante
quantidade de intelectuais se transformar em presidentes da
República, prefeitos, ministros e secretários de Estado. Normalmente,
eram intelectuais que se serviam do discurso do “é necessário fazer
alguma coisa”, “temos uma responsabilidade para com o país”.
Entretanto, isso nunca significou entrar no Estado para implodir por
dentro sua estrutura arcaica. Na verdade, tratava-se de fornecer ao
Estado um melhor discurso de justificação de seus arcaísmos, além de
produzir ajustes em seu funcionamento isto quando não acabávamos
vendo estratégias de garantia de benesses de consultorias e
assessorias. Os intelectuais não transformaram o Estado brasileiro,
eles se integraram a ele.
Por fim, do ponto de vista político, o esforço do setor hegemônico
da classe intelectual brasileira pareceu ter se esgotadocom a eleição
de Lula. Boa parte dos descaminhos do governo foi colocada na conta
da legitimidade dos intelectuais que um dia o apoiaram ou que
continuaram a apoiá-lo. O simples abandono do apoio não foi uma
operação bem-sucedida. Como os intelectuais não tiveram
discernimento suficiente para imaginar o que poderia ocorrer? Teria
sido necessário fazer uma autocrítica que nunca aconteceu. Por outro
lado, a repetição reiterada do lado bem-sucedido do governo soava,
para muitos, como estratégia para diminuir a força crítica diante dos
erros, que não eram mais comentados no espaço público, devido ao
medo de instrumentalização pela mídia conservadora.
Aos poucos, parte da mídia criou seus próprios intelectuais
conservadores, repetindo, algumas dezenas de degraus abaixo, um
fenômeno que os franceses viram nos anos 1970, com os nouveaux
philosophes. Como se não bastasse, o próprio governo foi
paulatinamente se afastando da órbita dos intelectuais de esquerda.
Assim, reduzindo a força dos movimentos sociais e a capacidade
crítica e de mobilização da classe intelectual, a situação só poderia
ficar à deriva.
Assim, há de se admitir que a única possibilidade de sobrevivência
da universidade passa por nossa capacidade de recuperar a força de
mobilização e influência, ou seja, de sermos um setor da sociedade
civil capaz de criar problemas. Se é fato que a universidade procura
ser espaço de circulação do desejo de saber como condição
fundamental para a consolidação da crítica, que ela defende o desejo
de saber como condição para a crítica, então há de se perguntar se
temos as condições reais de desenvolver a força emancipatória de tal
desejo. Saber defender um certo desejo: esta é talvez nossa tarefa
efetiva. Pois da universidade, resta apenas um mal-estar em relação às
imposições do presente. No entanto, este mal-estar é o que nossas
sociedades têm de mais real. 
entrevista Kenarik Boujikian
Uma opção pelos direitos humanos
AMANDA MASSUELA
Em 2014, o juiz João Batista Damasceno foi a julgamento por
pendurar uma charge de Carlos Latuff na parede do seu gabinete no
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Na imagem, um
homem negro com um tiro no peito faz as vezes de Jesus Cristo,
crucificado em frente a um policial fardado com uma arma na mão. O
quadro acabou indo a leilão depois que Damasceno recebeu uma
comunicação para que retirasse a obra das dependências do Tribunal.
A renda seria destinada à família de Amarildo Dias de Souza,
ajudante de pedreiro torturado e morto dentro de uma UPP (Unidade
de Polícia Pacificadora) na favela da Rocinha em julho de 2013.
A obra foi arrematada por Kenarik Boujikian Felippe, 58, juíza
desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). A
charge é uma das primeiras coisas que se veem ao abrir a porta do seu
gabinete, na região central da capital paulista. “É simbólico tanto pela
questão dos desaparecidos e da violência policial quanto da
independência judicial”, diz Boujikian à reportagem da CULT. “Um
juiz não pode ficar alheio à realidade. Tem que conhecer a história do
seu povo ou não vai conseguir aplicar as normas e ser um bom juiz.”
Neta de sobreviventes do genocídio armênio ocorrido no início do
século 20, nascida na aldeia de Kessab, na Síria, Boujikian foi punida
pela Corregedoria-Geral do TJ-SP por determinar a soltura de dez
réus presos por mais tempo do que a pena prevista sem consultar seus
pares. A decisão foi anulada no dia 29 de agosto último pelo
Conselho Nacional de Justiça por dez votos a um. Integrante da
Associação Juízes para a Democracia e uma das fundadoras do Grupo
de Estudos e Trabalhos Mulheres Encarceradas, Boujikian foi a
responsável pela condenação, em 2010, do médico Roger
Abdelmassih a 278 anos de prisão pelo estupro de 56 pacientes.
“Dentro dos meus processos, o que puder ser feito para garantir
direitos é o que farei sempre”, afirma. Por isso, se diz o “patinho
feio” dentro do Judiciário paulista, cujas decisões são as mais
contestadas no Superior Tribunal de Justiça, de acordo com pesquisa
da Fundação Getúlio Vargas. Na entrevista a seguir, ela discorre
sobre seletividade da Justiça, encarceramento em massa e machismo
no Judiciário.
A Justiça brasileira é seletiva?
Sim. Se olharmos como o Judiciário se portou ao longo da sua
história, em todos os períodos vamos encontrar esse comportamento
seletivo. Para fazermos um recorte: [no Império] tivemos uma lei que
proibia a entrada de africanos escravizados no Brasil [Lei Eusébio de
Queirós], e sabemos que mais de 500 mil entraram no país mesmo
após a promulgação da lei. É preciso ver quais interesses estão em
jogo, e na época eram os interesses dos proprietários de terras e de
escravos. Se pularmos para 1964, veremos um Judiciário que de
alguma forma corroborou com todo o sistema implantado pela
ditadura civil-militar brasileira. A maioria dos juízes foi omissa,
fechou os olhos – mas também tivemos juízes resistentes, o ministro
Evandro Lins e Silva é a grande referência nesse momento. Mais
recentemente, se analisarmos para quem funciona o Judiciário no
Brasil, veremos que as maiores litigantes são bancos e o próprio
Estado. Na justiça criminal, são jovens negros e periféricos. Com
tudo isso, podemos dizer que a Justiça é seletiva e sempre foi. Há
vários exemplos de juízes e de decisões que vão na direção contrária,
de garantir direitos, mas, se fizermos uma análise geral do sistema,
temos a seletividade como um marco.
Espera-se de um juiz que ele seja uma figura que puna e não que
garanta direitos?
Grande parte dos juízes não tem a noção de que o nosso papel é ser
exatamente um garantidor dos direitos fundamentais. Temos esse
problema sério da falta de consciência do que significa ser um juiz
em uma democracia, do próprio papel do Poder Judiciário. O juiz só
existe para garantir direitos fundamentais, para ser o limite do próprio
Estado.
Mas quando ele o faz geralmente é identificado como ativista ou
militante. Isso a incomoda?
Existe uma cultura de achar que o juiz é apolítico, e isso não existe. O
juiz não tem política partidária, mas todos os juízes são políticos
porque é algo da sua própria função: quando julgando, o juiz faz
política. Ele é um ente de Estado quando está fazendo o seu papel,
mas não deixa de ter os direitos de cidadão comum de inclusive
militar por direitos humanos – o que se dá em outra esfera. Eu não
vejo nenhum problema que me tomem como uma ativista de direitos
humanos, mesmo porque eu sou. Acho até bom que me reconheçam
assim. Mas em 28 anos e meio de carreira nenhuma das minhas ações
de participação social e de ativismo colocou em risco a minha
jurisdição. Nunca fiz nada que pudesse interferir em qualquer
processo. Acho importante que o juiz possa fazer sua atuação cidadã,
mas as pessoas confundem as coisas porque não entendem o conceito
de direitos humanos. Usam o termo ativista como algo negativo
porque não percebem os direitos humanos como um direito que
pertence a todos, sem qualquer espécie de distinção.
Atribui a essa “falta de consciência” sua pena aplicada pelo
Órgão Especial do TJ-SP?
Sim. Temos um sistema [Judiciário] que quer o pensamento único do
direito penal. Isso é um fato aqui dentro do Tribunal de Justiça: não
aceitar que uma pessoa pense diferente a ponto de ser processada. E
fazendo o diferente você dá mais trabalho. O fundo do meu processo
é esse. Mas também existe uma questão de gênero aí.
Vê misoginia na decisão?
Sim, e ela está retratada na própria estrutura do nosso Judiciário de
São Paulo. Imagine que até 1981 não tínhamos mulheres na
magistratura. Será que até então não havia nenhuma mulher
capacitada para ser juíza? A Associação Juízes para a Democracia
(AJD), da qual faço parte, fez uma luta de tribunal para que as provas
deixassem de ser identificadas, e depois que conseguimos essa
alteração legislativa muitas mulheres conseguiram ingressar. Em
1989 eu fui a primeira juíza em Piracicaba, que era a minha comarca.
Na área criminal no TJ-SP temos três desembargadoras em um
universo de 80 homens. Os númerosjá indicam alguma coisa, mas a
misoginia é muito mais sutil no dia a dia e as pessoas não enxergam
isso. Só quem tem essa convivência é que pode assegurar que ela é
um fato e está nas formas utilizadas para coibir a manifestação da
mulher, a sua participação, a sua integridade como um ser pensante e
que exerce um poder de Estado. E todos negam. Todo mundo vai
dizer que não existe mais machismo no Tribunal. Me engana que eu
gosto.
Como aumentar a presença de mulheres no Judiciário?
Tem aumentado, ultimamente tem entrado mais ou menos a mesma
proporção. Se pensarmos que em 1981 tínhamos zero e hoje 37%, o
fato concreto é que temos um número maior de mulheres. Mas não
tenho tanto essa preocupação do ingresso, porque hoje elas estão
prestando concurso, passando. Temos que ter outros enfrentamentos.
Quais?
Esses todos do funcionamento da Justiça livre do machismo. É
preciso coragem para fazer esse enfrentamento, o que ninguém tem. É
quase um tabu falar em machismo dentro do Judiciário. Já ouvi juíza
falar de juiz que passou a mão no corpo dela, por exemplo, e devem
ter muitos outros casos que a gente não sabe. Por isso é importante
começar a enfrentar o machismo dentro do Judiciário de forma clara,
aberta e transparente. Tenho certeza de que vai aparecer muita coisa.
Gostaria de voltar ao tema da sua penalização por ter soltado dez
presos provisórios em 2016. Eles compõem mais de um terço da
massa carcerária brasileira. São prisões desnecessárias?
Muitas delas são desnecessárias. O Brasil é reconhecido como o país
que utiliza excessivamente a prisão provisória como se fosse uma
antecipação do castigo, da pena. Há pessoas que não cometeram
crimes violentos e que estão presas. Eu raramente falo sobre os meus
processos, mas tenho falado sobre a Cíntia. Ela ficou quase quatro
anos presa por portar menos de um grama de cocaína. Qual é a
justificativa para prender durante quatro anos uma pessoa que não
tem nenhum antecedente criminal e que não cometeu um crime
grave? Não há nenhuma lógica por qualquer ângulo que se olhe. Um
preso custa ao Estado, em média, de dois a três salários mínimos.
Essa mulher ficou presa durante quase quatro anos, e ela tinha um
filho pequeno. Há muitas situações que não se justificam, mas à luz
de um Estado punitivo, é o que temos: aproximadamente 45% de
presos provisórios. Entre as mulheres, são quase 70% envolvidas em
crimes de tráfico.
Por que esse número é tão alto entre elas?
Ao que parece, pelo perfil das mulheres e pelos estudos feitos, elas se
envolvem com esses atos por necessidade de renda. São pequenas
quantidades que normalmente vendem ou guardam para alguém em
troca de algum dinheiro e com isso conseguem manter a vida e
sobreviver com o que dá. A Cíntia tinha não sei quantas moedas de
um real, algumas notas de dois, uma miséria. Onde está a grande
traficante nessa história? É uma informação equivocada para a
sociedade porque alguém está sendo protegido com isso. Quem
trafica e ganha dinheiro não está nas favelas, não está nos morros,
mas esses aí a gente nunca vai ver.
Nos últimos 15 anos o número de mulheres encarceradas no
Brasil aumentou mais de 500%. Quais as consequências desse
crescimento tão vertiginoso?
A gente precisa ter em conta que a prisão da mulher reflete de forma
diferente em relação à do homem. A mulher, querendo ou não, tem o
componente de segurar um papel dentro da comunidade e do círculo
familiar. A maioria das que estão sendo presas são chefes de família.
Isso significa que lá naquele núcleo teremos pessoas sem a sua
sustentação, o que reflete de maneira muito perversa principalmente
nos filhos dessas mulheres. Mas nada disso é refletido quando se
pensa no aprisionamento, como se a gente pudesse simplesmente
jogar essas pessoas na prisão e tudo bem. Esse crescimento é
realmente espantoso porque são 570% em uma década e meia. Muita
coisa precisa ser revista, da própria lei até a compreensão do que
significa a política de drogas atual. Que consequências está trazendo
em todos os aspectos, inclusive econômicos? Quanto está gerando de
violência? Será que essa política resolve alguma coisa? Porque se
resolvesse até eu, que sou não muito simpática ao aprisionamento,
regra geral, seria favorável. Mas ela apenas gera mais violência.
O debate sobre o encarceramento em massa no Brasil passa
necessariamente por uma revisão da Lei de Drogas?
Com certeza. É uma das questões fundamentais nos dias de hoje. A
Lei de Drogas precisa ser revista e especialmente pensada no sentido
de todos conhecermos a realidade num sentido amplo. Em que
medida esse aprisionamento está resolvendo algo, quanto estou
gastando para prender uma pessoa, que danos psicológicos vêm daí?
A vida é complexa e tem que ser vista como efetivamente é. Não
basta prender e acreditar que resolveu algum problema. É um
discurso mentiroso e salvador do qual o Judiciário faz parte.
É possível avançar nesse debate no Brasil pós-impeachment?
Nós precisamos fazer o que estiver nas nossas mãos para que isso
aconteça. Qualquer coisa só avança com a nossa participação, e nós
vamos fazer essa construção. Ninguém vai fazer por nós, ninguém vai
mudar esse quadro se não formos nós. Acredito que vamos mudar,
sim. Tem muita gente discutindo esse tema. E são jovens. Os maiores
interessados estão aí, querendo mudar, querendo fazer um novo país.
Em cada gesto, em cada ato, na medida de cada um, é nossa
obrigação construir a democracia, seja profissionalmente, seja na
atividade familiar, na comunidade, no ativismo.
Vivemos em uma democracia?
Não. Eu faço parte da Associação Juízes para a Democracia (AJD),
construída logo depois do marco da Constituição de 1988. Na época,
pensamos que tínhamos uma obrigação de contribuir para a
construção da democracia no Brasil. Porque ela não estava acabada
na Constituição de 1988, estava ali nos seus pilares para ser
construída. A associação entendia que poderíamos contribuir para a
democratização judiciária e do próprio país. Nunca pensei que
chegaríamos a esse ponto. Não conseguiria imaginar que isso pudesse
acontecer. Só vamos poder dizer que ela existe se construirmos uma
sociedade mais igual. Quando isso for realidade a gente pode dizer
que há democracia. Mas não temos, estávamos em um processo de
construção que foi rompido com o impeachment, que é um golpe
contra tudo o que está na Constituição, não é só o ato de tirar a
presidenta da República. Nem formalmente posso afirmar com a
mínima tranquilidade que temos uma democracia. Mas precisamos
reconstruí-la. Como vai ser esse caminho eu não tenho ideia, mas sei
que nós é que vamos ter que fazer isso.
Quando diz “nós”, se refere a quem?
Você, eu, todo mundo que acredita nisso. É impressionante como em
um período tão curto tantas coisas construídas estão andando para
trás. Isso é da maior gravidade. Vivemos um momento extremamente
delicado e precisamos arregaçar as mangas. Construção de
democracia, para mim, é tirar gente da linha da miséria, é garantir
igualdade paras as mulheres, é investir em educação. Se isso não for
concreto, a democracia é apenas formal, o que não vale para quase
nada perto do seu real significado. Mas acredito que vamos conseguir
passar por esse trecho cruel da nossa história. 
dossiê Réquiem para uma nação
Apresentação
WELINGTON ANDRADE
Foi depois de uma conversa com o psicanalista Tales Ab’Saber que a
CULT concebeu o presente dossiê, cuja proposta é levar o leitor a
refletir sobre o processo de desintegração da sociedade brasileira que
está sendo conduzido a toque de caixa pela gestão de Michel Temer à
frente do Governo Federal.
Além de publicar entrevista com o próprio Ab’Saber, na qual ele
declara, entre outras considerações aguçadas, que a democracia atual
se tornou uma fachada para a produção de uma violência legítima, o
dossiê reúne textos de consagrados especialistas sobre os principais
temas que dizem respeito ao estado de coisas que vivemos desde o
impeachment da presidente Dilma Rousseff. Alvaro Bianchi trata do
esgotamento do modelo do presidencialismo de coalização eas
alternativas autoritárias e antidemocráticas que decorrem dele. Ruy
Braga fala da massa trabalhadora que passa, a partir da aprovação da
reforma trabalhista, a ficar desassistida e totalmente à mercê das
manobras conservadoras que tomaram de assalto a política e a
economia do país nos últimos meses. “O resultado da atual crise
brasileira talvez seja o nascimento de uma sociedade tão desigual e
violenta que não seja capaz de reconhecer a monstruosidade de seus
dirigentes”, afirma o sociólogo. Pablo Ortellado se pergunta por que
as ruas se calaram diante de tanta arbitrariedade e injustiça. O juiz
Rubens Casara aponta a iniquidade de um Estado sem limites rígidos
ao exercício do poder, justamente em um momento em que, segundo
ele, “o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase
voltam a se identificar, sem pudor”. Rosana Pinheiro-Machado,
Joanna Burigo e Winnie Bueno demonstram que as reformas recém-
adotadas representam a retomada de um projeto de controle e
impedimento do exercício dos direitos básicos de cidadania.
O que os ensaios a seguir constatam, esclarecem, denunciam nesse
momento tão desencantado da vida do país não parece um movimento
regido pelo caráter de exceção, mas sim algo inerente ao capitalismo
internacional, que sob o ponto de vista da cor local adquire
enegrecidos tons de tragédia brasileira, a qual é preciso deplorar para
que se possa organizar um movimento de reação à altura dos
inúmeros desastres que ela vem proporcionando desde que foi
anunciada há mais ou menos dois anos. 
A democracia de Tancredi e a do doutor
Pangloss
ALVARO BIANCHI
No começo do século 20 a crise da democracia era um diagnóstico
bastante difundido na Itália. O longo processo de unificação nacional
no século anterior havia consolidado uma ordem política baseada na
subordinação do Sul ao Norte e em instituições políticas fortemente
antidemocráticas, nas quais os prefeitos (prefetti) constituíram-se em
órgãos monocráticos do Estado que representavam o governo central
nas províncias, arbitrando a vida local, e a nova lei eleitoral
reproduzia o caráter fortemente censitário do sistema político
Piemontês.
A ampliação do sufrágio eleitoral a todos os homens maiores de 30
anos, no ano de 1912, alterou profundamente essa ordem política. O
Partito Socialista Italiano (PSI) pulou de 97 mil votos em 1900 para
170 mil votos em 1909, e 903 mil votos, em 1912. Mas a lei eleitoral
baseada na votação distrital uninominal impedia a bancada
parlamentar do PSI de crescer proporcionalmente. Embora seu
número de votos tivesse crescido quase dez vezes entre 1900 e 1913,
a bancada do partido passou de 33 para 52 deputados apenas. Os
17,7% dos votos dessa última eleição garantiram ao PSI menos de
10% dos deputados do país. Eram, entretanto, o bastante para
perturbar o jogo político tradicional.
As elites políticas italianas reagiram a essa extensão da
representação política das classes subalternas por meio do
transformismo, pela absorção, cooptação e moderação dos
representantes dessas classes. Esse procedimento era parte da história
política italiana desde que a Sinistra storica, liderada por Agostino
De Pretis, venceu as eleições parlamentares, em 1876, e formou um
governo com representantes da antiga Destra. Tomasi di Lampedusa
imortalizou literariamente o transformismo fazendo o jovem Tancredi
dizer a seu tio, o príncipe de Salina no romance Il Gattopardo: “Tudo
deve mudar para que tudo permaneça como antes”.
O transformismo permitia confinar a política a horizontes muito
estreitos e a princípio possibilitava que as crises fossem contidas no
âmbito das trocas dos gabinetes ministeriais, da sucessão dos chefes
de governo, ou até da alternância partidária. Os limites desse arranjo,
entretanto, saltavam à vista: a contradição entre a mesquinha prática
política, na qual imperavam os interesses particularistas, a troca de
favores e os ganhos imediatos, e a promessa liberal de um parlamento
que expressaria o interesse geral por meio do sufrágio universal era
irresolvível.
A ciência política italiana nasceu criticando essa democracia.
Autores como Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto desde o final do
século 19 denunciavam a ineficiência das instituições políticas
italianas, a má qualidade dos dirigentes políticos, as perturbações à
ordem promovidas pelas revoltas camponesas e pelas greves
operárias. Acreditavam que o encontro de uma classe dirigente
mesquinha com o “despotismo das massas” inviabilizava a
democracia. Os remédios recomendados por esses autores para esses
males implicavam a redução da participação popular na vida política
e até mesmo a restrição do sufrágio. Contra os limites da democracia
receitavam menos democracia.
Embora acertassem no diagnóstico da crise da democracia, esses
autores apontavam as causas erradas. O que caracterizava a crise da
democracia italiana no início do século 20 não era um excesso de
participação popular, mas a incapacidade de as instituições
parlamentares absorverem as demandas populares como elas eram,
sem transformá-las. A crise da democracia era uma crise de
representação, o povo não se sentia representado pelos representantes.
A participação da Itália na Guerra Mundial e a desastrosa derrota
militar agravaram ainda mais essa crise. A distância entre os
interesses do povo e os mandatos dos deputados tornou-se ainda
maior. O fascismo foi uma resposta reacionária à crise de democracia.
CRISE DE HEGEMONIA
Observando aquilo que denominou de crise de hegemonia, o italiano
Antonio Gramsci fez uma observação precisa. Na prisão de
Mussolini, ele identificou que aquilo que muitos consideravam uma
crise de autoridade, ou seja, a dificuldade que os governantes tinham
de exercer seu poder, era na verdade uma crise de representação. Os
representados haviam deixado de se identificar com os representantes
e o governo não conseguia mais se apresentar com a encarnação do
interesse geral. Foi aí que Gramsci escreveu sua conhecida frase: “A
crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não
pode nascer: neste interregno se verificam os fenômenos mórbidos
mais variados”.
Essa passagem tem sido repetida à exaustão na recente crise
brasileira. Nas conversas com seus amigos e companheiros de partido
e mesmo em entrevistas, Fernando Henrique Cardoso a cita com
frequência. O ex-presidente, entretanto, encurta a frase e tira dela a
afirmação de que é nesse intervalo entre o velho e o novo que surgem
manifestações patológicas da política. Quando escreveu esse texto,
Gramsci tinha em mente a ascensão do fascismo e do nazismo na
Europa. A crise da democracia e a derrota da alternativa comunista na
Itália, em 1920, e na Alemanha, em 1923, abriram o caminho para
dirigentes carismáticos, apoiados na pequena-burguesia e nos
ressentimentos nacionais exacerbados pela derrota na Primeira Guerra
Mundial. Hitler e Mussolini foram as consequências da crise.
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO
A recente pesquisa da Ipsos a respeito da democracia no Brasil
permite testar essa hipótese gramsciana. Dentre os entrevistados, 94%
disseram que os políticos brasileiros no poder não representam a
sociedade; 86% não se sentiam representados pelos políticos nos
quais votaram; 81% pensam que o problema não está nos partidos e
sim no “sistema político”; e apenas 38% consideram que a
democracia é o melhor regime político. A devastadora conclusão do
coordenador da pesquisa, Rupat Patitunda, foi que a “democracia no
Brasil, desta forma, não é representativa”.
O fosso entre representantes e representados parece intransponível
e atinge todos os partidos, sem exceção. É nesse contexto que
fenômenos mórbidos podem aparecer. O próprio Patitunda
considerou que essa situação poderia favorecer a emergência de
lideranças autoritárias.
Definitivamente, a ciência política brasileira não estava preparada
para isso. Há mais de trinta anos a mainstream de nossa ciência
política tem afirmado que o chamado presidencialismo de coalizão
estava produzindo bons resultados, que as instituições democráticas
estavamconsolidadas e funcionando de modo apropriado. As eleições
de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff eram a prova que
faltava. As instituições haviam passado pelo teste da alternância no
poder e permitido que chegasse ao Planalto um partido que havia
nascido nas greves operárias, juntamente com a própria democracia
brasileira.
Testando estatisticamente até a exaustão esse modelo institucional,
essa mainstream chegava sempre à mesma conclusão do doutor
Pangloss: “Tudo está em seu melhor no melhor dos mundos
possíveis”. Cegos ao crescimento exponencial dos gastos com as
campanhas eleitorais e aos custos financeiros e políticos para a
manutenção das coalizões, completamente indiferentes perante a
evidente queda da qualidade dos parlamentares, ou insensíveis à
sobrerrepresentação de interesses empresariais, corporativos ou
religiosos, esses cientistas consideravam o presidencialismo de
coalizão e o sistema eleitoral e partidário brasileiro o melhor dos
mundos possíveis. Para esses politólogos, a escassa participação
popular na vida política nacional nunca foi um problema. O
importante era que as instituições continuassem a funcionar como de
hábito.
Nas manifestações de 2013 o esgotamento do modelo do
presidencialismo de coalizão começou a ficar evidente. O recado das
ruas era claro: o povo não confiava mais nos “políticos” e em seus
partidos. Estava cansado de promessas não cumpridas. Pela primeira
vez em nosso país, grandes manifestações públicas ocorreram à
margem dos partidos políticos tradicionais e produziram um discurso
político no qual esses partidos não deveriam ter lugar nas ruas.
Alguns leram isso como um sinal de despolitização e alertaram para
os riscos que esse discurso traria consigo. Não se tratava de
despolitização, entretanto. As demandas tinham por alvo o poder
público. Era uma nova forma de fazer política que emergia, uma
forma que recusava os estreitos quadros do presidencialismo de
coalizão.
O velho presidencialismo de coalizão já morreu. Embora alguns
ainda continuem a considerar que suas instituições ainda podem
continuar existindo e se reproduzindo, é bastante evidente que o povo
já assinou o atestado de óbito dessa forma política. O novo,
entretanto, ainda não conseguiu se traduzir em uma forma política e
institucional. É nesse interregno que as alternativas autoritárias e
antidemocráticas prosperam. Deixar para trás o realismo de Tancredi
e as ilusões do doutor Pangloss ainda é um desafio para aqueles que
querem ver a emergência do novo. 
O fim da sociedade salarial
RUY BRAGA
Não é nenhum segredo que, a partir do início da década de 2000, a
ascensão do chamado “Sul global”, isto é, esta região política e
geográfica capaz de agregar tanto os processos de exploração
nacional dirigidos pelas forças da financeirização do capital, quanto
as lutas por projetos alternativos de transformação social e política,
veio acompanhada de uma onda de esperanças em torno do
aprofundamento da democracia e da mitigação das desigualdades
sociais. Em grande medida, o aumento das expectativas, sobretudo
em relação aos países da América do Sul, mas, igualmente, a África
do Sul, a Índia e a Turquia, por exemplo, deveu-se a uma peculiar
combinação de vitórias eleitorais de forças sociais esquerdistas,
crescimento econômico e multiplicação de protestos contra a
espoliação do bem comum.
Se bem é verdade que, como afirma Vijay Prashad, em seu The
Poorer Nations: A Possible History of the Global South, o Sul global
é “(...) um mundo de protestos, um furacão de atividades criativas,
capaz de produzir uma abertura cuja direção política não é fácil de
definir”, tornou-se cada dia mais claro que a crise da globalização
iniciada em 2008 fez refluir o otimismo original, substituindo-o pelo
medo do recrudescimento do autoritarismo e do aprofundamento da
segregação social. A grande recessão econômica que acompanhou o
início da atual crise não apenas desorganizou os arranjos
hegemônicos nacionais construídos durante décadas de mobilizações
contra a exploração e a dominação, como colocou no centro do palco
da política mundial o desafio da combinação entre acumulação
econômica e legitimação política.
De fato, a partir de 2008, é possível perceber, em especial, no Sul
global, o acúmulo das tensões sociais derivadas da necessidade dos
Estados nacionais estimularem o crescimento em um contexto
recessivo e assegurarem a unidade das classes dominantes por meio
da promoção de um nacionalismo reacionário, enquanto respondem
violentamente ao avanço das formas mais ou menos inorgânicas de
resistência popular. A reprodução do conflito entre acumulação e
legitimação tem fortalecido tanto a financeirização do capital, a
espoliação do trabalho e o crescimento lento sem a criação de
empregos, quanto estimulado o nacionalismo, o autoritarismo e a
corrupção estatal em uma escala sem precedentes.
Por sua vez, o ataque global aos direitos sociais e ao bem comum
tem sido enfrentado por táticas políticas contingentes, forças
populares ainda em formação e coalizões programaticamente
instáveis. Trata-se de um embate desigual entre um Estado acólito das
finanças e uma resistência popular fragmentada cujo resultado mais
visível até o momento foi o agudo estreitamento do espaço político
assegurado pela repressão aos movimentos sociais, pela
despolitização dos conflitos via estímulo ao consumo, pela cooptação
de dirigentes das forças antagonistas e pela erosão do espaço público.
Quer estejamos falando da China, da Índia, da África do Sul, da
Turquia ou da América Latina, o cenário repete-se: o choque entre a
acumulação e a legitimação semeia o autoritarismo e a desesperança.
Aqui, vale lembrar que a informalização do trabalho acompanhada
pelo estímulo governamental ao empreendedorismo dos subalternos,
uma maneira de transformar o vício em virtude, tende a reforçar os
efeitos deletérios deste choque. Afinal, em um contexto de erosão em
escala mundial dos rendimentos do trabalho, as expectativas
populares estimuladas pela ideologia do empreendedorismo
fatalmente irão se frustrar tendo em vista o estreitamento dos
mercados nacionais. O chamado capitalismo de plataforma não pode
substituir a promessa da inclusão social via trabalho subjacente à
sociedade salarial exatamente por não ser capaz de estabilizar
minimamente a condição proletária. Antes, trata-se de uma
generalização da lógica da competição entre as classes subalternas
afinada com o polo da acumulação, mas, completamente divorciada
do polo da legitimação. Em poucas palavras, a “uberização” do
trabalho pode bem reforçar as pulsões populistas de direita que têm
semeado a segregação social em diferentes contextos nacionais.
Apesar de ter chegado um pouco mais tarde à crise da globalização,
a sociedade brasileira tem experimentado, desde o golpe parlamentar
de 2016, um desmanche sem precedentes do projeto democrático
social construído entre os anos 1940 e 1980. Trata-se do
desaparecimento de um horizonte político, ou seja, da promessa da
cidadania salarial no país. Em poucas palavras, a combinação entre o
surgimento da proteção trabalhista e a ampliação dos direitos sociais
com recursos assegurados constitucionalmente não apenas estimulou
a industrialização do país, como também assegurou às classes
subalternas brasileiras um patamar, ainda que mínimo, de bem-estar
social. Para milhões de trabalhadores pobres e vivendo em condições
precárias de vida ou de trabalho, a existência da Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT) e da previdência social acalentava o sonho de
um futuro melhor. Para obter mais detalhes, pode-se ler A construção
da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a
persistência secular das desigualdades, de Adalberto Cardoso.
Os efeitos sociais do desaparecimento deste horizonte político
ainda não foram plenamente percebidos no país. Os ataques aos
alicerces da cidadania salarial, isto é, a proteção trabalhista e
previdenciária, ainda não se fizeram sentir por completo. Trata-se de
um processo que levará ainda um par de anos para revelartodo seu
potencial desagregador. No entanto, quando isso acontecer, o nível de
ressentimento popular deverá se tornar crítico. Afinal, as
contrarreformas pós-impeachment estão desmantelando os principais
instrumentos de redistribuição de renda do país, isto é, a previdência
social e a CLT.
Ainda assim, enganam-se aqueles que imaginam que as
contrarreformas relacionam-se apenas à trajetória da renda nacional.
Os direitos sociais e a luta por sua efetivação deram forma a um
inédito e legítimo espaço de disputas políticas que historicamente foi
ocupado pelas classes subalternas nacionais. Afinal, foi o processo de
ampliação da cidadania salarial que cimentou o consentimento das
massas populares em relação ao Estado burguês no país. Sem a CLT e
a aposentadoria, que tipo de legitimação os governos imaginam poder
conquistar numa sociedade em que praticamente todas as dimensões
do bem comum já foram mercantilizadas? Na realidade, no lugar da
cidadania salarial, assistiremos à universalização dos mecanismos
típicos do capitalismo de plataforma que, na atual etapa tecnológica,
servirão para reinventar mais uma vez os dilemas de nosso atraso
social.
Para avaliar melhor o significado histórico das contrarreformas
pós-impeachment, talvez fosse útil uma rápida comparação com a
África do Sul pós-apartheid. Também lá, uma onda de esperanças
populares adveio da derrota do regime racista por uma sociedade civil
mobilizada e liderada pelo Congresso Nacional Africano (ANC). No
entanto, um verdadeiro Thermidor neoliberal seguiu-se à libertação
política dos negros, aprofundando as desigualdades e, sub-
repticiamente, reintroduzindo a segregação social, agora não mais
baseada na cor da pele, mas no poder do dinheiro. O mercado de
trabalho foi ainda mais informalizado e os empregos desapareceram,
deixando um saldo de desempregados de cerca de 30% da PEA. O
apartheid racial foi sucedido pelo apartheid social e a segregação dos
negros e dos pobres não se alterou significativamente.
A escalada de violência social e xenofóbica vivida pelo país desde
o início da crise da globalização revela como, na expressão de Chico
de Oliveira, o “globalitarismo neoliberal” conduz à desintegração da
sociedade. Para assegurar a reprodução da ordem, segue-se um
recrudescimento do autoritarismo estatal. O massacre dos mineiros
ocorrido em agosto de 2012 no povoado de Marikana sintetizou
tragicamente estas tensões sociais, anunciando aos trabalhadores
negros que qualquer expectativa relacionada à cidadania salarial
deveria ser eliminada de seu horizonte político. A partir de então, a
relação entre os trabalhadores e o Estado passou a ser mediada pela
gramática da violência social.
Não há dúvidas de que, se a desconstrução da sociedade salarial
brasileira continuar avançando no ritmo atual, em breve, assistiremos
a uma escalada semelhante. Sem o horizonte da proteção trabalhista e
sem perspectivas de aposentadoria, os subalternos irão se perceber
aprisionados em um espaço tão restrito de ação política que fará da
desesperança a regra, divorciando litigiosamente as massas populares
do Estado. O caminho contrarreformista e antipopular escolhido por
um governo ilegítimo é não apenas economicamente ruinoso, por
atacar frontalmente os rendimentos daqueles que vivem do trabalho,
como politicamente suicida por erodir as bases institucionais da
legitimidade do Estado.
O resultado da atual crise brasileira talvez seja o nascimento de
uma sociedade tão desigual e violenta que não seja capaz de
reconhecer a monstruosidade de seus dirigentes. Os exemplos de
Recep Erdoğan, na Turquia, de Narendra Modi, na Índia, ou de
Rodrigo Duterte, nas Filipinas, servem de alerta: a crise da
globalização fechou subitamente a janela de oportunidades para o
progresso do Sul global, alçando o autoritarismo ao primeiro plano da
cena política. Populismos direitistas multiplicam-se pelo mundo
afora, alimentando-se da frustração das expectativas populares em
relação ao futuro. No nosso caso, o atual desmanche da cidadania
salarial é o combustível que alimenta a fogueira. Reverter esta
situação exigirá o melhor de nossas forças. 
Estado pós-democrático e a gestão estatal da
pobreza
RUBENS CASARA
A opção política que levou ao Estado Democrático de Direito é a de
que o poder deve ser controlado a fim de evitar novos totalitarismos e
permitir o exercício da máxima liberdade (vida plena) compatível
com igual liberdade dos demais (vida plena dos outros). Não por
acaso, os direitos e as garantias fundamentais previstos na
Constituição da República tornaram-se os principais limites ao
exercício do poder. Trata-se, em termos weberianos, de um “tipo
ideal” de Estado que tem o compromisso de realizar os direitos
fundamentais e como principal característica a existência de limites
legais ao exercício do poder. Assim, buscou-se resgatar a tradição
ilustrada e liberal que sustenta, adiante da grande antítese entre
liberdade e poder, a ampliação da esfera de liberdade e a restrição dos
espaços que permitem a opressão e o exercício arbitrário do poder.
O que existe de novo na atual quadra histórica, e que sinaliza a
superação do Estado Democrático de Direito, não é a violação dos
limites ao exercício do poder, até porque violações à Constituição
sempre existiram, mas o desaparecimento de qualquer pretensão de
fazer valer esses limites. Isso equivale a dizer que não existe mais
uma preocupação democrática, ou melhor, que os valores do Estado
Democrático de Direito não produzem mais o efeito de limitar o
exercício do poder em concreto.
Por “Pós-Democrático”, a falta de um nome melhor, entende-se um
Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um
momento em que o poder econômico e o poder político se
aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor. No Estado
Pós-Democrático, a democracia permanece não mais com um
conteúdo substancial e vinculante, mas como um mero simulacro, um
elemento discursivo apaziguador, em meio à vigência de uma espécie
de absolutismo de mercado.
Os sintomas pós-democráticos estão presentes no Brasil: da
mercantilização do mundo-da-vida à sociedade do espetáculo, do
despotismo do mercado ao narcisismo extremo, da reaproximação
entre o poder político e o poder econômico ao crescimento do
pensamento autoritário. Os direitos e as garantias fundamentais
passaram a ser considerados negociáveis, enquanto o Poder Judiciário
abandonou a função de garantir a democracia para se tornar um mero
homologador das expectativas dos detentores do poder político e do
poder econômico.
Pós-Democrático é o Estado compatível com o neoliberalismo,
com a transformação de tudo em mercadoria. Um Estado que, para
atender ao ultraliberalismo econômico, necessita assumir a feição de
um Estado Penal, de um Estado cada vez mais forte no campo do
controle social da população, em especial daqueles que não
interessam aos detentores do poder econômico. Para instaurar o
império do mercado, desmantelar o Estado do Bem-Estar Social e
reduzir direitos, mostrou-se necessário aderir a um projeto autoritário,
tendencialmente totalizante, voltado à produção de efeitos em todas
as esferas da existência.
A partir da razão neoliberal, os direitos e garantias fundamentais
deixam de representar um obstáculo ao poder. Um poder que se
direciona ao condicionamento de corpos e almas. Um poder que se
manifesta como biopoder, ao administrar e controlar os corpos, mais
precisamente dirigindo e canalizando a população aos fins do projeto
neoliberal, e como psicopoder, ao intervir nos processos psicológicos
e criar mecanismo de domesticação. Ao controle externo (e a
correlata exploração-do-outro), produzido pelo poder punitivo,
somam-se o autocontrole e a autoexploração (exploração-de-si),
promovidos pelo psicopoder.
Em sociedades com menor desigualdade social, o receituário
neoliberal aposta no recurso ao psicopoder, como percebeu Byung-
Chul Han. O autocontrole produzido pelo psicopoder revela-se mais
efetivo e menos traumático do que o exercício de um poder externo
sobre o corpo doexplorado. O fenômeno da autoexploração do
indivíduo inserido na sociedade neoliberal (em que o indivíduo é
levado a se ver como um projeto empresarial, a partir da crença de
que se é livre) substituiu em grande parte o exercício do poder
disciplinar.
Por sua vez, em países como o Brasil, a utilização do poder penal
continua a ser uma das principais estratégias de manutenção do
projeto capitalista. Aos que creem ser empresários-de-si, reserva-se a
autoexploração e o autocontrole; aos que, mais perto da realidade,
sabem que são excluídos e explorados, concretiza-se o poder
disciplinar e a exclusão penal.
O Estado Pós-Democrático é, portanto, um modelo
tendencialmente omisso no campo do bem-estar social, mas
necessariamente forte na contenção dos indesejáveis, sejam eles a
camada da população incapaz de produzir ou consumir, sejam eles os
inimigos políticos daqueles que detêm o poder político e/ou
econômico.
A utilização do poder penal para excluir e neutralizar os “inimigos”
não é um fenômeno novo, mas costuma-se apontar a experiência
norte-americana nas últimas quatro décadas como o principal e mais
influente exemplo da gestão penal de pessoas. Desde meados dos
anos 1970, os Estados Unidos são o principal disseminador de um
projeto político que busca submeter todas as atividades humanas à
lógica do mercado, e para tanto se tornou indispensável o incremento
do Estado Penal.
O crescimento do recurso ao poder penal, correlato à diminuição
das políticas inclusivas, assistencialistas e de redução da
desigualdade, revela-se funcional à razão neoliberal. A opção política
norte-americana de livrar o Estado de preocupações com a redução da
desigualdade, a inclusão das minorias e o funcionamento da
economia, somada à tolerância com um elevado nível de pobreza, a
concentração da riqueza em poucas mãos, a decomposição do
proletariado (vítima das revoluções tecnológicas levadas a cabo sem
preocupações sociais) e a desregulamentação do trabalho, só é
sustentável pelo agigantamento do Estado Penal. Isso pode ser
comprovado nos Estados Unidos por meio da análise da correlação
entre o nível dos auxílios sociais e a taxa de encarceramento nos
estados: quanto mais são reduzidos os auxílios sociais, mais aumenta
o número de pessoas presas. Ou seja, a razão neoliberal leva a um
regime complexo que é liberal em relação aos detentores do poder
político e econômico, público para o qual vigora o laissez-faire, e, ao
mesmo tempo, busca anestesiar ampla parcela da população com
promessas de consumo, enquanto, para os indesejáveis, os indivíduos
ou grupos que “não prestam”, segundo a razão neoliberal, reserva
medidas penais de controle e exclusão, em uma espécie de
paternalismo punitivo.
Entre as funções clássicas do Estado (elaboração de leis, defesa de
agressões externas etc.), a razão neoliberal prioriza as funções ligadas
à polícia e à justiça, isso porque não pode haver obstáculos para os
fins do mercado e a busca do lucro, o que faz com que o Estado
precise atuar no controle e na exclusão de indivíduos ou grupos
“perigosos”. Assim, a função do Sistema de Justiça, que passa a atuar
a partir da razão neoliberal, fica reduzida ao controle sobre os corpos
indesejados e a homologação das expectativas do mercado e dos
detentores dos meios de produção.
No Brasil, instaurou-se a crença na necessidade da “guerra ao
crime”, expressão que na realidade esconde um processo de exclusão
ou extermínio da população indesejada e despossuída (indesejada, em
regra, por ser despossuída) que se dá nos locais que essas pessoas
ocupam nas cidades (no Rio de Janeiro, por exemplo, nas favelas).
Ao se adotar o modelo bélico estadunidense de reação às condutas (e
pessoas) problemáticas à luz da razão neoliberal, as favelas e as
periferias tornaram-se o cenário em que ocorrem espetáculos
promovidos pelos agentes estatais responsáveis pela “ordem pública”
(leia-se: conjunto de medidas que permitem o gozo da propriedade e a
manutenção da lógica do mercado), tais como as exibições do poderio
bélico estatal, a troca de tiros com pessoas apontadas como
criminosas e as “pacificações” (na verdade, ocupações militares
seguidas da instauração, em maior ou menor grau, de regimes de
exceção). Desses novos guetos, o Sistema de Justiça seleciona a
maioria dos indivíduos que vão figurar como réus e acabar
condenados. Nesses guetos, a “vida” é uma mercadoria de valor bem
reduzido.
Nas últimas décadas, a gestão de pessoas pelo Sistema de Justiça
tornou-se uma das principais preocupações dos detentores do poder
político. Como é da essência do Estado Pós-Democrático, aposta-se
na exclusão dos indivíduos indesejados para assegurar a manutenção
do projeto neoliberal. Com a redução dos direitos trabalhistas, o
desmonte da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as
privatizações e a comercialização do cotidiano, resta ao poder político
recorrer ao poder penal para gerir a pobreza. A “mão invisível do
mercado” que assegura a “sobrevivência dos mais aptos”, como se
todos estivessem na mesma condição de concorrer por direitos e
vantagens, encontra seu prolongamento ideológico nas campanhas
por mais encarceramentos e nas premissas do Estado Penal voltado
aos que recebem o rótulo de underclass.
Ao lado do encarceramento (o Brasil ostentava uma das maiores
populações carcerárias do planeta), o controle dos indesejados se dá
também pelo extermínio promovido tanto por agentes estatais – há
estatísticas de que a polícia brasileira é a que mais mata em serviço e
também a que mais morre – quanto por particulares, grupos
paramilitares (“milícias”) e os chamados “esquadrões da morte”.
Diante desse quadro, a importância do Sistema de Justiça no
afastamento ou relativização de direitos e garantias fundamentais não
pode ser relativizada. No momento em que os atores jurídicos deixam
de reconhecer limites ao exercício do poder para funcionar como
instrumentos voltados à eliminação dos obstáculos aos interesses do
Estado ou do mercado, percebe-se a influencia da razão neoliberal no
funcionamento concreto das Agências Estatais, em especial do Poder
Judiciário. Mudar esse quadro passa por ressignificar a democracia,
em especial no que se refere aos direitos e garantias fundamentais
como limites intransponíveis ao exercício do poder, de qualquer
poder, mas também por alterações no processo de formação e seleção
de atores jurídicos, de todos os atores jurídicos. 
O Brasil pós-impeachment a partir da vida das
mulheres
WINNIE BUENO, JOANNA BURIGO E ROSANA PINHEIRO-MACHADO
A forma como a sociedade brasileira reagiu aos desdobramentos do
impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi a tônica de parte
significativa das análises conjunturais do final de 2016 e do primeiro
semestre de 2017: a certeza absoluta, por parte das esquerdas, de que
o próximo período seria caracterizado pelo aprofundamento da
agenda de reformas políticas que são entendidas como fundamentais
para a manutenção dos interesses econômicos das elites. Passado esse
primeiro momento de um quase luto, dominado por lamentações
sobre um aparente fim da democracia, numa narrativa derrotista e
pessimista a respeito dos rumos das organizações políticas e dos
movimentos sociais, é preciso retomar os exames do cenário
econômico e social do país em perspectivas mais centradas nos
processos históricos do capitalismo e seus ciclos, reconhecendo que o
período de avanços sociais que antecederam o momento econômico
atual está inserido nesses ciclos.
Nessa direção, o que estamos propondo nesse ensaio é localizar as
reformas sociais do pós-impeachment em conexão com as lógicas do
sistema de produção, que se retroalimentam a partir da permanência
de um excedente humano (representado por uma classe que tem cor e
gênero) e da constante precarização da vida das trabalhadoras e
trabalhadores. Essas características são inerentes ao capitalismo, e
não estiveram ausentes no período pré-impeachment. O que se dá
nesse momento é uma possibilidade de visualização dessas
características em função da maneira como têm atingido também
aqueles

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