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Sumário coluna Francisco Bosco Marcia Tiburi Bianca Santana Vladimir Safatle entrevista Kenarik Boujikian dossiê Réquiem para uma nação Apresentação A democracia de Tancredi e a do doutor Pangloss O fim da sociedade salarial Estado pós-democrático e a gestão estatal da pobreza O Brasil pós-impeachment a partir da vida das mulheres Por que as ruas se calaram? Entrevista: Tales Ab’Saber livros O divã como ponto de encontro Revolução invisível colaboraram nesta edição coluna Jogo dos sete erros FRANCISCO BOSCO Há algumas semanas, Chico Buarque apresentou uma canção de seu novo disco, chamada “Tua cantiga”. Tenho a impressão de que, dada a polarização ideológica e político-partidária da sociedade brasileira, ele escolheu essa canção como abre-alas por ser uma peça singela, despretensiosa, com certo sabor antigo (e por ter, além disso, é claro, uma bela e contagiante melodia) – afastada, portanto, aparentemente, da chapa quente dos acontecimentos sociais e, logo, de qualquer possibilidade de desencadear a fúria da parte da sociedade para quem ele é um petralha, bolivarianista, mamador das tetas da Rouanet ou outros conspícuos epítetos do novo e sofisticado glossário do espaço público brasileiro na era das redes digitais e do antipetismo. Qual o quê. Chico não terá levado em conta que a tentativa de lavagem de quinhentos anos de roupa suja da sociedade brasileira já chegou faz tempo às alcovas. Não há lençol e travesseiro que passem incólumes pela alfândega das problematizações de minorias. A sua cantiga também não passou. Um artigo publicado por uma mulher qualificou o compositor de “datado” e apartado da subjetividade da mulher contemporânea. Como qualquer ataque a um medalhão encontra repercussão (quantos jornalistas fizeram carreira com essa premissa infalível…), logo começaram a espoucar, a seu favor e contra ele, textões nas redes digitais e matérias na imprensa tradicional. Pronto; em vinte e quatro horas já tinha se armado a treta da vez. Nas vinte e quatro seguintes, a fogueira, como sempre, esfriou. Como o compromisso do pensamento não é chegar a tempo, mas no tempo, lá vão os meus vinte centavos. Eis os parágrafos centrais da autora Flavia Azevedo no artigo que deflagrou a polêmica. Primeiro: “Mas, desta vez, no painel das emoções femininas, Chico apertou um botão controverso. Essa mulher que ele evoca não sou, não é. Nem a que somos nem a que queremos ser. Essa que precisa ser salva, que sonha com o reino do lar, essa que goza ao ouvir ‘largo mulher e filhos’. Botão errado, para mim. Botão errado para a amiga que disse: ‘achei datada’. Botão errado para Andréia, que escreveu ‘esse negócio de largar filho não desceu’”. E o seguinte: “Chico Buarque sempre se comunicou com a nossa subjetividade. E é a nossa subjetividade que está falando com ele agora. E a real é que esse mundo interno mudou. De repente, para um monte de mulheres, ‘largo filhos’ soou tão romântico quanto um arroto no meio do beijo. Uma deselegância, uma sacanagem, uma coisa feia e desnecessária. A gente broxou com a narrativa de um amor covarde, com o canalha fantasiado de super-herói, com esse amante infantil e antigo, com esse tipo de amor... datado. Esse cara, esse personagem trazido por Chico (e tão conhecido entre nós) não faz mais sucesso. Porque a gente mudou e até o nosso romantismo está, sim, numa outra vibe.” O backlash não tardou (às vezes, nas tretas digitais, a reação é mais forte do que a ação; e me parece ter sido o caso). Uma série de textos encontrou uma série de problemas no artigo de Flavia Azevedo. Vamos a eles. O primeiro seria que a autora teria feito uma leitura literal da letra da canção. Segundo Marilise Mattos, “Chico não quis dizer que vai abandonar os filhos, mas que vai deixar tudo para trás para ficar com a mulher”. Pode ser, mas o texto da canção autoriza a interpretação de Flavia Azevedo. A expressão “largo mulher e filhos” é, no mínimo, ambígua, uma vez que, para se separar de alguém e entrar em outra relação, é preciso “largar” a mulher (a opção poliamor não cabe no contexto) – mas não os filhos. Não se largam os filhos, a menos que se queira. Não é absurdo, não é uma interpretação abusiva, portanto, ler o texto como o fez Flavia Azevedo. Ela também foi criticada por supostamente confundir a pessoa civil Chico Buarque com a persona ou o eu lírico da canção. Bem, no parágrafo que cito acima, ela fala explicitamente no “personagem” de Chico Buarque. Então a crítica não procede. Mas há outro ponto, que no fundo é aonde esse quer chegar. A autora foi muito criticada por confundir uma canção com uma tese sociológica. Foi a perspectiva assumida, por exemplo, pelo professor da UFBA Wilson Gomes (por quem, aliás, tenho grande admiração): “Eu perdi a aula em que versos de uma canção não são mais falas de uma persona, mas a voz sociológica do compositor nos instruindo sobre como devemos nos comportar na vida. Sou do tempo em que dramaturgia era diferente de sociologia.” Obras de arte, contudo, são complexas, oferecem diversas possibilidades de abordagem: formal, social, filosófica etc. Não há nada de errado em abordar uma canção da perspectiva sociológica. Dramaturgia continua diferente de sociologia. Mas pode conter traços desta última, como uma de suas dimensões. (O que julgo possível afirmar é que há uma tendência no Brasil, hoje, a abordar a arte e a cultura mais por suas dimensões políticas do que estético-formais: o país passa por um processo de passagem da cultura à política; mas isso é outra história.) De resto, é oportuno lembrar que o próprio Chico Buarque é valorizado não apenas por conta de sua perícia formal, mas também de sua capacidade de flagrar movimentos da história social brasileira e capturar seus sentidos nesses sofisticados compostos semântico- formais que são suas canções. Se se pode valorizá-lo por isso, por que não se poderia criticá-lo por isso? Houve também alguns que criticaram o uso do pronome pessoal “nós” por parte de Flavia Azevedo. Com efeito, esse é um pronome de emprego complicado em contextos de discussões políticas. E, no campo dos debates identitários, ele às vezes é mobilizado com uma intenção de intimidação, sem ser descritivamente verdadeiro. O artigo de Flavia Azevedo, contudo, poderia perfeitamente dispensar esse pronome. Seus argumentos não precisam ser pronunciados em nome de um grupo. Ela poderia falar apenas em seu próprio nome, e quem concordar com ela que compre sua leitura. Houve ainda quem viu “moralismo” na crítica à canção (Cynara Menezes, do Socialista Morena). Bem, como o verso “largo mulher e filhos” não é necessariamente só “modo de dizer”, como já argumentei, o ponto dela não é o adultério, em si, encenado na letra, e sim suas consequências morais (largar os filhos). Isso e a perspectiva geral da letra sobre uma relação heterossexual, em que a mulher será “rainha” do lar. O problema moral para Flavia Azevedo não é o adultério, e sim a paternidade. E, finalmente, num argumento que é uma espécie de inversão de outro já apresentado aqui, houve quem (Nathalí Macedo, no Diário do Centro do Mundo) lamentasse a condenação de “uma letra com métrica perfeita, metáforas finíssimas e arranjos fofos a la Chico Buarque só porque não foi escrita com o vocabulário que reza a cartilha [dos movimentos identitários]”. Bem, a dimensão formal, em sentido estrito (e, dentro dela, o virtuosismo dos versos) não é a única dimensão de uma obra de arte. Pode-se perfeitamente criticar uma canção dotada de virtudes materiais em nome de uma abordagem política. E que não precisa ser sectária. Pode-se também, perfeitamente e ao contrário, afirmar uma obra de arte por suas qualidades formais, apesar de sua perspectiva política. Resumo da ópera: muito barulho por nada. Algumas críticas incidiram sobre a leitura de Flavia Azevedo (discordo delas); outras, sobre sua própria legitimidade (mais ainda). Ora, Flavia Azevedo, ou quem quer que seja, tem todo o direito, em sentido lato, de criticar uma canção de Chico Buarque, ou de quem quer que seja,por discordar dela politicamente. Quem se convencer por seus argumentos, que concorde com ela. Ps: Particularmente, acho muito bonita a canção. coluna Uma preguiça útil MARCIA TIBURI A preguiça é um daqueles históricos pecados capitais que, junto à gula, à inveja, à soberba, à mentira, à avareza, à heresia e à ira, sinalizam para uma desmedida indesejável. Indesejável para quem? É a pergunta que devemos nos fazer. É verdade que a instituição do pecado foi criada pelo poder eclesial e, no acordo entre os que administram a fé com os que detêm o capital, afetos, posturas, estados físicos e emocionais, afetivos ou lógicos, foram tratados conforme interesses bem específicos. A ideia de pecado foi criada para definir um antivalor que é relacionado a um demérito projetado no outro. Em palavras bem simples, é certo que a colocação da preguiça no rol dos pecados tem até agora uma função específica. Inventada como o negativo do trabalho, sob a condição de pecado, a preguiça foi tratada como o mal capaz de destruí-lo. Como pecado, ela serviu para facilitar a divisão injusta do trabalho. A demonização da preguiça servia para controlar as pessoas destinadas ao trabalho, mas nunca foi considerada um mal para aqueles que não precisariam trabalhar à medida que eram donos das terras e de outros meios de produção. A preguiça não seria jamais o nada fazer dos ricos, mas o nome dado ao indesejável não fazer dos pobres, dos trabalhadores e, sempre, evidentemente, dos que foram escravizados. Inventada como um antivalor pelo cristianismo, a preguiça é usada pelo capitalismo com fins ideológicos. No contexto do que vem sendo chamado de “meritocracia”, a ideologia que mistura a ilusão individualista e a servidão ao trabalho, a preguiça se torna o pior dos males. Contudo, sob a mira do sistema capitalista ocorre uma astuciosa inversão de valores e a preguiça que era considerada algo ruim, despercebida, muda de figura. A mais fundamental das estratégias do poder é a manipulação das ideias. Nessa linha é que a preguiça dos outros – daqueles que não constroem discursos, e muitas vezes até os repetem por adesão irracional e espontânea à ideologia – foi transformada em algo nocivo enquanto a preguiça dos donos dos meios de produção nunca recebeu esse nome. Se podemos falar de preguiça em relação ao trabalho – alguém já falou da preguiça até mesmo em relação ao sexo –, às coisas que nos soam cansativas em geral, sejam ideias e ações, teorias ou práticas que demandariam esforços sem promessa de compensação, devemos analisar as transformações da preguiça em função de certas necessidades ideológicas. Como o poder não dá trégua e o discurso acobertador continua seu projeto de convencimento dos otários, a preguiça assume novas formas, mas nem sempre revela seu nome. Uma nova forma de preguiça surge entre nós. Uma preguiça útil. Se a preguiça dos outros relativa ao trabalho era ruim, a nova preguiça tornou-se uma coisa boa enquanto é útil ao sistema econômico e político. É a preguiça política que encontramos no dia a dia. Em frases como: “política me dá preguiça”, essa preguiça útil resulta do descaso e produz descaso com o mundo político e com a condição política de nossa vida. Aos seus difusores podemos perguntar como chegaram ao seu elogio. Provavelmente apenas nos olharão cansados, manifestarão seu desentendimento olhando-nos com desdém. Em tudo parecida com a negligência, essa forma de preguiça nos obriga a esquecer o que nos faz sofrer. Um dia é preciso esquecer as dores do trabalho, no outro as dores da política. Se, por um lado, a preguiça é um desejo de não fazer pecaminoso, por outro ela foi transformada em um não agir desejável. Nessa linha, não deixa de ser curioso que aqueles que alimentam a ideologia meritocrática ao mesmo tempo fomentem a preguiça política. Do mesmo modo, é incrível que não haja referência à preguiça relativa ao árduo e cansativo trabalho do consumo, incluso o do trabalho no contexto da moderna escravização digital. coluna Todo preso é um preso político BIANCA SANTANA Aos 18 anos de idade, a primeira condenação: tentativa de assalto à mão armada. Meu irmão tentou roubar 120 reais e passou cinco anos e alguns meses preso. Um mês e meio fora do cárcere, já com 23 anos, encontrou uma batida policial. “Eu não estava com nada, Bi. O juiz vai me liberar”, escreveu em uma carta. Não devia saber que o jornal do interior estampara seu retrato, nome e sobrenome ao noticiar a prisão por tráfico. Meses depois, a condenação a sete anos em regime fechado. Aos 30 ele deve voltar para casa. Talvez consiga cuidar de sua filha quando ela tiver dez anos. E aqui pergunto: você se lembra do que viveu entre 18 e 30 anos? Ou tem consciência do quanto é estruturante esta fase da vida? O que significou a presença, ou a ausência, de seu pai, desde seu nascimento até os 10 anos de idade? Da casa confortável de onde escrevo este texto, desfrutando dos privilégios de que meu irmão sempre foi privado, sinto raiva. Por mim. Por ele. Pelas mais de 600 mil pessoas presas no Brasil. Por suas filhas, mães, pais, irmãs, companheiras. Pela liberdade expropriada de pessoas negras desde os navios negreiros até hoje. Não à toa Angela Davis milita pelo que denomina abolicionismo da prisão. “Cada sentença um motivo, uma história de lágrima/ sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio/ sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo/ Misture bem essa química/ Pronto: eis um novo detento”. As rimas entoadas pelos Racionais MC’s sugerem a ação do tempo como um dos ingredientes do cárcere. O documentário norte- americano A 13ª emenda explicita a história do encarceramento massivo. Por mais que os dados apresentados, tanto históricos como estatísticos, digam respeito aos Estados Unidos, os paralelos com a realidade brasileira são evidentes, mesmo que o racismo nos dois países tenha se estruturado de formas diferentes. Afinal, aqui, a segregação racial não foi legal. Mas basta circular em ambientes ricos – brancos – e pobres – negros – para perceber que ainda vivemos uma segregação racial amparada por muitas leis, ainda que não seja obrigatória por lei. Com a abolição do sistema econômico da escravidão, leis de vadiagem e vagabundagem colocaram homens negros na cadeia. O cinema e a imprensa foram importantes para construir o temor no imaginário social: pessoas negras sempre são uma ameaça. Com o aumento populacional, cresceram os índices de criminalidade. Crise econômica, direitos sociais destruídos, mais pobreza e criminalidade. E o aumento exponencial do encarceramento massivo com a chamada guerra às drogas. No Brasil, a população carcerária aumentou 267,32% de 2002 a 2016. Dois em cada três presos são negros. Um em cada três responde por tráfico de drogas. Aquilo que Angela Davis escreveu, em 2003, sobre os Estados Unidos, no livro Are prisons obsolete?, ainda sem tradução para a língua portuguesa, vale também para o Brasil: “Na época imediatamente posterior à escravidão, os estados do Sul se apressaram a desenvolver um sistema de justiça penal que poderia restringir legalmente as possibilidades de liberdade dos escravos recentemente libertos. As pessoas negras se tornaram objeto prioritário de um sistema de condenação, ao que muitos chamaram de reencarnação da escravidão.” Sistema que persiste ainda hoje. Mas as prisões não são inevitáveis? Não é para onde deve ir quem comete delitos graves?, alguém pode perguntar. Recorro novamente a Angela Davis: “Poderíamos chegar a despenalizar o uso de drogas e o comércio de serviços sexuais? Poderíamos levar a sério estratégias para favorecer uma justiça restaurativa frente a uma exclusivamente punitiva? Sermos capazes de desenvolver alternativas efetivas implica uma transformação, tanto das técnicas para determinar o que é ‘delinquência’, como das condições sociais e econômicas que conduzem tantas crianças de comunidades pobres, especialmente das comunidades negras, ao sistema penal juvenil e logo à prisão. O desafio mais urgente e difícil de alcançar hoje em dia consiste precisamenteem explorar criativamente novos marcos jurídicos nos quais a prisão não figure como nossa maior bandeira.” Neste ponto, você já deve ter se lembrado do filho branco e rico da desembargadora, flagrado com 130 quilos de maconha, que não ficou na cadeia. E de Rafael Braga, o único preso político de junho de 2013, condenado a 11 anos e 3 meses por tráfico de drogas e associação criminosa, mesmo com testemunhas sustentando que o flagrante foi forjado. Deve ter pensado também nos 63 jovens negros assassinados por dia no Brasil. Deve ter associado isso tudo às manifestações racistas de Charlottesville. E à retórica de guerra propagada cada vez mais contra favelas e periferias, como justificativa da militarização dos territórios, de execuções, prisões. A guerra às drogas é a atualização de um projeto genocida. A ela, as mais expostas e vulneráveis têm sido as mulheres. Para um retrato sensível das situações a que mulheres têm sido expostas, recomendo a animação “A Política de Drogas é uma questão de mulheres”, lançada pelo ITTC (Instituto Terra Trabalho e Cidadania) em junho deste ano, disponível na internet. Dentre tantas violências a que estão expostas as mulheres, está, é evidente, o encarceramento. Em quinze anos, o número de presas cresceu 567%. A maior parte delas condenada por tráfico. Especificidades como a menstruação são ignoradas pelo sistema penitenciário. Outras, como a maternidade e a amamentação, são tratadas com precariedade. Muitos são os relatos das que foram obrigadas a parir algemadas. O tempo mínimo de 6 meses para o bebê conviver com a mãe presa é, na prática, o tempo máximo das que exercem esse direito. O livro Presos que menstruam: a brutal vida das mulheres tratadas como homens nas prisões brasileiras, da jornalista Nana Queiroz, permite uma aproximação desta realidade, por meio de pequenos relatos que mostram a complexidade e as experiências de sete presidiárias. Minha próxima tarefa, ao terminar este texto, é telefonar para o presídio onde está meu irmão para saber se meu nome já consta no hall de visitantes. Vou ligar muitas e muitas vezes até ser atendida. E talvez você não saiba, mas para enviar cartas ou encomendas para uma pessoa presa é obrigatório ter a autorização do Estado. Para pedir a autorização, na maior parte dos presídios de São Paulo, é necessário enviar cópia autenticada do RG e CPF, comprovante de residência, atestado de antecedentes criminais, duas fotos 3 × 4. E se a pessoa for transferida, como aconteceu com o meu irmão, você precisa mandar tudo de novo. Ninguém vai te notificar sobre a transferência. Para descobrir, um pacote vai voltar pelo correio ou uma visitante vai ser mandada de volta para casa depois de todas as adversidades de locomoção até os presídios de beira de estrada. A atendente do correio pode te olhar com desconfiança, pena, ou então gritar bem alto para toda a fila ouvir que seu pacote não vai chegar até o presidiário se o número da cela não estiver no endereço, mesmo que não seja verdade. #ParemDeNosMatar! E #LibertemRafaelBraga. coluna O que resta da universidade? VLADIMIR SAFATLE É claro que a universidade não tem mais lugar no interior do processo de reprodução material da vida. Em uma dinâmica de produção de empregos em que os estratos médios são constantemente eliminados a partir de processos de reengenharia contínua, em que os empregos de nível salarial mais baixos são, ao mesmo tempo, precarizados e elevados em seus padrões de exigência de formação e no qual os estratos mais elevados são oligarquicamente garantidos (ou seja, eles são alcançados independentemente da formação dos seus ocupantes), é uma das maiores mistificações de nossa época insistir no binômio formação/empregabilidade. Para além de um conjunto de empregos de condições e salários cada vez mais deteriorados, a universidade não pode garantir ascensão social ou simplesmente sobrevivência econômica. Os processos de formação necessários para operar no interior de nosso sistema econômico são, em larga medida, limitados, pontuais e de rápida absorção. Ou seja, eles poderiam ser feitos sem universidades, de forma menos onerosa, através de centros de formação. Os setores fundamentais da economia mundial e os atores reais da economia nacional sabem que podem sobreviver sem universidades. Eles podem sobreviver com uma educação disciplinar, unidimensional e vinculada apenas à expectativa de valorização simbólica fornecida pela educação superior. A pequena camada responsável pela organização estratégica da economia e da gestão social pode ser formada em centros de excelência construídos para poucos em países centrais, coisa que a elite brasileira tem feito sistematicamente ao mandar seus filhos diretamente para estudar fora do país. Mesmo o desenvolvimento de pesquisas capazes de projetar cenários e permitir circular múltiplas perspectivas de interpretação em conflito perde o sentido em um modelo de inserção capitalista no qual as elites locais perderam suas ilusões de se constituírem como burguesias nacionais e aceitam melhor serem representantes de modelos de integração global cujos processos decisórios se dão muito longe daqui. Neste horizonte, a universidade parece perder seu lugar. No entanto, talvez seja o caso de acrescentar mais uma variável a este quadro. Uma variável muitas vezes negligenciada, no entanto absolutamente central. Pois a perda de lugar da universidade ocorreu, principalmente, porque saiu de cena a crença na necessidade de modelos de gestão baseados na conciliação e integração de setores da população potencialmente desestabilizadores, como os trabalhadores pobres (geridos através de sindicatos em relações solidamente estratégicas com o Estado), pequenos camponeses e a classe intelectual (alocada em universidades garantidas pelo Estado). O que nos leva à seguinte equação: a universidade perdeu seu lugar porque a classe intelectual deixou de ser um problema. Somente enquanto ela foi um problema potencial, devido a sua capacidade de mobilização, de tensionamento social, de constituição de pautas no interior da opinião pública, a universidade foi preservada. Quando isto saiu do horizonte, a universidade se tornou descartável. Sabemos que a história da universidade como instituição é uma história recente. Até o começo do século 19 seu lugar era, em larga medida, o de um centro de formação. Os principais pensadores e cientistas não eram professores universitários, não tinham cátedras. O debate intelectual e artístico ocorre, em larga medida, fora de seus muros. O modelo de Wilheim von Humboldt (representado pela fundação da Universidade de Berlim, em 1809) pode se impor nas sociedades ocidentais não apenas por prometer realizar expectativas de emancipação através de uma formação de cunho humanista, mas principalmente por saber se colocar como peça fundamental de constituição da adesão social e desenvolvimento técnico do recente Estado-nação, assombrado pela possibilidade de sedição interna produzida pelo contágio dos ideais da Revolução Francesa. A integração da classe intelectual à universidade será uma forma de responder aos riscos de sedição que a circulação de ideias de transformação radical representava. Não por outra razão, uma impressionante quantidade de intelectuais radicais verá as portas lhe serem fechadas no interior da universidade alemã do século 19: Feuerbach, Bruno Bauer, Marx. Pois a integração terá sempre que lidar com certos limites que só poderão ser incorporados tempos depois, através de caminhos tortuosos. Não se trata aqui de fazer uma história da universidade e dos modos de gestão social a partir da constituição do Estado-nação. No entanto, gostaria de trazer uma hipótese que pode nos auxiliar a debater a situação na qual nos encontramos atualmente. Pois podemos dizer que este modelo de gestão social demonstrou-se particularmente falho em 1968. Há uma exacerbação da tensão universidade/Estado a partir de maio de 1968 e, de certa forma, muito de nossa situação pode ser lida com base neste pano de fundo. Pela primeiravez de forma clara, as universidades se colocam como espaço de produção de revoltas contra os modos hegemônicos de reprodução material da vida. Lembremos como, durante certo tempo, o modelo do Estado do Bem-Estar Social, gerado a partir do final da Segunda Guerra, com seu capitalismo de estado, fora visto como uma espécie de modelo perfeito de gestão de conflitos sociais. Friedrich Pollock, em um ensaio clássico, insistia na tese da passagem inexorável de um “capitalismo privado” para um capitalismo de alta regulação estatal, fosse ele totalitário (nazifascismo) ou democrático (social- democracia). Capitalismo no qual as decisões econômicas estariam submetidas à orientação política das deliberações de gestão e limitação da força de transformação dos conflitos de classe. Pollock chega a falar em uma substituição de problemas econômicos por problemas administrativos, criando um horizonte “racional” de gestão de conflitos sociais graças às promessas de integração da classe trabalhadora devido à consolidação de uma lógica da providência e da assistência social generalizada que teria a capacidade de limitar os processos de espoliação econômica. Neste horizonte, a função das universidades era garantir a ascensão social e fornecer um espaço regulado de liberdade de pensamento. Neste sentido, maio de 1968 demonstrará a fragilidade desta crença da possibilidade de regulação de conflitos no interior de um capitalismo de estado. Pois ele mostrou como as formas de regulação da classe trabalhadora não foram capazes de impedir a consolidação de revoltas nos países centrais. Revolta esta que visava ao caráter disciplinar deste mesmo Estado-providência outrora visto como o modelo perfeito de gestão social. Ou seja, as revoltas de maio de 68 e a força de sedição de seus conflitos mostraram os limites das promessas de integração do capitalismo de estado e de suas estratégias de providência. Os próximos modelos de gestão nas sociedades de capitalistas, se quisessem ter eficácia real, deveriam operar de outra forma. Estava evidente a impotência do discurso de integração através da identificação com a figura do cidadão do Estado-nação comum. Seria necessário deslocar os processos de regulação social para uma outra cena. Mas, para tanto, seria necessário paulatinamente neutralizar a universidade e sua classe de intelectuais, quebrar sua força de mobilização social e empurrá-los paulatinamente à obsolescência. Muito haveria a se dizer a respeito destes processos que ocorreram principalmente a partir dos anos de 1980. Eles responderam a múltiplos ritmos e a dinâmicas específicas em vários países. Um país que tinha uma presença forte da classe intelectual na vida nacional, como o Brasil, não poderia seguir os mesmos processos que países de configuração social distinta. Esta análise, no entanto, ainda está por ser feita. No entanto, seria o caso de insistir aqui, e isto vale como uma crítica que é também uma autocrítica, como tais processos não poderiam ocorrer sem a demissão da classe intelectual de sua função histórica de responsável pelo tensionamento de processos políticos. A classe intelectual contemporânea tende a esconder sua demissão política por meio da pretensa crítica a desejos de “dirigismo” e a crítica a uma política baseada na crença da força indutora de “vanguardas letradas”. Todos nós conhecemos as críticas feitas pelos próprios intelectuais a seu pretenso papel dirigista. Não há, no entanto, processo político sem um ato de nomeação do acontecimento – ato que exige a mobilização da capacidade da classe intelectual de criar ressonâncias espaço-temporais e, assim, redimensionar dinâmicas sociais. Uma nomeação não é simplesmente uma descrição, ainda mais quando estamos a falar de processos políticos populares. Ela é um ato performativo que redimensiona a capacidade de transformação dos agentes. No entanto, a demissão política dos intelectuais foi o resultado da convergência de três fatores. Primeiro, vivemos em um movimento global de bloqueio das relações entre universidade e sociedade civil. Isso se deve a uma forma de gestão social que promete aos intelectuais a ascensão ao posto de consumidores de serviços globais, graças à internacionalização das universidades e à submissão delas a processos de avaliação cujos métodos são tão opacos quanto dignos do Pai Ubu. Todos nós sabemos bem como os processos de avaliação são indefensáveis não porque não devamos ser avaliados, mas porque eles não medem nada de maneira precisa. Como esperar avaliação racional se submetemos aos mesmos critérios universidades de massa, com mais de 100.000 alunos e universidades de formação de elite, com não mais do que 10.000 alunos? O que significa realmente medir “impacto” através de incidências de citações? O que dizer de sistemas de avaliação de publicações que não levam em conta livros? Como medir a influência de uma universidade no interior da vida nacional? Ou qual o sentido em esperar níveis de circulação de estudantes estrangeiros da ordem de 25% em países que ainda precisam encontrar formas de integrar largas camadas de sua população ao sistema educacional superior? No entanto, a submissão a tais sistemas opacos de avaliação levou as universidades a se transformarem, no melhor dos casos, em “guetos de luxo”: um misto de agências de viagens para colóquios internacionais e consumo de produtos culturais globais com espaço para a produção especializada de um saber cujos resultados, muitas vezes, não são sequer publicados na língua local de seus países, já que a transformação do inglês em língua franca implica retornar a uma situação medieval na qual a classe intelectual não pode mais ser lida pela população nacional da qual ela faz parte, um pouco como na Idade Média e seus pensadores que escreviam em latim. Com isso, os intelectuais foram, cada vez mais, perdendo relevância como referências para a reflexão da sociedade sobre si mesma. Quando as universidades não se submetiam diretamente a estes modelos, elas sentiam o risco de serem jogadas à invisibilidade e irrelevância. O Brasil, que conheceu no passado gerações de intelectuais públicos de forte capacidade de influência no interior da vida social, viu seus professores universitários, em larga medida, se demitirem dessa função, como se sustentá-la fosse expressão de alguma forma de “ausência de rigor” e diversionismo em relação às atividades acadêmicas pretensamente reais. Melhor teria sido se a classe intelectual tivesse sustentado o tripé político que a ela compete, a saber, trabalho de base com setores desfavorecidos e vulneráveis, luta pela conquista da opinião pública através da ocupação da imprensa e articulação internacional em redes de pesquisa, tendo em vista a análise de processos político-sociais globais. No entanto, se estes são fatores que podem ser encontrados em praticamente todos os países com classe intelectual relevante, há um fator eminentemente local que merece nossa avaliação. Ele se refere à relação profunda entre classe intelectual e gestão do Estado brasileiro. A Nova República serviu-se da classe intelectual como um dos setores mais importantes para o fornecimento de seus quadros de gestão. O Brasil viu, nos últimos vinte anos, uma impressionante quantidade de intelectuais se transformar em presidentes da República, prefeitos, ministros e secretários de Estado. Normalmente, eram intelectuais que se serviam do discurso do “é necessário fazer alguma coisa”, “temos uma responsabilidade para com o país”. Entretanto, isso nunca significou entrar no Estado para implodir por dentro sua estrutura arcaica. Na verdade, tratava-se de fornecer ao Estado um melhor discurso de justificação de seus arcaísmos, além de produzir ajustes em seu funcionamento isto quando não acabávamos vendo estratégias de garantia de benesses de consultorias e assessorias. Os intelectuais não transformaram o Estado brasileiro, eles se integraram a ele. Por fim, do ponto de vista político, o esforço do setor hegemônico da classe intelectual brasileira pareceu ter se esgotadocom a eleição de Lula. Boa parte dos descaminhos do governo foi colocada na conta da legitimidade dos intelectuais que um dia o apoiaram ou que continuaram a apoiá-lo. O simples abandono do apoio não foi uma operação bem-sucedida. Como os intelectuais não tiveram discernimento suficiente para imaginar o que poderia ocorrer? Teria sido necessário fazer uma autocrítica que nunca aconteceu. Por outro lado, a repetição reiterada do lado bem-sucedido do governo soava, para muitos, como estratégia para diminuir a força crítica diante dos erros, que não eram mais comentados no espaço público, devido ao medo de instrumentalização pela mídia conservadora. Aos poucos, parte da mídia criou seus próprios intelectuais conservadores, repetindo, algumas dezenas de degraus abaixo, um fenômeno que os franceses viram nos anos 1970, com os nouveaux philosophes. Como se não bastasse, o próprio governo foi paulatinamente se afastando da órbita dos intelectuais de esquerda. Assim, reduzindo a força dos movimentos sociais e a capacidade crítica e de mobilização da classe intelectual, a situação só poderia ficar à deriva. Assim, há de se admitir que a única possibilidade de sobrevivência da universidade passa por nossa capacidade de recuperar a força de mobilização e influência, ou seja, de sermos um setor da sociedade civil capaz de criar problemas. Se é fato que a universidade procura ser espaço de circulação do desejo de saber como condição fundamental para a consolidação da crítica, que ela defende o desejo de saber como condição para a crítica, então há de se perguntar se temos as condições reais de desenvolver a força emancipatória de tal desejo. Saber defender um certo desejo: esta é talvez nossa tarefa efetiva. Pois da universidade, resta apenas um mal-estar em relação às imposições do presente. No entanto, este mal-estar é o que nossas sociedades têm de mais real. entrevista Kenarik Boujikian Uma opção pelos direitos humanos AMANDA MASSUELA Em 2014, o juiz João Batista Damasceno foi a julgamento por pendurar uma charge de Carlos Latuff na parede do seu gabinete no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Na imagem, um homem negro com um tiro no peito faz as vezes de Jesus Cristo, crucificado em frente a um policial fardado com uma arma na mão. O quadro acabou indo a leilão depois que Damasceno recebeu uma comunicação para que retirasse a obra das dependências do Tribunal. A renda seria destinada à família de Amarildo Dias de Souza, ajudante de pedreiro torturado e morto dentro de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na favela da Rocinha em julho de 2013. A obra foi arrematada por Kenarik Boujikian Felippe, 58, juíza desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). A charge é uma das primeiras coisas que se veem ao abrir a porta do seu gabinete, na região central da capital paulista. “É simbólico tanto pela questão dos desaparecidos e da violência policial quanto da independência judicial”, diz Boujikian à reportagem da CULT. “Um juiz não pode ficar alheio à realidade. Tem que conhecer a história do seu povo ou não vai conseguir aplicar as normas e ser um bom juiz.” Neta de sobreviventes do genocídio armênio ocorrido no início do século 20, nascida na aldeia de Kessab, na Síria, Boujikian foi punida pela Corregedoria-Geral do TJ-SP por determinar a soltura de dez réus presos por mais tempo do que a pena prevista sem consultar seus pares. A decisão foi anulada no dia 29 de agosto último pelo Conselho Nacional de Justiça por dez votos a um. Integrante da Associação Juízes para a Democracia e uma das fundadoras do Grupo de Estudos e Trabalhos Mulheres Encarceradas, Boujikian foi a responsável pela condenação, em 2010, do médico Roger Abdelmassih a 278 anos de prisão pelo estupro de 56 pacientes. “Dentro dos meus processos, o que puder ser feito para garantir direitos é o que farei sempre”, afirma. Por isso, se diz o “patinho feio” dentro do Judiciário paulista, cujas decisões são as mais contestadas no Superior Tribunal de Justiça, de acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Na entrevista a seguir, ela discorre sobre seletividade da Justiça, encarceramento em massa e machismo no Judiciário. A Justiça brasileira é seletiva? Sim. Se olharmos como o Judiciário se portou ao longo da sua história, em todos os períodos vamos encontrar esse comportamento seletivo. Para fazermos um recorte: [no Império] tivemos uma lei que proibia a entrada de africanos escravizados no Brasil [Lei Eusébio de Queirós], e sabemos que mais de 500 mil entraram no país mesmo após a promulgação da lei. É preciso ver quais interesses estão em jogo, e na época eram os interesses dos proprietários de terras e de escravos. Se pularmos para 1964, veremos um Judiciário que de alguma forma corroborou com todo o sistema implantado pela ditadura civil-militar brasileira. A maioria dos juízes foi omissa, fechou os olhos – mas também tivemos juízes resistentes, o ministro Evandro Lins e Silva é a grande referência nesse momento. Mais recentemente, se analisarmos para quem funciona o Judiciário no Brasil, veremos que as maiores litigantes são bancos e o próprio Estado. Na justiça criminal, são jovens negros e periféricos. Com tudo isso, podemos dizer que a Justiça é seletiva e sempre foi. Há vários exemplos de juízes e de decisões que vão na direção contrária, de garantir direitos, mas, se fizermos uma análise geral do sistema, temos a seletividade como um marco. Espera-se de um juiz que ele seja uma figura que puna e não que garanta direitos? Grande parte dos juízes não tem a noção de que o nosso papel é ser exatamente um garantidor dos direitos fundamentais. Temos esse problema sério da falta de consciência do que significa ser um juiz em uma democracia, do próprio papel do Poder Judiciário. O juiz só existe para garantir direitos fundamentais, para ser o limite do próprio Estado. Mas quando ele o faz geralmente é identificado como ativista ou militante. Isso a incomoda? Existe uma cultura de achar que o juiz é apolítico, e isso não existe. O juiz não tem política partidária, mas todos os juízes são políticos porque é algo da sua própria função: quando julgando, o juiz faz política. Ele é um ente de Estado quando está fazendo o seu papel, mas não deixa de ter os direitos de cidadão comum de inclusive militar por direitos humanos – o que se dá em outra esfera. Eu não vejo nenhum problema que me tomem como uma ativista de direitos humanos, mesmo porque eu sou. Acho até bom que me reconheçam assim. Mas em 28 anos e meio de carreira nenhuma das minhas ações de participação social e de ativismo colocou em risco a minha jurisdição. Nunca fiz nada que pudesse interferir em qualquer processo. Acho importante que o juiz possa fazer sua atuação cidadã, mas as pessoas confundem as coisas porque não entendem o conceito de direitos humanos. Usam o termo ativista como algo negativo porque não percebem os direitos humanos como um direito que pertence a todos, sem qualquer espécie de distinção. Atribui a essa “falta de consciência” sua pena aplicada pelo Órgão Especial do TJ-SP? Sim. Temos um sistema [Judiciário] que quer o pensamento único do direito penal. Isso é um fato aqui dentro do Tribunal de Justiça: não aceitar que uma pessoa pense diferente a ponto de ser processada. E fazendo o diferente você dá mais trabalho. O fundo do meu processo é esse. Mas também existe uma questão de gênero aí. Vê misoginia na decisão? Sim, e ela está retratada na própria estrutura do nosso Judiciário de São Paulo. Imagine que até 1981 não tínhamos mulheres na magistratura. Será que até então não havia nenhuma mulher capacitada para ser juíza? A Associação Juízes para a Democracia (AJD), da qual faço parte, fez uma luta de tribunal para que as provas deixassem de ser identificadas, e depois que conseguimos essa alteração legislativa muitas mulheres conseguiram ingressar. Em 1989 eu fui a primeira juíza em Piracicaba, que era a minha comarca. Na área criminal no TJ-SP temos três desembargadoras em um universo de 80 homens. Os númerosjá indicam alguma coisa, mas a misoginia é muito mais sutil no dia a dia e as pessoas não enxergam isso. Só quem tem essa convivência é que pode assegurar que ela é um fato e está nas formas utilizadas para coibir a manifestação da mulher, a sua participação, a sua integridade como um ser pensante e que exerce um poder de Estado. E todos negam. Todo mundo vai dizer que não existe mais machismo no Tribunal. Me engana que eu gosto. Como aumentar a presença de mulheres no Judiciário? Tem aumentado, ultimamente tem entrado mais ou menos a mesma proporção. Se pensarmos que em 1981 tínhamos zero e hoje 37%, o fato concreto é que temos um número maior de mulheres. Mas não tenho tanto essa preocupação do ingresso, porque hoje elas estão prestando concurso, passando. Temos que ter outros enfrentamentos. Quais? Esses todos do funcionamento da Justiça livre do machismo. É preciso coragem para fazer esse enfrentamento, o que ninguém tem. É quase um tabu falar em machismo dentro do Judiciário. Já ouvi juíza falar de juiz que passou a mão no corpo dela, por exemplo, e devem ter muitos outros casos que a gente não sabe. Por isso é importante começar a enfrentar o machismo dentro do Judiciário de forma clara, aberta e transparente. Tenho certeza de que vai aparecer muita coisa. Gostaria de voltar ao tema da sua penalização por ter soltado dez presos provisórios em 2016. Eles compõem mais de um terço da massa carcerária brasileira. São prisões desnecessárias? Muitas delas são desnecessárias. O Brasil é reconhecido como o país que utiliza excessivamente a prisão provisória como se fosse uma antecipação do castigo, da pena. Há pessoas que não cometeram crimes violentos e que estão presas. Eu raramente falo sobre os meus processos, mas tenho falado sobre a Cíntia. Ela ficou quase quatro anos presa por portar menos de um grama de cocaína. Qual é a justificativa para prender durante quatro anos uma pessoa que não tem nenhum antecedente criminal e que não cometeu um crime grave? Não há nenhuma lógica por qualquer ângulo que se olhe. Um preso custa ao Estado, em média, de dois a três salários mínimos. Essa mulher ficou presa durante quase quatro anos, e ela tinha um filho pequeno. Há muitas situações que não se justificam, mas à luz de um Estado punitivo, é o que temos: aproximadamente 45% de presos provisórios. Entre as mulheres, são quase 70% envolvidas em crimes de tráfico. Por que esse número é tão alto entre elas? Ao que parece, pelo perfil das mulheres e pelos estudos feitos, elas se envolvem com esses atos por necessidade de renda. São pequenas quantidades que normalmente vendem ou guardam para alguém em troca de algum dinheiro e com isso conseguem manter a vida e sobreviver com o que dá. A Cíntia tinha não sei quantas moedas de um real, algumas notas de dois, uma miséria. Onde está a grande traficante nessa história? É uma informação equivocada para a sociedade porque alguém está sendo protegido com isso. Quem trafica e ganha dinheiro não está nas favelas, não está nos morros, mas esses aí a gente nunca vai ver. Nos últimos 15 anos o número de mulheres encarceradas no Brasil aumentou mais de 500%. Quais as consequências desse crescimento tão vertiginoso? A gente precisa ter em conta que a prisão da mulher reflete de forma diferente em relação à do homem. A mulher, querendo ou não, tem o componente de segurar um papel dentro da comunidade e do círculo familiar. A maioria das que estão sendo presas são chefes de família. Isso significa que lá naquele núcleo teremos pessoas sem a sua sustentação, o que reflete de maneira muito perversa principalmente nos filhos dessas mulheres. Mas nada disso é refletido quando se pensa no aprisionamento, como se a gente pudesse simplesmente jogar essas pessoas na prisão e tudo bem. Esse crescimento é realmente espantoso porque são 570% em uma década e meia. Muita coisa precisa ser revista, da própria lei até a compreensão do que significa a política de drogas atual. Que consequências está trazendo em todos os aspectos, inclusive econômicos? Quanto está gerando de violência? Será que essa política resolve alguma coisa? Porque se resolvesse até eu, que sou não muito simpática ao aprisionamento, regra geral, seria favorável. Mas ela apenas gera mais violência. O debate sobre o encarceramento em massa no Brasil passa necessariamente por uma revisão da Lei de Drogas? Com certeza. É uma das questões fundamentais nos dias de hoje. A Lei de Drogas precisa ser revista e especialmente pensada no sentido de todos conhecermos a realidade num sentido amplo. Em que medida esse aprisionamento está resolvendo algo, quanto estou gastando para prender uma pessoa, que danos psicológicos vêm daí? A vida é complexa e tem que ser vista como efetivamente é. Não basta prender e acreditar que resolveu algum problema. É um discurso mentiroso e salvador do qual o Judiciário faz parte. É possível avançar nesse debate no Brasil pós-impeachment? Nós precisamos fazer o que estiver nas nossas mãos para que isso aconteça. Qualquer coisa só avança com a nossa participação, e nós vamos fazer essa construção. Ninguém vai fazer por nós, ninguém vai mudar esse quadro se não formos nós. Acredito que vamos mudar, sim. Tem muita gente discutindo esse tema. E são jovens. Os maiores interessados estão aí, querendo mudar, querendo fazer um novo país. Em cada gesto, em cada ato, na medida de cada um, é nossa obrigação construir a democracia, seja profissionalmente, seja na atividade familiar, na comunidade, no ativismo. Vivemos em uma democracia? Não. Eu faço parte da Associação Juízes para a Democracia (AJD), construída logo depois do marco da Constituição de 1988. Na época, pensamos que tínhamos uma obrigação de contribuir para a construção da democracia no Brasil. Porque ela não estava acabada na Constituição de 1988, estava ali nos seus pilares para ser construída. A associação entendia que poderíamos contribuir para a democratização judiciária e do próprio país. Nunca pensei que chegaríamos a esse ponto. Não conseguiria imaginar que isso pudesse acontecer. Só vamos poder dizer que ela existe se construirmos uma sociedade mais igual. Quando isso for realidade a gente pode dizer que há democracia. Mas não temos, estávamos em um processo de construção que foi rompido com o impeachment, que é um golpe contra tudo o que está na Constituição, não é só o ato de tirar a presidenta da República. Nem formalmente posso afirmar com a mínima tranquilidade que temos uma democracia. Mas precisamos reconstruí-la. Como vai ser esse caminho eu não tenho ideia, mas sei que nós é que vamos ter que fazer isso. Quando diz “nós”, se refere a quem? Você, eu, todo mundo que acredita nisso. É impressionante como em um período tão curto tantas coisas construídas estão andando para trás. Isso é da maior gravidade. Vivemos um momento extremamente delicado e precisamos arregaçar as mangas. Construção de democracia, para mim, é tirar gente da linha da miséria, é garantir igualdade paras as mulheres, é investir em educação. Se isso não for concreto, a democracia é apenas formal, o que não vale para quase nada perto do seu real significado. Mas acredito que vamos conseguir passar por esse trecho cruel da nossa história. dossiê Réquiem para uma nação Apresentação WELINGTON ANDRADE Foi depois de uma conversa com o psicanalista Tales Ab’Saber que a CULT concebeu o presente dossiê, cuja proposta é levar o leitor a refletir sobre o processo de desintegração da sociedade brasileira que está sendo conduzido a toque de caixa pela gestão de Michel Temer à frente do Governo Federal. Além de publicar entrevista com o próprio Ab’Saber, na qual ele declara, entre outras considerações aguçadas, que a democracia atual se tornou uma fachada para a produção de uma violência legítima, o dossiê reúne textos de consagrados especialistas sobre os principais temas que dizem respeito ao estado de coisas que vivemos desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Alvaro Bianchi trata do esgotamento do modelo do presidencialismo de coalização eas alternativas autoritárias e antidemocráticas que decorrem dele. Ruy Braga fala da massa trabalhadora que passa, a partir da aprovação da reforma trabalhista, a ficar desassistida e totalmente à mercê das manobras conservadoras que tomaram de assalto a política e a economia do país nos últimos meses. “O resultado da atual crise brasileira talvez seja o nascimento de uma sociedade tão desigual e violenta que não seja capaz de reconhecer a monstruosidade de seus dirigentes”, afirma o sociólogo. Pablo Ortellado se pergunta por que as ruas se calaram diante de tanta arbitrariedade e injustiça. O juiz Rubens Casara aponta a iniquidade de um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, justamente em um momento em que, segundo ele, “o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor”. Rosana Pinheiro-Machado, Joanna Burigo e Winnie Bueno demonstram que as reformas recém- adotadas representam a retomada de um projeto de controle e impedimento do exercício dos direitos básicos de cidadania. O que os ensaios a seguir constatam, esclarecem, denunciam nesse momento tão desencantado da vida do país não parece um movimento regido pelo caráter de exceção, mas sim algo inerente ao capitalismo internacional, que sob o ponto de vista da cor local adquire enegrecidos tons de tragédia brasileira, a qual é preciso deplorar para que se possa organizar um movimento de reação à altura dos inúmeros desastres que ela vem proporcionando desde que foi anunciada há mais ou menos dois anos. A democracia de Tancredi e a do doutor Pangloss ALVARO BIANCHI No começo do século 20 a crise da democracia era um diagnóstico bastante difundido na Itália. O longo processo de unificação nacional no século anterior havia consolidado uma ordem política baseada na subordinação do Sul ao Norte e em instituições políticas fortemente antidemocráticas, nas quais os prefeitos (prefetti) constituíram-se em órgãos monocráticos do Estado que representavam o governo central nas províncias, arbitrando a vida local, e a nova lei eleitoral reproduzia o caráter fortemente censitário do sistema político Piemontês. A ampliação do sufrágio eleitoral a todos os homens maiores de 30 anos, no ano de 1912, alterou profundamente essa ordem política. O Partito Socialista Italiano (PSI) pulou de 97 mil votos em 1900 para 170 mil votos em 1909, e 903 mil votos, em 1912. Mas a lei eleitoral baseada na votação distrital uninominal impedia a bancada parlamentar do PSI de crescer proporcionalmente. Embora seu número de votos tivesse crescido quase dez vezes entre 1900 e 1913, a bancada do partido passou de 33 para 52 deputados apenas. Os 17,7% dos votos dessa última eleição garantiram ao PSI menos de 10% dos deputados do país. Eram, entretanto, o bastante para perturbar o jogo político tradicional. As elites políticas italianas reagiram a essa extensão da representação política das classes subalternas por meio do transformismo, pela absorção, cooptação e moderação dos representantes dessas classes. Esse procedimento era parte da história política italiana desde que a Sinistra storica, liderada por Agostino De Pretis, venceu as eleições parlamentares, em 1876, e formou um governo com representantes da antiga Destra. Tomasi di Lampedusa imortalizou literariamente o transformismo fazendo o jovem Tancredi dizer a seu tio, o príncipe de Salina no romance Il Gattopardo: “Tudo deve mudar para que tudo permaneça como antes”. O transformismo permitia confinar a política a horizontes muito estreitos e a princípio possibilitava que as crises fossem contidas no âmbito das trocas dos gabinetes ministeriais, da sucessão dos chefes de governo, ou até da alternância partidária. Os limites desse arranjo, entretanto, saltavam à vista: a contradição entre a mesquinha prática política, na qual imperavam os interesses particularistas, a troca de favores e os ganhos imediatos, e a promessa liberal de um parlamento que expressaria o interesse geral por meio do sufrágio universal era irresolvível. A ciência política italiana nasceu criticando essa democracia. Autores como Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto desde o final do século 19 denunciavam a ineficiência das instituições políticas italianas, a má qualidade dos dirigentes políticos, as perturbações à ordem promovidas pelas revoltas camponesas e pelas greves operárias. Acreditavam que o encontro de uma classe dirigente mesquinha com o “despotismo das massas” inviabilizava a democracia. Os remédios recomendados por esses autores para esses males implicavam a redução da participação popular na vida política e até mesmo a restrição do sufrágio. Contra os limites da democracia receitavam menos democracia. Embora acertassem no diagnóstico da crise da democracia, esses autores apontavam as causas erradas. O que caracterizava a crise da democracia italiana no início do século 20 não era um excesso de participação popular, mas a incapacidade de as instituições parlamentares absorverem as demandas populares como elas eram, sem transformá-las. A crise da democracia era uma crise de representação, o povo não se sentia representado pelos representantes. A participação da Itália na Guerra Mundial e a desastrosa derrota militar agravaram ainda mais essa crise. A distância entre os interesses do povo e os mandatos dos deputados tornou-se ainda maior. O fascismo foi uma resposta reacionária à crise de democracia. CRISE DE HEGEMONIA Observando aquilo que denominou de crise de hegemonia, o italiano Antonio Gramsci fez uma observação precisa. Na prisão de Mussolini, ele identificou que aquilo que muitos consideravam uma crise de autoridade, ou seja, a dificuldade que os governantes tinham de exercer seu poder, era na verdade uma crise de representação. Os representados haviam deixado de se identificar com os representantes e o governo não conseguia mais se apresentar com a encarnação do interesse geral. Foi aí que Gramsci escreveu sua conhecida frase: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno se verificam os fenômenos mórbidos mais variados”. Essa passagem tem sido repetida à exaustão na recente crise brasileira. Nas conversas com seus amigos e companheiros de partido e mesmo em entrevistas, Fernando Henrique Cardoso a cita com frequência. O ex-presidente, entretanto, encurta a frase e tira dela a afirmação de que é nesse intervalo entre o velho e o novo que surgem manifestações patológicas da política. Quando escreveu esse texto, Gramsci tinha em mente a ascensão do fascismo e do nazismo na Europa. A crise da democracia e a derrota da alternativa comunista na Itália, em 1920, e na Alemanha, em 1923, abriram o caminho para dirigentes carismáticos, apoiados na pequena-burguesia e nos ressentimentos nacionais exacerbados pela derrota na Primeira Guerra Mundial. Hitler e Mussolini foram as consequências da crise. PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO A recente pesquisa da Ipsos a respeito da democracia no Brasil permite testar essa hipótese gramsciana. Dentre os entrevistados, 94% disseram que os políticos brasileiros no poder não representam a sociedade; 86% não se sentiam representados pelos políticos nos quais votaram; 81% pensam que o problema não está nos partidos e sim no “sistema político”; e apenas 38% consideram que a democracia é o melhor regime político. A devastadora conclusão do coordenador da pesquisa, Rupat Patitunda, foi que a “democracia no Brasil, desta forma, não é representativa”. O fosso entre representantes e representados parece intransponível e atinge todos os partidos, sem exceção. É nesse contexto que fenômenos mórbidos podem aparecer. O próprio Patitunda considerou que essa situação poderia favorecer a emergência de lideranças autoritárias. Definitivamente, a ciência política brasileira não estava preparada para isso. Há mais de trinta anos a mainstream de nossa ciência política tem afirmado que o chamado presidencialismo de coalizão estava produzindo bons resultados, que as instituições democráticas estavamconsolidadas e funcionando de modo apropriado. As eleições de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff eram a prova que faltava. As instituições haviam passado pelo teste da alternância no poder e permitido que chegasse ao Planalto um partido que havia nascido nas greves operárias, juntamente com a própria democracia brasileira. Testando estatisticamente até a exaustão esse modelo institucional, essa mainstream chegava sempre à mesma conclusão do doutor Pangloss: “Tudo está em seu melhor no melhor dos mundos possíveis”. Cegos ao crescimento exponencial dos gastos com as campanhas eleitorais e aos custos financeiros e políticos para a manutenção das coalizões, completamente indiferentes perante a evidente queda da qualidade dos parlamentares, ou insensíveis à sobrerrepresentação de interesses empresariais, corporativos ou religiosos, esses cientistas consideravam o presidencialismo de coalizão e o sistema eleitoral e partidário brasileiro o melhor dos mundos possíveis. Para esses politólogos, a escassa participação popular na vida política nacional nunca foi um problema. O importante era que as instituições continuassem a funcionar como de hábito. Nas manifestações de 2013 o esgotamento do modelo do presidencialismo de coalizão começou a ficar evidente. O recado das ruas era claro: o povo não confiava mais nos “políticos” e em seus partidos. Estava cansado de promessas não cumpridas. Pela primeira vez em nosso país, grandes manifestações públicas ocorreram à margem dos partidos políticos tradicionais e produziram um discurso político no qual esses partidos não deveriam ter lugar nas ruas. Alguns leram isso como um sinal de despolitização e alertaram para os riscos que esse discurso traria consigo. Não se tratava de despolitização, entretanto. As demandas tinham por alvo o poder público. Era uma nova forma de fazer política que emergia, uma forma que recusava os estreitos quadros do presidencialismo de coalizão. O velho presidencialismo de coalizão já morreu. Embora alguns ainda continuem a considerar que suas instituições ainda podem continuar existindo e se reproduzindo, é bastante evidente que o povo já assinou o atestado de óbito dessa forma política. O novo, entretanto, ainda não conseguiu se traduzir em uma forma política e institucional. É nesse interregno que as alternativas autoritárias e antidemocráticas prosperam. Deixar para trás o realismo de Tancredi e as ilusões do doutor Pangloss ainda é um desafio para aqueles que querem ver a emergência do novo. O fim da sociedade salarial RUY BRAGA Não é nenhum segredo que, a partir do início da década de 2000, a ascensão do chamado “Sul global”, isto é, esta região política e geográfica capaz de agregar tanto os processos de exploração nacional dirigidos pelas forças da financeirização do capital, quanto as lutas por projetos alternativos de transformação social e política, veio acompanhada de uma onda de esperanças em torno do aprofundamento da democracia e da mitigação das desigualdades sociais. Em grande medida, o aumento das expectativas, sobretudo em relação aos países da América do Sul, mas, igualmente, a África do Sul, a Índia e a Turquia, por exemplo, deveu-se a uma peculiar combinação de vitórias eleitorais de forças sociais esquerdistas, crescimento econômico e multiplicação de protestos contra a espoliação do bem comum. Se bem é verdade que, como afirma Vijay Prashad, em seu The Poorer Nations: A Possible History of the Global South, o Sul global é “(...) um mundo de protestos, um furacão de atividades criativas, capaz de produzir uma abertura cuja direção política não é fácil de definir”, tornou-se cada dia mais claro que a crise da globalização iniciada em 2008 fez refluir o otimismo original, substituindo-o pelo medo do recrudescimento do autoritarismo e do aprofundamento da segregação social. A grande recessão econômica que acompanhou o início da atual crise não apenas desorganizou os arranjos hegemônicos nacionais construídos durante décadas de mobilizações contra a exploração e a dominação, como colocou no centro do palco da política mundial o desafio da combinação entre acumulação econômica e legitimação política. De fato, a partir de 2008, é possível perceber, em especial, no Sul global, o acúmulo das tensões sociais derivadas da necessidade dos Estados nacionais estimularem o crescimento em um contexto recessivo e assegurarem a unidade das classes dominantes por meio da promoção de um nacionalismo reacionário, enquanto respondem violentamente ao avanço das formas mais ou menos inorgânicas de resistência popular. A reprodução do conflito entre acumulação e legitimação tem fortalecido tanto a financeirização do capital, a espoliação do trabalho e o crescimento lento sem a criação de empregos, quanto estimulado o nacionalismo, o autoritarismo e a corrupção estatal em uma escala sem precedentes. Por sua vez, o ataque global aos direitos sociais e ao bem comum tem sido enfrentado por táticas políticas contingentes, forças populares ainda em formação e coalizões programaticamente instáveis. Trata-se de um embate desigual entre um Estado acólito das finanças e uma resistência popular fragmentada cujo resultado mais visível até o momento foi o agudo estreitamento do espaço político assegurado pela repressão aos movimentos sociais, pela despolitização dos conflitos via estímulo ao consumo, pela cooptação de dirigentes das forças antagonistas e pela erosão do espaço público. Quer estejamos falando da China, da Índia, da África do Sul, da Turquia ou da América Latina, o cenário repete-se: o choque entre a acumulação e a legitimação semeia o autoritarismo e a desesperança. Aqui, vale lembrar que a informalização do trabalho acompanhada pelo estímulo governamental ao empreendedorismo dos subalternos, uma maneira de transformar o vício em virtude, tende a reforçar os efeitos deletérios deste choque. Afinal, em um contexto de erosão em escala mundial dos rendimentos do trabalho, as expectativas populares estimuladas pela ideologia do empreendedorismo fatalmente irão se frustrar tendo em vista o estreitamento dos mercados nacionais. O chamado capitalismo de plataforma não pode substituir a promessa da inclusão social via trabalho subjacente à sociedade salarial exatamente por não ser capaz de estabilizar minimamente a condição proletária. Antes, trata-se de uma generalização da lógica da competição entre as classes subalternas afinada com o polo da acumulação, mas, completamente divorciada do polo da legitimação. Em poucas palavras, a “uberização” do trabalho pode bem reforçar as pulsões populistas de direita que têm semeado a segregação social em diferentes contextos nacionais. Apesar de ter chegado um pouco mais tarde à crise da globalização, a sociedade brasileira tem experimentado, desde o golpe parlamentar de 2016, um desmanche sem precedentes do projeto democrático social construído entre os anos 1940 e 1980. Trata-se do desaparecimento de um horizonte político, ou seja, da promessa da cidadania salarial no país. Em poucas palavras, a combinação entre o surgimento da proteção trabalhista e a ampliação dos direitos sociais com recursos assegurados constitucionalmente não apenas estimulou a industrialização do país, como também assegurou às classes subalternas brasileiras um patamar, ainda que mínimo, de bem-estar social. Para milhões de trabalhadores pobres e vivendo em condições precárias de vida ou de trabalho, a existência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e da previdência social acalentava o sonho de um futuro melhor. Para obter mais detalhes, pode-se ler A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades, de Adalberto Cardoso. Os efeitos sociais do desaparecimento deste horizonte político ainda não foram plenamente percebidos no país. Os ataques aos alicerces da cidadania salarial, isto é, a proteção trabalhista e previdenciária, ainda não se fizeram sentir por completo. Trata-se de um processo que levará ainda um par de anos para revelartodo seu potencial desagregador. No entanto, quando isso acontecer, o nível de ressentimento popular deverá se tornar crítico. Afinal, as contrarreformas pós-impeachment estão desmantelando os principais instrumentos de redistribuição de renda do país, isto é, a previdência social e a CLT. Ainda assim, enganam-se aqueles que imaginam que as contrarreformas relacionam-se apenas à trajetória da renda nacional. Os direitos sociais e a luta por sua efetivação deram forma a um inédito e legítimo espaço de disputas políticas que historicamente foi ocupado pelas classes subalternas nacionais. Afinal, foi o processo de ampliação da cidadania salarial que cimentou o consentimento das massas populares em relação ao Estado burguês no país. Sem a CLT e a aposentadoria, que tipo de legitimação os governos imaginam poder conquistar numa sociedade em que praticamente todas as dimensões do bem comum já foram mercantilizadas? Na realidade, no lugar da cidadania salarial, assistiremos à universalização dos mecanismos típicos do capitalismo de plataforma que, na atual etapa tecnológica, servirão para reinventar mais uma vez os dilemas de nosso atraso social. Para avaliar melhor o significado histórico das contrarreformas pós-impeachment, talvez fosse útil uma rápida comparação com a África do Sul pós-apartheid. Também lá, uma onda de esperanças populares adveio da derrota do regime racista por uma sociedade civil mobilizada e liderada pelo Congresso Nacional Africano (ANC). No entanto, um verdadeiro Thermidor neoliberal seguiu-se à libertação política dos negros, aprofundando as desigualdades e, sub- repticiamente, reintroduzindo a segregação social, agora não mais baseada na cor da pele, mas no poder do dinheiro. O mercado de trabalho foi ainda mais informalizado e os empregos desapareceram, deixando um saldo de desempregados de cerca de 30% da PEA. O apartheid racial foi sucedido pelo apartheid social e a segregação dos negros e dos pobres não se alterou significativamente. A escalada de violência social e xenofóbica vivida pelo país desde o início da crise da globalização revela como, na expressão de Chico de Oliveira, o “globalitarismo neoliberal” conduz à desintegração da sociedade. Para assegurar a reprodução da ordem, segue-se um recrudescimento do autoritarismo estatal. O massacre dos mineiros ocorrido em agosto de 2012 no povoado de Marikana sintetizou tragicamente estas tensões sociais, anunciando aos trabalhadores negros que qualquer expectativa relacionada à cidadania salarial deveria ser eliminada de seu horizonte político. A partir de então, a relação entre os trabalhadores e o Estado passou a ser mediada pela gramática da violência social. Não há dúvidas de que, se a desconstrução da sociedade salarial brasileira continuar avançando no ritmo atual, em breve, assistiremos a uma escalada semelhante. Sem o horizonte da proteção trabalhista e sem perspectivas de aposentadoria, os subalternos irão se perceber aprisionados em um espaço tão restrito de ação política que fará da desesperança a regra, divorciando litigiosamente as massas populares do Estado. O caminho contrarreformista e antipopular escolhido por um governo ilegítimo é não apenas economicamente ruinoso, por atacar frontalmente os rendimentos daqueles que vivem do trabalho, como politicamente suicida por erodir as bases institucionais da legitimidade do Estado. O resultado da atual crise brasileira talvez seja o nascimento de uma sociedade tão desigual e violenta que não seja capaz de reconhecer a monstruosidade de seus dirigentes. Os exemplos de Recep Erdoğan, na Turquia, de Narendra Modi, na Índia, ou de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, servem de alerta: a crise da globalização fechou subitamente a janela de oportunidades para o progresso do Sul global, alçando o autoritarismo ao primeiro plano da cena política. Populismos direitistas multiplicam-se pelo mundo afora, alimentando-se da frustração das expectativas populares em relação ao futuro. No nosso caso, o atual desmanche da cidadania salarial é o combustível que alimenta a fogueira. Reverter esta situação exigirá o melhor de nossas forças. Estado pós-democrático e a gestão estatal da pobreza RUBENS CASARA A opção política que levou ao Estado Democrático de Direito é a de que o poder deve ser controlado a fim de evitar novos totalitarismos e permitir o exercício da máxima liberdade (vida plena) compatível com igual liberdade dos demais (vida plena dos outros). Não por acaso, os direitos e as garantias fundamentais previstos na Constituição da República tornaram-se os principais limites ao exercício do poder. Trata-se, em termos weberianos, de um “tipo ideal” de Estado que tem o compromisso de realizar os direitos fundamentais e como principal característica a existência de limites legais ao exercício do poder. Assim, buscou-se resgatar a tradição ilustrada e liberal que sustenta, adiante da grande antítese entre liberdade e poder, a ampliação da esfera de liberdade e a restrição dos espaços que permitem a opressão e o exercício arbitrário do poder. O que existe de novo na atual quadra histórica, e que sinaliza a superação do Estado Democrático de Direito, não é a violação dos limites ao exercício do poder, até porque violações à Constituição sempre existiram, mas o desaparecimento de qualquer pretensão de fazer valer esses limites. Isso equivale a dizer que não existe mais uma preocupação democrática, ou melhor, que os valores do Estado Democrático de Direito não produzem mais o efeito de limitar o exercício do poder em concreto. Por “Pós-Democrático”, a falta de um nome melhor, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor. No Estado Pós-Democrático, a democracia permanece não mais com um conteúdo substancial e vinculante, mas como um mero simulacro, um elemento discursivo apaziguador, em meio à vigência de uma espécie de absolutismo de mercado. Os sintomas pós-democráticos estão presentes no Brasil: da mercantilização do mundo-da-vida à sociedade do espetáculo, do despotismo do mercado ao narcisismo extremo, da reaproximação entre o poder político e o poder econômico ao crescimento do pensamento autoritário. Os direitos e as garantias fundamentais passaram a ser considerados negociáveis, enquanto o Poder Judiciário abandonou a função de garantir a democracia para se tornar um mero homologador das expectativas dos detentores do poder político e do poder econômico. Pós-Democrático é o Estado compatível com o neoliberalismo, com a transformação de tudo em mercadoria. Um Estado que, para atender ao ultraliberalismo econômico, necessita assumir a feição de um Estado Penal, de um Estado cada vez mais forte no campo do controle social da população, em especial daqueles que não interessam aos detentores do poder econômico. Para instaurar o império do mercado, desmantelar o Estado do Bem-Estar Social e reduzir direitos, mostrou-se necessário aderir a um projeto autoritário, tendencialmente totalizante, voltado à produção de efeitos em todas as esferas da existência. A partir da razão neoliberal, os direitos e garantias fundamentais deixam de representar um obstáculo ao poder. Um poder que se direciona ao condicionamento de corpos e almas. Um poder que se manifesta como biopoder, ao administrar e controlar os corpos, mais precisamente dirigindo e canalizando a população aos fins do projeto neoliberal, e como psicopoder, ao intervir nos processos psicológicos e criar mecanismo de domesticação. Ao controle externo (e a correlata exploração-do-outro), produzido pelo poder punitivo, somam-se o autocontrole e a autoexploração (exploração-de-si), promovidos pelo psicopoder. Em sociedades com menor desigualdade social, o receituário neoliberal aposta no recurso ao psicopoder, como percebeu Byung- Chul Han. O autocontrole produzido pelo psicopoder revela-se mais efetivo e menos traumático do que o exercício de um poder externo sobre o corpo doexplorado. O fenômeno da autoexploração do indivíduo inserido na sociedade neoliberal (em que o indivíduo é levado a se ver como um projeto empresarial, a partir da crença de que se é livre) substituiu em grande parte o exercício do poder disciplinar. Por sua vez, em países como o Brasil, a utilização do poder penal continua a ser uma das principais estratégias de manutenção do projeto capitalista. Aos que creem ser empresários-de-si, reserva-se a autoexploração e o autocontrole; aos que, mais perto da realidade, sabem que são excluídos e explorados, concretiza-se o poder disciplinar e a exclusão penal. O Estado Pós-Democrático é, portanto, um modelo tendencialmente omisso no campo do bem-estar social, mas necessariamente forte na contenção dos indesejáveis, sejam eles a camada da população incapaz de produzir ou consumir, sejam eles os inimigos políticos daqueles que detêm o poder político e/ou econômico. A utilização do poder penal para excluir e neutralizar os “inimigos” não é um fenômeno novo, mas costuma-se apontar a experiência norte-americana nas últimas quatro décadas como o principal e mais influente exemplo da gestão penal de pessoas. Desde meados dos anos 1970, os Estados Unidos são o principal disseminador de um projeto político que busca submeter todas as atividades humanas à lógica do mercado, e para tanto se tornou indispensável o incremento do Estado Penal. O crescimento do recurso ao poder penal, correlato à diminuição das políticas inclusivas, assistencialistas e de redução da desigualdade, revela-se funcional à razão neoliberal. A opção política norte-americana de livrar o Estado de preocupações com a redução da desigualdade, a inclusão das minorias e o funcionamento da economia, somada à tolerância com um elevado nível de pobreza, a concentração da riqueza em poucas mãos, a decomposição do proletariado (vítima das revoluções tecnológicas levadas a cabo sem preocupações sociais) e a desregulamentação do trabalho, só é sustentável pelo agigantamento do Estado Penal. Isso pode ser comprovado nos Estados Unidos por meio da análise da correlação entre o nível dos auxílios sociais e a taxa de encarceramento nos estados: quanto mais são reduzidos os auxílios sociais, mais aumenta o número de pessoas presas. Ou seja, a razão neoliberal leva a um regime complexo que é liberal em relação aos detentores do poder político e econômico, público para o qual vigora o laissez-faire, e, ao mesmo tempo, busca anestesiar ampla parcela da população com promessas de consumo, enquanto, para os indesejáveis, os indivíduos ou grupos que “não prestam”, segundo a razão neoliberal, reserva medidas penais de controle e exclusão, em uma espécie de paternalismo punitivo. Entre as funções clássicas do Estado (elaboração de leis, defesa de agressões externas etc.), a razão neoliberal prioriza as funções ligadas à polícia e à justiça, isso porque não pode haver obstáculos para os fins do mercado e a busca do lucro, o que faz com que o Estado precise atuar no controle e na exclusão de indivíduos ou grupos “perigosos”. Assim, a função do Sistema de Justiça, que passa a atuar a partir da razão neoliberal, fica reduzida ao controle sobre os corpos indesejados e a homologação das expectativas do mercado e dos detentores dos meios de produção. No Brasil, instaurou-se a crença na necessidade da “guerra ao crime”, expressão que na realidade esconde um processo de exclusão ou extermínio da população indesejada e despossuída (indesejada, em regra, por ser despossuída) que se dá nos locais que essas pessoas ocupam nas cidades (no Rio de Janeiro, por exemplo, nas favelas). Ao se adotar o modelo bélico estadunidense de reação às condutas (e pessoas) problemáticas à luz da razão neoliberal, as favelas e as periferias tornaram-se o cenário em que ocorrem espetáculos promovidos pelos agentes estatais responsáveis pela “ordem pública” (leia-se: conjunto de medidas que permitem o gozo da propriedade e a manutenção da lógica do mercado), tais como as exibições do poderio bélico estatal, a troca de tiros com pessoas apontadas como criminosas e as “pacificações” (na verdade, ocupações militares seguidas da instauração, em maior ou menor grau, de regimes de exceção). Desses novos guetos, o Sistema de Justiça seleciona a maioria dos indivíduos que vão figurar como réus e acabar condenados. Nesses guetos, a “vida” é uma mercadoria de valor bem reduzido. Nas últimas décadas, a gestão de pessoas pelo Sistema de Justiça tornou-se uma das principais preocupações dos detentores do poder político. Como é da essência do Estado Pós-Democrático, aposta-se na exclusão dos indivíduos indesejados para assegurar a manutenção do projeto neoliberal. Com a redução dos direitos trabalhistas, o desmonte da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as privatizações e a comercialização do cotidiano, resta ao poder político recorrer ao poder penal para gerir a pobreza. A “mão invisível do mercado” que assegura a “sobrevivência dos mais aptos”, como se todos estivessem na mesma condição de concorrer por direitos e vantagens, encontra seu prolongamento ideológico nas campanhas por mais encarceramentos e nas premissas do Estado Penal voltado aos que recebem o rótulo de underclass. Ao lado do encarceramento (o Brasil ostentava uma das maiores populações carcerárias do planeta), o controle dos indesejados se dá também pelo extermínio promovido tanto por agentes estatais – há estatísticas de que a polícia brasileira é a que mais mata em serviço e também a que mais morre – quanto por particulares, grupos paramilitares (“milícias”) e os chamados “esquadrões da morte”. Diante desse quadro, a importância do Sistema de Justiça no afastamento ou relativização de direitos e garantias fundamentais não pode ser relativizada. No momento em que os atores jurídicos deixam de reconhecer limites ao exercício do poder para funcionar como instrumentos voltados à eliminação dos obstáculos aos interesses do Estado ou do mercado, percebe-se a influencia da razão neoliberal no funcionamento concreto das Agências Estatais, em especial do Poder Judiciário. Mudar esse quadro passa por ressignificar a democracia, em especial no que se refere aos direitos e garantias fundamentais como limites intransponíveis ao exercício do poder, de qualquer poder, mas também por alterações no processo de formação e seleção de atores jurídicos, de todos os atores jurídicos. O Brasil pós-impeachment a partir da vida das mulheres WINNIE BUENO, JOANNA BURIGO E ROSANA PINHEIRO-MACHADO A forma como a sociedade brasileira reagiu aos desdobramentos do impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi a tônica de parte significativa das análises conjunturais do final de 2016 e do primeiro semestre de 2017: a certeza absoluta, por parte das esquerdas, de que o próximo período seria caracterizado pelo aprofundamento da agenda de reformas políticas que são entendidas como fundamentais para a manutenção dos interesses econômicos das elites. Passado esse primeiro momento de um quase luto, dominado por lamentações sobre um aparente fim da democracia, numa narrativa derrotista e pessimista a respeito dos rumos das organizações políticas e dos movimentos sociais, é preciso retomar os exames do cenário econômico e social do país em perspectivas mais centradas nos processos históricos do capitalismo e seus ciclos, reconhecendo que o período de avanços sociais que antecederam o momento econômico atual está inserido nesses ciclos. Nessa direção, o que estamos propondo nesse ensaio é localizar as reformas sociais do pós-impeachment em conexão com as lógicas do sistema de produção, que se retroalimentam a partir da permanência de um excedente humano (representado por uma classe que tem cor e gênero) e da constante precarização da vida das trabalhadoras e trabalhadores. Essas características são inerentes ao capitalismo, e não estiveram ausentes no período pré-impeachment. O que se dá nesse momento é uma possibilidade de visualização dessas características em função da maneira como têm atingido também aqueles
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