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AULA 4 ATENÇÃO PRIMÁRIA E SAÚDE DA FAMÍLIA Profª Tânia Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL De acordo com a tradição do atendimento em saúde, sempre estamos voltados para o indivíduo que está na nossa frente. Nada mais natural do que nos centrarmos naquele que traz a queixa, a quem examinamos, e que, no final de tudo, é o principal alvo da investigação clínica e de outras ações. Em algumas situações, devido à fragilidade do paciente, recorremos às informações trazidas pela família; neste momento, e geralmente só mesmo nesse momento, parecemos nos lembrar que aquela pessoa tem uma família. No entanto, todo o processo de saúde e doença está intrinsicamente ligado à família e suas construções, aos seus valores e princípios, suas crenças e fortalezas internas. Está ligado também ao modo como aprendemos a lidar com o sofrimento e, até mesmo, ao que podemos ou não considerar como sofrimento. Se olharmos por esse foco, entenderemos a importância da família nos processos de saúde e doença e, para além disso, o modo como a família adoece ou tem saúde como um todo, como uma unidade – de forma que ela mesma, a família enquanto unidade, é nossa paciente. Neste momento, vamos discutir algumas abordagens que são usadas para que os profissionais de saúde possam enxergar a família como um todo, e considerar sua importância e seu papel na produção de saúde e doença. Espero que, ao final, a família como um todo seja considerada sua paciente. CONTEXTUALIZANDO A equipe da área laranja da Unidade de Saúde Lugar dos Anjos com frequência se depara com situações muito complicadas, que exigem mais do que a atuação clínica. Eles estão lidando, neste momento, com dois casos que se encaixam nessas situações de complicação: o caso da família do seu Pedro, carpinteiro que sofreu infarto, e o caso da família do seu Antônio, cuja filha de 15 anos está grávida. O Dr. Marcos resolveu conversar com o Sr. Pedro e sua esposa sobre as características do seu ciclo de vida familiar, enfatizando o comportamento do filho adolescente. Eles aceitaram prontamente a ajuda, porque se sentiam muito perdidos quanto à rebeldia do filho. Eles pareciam não perceber que essa etapa da vida apresenta crises muito específicas, e estavam tentando resolver as situações novas aplicando força e pressão sobre o jovem. Além de tudo, aquela 3 família estava vivendo uma crise não esperada no seu ciclo de vida, em decorrência do infarto do pai. O Dr. Marcos tentou entender como era o padrão de comunicação entre eles, e de cara percebeu que não devia ser bom ou claro, porque a esposa tentava esconder informações do marido. E o afeto? Havia demonstrações de afeto na família? Dona Maria Luisa disse que eles amavam seus filhos, mas que nunca foram de elogiar, de abraçar, porque não foram criados assim. No seu tempo, quando os pais falavam, os filhos abaixavam a cabeça, e agora os filhos rebatem tudo. Sr. Pedro diz que está criando homens e que não tem que ficar alisando filhos. Cria seus filhos para serem homens direitos e trabalhadores; seus pais o criaram desse modo e deu certo. A enfermeira Joana agendou uma consulta com Dannyelly, filha do Sr. Antonio, para dar andamento ao pré-natal. Na consulta, Dannyelly diz que está confusa quanto ao fato de se tornar mãe, porque o namorado não ficou tão empolgado quanto ela gostaria que tivesse ficado. Ela disse que não sabe direito o que vai fazer agora. Sabe que sua mãe também engravidou jovem e que seus pais adotivos não queriam que ela fosse igual à mãe falecida. O Dr. Marcos e a enfermeira Joana gostariam de ajudar mais as famílias, mas nesse momento ainda não sabem como proceder. Que sugestões podemos dar a eles quanto à forma de lidar com esses casos? TEMA 1 – ATENDENDO E ENTENDENDO A FAMÍLIA Um dos desafios que a atenção primária à saúde (APS) trouxe no sentido de mudança é a ideia de que se deve enxergar a família como o centro do atendimento. Além de enxergar o sistema familiar, há que se enxergar também a sua inserção dentro do contexto comunitário e a forma como esses dois componentes, família e comunidade, são estruturantes do processo de saúde e doença. De certo modo, os profissionais de saúde sempre lidaram com a família no contexto da doença, mas isso não significa que a presença da família no momento do atendimento fosse estimulada ou mesmo considerada de valor pelos profissionais de saúde. Na verdade, a família, dentro do hospital, sempre foi vista como um fator de inibição ou até de limitação para as ações dos profissionais. Sempre há muitos argumentos para deixar a família de fora, com embasamento sanitário, como o argumento da contaminação, ou que a família atrapalha os 4 processos de trabalho e a rotina hospitalar, pela falta de compreensão dos procedimentos. No entanto, apesar de alguns desses argumentos estarem embasados em critérios técnicos, o grande problema de fato é a inabilidade dos profissionais de saúde em lidar com as famílias em sofrimento. Na atenção primária, os processos são longos e contínuos, o que requer constantes aproximações da equipe de saúde e das famílias. A longitudinalidade da atenção muda a lógica dos processos, porque não se dá alta a pacientes crônicos, afinal eles necessitam de acompanhamento. Por outro lado, as famílias são essenciais no cuidado e na orientação de condições sensíveis, como puericultura (acompanhamento da criança de zero a dois anos), hebicultura (acompanhamento do adolescente) e senicultura (acompanhamento do idoso). Na atenção primária, presenciamos o início e o fim da vida, porque acompanhamos o pré-natal e também os cuidados paliativos com quem está na fase de finalização da vida. Os profissionais de saúde também se deparam com situações impactantes, como o abandono, a violência e a criminalidade, dentro das famílias e das comunidades. De alguma forma, as famílias são espelhos umas das outras; portanto, é comum que os profissionais de saúde enfrentem conflitos pessoais quando se deparam com problemas similares aos que têm de lidar em suas próprias famílias. Não se consegue separar o lado humano e pessoal do profissional, restando nesses casos o recurso de trabalhar tais dificuldades dentro da própria equipe, para que sejam dados bons encaminhamentos ao processo de trabalho. Para melhor compreensão da família, há que se analisá-la a partir da teoria sistêmica e, da mesma forma, olhar o adoecimento; ou seja, a compreensão do todo explica o que acontece com a parte, ao mesmo tempo em que a parte traz em si a representação do todo, revelando o sintoma. Na visão sistêmica, o adoecimento (ou o problema) é um componente do coletivo no qual está inserido, e não um fato isolado ligado ao indivíduo. Tal visão é essencial quando lidamos com situações graves – famílias com pessoas que sofrem de dependência química, famílias que convivem com a violência, famílias com membros que necessitam de cuidados contínuos, famílias com pessoas privadas de liberdade, famílias passando por luto, quer seja antecipado ou súbito, famílias com pessoas com transtorno mental ou ainda com pessoas deficientes mentais. Em todas as condições citadas, e em outras tantas semelhantes, a pessoa que apresenta o problema é o sintoma do adoecimento coletivo, e não 5 propriamente a doença. Por esse motivo, focar o tratamento exclusivamente na pessoa que apresenta o sintoma não significa tratar a doença, e sim sufocar o sintoma. A doença está centrada na família e no seu funcionamento, nos padrões que vêm sendo formatados durante longos anos e ao longo de várias gerações, sem que as pessoas parem para refletir sobre seus comportamentos, repetindo- os ao longo dos anos. É por essa razão que um filho de alcoolista passa a beber e repete a dependência do álcool, mesmo que tenha sofrido muito com o comportamento do seu próprio paiquando criança. Da mesma forma, uma jovem que tenha sido criada dentro de uma família que sofreu muito com a dependência de álcool do pai, com muita frequência casa-se com um homem que também tem dependência de álcool, perpetuando o padrão intergeracional. Nesse sentido, a equipe de saúde pode ajudar as famílias a romper padrões e a promover mudanças, o que é essencial para a construção de outros padrões de comportamento e de saúde. Para tanto, todos precisam entender o problema. A visão sistêmica afasta a ideia de que há culpados pelas doenças e distribui entre todos a responsabilidade pela doença e pela saúde, mediante uma visão de relação nos comportamentos (Grandesso, 2009). Dentro desta visão, está a ideia de homeostase, que significa que um sistema sempre vai buscar o equilíbrio, visando manter o sistema em funcionamento, por causa da interdependência entre as partes. Essa característica embasa a terapia familiar: quando um membro do sistema muda o seu comportamento, o sistema é obrigado a fazer novas acomodações para a sua sobrevivência. Vê-se, portanto, obrigado a mudar também (Grandesso, 2009). Quando lidamos com a dependência química, essa situação torna-se muito clara. Na família, o tema da dependência se destaca como um todo. A família muda seus hábitos, seu tempo de lazer, as relações do casal, sua vida financeira e todos os seus ritos, que passam a girar em torno da dependência do filho. Isso o torna o centro das atenções e, de alguma forma, mantém a situação, porque aquela dependência mantém o sistema unido para lidar com a situação. O que aconteceria com essa família se não houvesse aquela doença para uni-la? Quais benefícios aquela situação traz ao sistema? Parece uma ideia absurda afirmar que a dependência serve para alguma coisa dentro da família, mas a verdade é que as pessoas procuram sentidos inconscientes e inconfessáveis para a manutenção do sistema, que de alguma 6 forma se acomoda enquanto os membros se autobloqueiam na direção de mudanças que podem desacomodar a situação. Quando a desacomodação acontece, partindo da mudança de atitude de algum membro da família, os outros membros reagem em sequência, e então acontece a mudança de todo o sistema, em uma nova direção, que pode ser a direção da cura e a padronização de novas condutas. Por esse motivo, centrar o foco na família é essencial para o sucesso das ações de saúde, pois essa atitude traz novas perspectivas de envolvimento das equipes com as famílias atendidas, de acordo com os diversos níveis de envolvimento profissional. TEMA 2 – NÍVEIS DE ENVOLVIMENTO DOS PROFISSIONAIS COM AS FAMÍLIAS A visão da família como sistema e como foco da atenção integral encontra barreiras na incapacidade de os profissionais lidarem com esse fenômeno. A formação voltada para a doença orgânica impede uma visão mais abrangente do fenômeno do adoecimento. De acordo com Doherty e Baird (1999, citados por Falceto; Fernandes; Wartchow, 2013), o envolvimento dos profissionais de saúde com as famílias dos seus pacientes obedece a seguinte categorização: Grau 1: Ênfase mínima nos assuntos familiares. O assunto é brevemente abordado na anamnese, apenas o estritamente necessário ao padrão clínico, levantando-se o conjunto de informações necessárias a questões práticas ou de ordem legal. O contato, nesse caso, é superficial e desvinculado. Grau 2: Colaboração com a família, abrindo a possibilidade de troca de informações e aconselhamento. Neste tipo de contato, existe maior interação do profissional com a família do seu paciente, embora o assunto de interesse seja a condição clínica e não a condição familiar. Compartilha- se os objetivos do tratamento e escuta-se as angústias e os medos da família; prepara-se para eventuais desfechos graves. O objetivo é tentar sensibilizar a família para um maior envolvimento e colaboração com o tratamento proposto. Este nível de interação é o mais frequente entre os profissionais que lidam com cuidados paliativos. 7 Grau 3: Abordagem de apoio, de modo a lidar com os sentimentos da família. Neste nível de envolvimento, o profissional deve conhecer mais profundamente a dinâmica familiar, a forma como a família reage em situações de estresse, qual a capacidade de resiliência e o potencial para aconselhamento efetivo. Espera-se que os profissionais de atenção primária se apropriem desse nível de envolvimento. Grau 4: Abordagem sistêmica da família, no sentido de intervenção no sistema familiar. Neste nível, requer-se dos profissionais maior conhecimento de ferramentas de abordagem familiar e de técnicas de condução de grupo, para que intervenções familiares, como reuniões de família, sejam levadas a termo, incentivando-as a externar e trabalhar seus sentimentos. Para tanto, requer-se treinamento específico dos profissionais nas ferramentas e técnicas mencionadas. Este nível ainda é possível na APS. Grau 5: A terapia familiar requer um nível de habilitação mais aprofundado. Deve ser aplicada pelos profissionais com curso de especialização nessa área, ou seja, por terapeutas de família. Seu objetivo é tratar as famílias que demonstram padrões disfuncionais de comportamento. Dentro das abordagens feitas pela APS, deseja-se que o nível de aprofundamento aconteça nos graus 3 e 4. Nesses níveis, temos o manejo da maioria dos casos com os quais lidamos na clínica diária, com seus múltiplos sofrimentos. Os casos mais graves devem ser encaminhados aos pontos de referência de saúde mental da rede. É tarefa dos profissionais de APS detectar, na rede de apoio, quais os grupos que trabalham com intervenções e com o manejo de casos específicos. Temos, por exemplo, os Alcóolicos Anônimos, que manejam a dependência alcóolica; o Amor Exigente, que trabalha com as famílias de dependentes químicos, entre outros. Ao mapear tais grupos nas áreas de abrangências das Unidades de Saúde, a equipe deve estabelecer contato e pactuar os fluxos de referência. 2.1 O P.R.A.C.T.I.C.E. Para o manejo da família nos níveis 3 e 4, é muito importante a identificação de dados que vão revelar como acontece a interação familiar. Um método 8 canadense desenvolvido por médicos de família tornou-se bastante útil para identificá-los: trata-se do anagrama P.R.A.C.T.I.C.E. O P refere-se ao problema. Qual o problema principal levantado pelo paciente/família naquele momento? É importante ressaltar que sempre há várias visões de um mesmo problema. Haverá o problema sob o ponto de vista da família, da comunidade, dos profissionais de saúde; mas sempre será levada em consideração a visão do paciente que o informa. Quando se entrevista a família, a visão se torna coletiva. Para a análise do caso, o profissional levará em conta todas as visões do problema. O R vem da palavra roles, do inglês, que significa “papéis”. Quais são os papeis exercidos na composição familiar? Quem faz o papel de provedor financeiro? Quem é o principal provedor emocional da família? Quem é a ovelha negra? Quem é o bonzinho? Quem manda? A identificação desses papéis revela os interesses na manutenção de situações e problemas, os quais permitem a manutenção do sistema tal como se apresenta. A letra A está relacionada a afeto. Como é demonstrado o afeto na família? Esta família construiu relações de afeto e solidariedade entre seus membros? Essas duas perguntas são muito importantes quando um membro da família precisa ser cuidado no decorrer da vida. Se o afeto foi algo construído, encontramos facilmente a divisão de cuidados entre os irmãos, com solidariedade uns com os outros e responsabilização ao longo da vida. A letra C refere-se à comunicação. Como é o padrão de comunicação? Ela é clara, respeitosa, afetuosa, truncada, desrespeitosa, inexistente? Todos os membros são ouvidos? O padrão de comunicação passa pela formacomo os problemas são discutidos, pela forma como acontecem os embates. As pessoas falam como se sentem com relação aos problemas, ou as situações são abafadas e reveladas durante uma briga, com explosões de sentimentos mal digeridos? Há situações graves que envolvem toda a família e não são discutidas, gerando tensão permanente? Cito um caso em que a mãe resolveu permitir que um dos filhos construísse sua casa nova no seu terreno. Porém, o terreno onde a antiga casinha estava era a única herança que o pai falecido havia deixado para a família. A decisão foi tomada sem consultar os outros herdeiros, o que colocava aquele filho na posição de filho preferido, excluindo os outros da herança. Anos depois, no momento da morte da senhora, houve grande relutância dos irmãos para compartilharem o 9 cuidado, devido à mágoa que existia entre eles e o irmão herdeiro único. Teria sido diferente se aquela senhora tivesse chamado todos os filhos e conversado sobre as suas intenções e necessidades, formando um pacto entre eles, fazendo um planejamento para que todos fossem ressarcidos em algum tempo, ou mesmo pedido que abrissem mão voluntariamente da sua parte em favor do irmão, já que era o único que conseguiria construir uma casa para a mãe. Além do alinhamento de diversas situações, a comunicação passa pela linguagem e os sinais do corpo – a chamada comunicação não verbal, que inclui o olhar, o toque delicado, o tom da voz. Há famílias que falam gritando com os filhos, em tom ameaçador, em permanente hostilidade. Esse tipo de atitude gera estresse constante, colocando todos em postura de defesa, que muitas vezes se manifesta em acusações mútuas. Um momento crucial para a análise da comunicação é o momento em que as pessoas estão com raiva. As manifestações de raiva levam à irracionalidade e a atitudes impulsivas, ou será que, mesmo com raiva, as pessoas conseguem pensar e tomar atitudes sensatas? A boa comunicação é a marca de uma boa família. As pessoas conseguem expressar seus sentimentos, com respeito aos outros, pedir desculpas quando necessário, perdoar e serem perdoadas. A letra T refere-se ao tempo no ciclo de vida. Em que momento do ciclo de vida a família se encontra? Recém-casados, pais de filhos adolescentes? Envelhecimento? Cada etapa do ciclo de vida carrega um desafio gerador de crise, as chamadas crises esperadas do ciclo de vida. A importância de detectar tais etapas reside na possibilidade de preparar as pessoas para vivenciarem as crises de forma mais tranquila. Imagino que, se os casais se preparassem melhor para a chegada do primeiro filho, desvendando um pouco melhor o que pode acontecer com eles nessa fase, poderiam prevenir os afastamentos que começam nessa etapa, eliminando sofrimentos desnecessários. A letra I vem inglês illness, que significa “doença” no sentido mais amplo. Quais doenças acontecem nesta família? Na verdade, illness é a percepção da doença que as pessoas têm. Pode referir-se a um luto, à perda de um emprego, à mudança no padrão de vida ou à sensação de estar profundamente triste, com dores no corpo que não se sabe explicar. O importante é que o profissional de saúde identifique o que se expressa como doença no contexto familiar. 10 O C vem da expressão inglesa coping with stress (“resiliência ao estresse”). Refere-se à capacidade de a família reativar seu funcionamento normal, utilizando-se de experiências anteriores, após um período de crise ou instabilidade. Trata-se do sistema procurando estabilidade em novas condições. Quando a família passa por dificuldades, como a doença prolongada de um de seus membros, a perda de um emprego, um adolescente rebelde, como ela reage? Na análise deste item, é importante perguntar se a família consegue se lembrar de ter passado por alguma dificuldade, e como lidou com essa experiência. A percepção de que foi capaz de resolver um grande problema no passado, com articulações diversas, fortalece a família para enfrentar outros problemas. Com frequência ouvimos: “já passamos por coisa pior”. Por fim, a letra E vem do inglês ecology, ou seja, “ecologia”. Este aspecto direciona a observação do profissional para a relação que aquela família tem com a comunidade, incluindo os outros pontos de apoio social, como igrejas, clubes, grupos de amigos e interações comunitárias. TEMA 3 – O CICLO DE VIDA FAMILIAR E AS CRISES PREVISÍVEIS Outra ferramenta muito importante na análise é o estudo do ciclo de vida, com as características de cada fase, suas crises esperadas ou normativas ou também as chamadas evolutivas, porque provocam novos ajustamentos nos sistemas familiares. Quando a família não consegue lidar com esses desafios de forma positiva, podem surgir situações que perturbam a evolução de pessoas envolvidas, gerando comportamentos de dependência e o bloqueio de autonomia. O ciclo de vida se mescla dentro da família. Podemos ter uma família com filhos adolescentes, ao mesmo tempo em que os pais podem estar cuidando dos seus próprios pais, que estão idosos e doentes. Em alguns casos, quando os filhos têm grande diferença de idade, podemos ter adolescentes de 15 convivendo com irmãos de 5 anos de idade. Saber lidar com essas diferenças é muito importante para que a família se organize e para que consiga atender as demandas das diferentes fases e seus interesses. As etapas do ciclo de vida começam com o adulto jovem, saindo de casa, se afirmando no mercado de trabalho. O desafio dessa fase é viver sozinho, organizar a vida pessoal e financeira. Quando consideramos as famílias pobres, vemos que alguns arranjos são feitos nessa fase, a depender da condição que se apresenta. É comum vermos os jovens permanecerem em casa por tempo maior, 11 sem mudanças marcantes. Podemos considerar o marco “sair de casa” como adquirir independência financeira, ter um emprego. Outro fator importante que influencia essa fase é a condição econômica do país. Há situações de pleno emprego, quando o número de desempregados não chega a 5%. Nesses momentos, as grandes empresas estão abertas para receber pessoas em uma primeira experiência de emprego; contudo, quando há travas na economia, muitos jovens têm dificuldade para trabalhar e conquistar sua autonomia financeira. O casamento é a segunda fase do ciclo e traz consigo a tarefa de desenvolver com outro a intimidade emocional, partilhar experiências, conviver com diferenças. Neste momento, é essencial desenvolver autonomia em relação à família de origem e criar uma identidade de casal, tomando decisões autônomas, como criar os filhos e onde viver. Se a primeira etapa do ciclo de vida tiver sido positiva, esse segundo momento torna-se mais fácil, porque a saída de casa já terá acontecido, o que leva os pais a receber mais facilmente um outro membro na família. Para que o casamento de fato aconteça, as duas pessoas já devem ter evoluído na relação com os pais, entendendo a sua posição na vida de forma diferenciada. Trata-se de cortar definitivamente o cordão umbilical e entrar numa relação de compromisso com o outro, tornando-se parceiro por completo. A chegada do primeiro filho é tão marcante e especial que demarca a próxima etapa. A vida do casal muda, pois eles passam a focar na responsabilidade do cuidado. Há a necessidade de abrir a família para a inclusão do novo membro, com novos papeis, como os de avós e tios. Os outros filhos vão chegar, e esta família vai estar na fase de família com filhos pequenos. Esta etapa requer muito cuidado e boa divisão de tarefas dos pais, para que um só (geralmente a mulher) não fique sobrecarregado. Escola, médico, amiguinhos, aniversários, tarefas escolares. Dá muito trabalho, devido à inquietude natural das crianças nesta fase, mas é muito divertido também. Então chega a fase temida: filhos adolescentes. É uma etapa de transiçãopara a vida adulta. O adolescente deve ser estimulado a tomar decisões, porém não está apto a tomar todas as decisões de sua vida. Os valores cultivados dentro do relacionamento familiar se demonstram mais claramente nesta fase, como também a dinâmica estabelecida pela família. Pais extremamente autoritários, ou pais permissivos demais, tendem a educar filhos confusos e inseguros, o que 12 aumenta a vulnerabilidade desta etapa. O desafio é saber negociar com os filhos, colocando-se diante deles em posição privilegiada, sem abrir mão da sua autoridade de pais e sem jamais usar a força física. Essa é uma fase muita rica de aprendizado também para os pais. O desafio é estar aberto para novos conceitos e entender uma parte do mundo que se apresenta novo também para os pais. Compreender os filhos e ao mesmo tempo colocar limites é essencial nesta fase. Seguindo em frente, há o ninho vazio – porém, ele não precisa ser vazio de fato. O ninho será sempre visitado por genros, noras, netos. O desafio é abrir este espaço para uma constante troca de ideias, aceitando os novos membros que se incluem pelo casamento. É uma etapa para maior aproximação do casal, maior liberdade para novos projetos e crescimento pessoal. Envelhecer não significa perder. Embora devamos nos preparar para as perdas, há também ganhos. É a hora de colher o que se plantou em amizade, cordialidade. Não permitir que o interior enrijeça como o exterior. Quanto mais alegria, menos dor; quanto mais perdão, menos doença; quanto mais estímulo mental, mais consciência. O desafio é saber achar novos caminhos e ser saudável, mesmo tendo doenças. TEMA 4 – AS PRINCIPAIS CRISES NÃO PREVISÍVEIS Ao longo de sua trajetória, as famílias enfrentam diversas dificuldades, sendo que algumas são tão intensas que se constituem em crises, as quais são chamadas de inesperadas no ciclo de vida. Essas crises levam as famílias ao desenvolvimento da resiliência. Exemplo dessas situações são doenças graves, perda de emprego, morte de alguém que é referência, mudança de cidade, mudança no padrão de vida e divórcio. Estudos mostram que, ao vivenciar as crises esperadas do ciclo de vida, a família se fortalece para enfrentar as crises não esperadas. Esse fortalecimento é conhecido como resiliência familiar. As famílias disfuncionais, que não conseguem processar seus problemas, tendem a negar as situações que têm de enfrentar. É a clássica atitude de empurrar os problemas para debaixo do tapete. Porém, essa atitude traz consequências importantes, que geram alterações psicossomáticas, como dor crônica em todo o corpo, distúrbios do sono e refluxo gastroesofágico. O 13 simbolismo do corpo traduz as dores emocionais, resultantes de conflitos não tratados. Uma das crises não esperadas, de maior repercussão intrafamiliar, é o divórcio. Há uma grande carga de emoções envolvida e um clima de animosidade e ressentimento que impede, na maioria das vezes, uma comunicação produtiva entre as partes. Ainda nesse aspecto, as questões de gênero são preponderantes. Quando a iniciativa da separação parte do homem, mesmo com todas as dificuldades inerentes ao processo, o divórcio é melhor aceito e tende a ter melhor desfecho. Porém, quando a inciativa parte da mulher, há maior risco de atitudes violentas por parte do homem na fase de luto. Acusações mútuas são frequentes e, por conta disso, o maior risco é o da alienação parental. A separação é um processo longo e por isso são necessárias etapas para se chegar ao desfecho. São elas: 1) decisão de se separar; 2) separação propriamente dita, quando um dos cônjuges sai de casa; 3) estabilização das duas famílias monoparentais que se formam; 4) divórcio legal; 5) reorganização da vida dos pais; 6) novos casamentos e reorganizações familiares (Falceto; Fernandes; Wartchow, 2013). As situações de separação são especialmente delicadas quando envolvem filhos. O maior risco é que as partes usem os filhos como arma para atingir o outro, causando transtornos e conflitos nas crianças. Neste aspecto, é importante alertar o casal que está em processo de separação, sobretudo aquele que não desejava separar-se, sobre algumas atitudes de proteção às crianças. É importante lembrar aos ex-conjugês que, apesar da separação, a família nunca terminará, porque há um elo a ser compartilhado para sempre em sua história de vida, que são os filhos. É importante lembrá-los dos papéis positivos que devem exercer na vida de seus filhos, mesmo separados. Para que isso aconteça, devem pactuar um clima de princípios e lealdade, e seguir algumas orientações para evitar problemas para os filhos, sobretudos se há crianças menores (Falceto; Fernandes; Wartchow, 2013): Lembrar que o que se rompe é a relação conjugal, mas não a relação parental. Existem ex-cônjuges, mas não existem ex-pais. Evitar ao máximo mudanças externas para os filhos. São momentos de crise que devem ser pensados; portanto, decisões como mudar-se de cidade, ou até mesmo de casa, só devem ser tomadas se forem imprescindíveis. 14 Permitir que os filhos frequentem as duas casas, com combinações prévias sobre a rotina da criança, evitando que a criança mude sua rotina, ou que se dê margem para que a criança manipule um dos pais, dizendo o que um deixa ou o que o outro não deixa. Permitir o contato com ambas as famílias de origem. O casal se separa, mas a criança não precisa, além disso, afastar-se de seus avós ou tios, como represália de um dos ex-conjugês. Manter, se possível, alguns rituais para continuar unindo as duas famílias, como festas de aniversário, comemorações na escola e outras celebrações de alegria familiar. Permitir tempo suficiente para que todos elaborem a separação, respeitando os momentos de tristeza. Não apresentar aos filhos os namorados quando ainda não há comprometimento suficiente. Isto seria causar sofrimento desnecessário à criança, principalmente se ela se apegar à pessoa e depois tiver de lidar com mais um término. Fazer acordos econômicos consistentes, honestos e justos, evitando a retaliação financeira ao cônjuge que sai de casa e, acima de tudo, não se utilizar da criança para chantagem econômica. Repensar os papéis masculino e feminino na reorganização familiar, até porque ambos os pais deverão prestar cuidados às crianças quando acontecerem as visitas. Não é um momento fácil para as famílias, e existe certo partidarismo familiar, que muitas vezes incita a desarmonia entre os pais. Até que o luto seja plenamente elaborado, os profissionais devem ficar atentos aos sinais de depressão em qualquer membro da família, e cuidar para que as pessoas tenham um canal de comunicação positiva TEMA 5 – A FAMÍLIA COMO RECURSO TERAPÊUTICO: SITUAÇÕES EM QUE A FAMÍLIA DEVE SER ENVOLVIDA A família é o maior recurso terapêutico que uma pessoa pode ter, porém é também o contexto de maior produção de doenças quando não há um funcionamento estável. Independentemente disso, é dentro da família que estabelecemos laços de compromisso que nos acompanham do nascimento à 15 morte. Como profissionais de saúde, devemos potencializar este recurso, envolvendo e ajudando a família no cuidado dos entes. Existem situações que são sinalizadoras da necessidade de envolvimento da família, como parte da terapêutica e do cuidado. Algumas delas são facilmente identificadas, como por exemplo no cuidado de pessoas muito idosas e de crianças, pois trata-se de pessoas dependentes que necessitam do compromisso familiar para a subsistência. Porém, há situações em que se percebe que a manutenção da doença tem uma função específica dentro da dinâmica familiar. É o caso das pessoas “nervosas”, que desmaiam ao serem submetidas a algum estresse. Ao cair no chão, com bloqueio neurovegetativo (conhecido no jargão da urgência como pití), as brigase discussões são interrompidas dentro da família; ou seja, o adoecimento se presta como um poderoso controlador de conflitos reprimidos. Situações como essas devem ser averiguadas pelos profissionais de saúde, porque sinalizam uma dinâmica familiar de adoecimento. Nessas mesmas situações, devem ser enquadrados o paciente hiper- utlizador do sistema de saúde, o paciente que não segue as orientações dadas pela equipe de saúde, o paciente com doença aguda frequente e o paciente com sintomas psicossomáticos. Para todos esses pacientes, é importante estabelecer a conexão entre o seu quadro com as situações de estresse familiar, mostrando ao ele a relação dos eventos entre si. Em tais situações, a doença com manifestação orgânica assume um papel importante, que é encobrir a verdadeira origem do sintoma. Alguns desses casos deverão ser manejados com terapia familiar. A estratégia mais efetiva é a formação de vínculos, por parte dos profissionais, com as famílias atendidas, compartilhando confiança, sem julgamentos. Os processos são semelhantes em todas as famílias e os desfechos vão depender dos recursos que estão disponíveis; porém, o recurso mais efetivo, fora da família, são os próprios profissionais de saúde, que acompanham os membros da família na APS por longo tempo, podendo de alguma forma ajudá- los a superar suas crises. 5.1 Revendo a problematização (apresentação de possíveis soluções) O Dr. Marcos e a enfermeira Joana estão tentando ajudar as famílias do Sr. Pedro e do Sr. Antônio, mas estão encontrando algumas dificuldades. Que sugestões podemos dar quanto ao uso de instrumentos de abordagem familiar? 16 Opção 1 – “Eles devem utilizar o P.R.A.C.T.I.C.E. na família do Sr. Pedro e também aprofundar a discussão sobre a etapa do ciclo de vida da família. A ênfase deve ser na demonstração de afeto e na melhoria do padrão de comunicação”. Essa é uma ótima sugestão! A falta de demonstração de afeto leva o filho a não se sentir amado, o que o torna vulnerável aos riscos próprios dessa fase. Opção 2 – “Eles podem conversar com a Dannyelle sobre o sofrimento de seus pais e sobre a sua ingratidão por desobedecê-los e ainda engravidar”. Mesmo que a intenção seja boa, essa não é uma boa abordagem. Isso aumentaria a culpa e potencializaria o conflito, além de relembrar à Dannyelle a condição de abandono de sua origem. Opção 3 – “Os casos devem ser encaminhados para terapia com psicólogo. Não há como manejá-los na rotina da Unidade de Saúde”. Se a equipe se sente insegura para atender casos assim, de fato é preciso encaminhar os pacientes ou pedir ajuda; porém, compreender os processos é fundamental para outros atendimentos a essa família. FINALIZANDO Apesar de todos os conflitos, a família tem um papel fundamental na construção do ser humano, na sua identidade, em sua fé e percurso de vida. No que concerne à saúde e doença, no sentido amplo dos conceitos, a família segue sendo a principal produtora de saúde e doença, sendo ainda a maior ferramenta de cuidado e proteção do ser humano, do início ao final da vida. Devido à sua importância na produção de saúde e doença, a família tornou- se alvo de atenção dos profissionais de saúde. Porém, há ainda a necessidade de maior compreensão desses processos, através da apropriação de técnicas de manejo. Estudamos algumas dessas ferramentas, como o ciclo de vida e o P.R.A.C.T.I.C.E. Com o estudo do ciclo de vida, é possível prever as crises pelas quais as famílias passam, que por sua vez servem de preparação para as crises não esperadas. As famílias desenvolvem resiliência no decorrer das crises pelas quais passam. Uma das mais frequentes nos dias de hoje é o divórcio. As famílias ficam fragilizadas e apresentam dificuldades em lidar com as diversas situações de conflito entre o casal. 17 As equipes de saúde devem ajudar as famílias que passam por essas situações, de modo a permitir a transição sem muitos prejuízos ao desenvolvimento das crianças dentro das famílias. LEITURA OBRIGATÓRIA Texto de abordagem teórica MENEZES, J. B. Família na Constituição Federal de 1988: uma instituição plural e atenta aos direitos de personalidade. NEJ, v. 13, n. 1, p. 119-130, jan./jun. 2008. Disponível em: <https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/2722.p df>. Acesso em: 27 maio 2018. Texto de abordagem prática COELHO, F. L. G.; SAVASSI, L. C. M. Aplicação de escala de risco familiar como instrumento de priorização das visitas domiciliares. RBMFC, v.1, n. 2, p. 19-26, 2004. Disponível em: <https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/104/98>. Acesso em: 27 maio 2018. Saiba mais ACORDA, Raimundo... acorda! Direção: Alfredo Alves. Brasil: 1990. 16 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HvQaqcYQyxU>. Acesso em: 27 maio 2018. 18 REFERÊNCIAS DUNCAN, B. B. Medicina ambulatorial. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. FALCETO, O.; FERNANDES, C.; WARTCHOW, E. O médico, o paciente e sua família. In: DUNCAN, B. B. Medicina ambulatorial. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. GUSSO, G.; LOPES, J. M. C. Tratado de medicina de família e comunidade. 1. ed. Porto Alegre: Artmed; 2012. GRANDESSO, M. Desenvolvimento em terapia familiar: das teorias às práticas e das práticas às teorias In: OSÓRIO, L.; VALLE, P. do et al. Manual de terapia familiar. Porto Alegre: Artemed: 2009. MCWHINNEY, I. R.; FREEMAN, T. Manual de medicina de família e comunidade. Porto Alegre: Artmed, 2010. OSÓRIO, L.; VALLE, P. do et al. Manual de terapia familiar. Porto Alegre: Artemed: 2009.
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