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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP PSICOLOGIA – PARAÍSO – MATUTINO 5º SEMESTRE TRABALHO DE PSICANÁLISE SOBRE O LIVRO CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAS São Paulo 2019 A escritora do livro autobiográfico Caderno de memórias coloniais, Isabela Figueiredo, narra como foi nascer em Moçambique no fim do período colonial português. Filha de colonos e com uma condição social confortável, mostra-nos sua visão diante da realidade do período: racismo escancarado, negros vivendo como subalternos enquanto os brancos seguem em ascensão. A divisão social por raças é clara e, em diversos momentos do livro, nos é mostrado a exclusão da população local. Mais tarde, já na puberdade, Isabela “regressa” à terra de seus pais, indo morar com sua avó – por conta do conflito entre a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e Portugal – enquanto seus pais permanecem na África. Em vários de seus relatos, percebem-se conteúdos psicológicos explicados pela psicanálise, como repressão sexual, transferência, sexualidade infantil, entre outros. Este trabalho pretende relacionar situações expostas no livro com teorias psicanalíticas de Sigmund Freud estudadas, até então, neste semestre. Logo no segundo e terceiro capítulo, a autora narra que, quando menina, ouvia conversas entre as mulheres brancas (usando esse termo para mostrar que, por mais que estivesse na mesma posição de cor e classe social, distanciava-se de seus pensamentos) falando explicitamente sobre a sexualidade das negras, suas vaginas e o modo como transavam, dando a entender que essa eram promíscuas, abusando de uma suposta liberdade sexual. A menina também nos conta que as brancas não possuíam essa “liberdade”, eram mulheres sérias, tendo seu marido como único parceiro e relatando fornicações dolorosas. O corpo da mulher negra é reduzido ao sexo e posto como puro objeto de desejo – tendo como destaque, o desejo do homem branco. Por outro lado, a branca deve assumir o papel de imaculada e cumpridora de suas obrigações matrimoniais perante seu marido e à comunidade. Há, então, uma repressão sexual nítida. A mulher branca, por ter sempre negado essas características sexuais diante de uma sociedade que reprime isso e coloca assuntos de natureza sexual como tabus e a performance disso como libertinagem e pecado, projeta de forma inconsciente na negra tudo o que rejeita em si, de forma distorcida. Essa projeção é um mecanismo de defesa psicológico que é utilizado quando o sujeito não sabe lidar com esse conteúdo, de modo a se proteger. Ainda no capítulo três, Isabela relata ter encontrado um livro de cunho sexual debaixo da cama de seus pais, com ilustrações expositivas de homens e mulheres nus. Chama o livro de “volume proibido” e não demonstra a ninguém que sabe de sua existência, muito menos que o leu na íntegra. Conta-nos também que, por volta dos sete anos, percebeu que seus pais fechavam a porta do quarto e sua mãe parecia chorar e, uns anos depois, começou a notar seu pai cobiçando outras mulheres. Esses acontecimentos e a descrição anterior de conversas que escutava das mulheres mais velhas estão fortemente ligados à teoria que Freud relata na quarta lição de psicanálise, onde diz que as crianças dedicam notável parte do intelecto à interesses sexuais. Através de relatos que ela escutou e suas percepções, começou a criar ‘teorias sexuais infantis’, o que fica claro quando, no começo do capítulo, escreve: “Foder. O meu pai gostava de foder. Eu nunca vi, mas via-se. [...] Eu não sabia, mas sabia.” Ainda no começo do livro, capítulo cinco, ficamos sabendo que, aos sete ou oito anos, Isabela envergonhava-se e, ao mesmo tempo, desejava o sexo. Em uma oportunidade, brincou de foder com um rapaz de sua idade, escondidos em uma casa em construção. Os dois tiraram completamente a roupa, Isabela deitou-se no chão de terra e o menino pôs-se em cima dela. Ficaram assim, equilibrando-se nessa posição, conversando e “fodendo”, até que seu pai os flagrou e a esbofeteou de forma bem agressiva, de modo que ela entendesse que “foder era proibidíssimo”. Com isso, podemos perceber a existência do desejo sexual infantil perfeitamente. Já há nela a existência de um objeto sexual e um foco na área genital como provedor de satisfação do seu desejo, de maneira instintiva, como ela mesma relata: “Nenhum de nós sabia muito bem o que estava a fazer, o que era isso de foder. Mas intuíamo-lo.” Além disso, com a reação do pai, a menina reprimiu esse desejo, tornando-o proibido, assim como fizeram as mulheres que citei no começo desse trabalho. Mais tarde, no mesmo dia, Isabela começou a sonhar que fodia com o cantor Gianni Morandi, o que nos mostra outra famosa teoria de Freud, a dos sonhos e suas interpretações voltadas à realização de desejos. Na terceira lição de psicanálise, há uma frase que nos deixa bem claro o acontecido, descartando maiores explicações: “A criancinha sonha sempre com a realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez.” Vale a pena falar também que a reação dos pais de nunca ter tocado nesse assunto novamente é a reação da maioria dos adultos ao negar e não querer enxergar a sexualidade infantil. Mais adiante no livro, a autora volta a falar de seu desejo por Gianni Morandi e narra sua fantasia infantil, onde acreditava que “mais cedo ou mais tarde” ele a levaria pra sair aos fins de semana. Na quinta lição de psicanálise, Freud nos fala da fantasia como satisfação compensatória, onde o sujeito se desprende da realidade e cria um mundo onde pode gozar de seu desejo não concretizado, seja por fraqueza do indivíduo ou por fatores externos. Esse substituto de uma realidade insatisfatória acaba por proteger o sujeito, não da realidade externa, mas de uma realidade interna, onde não consegue lidar com seus desejos. Isabela mantém essa ilusão por Gianni, pois desde quando seu pai a flagrou despida debaixo de outro menino, reprime essa vontade de se satisfazer com o outro (objeto sexual) e transfere isso a uma fantasia e ao conteúdo de seus sonhos. Essa autobiografia documental abre espaço para ampla discussão de conteúdos psicanalíticos propostos por Freud, como o que fiz neste trabalho. Há diversas situações que demostram com transparência estudos feitos por ele e tudo que estamos estudando este semestre, principalmente nos conceitos expostos no livro que contém as cinco lições de psicanálise – uma síntese de palestras para uma classe não médica de suas teorias. Bibliografia: Garcia-Rosa, Luiz Alfredo. FRED e o inconsciente. 2 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1996. MARTINS, Karla; OLIVEIRA, Débora. Fantasia e a transferência: articulações a partir do texto Gradiva de Jensena. Pepsic, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672010000300008> FIGUEIREDO, Isabela. Cadernos de memórias coloniais. São Paulo: todavia, 2018. FREUD, S.. Cinco lições de psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 11 - 1910). Rio de Janeiro: Imago.