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G RA N G RA NN RA N G RAAAAAAAAARRR GGGGGG E DA E DA E DA E DA A E DA E DA E DA E DA A E DA E DAA E DAA E DAAAAAAA E DADD E D EE ED IÇ Ãà ED IÇ Ã ED IÇ Ã Ç ÃÃÃ Ç Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã E à ED IÇ Ã Ç Ã D IÇ Ã ED IÇ Ã D IÇ Ã ED IÇ Ã Ç Ã Ç Ã Ç Ã Ç Ã D IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã Ç Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ã ED IÇ Ãà D IÇ Ã ED IÇ ÃÃÃà ED IÇ Ã Ç ED IÇÇ ED IÇÇÇÇ ED IÇÇ D IÇ ED I EEE O N º O N º O N º O N º O N º º O N º O N º O N º º O N º O N º º O N º O N ºººº O N º O N º N ºº O N ºº O N ºº O N º O N º O N º N ºº O N º N O N O NN O OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO 11 .18 11 .18 11 18 11 .18 11 .18 11 .18 11 .18 11 188 11 .18 11 .18 11 .181.1 8.181.1 888 1.1 8 1.11.11.11.1111 1 D O 1 D O D O 1 D O D O D O 1 D O D O 1D OOO 1 D O 1 D OO 1 D O 1 D O D O D O 1D1 D111111 PÚ BL I PÚ BL I PÚ BL I PÚ BL I PÚ BL I PÚ BL I PÚ BL I PÚ BL ILI PÚ BL II PÚ BL I Ú BL ILI PÚ BLLBLL PÚ BLL PÚ BL PÚ B PÚ B PÚ BB PÚ B PP C O , E C O , E C O , E C O , E C O , E C O , EEE O , E C O , E 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TE M EN TE M EN TE N TE EN T M EN TE M EN TE M EN TE EN TE M EN TE M EN T M EN T M EN T M ENN M EN M ENN M ENEEEE MMM Artemisia O reconhecimento, 400 anos depois, na National Gallery de Londres um nome de guerra Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. 2 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 Já ouviu falar nela? Já lhe enviaram um postal com uma das suas obras? Tem algum livro onde apareça o seu nome? Já a viu num dos grandes museus? Artemisia Gentileschi continua a não integrar o cânone ensinado nos departamentos de história da arte das universidades, onde não se questiona a masculinidade naturalizada do que se ensina. Nem é um dos nomes reconhecidos pelas elites cultas que enunciam, sem hesitar, uma dúzia de pintores italianos do “renascimento” ou “barroco”. As historiadoras da arte feministas, sobretudo norte-americanas, já tinham descoberto a pintora desde a década de 1970. Mas só agora — com a exposição re-inaugurada ontem, 3 de Dezembro, na National Gallery de Londres — é que Artemisia vai passar a ser um nome mais familiar. Filipa Lowndes Vicente Artemisia o reconhecimento 400 anos depois na National Gallery de Londres: EA M O N N M . M C C O RM AC K/ G ET TY IM AG ES Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. Qualquer ideia de “delicadeza” dos traços e temas femininos — estereótipo tão repetido pela crítica de arte nos séculos XIX e XX — é subvertida pela intensidade e força de uma Judite a degolar um Holofernes com a ajuda de uma “criada” que, não tendo direito a nome, nada tem de subalterno Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorizaçãoexpressa do Público – Comunicação Social, S.A. 4 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 D evia ter inaugurado em Abril mas só abriu em Outubro por causa da pandemia. Um mês depois voltou a fechar pelas mesmas razões. Reabriu ontem na National Gallery de Londres a retros- pectiva de Artemisia Gentileschi (Roma, 1593-Ná- poles, c.1656), a primeira grande exposição de- dicada à pintora num museu deste prestígio e dimensão. São mais de 30 os quadros expostos, cerca de metade do total da obra de Artemisia, mas é o suficiente para impres- sionar quem a vir. As críticas não podiam ser mais entu- siastas. No Guardian, Jonathan Jones chamou-a uma “re- volutionary exhibition” e, sobretudo, “the most thrilling exhibition I have ever experienced at the National Gallery”. A exposição começou a ser pensada em 2018 quando a National Gallery comprou o auto-retrato da artista repre- sentada como Catarina de Alexandria. Pintado entre 1615 e 1617, foi a primeira obra de Artemisia a fazer parte de uma coleção pública britânica. Mas é apenas a oitava obra de uma mulher artista exposta no principal museu de Trafal- gar Square, que conta com 700 pintores. Tamanha dispa- ridade não é proporcional à realidade. Como têm demons- trado muitos estudos e exposições nos últimos anos, são muitas mais — e melhores — as artistas mulheres do pas- sado do que aquilo que a história da arte nos dá a conhecer através das várias dimensões em que se constrói enquanto disciplina — museus, exposições, livros, revistas académi- cas e de divulgação, ou programas universitários. Em 2018, outro grande museu de “arte antiga”, o Mu- seu do Prado, iniciou um questionamento sobre o lugar das mulheres artistas nas suas colecções e exposições. Uma das consequências foi ter retirado das reservas o Nascimento de São João Baptista de Artemisia Gentileschi. Mesmo assim, entre as 1700 obras do maior museu da Península Ibérica apenas 7 são de mulheres. Mas o efeito mais visível deste repensar do cânone foi a exposição sobre duas pintoras italianas, antecessoras de Genti- leschi, inaugurada em Madrid em Outubro de 2019: His- toria de dos pintoras. Sofonisba Anguissola y Lavinia Fon- tana. O mesmo trabalho de reflexão sobre a disciplina da história da arte resultou na exposição recentemente inaugurada em Madrid, Invitadas. Fragmentos sobre mu- jeres, ideología y artes plásticas en España (1833-1931). Mesmo assim, e antes desta iniciativa da National Gallery, Artemisia era a artista feminina da “arte antiga” sobre a qual mais se tinha escrito e mais exposições indi- viduais se tinham realizado. Isto poderá dever-se a três razões principais: em primeiro lugar, existe uma quanti- dade substancial de obras assinadas e documentos escri- tos, nomeadamente em grandes colecções italianas, apesar da atribuição da sua obra continuar em revisão. Em segundo lugar, a sua história de vida, marcada pela violação que sofreu e o processo judicial que se seguiu, atraiu sobre ela uma curiosidade inusitada e tornou-se indissociável da construção da sua personalidade artís- tica. Por último, ao privilegiar mulheres fortes e temas Artemisia recorreu a uma iconografia de “mulheres fortes” da Antiguidade, do Antigo Testamento e da história romana, que se distinguiram pelo determinado. Judite, Madalena, Susana, Lucrécia, Cleópatra, mas também ou deusas como Clio, deusa da história, e Minerva, deusa e sabedoria. Mulheres do passado, histórico ou mitológico, vestidas com bíblicos onde personagens masculinas se convertem nas vítimas, mortais, dos seus actos de violência, favoreceu uma leitura em espelho entre vida e obra, bem como a identificação da própria pintora como feminista, vários séculos antes de a palavra existir. Já foi escrito inúmeras vezes, e também a propósito de Artemisia, que é preciso ter cuidado com as interpreta- ções espelhadas entre vida e obra. Mas como não o fazer no caso da pintora? As Judites e Holofernes são pintadas logo depois da violação e há na iconografia da pintora uma persistência de homens abusadores e predadores e de mulheres que se vingam da violência, ou que pelo menos lhe resistem. Mulheres que matam ou que se ma- tam, mulheres que não aceitam passivamente serem ví- timas, mulheres onde Artemisia converge alegoria e auto- retrato, ficção e realidade — como no extraordinário La Pittura [imagem da capa desta edição], na colecção real da Rainha Isabel II de Inglaterra, em que uma enorme pintora (ela própria?) transborda a tela enquanto pinta, como se a vida nunca lhe chegasse. E assina: Arte-mi-sia — “que a arte me seja”. Artemisia, um nome de guerra Tentei fazer um exercício semelhante ao que têm feito muitas instituições culturais em todo o mundo — quando e onde é que ouvi, li ou vi o nome ou a obra de Artemisia Gentileschi? Licenciei-me em Lisboa, em História e His- tória da Arte, entre 1990 e 1994, mas aí nunca ouvi falar de Artemisia, tal como nunca ouvi falar de nenhuma mu- lher artista. Mais problemática, no entanto, não foi a total ausência de nomes femininos nos cânones que me foram sendo transmitidos na universidade “da Idade Média ao início do século XX”. Mais grave foi eu não ter reparado nisso. A masculinidade do conhecimento está tão natura- lizada que dificilmente nos apercebemos dela. Só quando fui estudar para Londres, em 1994, é que fui confrontada com abordagens feministas à história da arte e pela primeira vez ouvi falar de mulheres artistas dos séculos XIX e início do XX. Mas também não foi em Ingla- terra que ouvi falar de Artemisia nem a vi em nenhum museu. Em 1638-39 Artemisia passara uma temporada em Londres a visitar o pai, Orazio, então pintor da corte do rei Charles I, grande coleccionador e mecenas. Mas as encomendas que nesse período foram feitas a Artemisia pela nobreza inglesa permaneceram todas em colecções privadas, e inacessíveis ao público. Até agora. A primeira vez que vi o seu nome impresso foi num livro humorístico publicado em 1998 pelas Guerrilla Girls, o grupo de artistas-ativistas nova-iorquino e anó- nimo que, com humor, tem denunciado, desde há 35 anos, as desigualdades de género no mundo da arte. Susana e os Velhos — a história bíblica em que dois ho- mens lascivos assediam uma jovem ameaçando-a com a acusação de adultério, caso ela não ceda aos seus avan- ços — é a primeira pintura assinada por uma Artemisia ainda adolescente e é também a obra que abre este com- pêndio de história da arte ocidental feito só de artistas mulheres, em jeito de paródia às histórias da arte só com nomes masculinos, ou seja, aquelas por onde estudei. Em 2000, quando fui viver para Florença, pude ver, pela primeira vez, a obra de Artemisia. Era a única mulher artista exposta nos Uffizi, um dos museus mais visitados do mundo, onde os locais só vão quando os turistas dão algum descanso à cidade, entre Janeiro e Março. Qualquer ideia de “delicadeza” dos traços e temas femininos — es- tereótipo tão repetido pela crítica de arte sobretudo nos séculos XIX e XX — é logo subvertida pela intensidade e força de uma Judite a degolar um Holofernes com a ajuda de uma “criada” que, não tendo direito a nome, nada tem de subalterno. As duas aliadas para se vingarem do ho- mem assírio que atacara os judeus. Como numa BD seis- centista, a cena seguinte — a cabeça de Holofernes já dentro de um cesto carregado pela mesma dupla, Judite e criada — encontra-se exposta na Galeria Palatina do Pa- lazzo Pitti, a dez minutos a pé, do outro lado da Ponte Vecchio. Poucos anos depois, no Museo di Capodimonte, em Nápoles, voltei a ver uma pintura da artista, a sua primeira versão de Judite e Holofernes pintada antes da- quela que está exposta nos Uffizi florentinos. Neste mo- mento, as duas pinturas encontram-se expostas em Lon-dres, lado a lado. Só em 2012, já depois de ter dedicado a Artemisia Gen- tileschi um capítulo do meu livro A Arte sem História. Mulheres e Cultura Artística (XVI-XX) é que tive a oportu- nidade de ver, no pequeno Musée Maillot em Paris, uma exposição retrospectiva: Artemisia. Gloire, pouvoir et passions d’une femme peintre. O fascínio que já tinha por ela — obra e vida — só aumentaram. “É verdade, é verdade, é verdade”... A vida faz parte da obra Nasceu em Roma, em finais de 1593, onze anos depois da morte de Santa Teresa d’Ávila (1515-82) e umas décadas antes do nascimento de Josefa de Óbidos (1630-84). Mor- reu cerca de 1656, com sessenta e poucos anos, na cidade de Nápoles. Como acontece com grande parte das mu- lheres pintoras até ao século XIX, era filha de pintor e foi no atelier paterno que fez a sua formação. Quando as mulheres não tinham acesso a outros espaços de apren- dizagem esta era a única forma de o talento artístico de uma mulher se manifestar. A mãe morreu de parto quando Artemisia contava 12 anos e a adolescência foi passada a pintar (e a tomar conta dos três irmãos mais novos). Ao contrário de pintoras suas antecessoras como Sofonisba Anguissola ou Lavinia Fontana, para quem a pintura fez parte de uma educação sofisticada, Artemisia não aprendeu a ler nem a escrever. O atelier do pai foi a sua escola. Não podendo, devido ao seu género, frequen- tar as academias de nu onde se aprendia anatomia, ou mesmo sair de casa, terá aprendido a copiar quadros e Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. A sua obra, onde há uma persistência de homens predadores e de mulheres que se vingam da violência, ao privilegiar mulheres fortes e temas bíblicos onde personagens masculinas se convertem nas vítimas dos seus actos de violência, favoreceu a identificação da pintora como feminista, vários séculos antes de a palavra existir F IN E A RT IM AG ES /H ER IT AG E IM AG ES V IA G ET TY IM AG ES , da hagiografia católica, seu carácter m Santa Catarina, das artes, comércio trajes do século XVII Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. 6 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 do pai e gravuras, objectos baratos e acessíveis na sua Roma contemporânea. Aos 17 anos, quando o pai já lhe reconhecera o enorme talento e já assinava telas em nome próprio, foi vio- lada por Agostino Tassi (1578- 1644), pintor conhecido do pai que este contratara para lhe dar aulas. Sobre este acontecimento de Maio de 1611 nada saberíamos se Orazio Gentileschi não tivesse denunciado o seu colega de profissão (não sem antes ter tentado que este se casasse com a filha para encobrir o sucedido) e não se conhecesse o processo judicial que prova bem a humilhação — e mesmo a tortura — a que uma mulher seiscentista se tinha que sujeitar se, como Artemisia, se atrevesse a denunciar o seu agressor. O processo foi descoberto no século XIX, mas só publicado em 1981 por Eva Menzio, e depois tra- duzido do italiano para outras línguas. Pode agora ser visto, pela primeira vez, na exposição londrina. O julgamento teve lugar em 1612, na corte do Papa Paulo V, e, como aconteceu a tantas mulheres ao longo dos sé- culos, sujeitou a vítima a nova agressão. Artemisia foi submetida a um exame ginecológico descrito publica- mente e sofreu a denominada tortura das Sibilas, para provar que não estava a mentir — “è vero, è vero, è vero” — repetiu enquanto as cordas apertavam os seus dedos até aos limites da dor. Tassi foi considerado culpado, mas como o Papa apreciava a sua pintura, a única condenação que sofreu foi a de ter de sair, temporariamente, da cidade. Uma pena que, de facto, nunca chegou a cumprir. As con- sequências deste evento na vida de Artemisia foram ime- diatas e profundas. Para tentar mitigar os danos e a ver- gonha do processo público e possibilitar-lhe um recomeço, o pai julgou oportuno trocar Roma por Florença e lá casar a filha com um pintor, desconhecido, da sua eleição. A arte, a vida e a carreira: as cartas Em Florença, Artemisia deixou telas, conhecimentos e cartas. Aprendeu a ler e a escrever, assistiu ao teatro, música, dança e todo o tipo de eventos performativos que os Medici promoviam na sua corte, recebeu enco- mendas de Cosimo II e foi a primeira mulher a inscrever- se na Accademia delle Arti del Disegno, em 1616. Mas se em Florença se fez pintora profissional, alcançou reco- nhecimento e prestígio e teve o seu primeiro atelier in- dividual, também foi lá que contingências da vida pessoal a fizeram regressar a Roma anos depois. “Inquietação, inquietação”. O casamento arranjado do qual nasceram cinco filhos, quase todos mortos na primeira infância, cedo se tornou numa entente cordiale, que permitiu a Artemisia consumar a sua paixão pelo amante, um aris- tocrata florentino, que ajudou o casal materialmente em inúmeras ocasiões. As cartas que escreveu durante este Susana e os Velhos — a história bíblica em que dois homens lascivos assediam uma jovem ameaçando-a com a acusação de adultério, caso ela não ceda aos seus avanços — é a primeira pintura assinada por uma Artemisia ainda adolescente e é também a obra que abre um livro humorístico publicado em 1998 pelas Guerrilla Girls, o grupo de artistas-ativistas nova-iorquino que, com humor, tem denunciado, desde há 35 anos, as desigualdades de género no mundo da arte período permitem-nos saber de uma intimidade que só o tempo — a história — pode legitimar. No catálogo da National Gallery, Francesco Solinas assina um artigo sobre toda a correspondência escrita por Artemisia, com destaque para as cartas de amor en- viadas ao amante, que ele próprio descobriu apenas em 2011, no arquivo privado da família florentina Fresco- baldi. São as únicas escritas pela sua própria mão — ou seja, com os erros gramaticais e a letra pueril a revelarem uma alfabetização tardia e frágil. As muitas outras cartas enviadas por Artemisia — a mecenas, príncipes, aristo- cratas, familiares e amigos — eram ditadas a secretários enquanto pintava, segundo ela própria explicou. Nestes fascinantes espólios de correspondência a sua personalidade transparece — crua, impetuosa, ambi- ciosa, insatisfeita, exigente, apaixonada, directa, sem rodeios e sem pudor em pedir dinheiro adiantado por trabalho não feito, a queixar-se de dívidas contraídas ou a justificar anos de atraso na entrega de encomendas. Tal como o pai, a filha tinha dificuldade em gerir a insta- bilidade financeira da sua profissão. Corajosa e deste- mida também, muito. O que esta teia de cartas também mostra é o modo como se constrói e gere uma carreira artística, do papel determinante das relações pessoais, das decisões pragmáticas de temas e trabalhos, da falta de dinheiro, do custo em pagar a modelos nus, ou dos roubos de ideias por parte de outros artistas. Enfim, do equilíbrio nem sempre fácil entre o ofício de atelier, as mãos sujas de tinta, e o espaço (e as verbas) necessárias à representação social e aos conhecimentos, sem os quais não havia talento que subsistisse. Apenas nas cartas escritas ao amante é que Artemisia se revela também vulnerável, ansiosa, a sofrer pela perda de mais um filho, ou com saudades de o rever. Ou seja, esta documentação escrita — tão bem explorada pela Na- tional Gallery, quer na exposição quer no catálogo — vem estabelecer relações entrea escrita e a pintura e demons- trar todas as dimensões subjectivas e aleatórias de um percurso artístico que, tantas vezes, a história da arte não tem em conta. As cartas também contribuem para traçar a geografia, itinerante, de Artemisia, ao sabor de enco- mendas e trabalho, mas também da sua vida pessoal, in- tensa, atípica e atribulada — quando a sua relação extra- conjugal com Francesco Maria Maringhi se tornou dema- siado comentada em Florença, Artemisia, ainda acompanhada pelo marido, regressou à sua Roma natal. Passou ainda umas temporadas em Veneza — uma ci- dade mais livre e aberta, também por estar longe do Va- ticano — onde o estatuto das mulheres (questione della donna) era então assunto de debate público e defendido por escritoras feministas com várias obras publicadas como Lucrezia Marinella (1571-1653) ou Arcangela Tara- botti (1604-1652), uma freira que condenou a misoginia e a sociedade patriarcal de seiscentos. Gentileschi traba- lhou ainda em Génova, Modena e Turim e, após algumas As abordagens à obra e vida de Artemisia duas perspectivas: de Itália e centrada na obra, dos EUA uma história em conta os contextos em que o pensamento crítico que reflecte e Auto-retrato como Santa Catarina de Alexandria Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 | 7 britânica Breach Theatre que compreendeu o potencial da história da pintora no contexto do MeToo. Bela e nua: uma exposição em Florença (1991) Só em 1991 é que foi organizada em Itália a primeira grande exposição individual sobre a artista. Começou na Casa Buanorroti, museu secundário e discreto numa Flo- rença com tantas outras escolhas mais reconhecidas, e seguiu depois para Roma. Em 2011-12, Artemisia voltaria a merecer uma exposição monográfica em Itália, já num lugar de maior prestígio, o Palácio Real de Milão. A Casa Buonarroti foi construída em meados do século XVI, no centro de Florença, por um sobrinho do, já na altura, famoso Michelangelo (Buonarroti) que, admirador de Artemisia, a convidou para pintar um fresco no edifí- cio que desenhara para o tio. A perspectiva feminista da vida e da obra de Artemisia que na mesma altura estava a ser escrita pelas historiadoras da arte norte-americanas não esteve presente nem na exposição nem nos textos do catálogo, onde dominou uma linguagem formalista sobre as escolhas estéticas da artista e um esforço de identificação da sua obra. Longe de darem destaque às suas muitas telas de conteúdo violento, onde persona- gens femininas dominadoras exercem a sua força, tam- bém a física, os comissários preferiram sublinhar a Ar- temisia “feminina”, que usava o seu auto-retrato em múltiplas figuras de mulheres voluptuosas e sensuais. Na capa do catálogo está a bíblica Susana, desnuda, a ser assediada pelos velhos, o seu primeiro quadro datado e assinado, de 1610, quando Artemisia tinha apenas 17 anos. A Alegoria da Inclinação, num nu que se pensa ser também um auto-retrato (o pano drapejado a cobrir-lhe parcialmente o corpo terá sido acrescentado poste- Gentileschi têm oscilado entre vem a mais tradicional da arte mais holística, que tem a obra é realizada e integra sobre o passado tentativas falhadas para ser acolhida como pintora em mais uma corte italiana, rumou a Londres. Teria sido in- centivada pelo seu pai, já velho, há treze anos ao serviço do monarca-mecenas britânico e a precisar de ajuda para empreitadas como a dos tectos da Queen’s House em Greenwich, a sul de Londres? Sobre o seu período lon- drino sabe-se menos. O pai morreu pouco depois, em 1639, e Artemisia ainda ficou lá uns tempos a finalizar encomendas, para finalmente regressar definitivamente a Nápoles onde estabeleceu um atelier com Prudenza, a única dos seus filhos que sobreviveu até à idade adulta. “La Pittora” morreu em Nápoles depois de 1654 (a data exacta é ainda incerta, mas pensa-se que terá sido na epi- demia que assolou a cidade em 1656), depois de pelo me- nos 15 prolíficos anos numa cidade então dominada pelos espanhóis. Terá conhecido Velázquez na corte quando este foi a Nápoles prestar homenagem a uma Infanta de Espanha? São deste período as cartas que enviou a um dos seus principais mecenas, grande coleccionador italiano, António Ruffo. Foi a ele que escreveu — “Mostrar-lhe-ei, Ilustre Senhor, o que uma mulher é capaz de fazer”. Em vida, teve muitas das componentes que permitem identificar uma carreira artística. Teve obra encomendada por mecenas prestigiados e em diferentes espaços geográ- ficos, reconhecimento pelos seus pares, pagamento pelo trabalho e menções em livros sobre artistas, uma tradição italiana que faz com que saibamos hoje muito mais sobre pintores nascidos em Itália — também mulheres — do que sobre os de outros países. Mas quando é que Artemisia foi realmente descoberta? Que livros e exposições é que lhe foram dedicados? Como é que a sua obra foi interpretada? Ao longo do século XX várias abordagens à sua obra, vindas de Itália como dos EUA, consolidaram o seu nome, en- quanto revelaram as transformações da disciplina de his- tória da arte ao longo do tempo e os modos como ela se desenvolveu de forma distinta em países diferentes. “Artemisia” entre as duas guerras Foi em 1916, há pouco mais de cem anos, que o historiador da arte italiano Roberto Longhi (1890-1970) publicou um livro sobre Orazio Gentileschi e Artemisia Gentileschi, pai e filha, pintor e pintora, onde ela ainda tem papel secun- dário. Umas décadas depois, em 1947, a sua mulher, Lucia Lopresti, ou Longhi, de casada, também historiadora da arte, publica a novela Artemisia numa Florença ainda ferida pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial. O livro, assinado com o pseudónimo de Anna Banti, conju- gava uma investigação histórica do processo jurídico de violação, aspectos autobiográficos da vida da própria autora, que perdeu o primeiro manuscrito quando a sua casa florentina foi bombardeada pelos alemães em Agosto de 1944, e uma narrativa ficcionada em que Artemisia servia como pretexto para uma reflexão sobre a criativi- dade feminina. É esta última perspectiva que Anna Banti irá explorar num livro publicado muito mais tarde, já em 1982: Quando anche le Donne si Misero a Dipingere [Quando também as mulheres começaram a pintar]. A novela de Anna Banti contribuiu muito para divulgar a artista para lá de um reduzido grupo de especialistas e foi mesmo considerada pioneira, de um ponto de vista literário, por Susan Sontag. Num ensaio publicado no London Review of Books, A Double Destiny. On Anna Banti’s Artemisia, Sontag comparou a Artemisia de Banti a Or- lando, personagem criada por Virginia Woolf e às Memó- rias de Adriano de Marguerite Yourcenar, e destacou este duplo cruzamento entre autora e personagem, entre pre- sente e passado, entre Anna Banti e Artemisia Gentileschi. “Non piangere”, “não chores”, são as primeiras palavras do livro — quem o diz a quem? As vozes alternadas de es- critora e pintora confundem-se, entrelaçam-se entre in- timidade e história numa obra que, como Fénix renascida, escreve Sontag, se perdeu e teve de ser reescrita. Depois de Banti foram publicadas outras versões ro- manceadas da vida de Artemisia: a primeira, de 1998, é assinada por Alexandra Lapierre, e sai em Paris; a se- gunda, de Susan Vreeland, intitula-se The Passion of Arte- misia, e foi publicada em Nova Iorque em 2002. A sua vida, tão intensa como a sua obra, terá contribuídotambém para que, dos livros, a sua história ficcionada passasse para o cinema. Em 1997, foi apresentada Artemisia, uma produção francesa, alemã e italiana realizada por Agnès Merlet. No excelente livro editado pela holandesa Mieke Bal — The Artemisia files: Artemisia Gentileschi for feminists and other thinking people, de 2005 — a historiadora de arte Griselda Pollock considera, no entanto, que o filme apenas explora a pintora nas suas relações com os diferentes ho- mens da sua vida. Mais recentemente, as palavras de Ar- temisia — “è vero, è vero, è vero” — proferidas sob tortura, foram usadas como título da peça da companhia de teatro e Grande Prémio de Tradução Literária Francisco Magalhães (2020) Na impossibilidade da entrega presencial do Grande Prémio de Tradução Literária na Sociedade Portuguesa de Autores, como tem sido hábito, o júri vem, por este meio, publicitar os resultados do concurso referente ao ano de 2019. Concorreram à presente edição do Prémio 40 obras, traduzidas do inglês, francês, espanhol, alemão, neerlandês, romeno, polaco e sueco, publicadas por 17 editoras, e com tradutores de várias gerações. É a seguinte a classificação atribuída pelo júri: 1º Prémio – Arie Pos, pela tradução de Guerra e Terebintina, de Stefan Hertmanns (D. Quixote) Três menções honrosas ex aequo Teresa Swiatkiewicz, pela tradução de Viagens, de Olga Tokarczuk (Cavalo de Ferro) Hugo van der Ding, pela tradução de Notas de um Velho Nojento, de Charles Bukowski (Alfaguara) Ana Maria Chaves e Márcia Montenegro, pela tradução de As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain (Livraria Lello) O Júri, a APT e a SPA agradecem todas as candidaturas e felicitam vivamente os premiados. Lisboa, em Novembro de 2020 O júri Teresa Seruya Alexandra Ambrósio Lopes João Ferreira Duarte Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. 8 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 riormente) é o título do fresco pintado no tecto da casa de Michelangelo Buonarruoti, e foi outra das imagens escolhidas para ilustrar a exposição. Assim, ao dar mais destaque às mulheres de Artemisia que correspondem às tradicionais representações de beleza feminina e não a uma das suas violentas, poderosas, rudes e, até, feias Judites, Cleópatras ou Lucrécias, a exposição acabou por reificar uma correspondência entre “mulher-artista” e “mulher-bela” que esteve presente desde o Renascimento e que se traduziu numa valorização dos auto-retratos de artistas mulheres como forma de dupla beleza. Curiosamente, quando, em 1681, Filippo Baldinucci traçara o perfil de Artemisia Gentileschi na sua obra de vários volumes sobre vidas de artistas, também dera um especial destaque à sua Inclinazione, ou Alegoria da Incli- nação: “Esta virtuosa mulher pinta de uma maneira be- líssima uma figura muito próxima do natural, refiro-me a uma mulher de aspecto belíssimo, muito vivo e orgu- lhoso.” O outro destaque dado por Baldinucci à obra de Artemisia é o de uma Aurora, uma mulher nua de cabelos soltos, que está muito longe das personagens que hoje associamos a Artemisia. A estas, o autor dedicou apenas umas curtas frases para passar logo a referir o seu talento para pintar “todo o género de frutas”. A força desta chave de leitura da arte feminina fez com que Baldinucci, que até se mostrou especialmente aberto às possibilidades artísticas das mulheres, como o demonstram vários dos seus textos, escrevesse que Artemisia Gentileschi era conhecida sobretudo pelos seus retratos e naturezas-mor- tas. Ora, um olhar sobre a sua obra é suficiente para re- velar que estes dois géneros estão especialmente ausen- tes das suas escolhas pictóricas. Mas se Itália a tornou “feminina”, os Estados Unidos fizeram-na “feminista”. Do outro lado do Atlântico: as abordagens feministas Artemisia recorreu a uma iconografia de “mulheres for- tes” da Antiguidade, da hagiografia católica, do Antigo Testamento e da história romana, que se distinguiram pelo seu carácter determinado. Judite, Madalena, Susana, Lucrécia, Cleópatra, mas também Santa Catarina, ou deu- sas como Clio, deusa da história, e Minerva, deusa das artes, comércio e sabedoria. Mulheres do passado, histó- rico ou mitológico, vestidas com trajes do século XVII. É certo que estes eram temas da época, mas o modo como Artemisia os pintou, e a persistência com que o fez, nada tinha de comum. Mesmo as criadas são anónimas, mas actuantes, tal como sucede muito mais tarde com as de Paula Rego. Quando vejo a obra de Paula Rego, aliás, penso muitas vezes em Artemisia Gentileschi e agora, de alguma forma, juntaram-se as duas na National Gallery pois, em 1990, a portuguesa-londrina assinou o enorme mural no restaurante do museu, Crivelli’s Garden. Embora, proporcionalmente, as mulheres artistas dos séculos XVI, XVII e XVIIII pintem mais retratos de mulhe- res ou auto-retratos do que os seus congéneres masculi- nos, não houve uma tendência para a escolha de uma iconografia feminina “feminista”, como acontece nos casos de Artemisia ou de Elisabetta Sirani (1638-65), uma pintora bolonhesa na geração seguinte que também se distinguiu pela escolha temática das mulheres fortes do passado. É só na década de 1970, ou seja, vários séculos mais tarde, que se dá uma coincidência entre a prática artística de mulheres e a escolha de temas feministas. É também na década de 1970 que Gentileschi é descoberta pelas historiadoras da arte feministas norte-americanas e que a artista Judy Chicago a “sentou à mesa” na sua fa- mosa instalação Dinner Party, hoje exposta na ala de arte feminista do Brooklyn Museum, ao lado de outras trinta e oito mulheres que, de alguma forma, se notabilizaram na história (a única outra artista presente é a norte-ame- ricana Georgia O’Keeffe [1887-1986], conhecida pelas suas pinturas evocativas da sexualidade feminina). A artista romana foi uma das pintoras a integrar a ex- posição organizada em Los Angeles logo em 1976 — Wo- men Artists: 1550-1950 —, a primeira grande exposição com consciência feminista que veio questionar a mascu- linidade naturalizada do cânone da “história da arte”. Na década seguinte, em 1989, a académica Mary D. Gar- rard publicou Artemisia Gentileschi: The image of the fe- male hero in italian baroque art, onde a dimensão de género constitui o principal critério de análise da obra, e a artista italiana do século XVII é considerada como portadora de uma voz protofeminista. Já nos anos 90, a mesma autora publicou outro livro, desta vez sobre alguns exemplos específicos de quadros de Gentileschi, e aproveitou a introdução para responder às críticas que a sua obra anterior havia provocado, no- meadamente por parte de outras historiadoras da arte feministas, como Griselda Pollock. Garrard foi acusada de ler a arte como mera expressão autobiográfica. O seu livro era também criticado por heroicizar o objecto do seu es- tudo, de uma forma que reproduzia as tradicionais abor- dagens historiográficas que consagravam a genialidade de determinado homem artista. No fundo, um caso que serve de exemplo ao debate mais alargado sobre os usos do fe- minismo na história da arte durante aquele período. Por um lado, uma abordagem mais ligada aos métodos tradi- cionais e, por outro, uma perspectiva que analisa a obra da arte como um produto cultural e não como o resultado do génio artístico; e que alerta para os riscos de substituir um cânone masculino por um feminino, que não ques- tione os próprios critérios de definição do cânone. Em 2007 o National Museum of Women in the Arts, em Washington, organizou uma exposição intitulada Italian Women Artists from Renaissanceto Baroque, em que Ar- temisia Gentileschi foi uma das quatro protagonistas — além de escolhida para capa do catálogo —, ao lado de Sofonisba Anguissola (1535-1625), Lavinia Fontana (1552- 1614) e Elisabetta Sirani e outras pintoras, escultoras e gravadoras da Itália dos séculos XVI e XVII. A exposição teve lugar no museu que alberga a colecção de mulheres artistas realizada pelo casal Wilhelmina Cole Holladay e Wallace F. Holladay no mesmo período em que “as” (e não “os”) historiadoras de arte começaram a questionar a ausência de mulheres de colecções, museus e exposi- ções. Mas ser objecto de uma exposição no belo edifício maçónico onde se instalou o National Museum of Women in the Arts não é o mesmo que merecer uma retrospectiva na National Gallery of Art de Washington ou, como só agora aconteceu, na homónima de Londres. Artemisia estava ainda longe de alcançar o reconhecimento mere- cido que raras vezes se obtém em exposições ou livros com a palavra “mulher” escrita no título. Londres, 2020: o encontro de diferentes historiogra as Podemos afirmar que as abordagens à obra e vida de Artemisia Gentileschi têm oscilado entre estas duas pers- pectivas que, não por acaso, tendem a estar divididas geograficamente: de Itália vem a história da arte mais tradicional e mais centrada na obra, dos Estados Unidos uma história da arte mais holística, que tem em conta os contextos em que a obra de arte é realizada e integra as transformações do pensamento crítico que reflecte sobre o passado. A exposição na National Gallery de Londres — a consagração no século XXI — representa a fusão de linhagens historiográficas distintas (a curadora é italiana, e o atual director do prestigiado museu é ítalo-britânico), mas nenhum museu italiano teria conseguido dar a Ar- temisia a projeção que advém de um potencial blockbus- ter que apenas a pandemia veio perturbar. Artemisia, em Londres, propõe-nos um percurso cro- nológico por uma prática artística desenvolvida ao longo de mais de 40 anos. Entre 1610, com Susana e os Velhos, e 1652, com o Autoretrato como alegoria da Pintura, Arte- misia demonstrou ser uma extraordinária pintora, agora conhecida por um número cada vez mais alargado de pessoas. Mais importante do que estar entre os maestri é a forma como o seu caso exemplifica a história do co- nhecimento, fazendo-nos ser mais críticos em relação ao que nos é ensinado e mostrado. É verdade que há muitos pintores esquecidos que são depois descobertos. Cara- vaggio, por exemplo, hoje mais do que reconhecido, foi redescoberto por Roberto Longhi na década de 1930. Contudo Caravaggio pode ter sido injustamente ignorado por muitas razões, mas nunca por ser “homem”. O per- curso de um homem artista também está marcado pelo facto de ele ser um “homem” tal como é indissociável do contexto geográfico, social e cultural onde cresceu. Po- rém, o facto de se ser “homem” nunca constituiu um obstáculo ou uma limitação às possibilidades de um per- curso artístico porque, ao longo da história, a masculini- dade esteve sempre implícita na prática artística. En- quanto o ser “mulher”, pelo contrário, se tornou quase sinónimo de “não-reconhecimento”, constituindo-se, assim, num factor mais determinante da construção his- tórica que inclui uns e exclui outros, com a grande “arte”, equívoca mais eficaz, de fazer parecer que “história” e “realidade” sejam uma e a mesma coisa. Que aquilo que conhecemos é aquilo que merece ser conhecido. Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Privilegiar mulheres fortes e temas bíblicos onde personagens masculinas se convertem nas vítimas dos seus actos de violência favoreceu uma leitura em espelho entre vida e obra, bem como a sua identificação como feminista, séculos antes de a palavra existir Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 | 9 A escultora franco-americana via na arte a forma de “garantir a sanidade”. Foi com ela que esta artista que atravessou o século XX “deslaçou o tormento” da sua vida. Uma história que nos é contada na retrospectiva inaugurada no Museu de Serralves, a partir da Colecção Glenstone, e depois de ter também passado pelos Países Baixos. Sérgio C. Andrade Louise Bourgeois: a mãe de todas as mulheres-aranha Q uem está familiarizado com a imagem mais icónica da obra de Louise Bourgeois (1911-2010) tenderá a iniciar a visita à exposição Deslaçar um Tormento, que sexta-feira é inaugurada no Museu de Arte Con- temporânea de Serralves (MACS) pelo jardim, pelo parterre frente à Casa de Serralves, onde repousará, até 4 de Junho de 2021, a sua impo- nente aranha de bronze, aço e már- more, Maman. É a mãe de todas as “mulheres-ara- nha”, uma peça que a escultora fran- co-americana dedicou à mãe, uma tecelã de tapeçarias que morreu quando Louise era ainda uma jovem de vinte anos à procura de um sen- tido para a vida, e para ultrapassar uma infância atormentada por cir- cunstâncias familiares complicadas. Esculpida em 1999 para assinalar a inauguração, no ano seguinte, da Turbine Hall da Tate Modern, em Londres — parte da instalação I Do, I Undo, I Redo —, Maman era apresen- tada como homenagem à mãe, mas também uma metáfora da repara- ção. “Venho de uma família de repa- radores. A aranha é uma reparadora. Se estragas a teia de uma aranha, ela não se zanga. Volta a tecê-la para a reparar”, escreveu Louise a propó- sito desta peça que nos convoca tam- bém para este insecto de ressonân- cias mitológicas, simultaneamente assustador e protector. A aranha é igualmente um alter ego da figura da escultora que mar- cou a paisagem artística da segunda metade do século XX, mesmo se se manteve activa até à sua morte a 31 de Maio de 2010, aos 98 anos. “Eu tive ainda a ocasião de a co- nhecer pessoalmente, na sua casa em Manhattan, alguns meses antes do seu desaparecimento”, confidencia ao Ípsilon Philippe Vergne, director do MACS e responsável pela apresen- tação no Porto desta retrospectiva que é a maior exposição em Portugal da sua obra — a anterior tendo acon- tecido já em 1998, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, com um con- junto de “obras recentes”, e estando ela representada na Colecção Be- rardo com um múltiplo de Torso/ Self portrait (1963/64). “Foi um encontro muito como- vente, e simultaneamente intimi- dante, ver-me perante uma artista que já não tinha de provar nada, mas cuja energia continuava concentrada no trabalho, que fez até ao fim: ela estava ali na sua casa, quase não se mexia, a desenhar sobre uma pe- quena mesa, a fazer assemblages de desenhos — um cordão umbilical enorme —, rodeada de todos aqueles objectos e memórias”. “Foi um privilégio enorme”, e Maman é uma peça que a escultora dedicou à mãe, uma tecelã de tapeçarias que morreu quando Louise tinha vinte anos e procurava um sentido para a vida e para ultrapassar uma infância atormentada Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. 10 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 @teatroaveirense 10’DEZ · 21h · M/6 D’ALVA novas quintas um dia se apresentou no estúdio de Robert Mapplethorpe para ser foto- grafada) documentam a presença da sexualidade, da decapitação, da cas- tração, que fez com que a artista fosse erigida em porta-estandarte do movimento feminista.“Mesmo recusando a etiqueta de militante, a sua obra ajudou a liber- tar a linguagem feminista e o lugar da mulher na sociedade”, nota o di- rector do MACS, chamando a aten- ção para o definitivo reconhecimento da obra de Louise Bourgeois a partir da década de 80 (em 1982, o MoMA fez com ela a sua primeira exposição retrospectiva feminina), “a altura em que o tema do corpo ganhou uma importância particular, principal- mente em Nova Iorque, por via do aparecimento da sida”. Comer o pai As duas salas seguintes são preenchi- das com as Células, as instalações de espaços fechados, familiares, ínti- mos, com que a artista invocou/su- blimou a infância problemática. “As Células representam diferentes tipos de dor: física, emocional e psicoló- gica, mental e intelectual. Quando é que a emoção se torna física? Quando é que a dor física se torna emocional? É um círculo que gira e gira”, escre- veu a artista. Este capítulo da visita abre com A destruição do pai (1974), gruta onde Louise materializa uma sua fantasia de infância, um “festim nu”, canibal, em que se vinga do pai tirano e adúl- tero devorando-o à mesa… Nas “células” seguintes, criadas na década de 90, dedica-se a “liquidar” outras feridas do passado: a dor e a doença prolongada da mãe; o quarto confinado entre paredes formadas por portas antigas; os objectos da vida doméstica; a maqueta, sob uma gui- lhotina, da casa que Louise criança habitou em Choisy-le-Roy, a sul de Paris, onde os pais tinham uma ofi- cina de tapeçaria; a finalizar com Lady in waiting (2003), a cabina onde se auto-retratou na figura de uma mario- neta sentada num enorme cadeirão estofado, e com o corpo rodeado/ preso numa… teia de aranha.A ara- nha sempre presente, também vista como metáfora da sua escultura. “Eu preciso das minhas memórias; elas são os meus documentos; e a arte é a garantia da sanidade”, escreveu a artista, cuja vida e obra praticamente atravessaram o século XX. “Louise Bourgeois foi testemunha de todas as mudanças: viveu duas guerras mundias, Paris e Nova Ior- que, as mudanças sociais, os movi- mentos estéticos, as descobertas científicas, a exploração do espaço, as revoluções e evoluções...”, re- corda Philippe Vergne, realçando que a sua obra, sem ser didáctica, reflecte todas essas vivências. “Ela foi uma storytailor, uma contadora de histórias, que conseguiu reunir a figuração e a abstracção, e que mu- dou, libertou, a forma de fazer escul- tura”, sintetiza. recorda Vergne, que nesse ano de 2010 visitara a escultora por via do seu trabalho na direcção da Dia Art Foundation, em Nova Iorque. A exposição Louise Bourgeois: Des- laçar um Tormento, comissariada por Jerry Gorovoy, chega agora ao Porto depois de ter sido apresentada nos Países Baixos (Museu Voorlinden, em Wassenaar), trazendo à Europa a co- lecção que o museu privado Glens- tone, na costa leste dos EUA, entre Baltimore e Filadélfia, guarda da ar- tista nascida em Paris em 1911. “É uma das duas ou três colecções de Louise Bourgeois mais importantes no mundo”, explica Vergne. Reunido pela coleccionadora cana- diana Emily Wei Rales (com o seu marido, o empresário e coleccionador americano Mitchell Rales), este espó- lio de Louise Bourgeois “resulta de uma escolha muito precisa, desde o início, e que dá uma ideia muito clara do percurso estético da artista, a sua relação com os materiais usados, os diferentes momentos da história da arte que atravessou e também as preocupações, e não unicamente es- téticas, que habitam a sua obra: a se- xualidade, os traumas da infância, a maternidade, a paternidade, o espaço doméstico, a arquitectura”, explica o director do MACS guiando o Ípsilon pela exposição ainda em montagem nas salas da fundação portuense. Regressando à “mãe-aranha”, não deixa de ser uma experiência inusi- tada confrontarmo-nos com esta peça construída em bronze, aço e mármore (os 17 ovos que o gigan- tesco insecto guarda na sua bolsa), que em Serralves ganha uma resso- nância muito especial enquadrada, seja com a Casa actualmente em obras (um trabalho de “reparação”, que de algum modo a aranha super- intende), seja face ao jardim ou à alameda dos liquidâmbares, cuja idade e altura parecem rivalizar com os mais de nove metros de enverga- dura de Maman. Se esta peça ganhou esta monu- mentalidade por via da encomenda da Tate Modern, a aranha é uma pre- sença antiga, e recorrente, na obra de Bourgeois. Isso mesmo o visitante poderá ver documentado no MACS logo na primeira secção da sala de entrada em Deslaçar um Tormento. Num painel, dispõem-se as 11 gravu- ras coloridas à mão sobre papel com que a escultora-autora realizou He Disappeared into Complete Silence (1947-2005). Trata-se de um conjunto de trabalhos gráficos iniciados nos anos 40 — uma década após a artista ter-se radicado em Nova Iorque, de- pois de, em 1938, ter casado com o professor e historiador de arte ame- ricano Roberto Goldwater (1907- 1973) —, e que em 2005 foi comple- tado para uma reedição impressa. Numa das gravuras deste portfolio, a figura da aranha surge agarrada ao tecto da arquitectura de uma casa, num geometrismo e numa referência a estas disciplinas que sempre mar- caram a obra da artista. “A aranha aparece logo aqui, esta noção de um corpo híbrido, numa relação com a arquitectura e também com o espaço privado”, diz Philippe Vergne, real- çando o interesse que Bourgeois manteve com a arquitectura, seja com a casa francesa da sua infância, seja depois com os arranha-céus de Nova Iorque. Expressionismo e abstraccionismo Da mesma época (1947-54) são as “personagens” em madeira pintada que vemos a abrir o percurso da ex- posição, uma instalação ambiental que remete para a escultura de Bran- cusi e Giacometti, para o expressio- nismo e abstracionismo, mas tam- bém para a arte africana, a lingua- gem moderna das artes que Louise bebeu na sua formação académica na Paris dos anos 20/30, onde traba- lhou com Fernand Léger. Na segunda secção da primeira sala de Deslaçar um Tormento, temos uma selecção das peças mais reconhecíveis no conjunto da obra de Bourgeois: os órgãos sexuais femininos e masculi- nos, e pedaços, seccionamentos do corpo humano em referências explí- citas à sexualidade e às suas leituras pela Psicanálise — disciplina pela qual Louise se interessou. Depois da pintura da mulher sem cabeça — Ste. Sebastienne (1998), que, na verdade, é uma representação do mártir cristão São Sebastião, cujo corpo foi atravessado por setas —, peças criadas no final dos anos 60, como Noir veine, Avenza Revisited II, Hanging Janus e Fillette (o falo sobre- dimensionado, de bronze, com que e Marcou a paisagem artística da segunda metade do século XX, mantendo-se activa até à sua morte a 31 de Maio de 2010, aos 98 anos “Mesmo recusando a etiqueta de militante, a sua obra ajudou a libertar a linguagem feminista e o lugar da mulher na sociedade” Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. 12 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 Nova exposição no Museu Nacional de Arte Antiga leva-nos a um reino ainda em formação, partindo do martírio de cinco franciscanos em Marrocos, há 800 anos. Arte e arqueologia em diálogo paraevocar uma história do nosso imaginário, mas que não foi bem como nos contaram. O Portugal de mouros e cristãos não foi só guerra Lucinda Canelas A cidade esteve cercada mais de quatro meses e a 25 de Outubro de 1147 rendeu-se. A população estava exausta, havia fome, doen- ças, e as brechas abertas na muralha pelos atacantes terão tor- nado impossível a sua defesa. No dia que se seguiu à entrada vitoriosa dos cruzados e dos soldados de Afonso Henriques em Lisboa, a mesquita foi consagrada à fé cristã. Não podia haver dúvidas de que as coisas ti- nham mudado. O bispo moçárabe fora decapitado, possivelmente con- fundido com um muçulmano, e a cidade saqueada de imediato. “Aberta a porta e dada a permissão de entrar aos escolhidos para isso, os [cruzados] colonenses e flamen- gos (…) vendo na cidade tantos exci- tativos de cobiça não observam res- peito algum ao juramento e fideli- dade; correm aqui e ali; fazem presa; arrombam portas; esquadrinham os interiores de cada casa; afugentam os habitantes afrontando-os com injúrias; estragam vasos e vestidos; procedem injuriosamente para com as donzelas; igualam o lícito ao ilí- cito; e às ocultas surripiam tudo que devia ser dividido por todos. Contra o direito e o lícito matam até o bispo da cidade, já muito idoso, cortando- -lhe o pescoço”, relata o autor da Carta a Osberno, uma das principais fontes históricas da conquista de Lisboa, escrita na segunda metade do século XII ou na primeira do XIII por uma testemunha ocular cuja identidade é ainda incerta. Dando conta dos avanços e recuos das tropas leais a D. Afonso Henri- ques, e com um destinatário também por identificar, o homem que escreve esta carta — provavelmente um cru- zado inglês, certamente culto, dado o domínio que tem do latim — não se concentra apenas em episódios de batalha nem nas quezílias entre cru- zados de várias origens. Fala, tam- bém, das negociações dos represen- tantes do primeiro rei de Portugal com os desta força internacional, como hoje diríamos, que desembarca no Porto com a intenção de continuar o seu caminho até à Terra Santa e que se deixa convencer a adiar a viagem para participar na tomada de Lisboa, talvez tão aliciada pela oportunidade de vir a impor mais uma derrota ao islão aliando-se a um dos mais recen- tes monarcas da cristandade como pela possibilidade de saquear aquela que era uma das mais prósperas cida- des do Ocidente. “A Carta a Osberno é uma reporta- rem martirizados pelo islão”, diz Joaquim Caetano, director do MNAA e co-comissário de Guerreiros e Már- tires, explicando em seguida que os irmãos Berardo, Otão, Pedro, Acúr- sio e Adjuto “são os primeiros a fazer dos árabes os grandes inimigos dos cristãos”, deixando um “lastro ico- nográfico” e uma “devoção” que se mantêm até hoje. Já não se usa a pintura para divulgar este episódio histórico amplamente aproveitado em termos religiosos e políticos, como no século XV e seguin- tes, mas ainda há quem continue a acreditar no poder das relíquias dos Mártires, ossos e fragmentos que po- demos encontrar na exposição, guar- dados no medalhão que foi usado por D. Fernando, um dos filhos do rei D. Duarte, e em riquíssimas peças de ourivesaria, como a que pertenceu a uma abadessa do Mosteiro de Santa Maria do Lorvão, neta de D. Pedro I e de Inês de Castro. A pintura de Francisco Henriques que representa a execução dos cinco frades — Mártires de Marrocos (1508- Os cinco Mártires de Marrocos numa pintura do século XVIII atribuída ao franciscano Diego de Frutos, hoje à guarda do Museu de Valladolid. Em baixo, os dois comissários da exposição: Santiago Macias e Joaquim Caetano gem fabulosa com mais de 800 anos que nos traz a luta pela cidade entre cristãos e mouros, mas que nos dá também informações importantes sobre a maneira como Lisboa estava organizada do ponto de vista urbano, social. E com preocupações de rigor e pormenor, sem abdicar do ritmo, da emoção”, diz o historiador e ar- queólogo Santiago Macias, comissário de Guerreiros e Mártires: A Cristan- dade e o Islão na Formação de Portu- gal, a mais recente exposição do Mu- seu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa (até 28 de Fevereiro). Tendo por pretexto o aniversário dos Mártires de Marrocos — cinco franciscanos italianos torturados e decapitados em Marraquexe há 800 anos a mando do califa Abu Yusuf al- Mustansir, que no imaginário popular português ficou conhecido como Mi- ramolim —, esta exposição que reúne mais de 200 peças procura mostrar como foram determinantes a convi- vência e o confronto de duas religiões, de duas civilizações, no contexto da criação do reino de Portugal. “Há um importante simbolismo em torno destes cinco franciscanos que vão para o Norte de África para se deixarem matar em nome da sua fé porque eles são os primeiros a se- RU I G A U D ÊN C IO RU I G A U D ÊN C IO Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 | 13 -1511), tábua do Retábulo de São Fran- cisco de Évora, feito para uma igreja que era, ao mesmo tempo, a de um mosteiro franciscano e a de um palá- cio real, o de D. Manuel I — e as ima- gens da procissão de Travassô, reco- lhidas em 1969 e em 2019, que inte- gram o primeiro dos seis núcleos desta exposição, são dois dos exem- plos desse “lastro iconográfico” e devocional, dessa memória que está intimamente ligada a um tempo em que Portugal estava a definir-se como unidade territorial, como país. “Os Mártires ganham um cunho guerreiro que, depois, se valoriza muito com a expansão portuguesa para o Norte de África no século XV”, acrescenta o historiador de arte Joa- quim Caetano, chamando a atenção para a qualidade da pintura de Fran- cisco Henriques, cuja composição é encimada pelos carrascos mouros, e para a vitrina ao lado, que reúne uma cruz decorada com motivos islâmicos e um cofre de marfim para jóias ou perfumes que pertenceu a um digni- tário muçulmano e acabou a guardar hóstias ou relíquias na Sé de Braga. “A religião cristã é uma religião da morte, do culto funerário. A grande ideia é a superação da morte, daí que a relíquia seja um instrumento impor- tante na história que é contada.” Um infante português na corte do califa O culto dos Mártires de Marrocos, lembra o comissário no catálogo, foi amplamente difundido pela ordem franciscana e pelo Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde a maior parte das relíquias foi depositada depois de o infante Pedro Sanches, irmão do rei Afonso II, a quem se opunha, as trazer para Portugal. Sanches, re- corde-se, assistira à execução dos frades integrado nas tropas do califa, e os cinco religiosos tinham passado por este mosteiro da ordem de Santo Agostinho a caminho do Norte de África, precisamente numa altura em que lá vivia e estudava Santo An- tónio, a quem viriam a influenciar profundamente. As práticas rituais e a produção de imagens, escreve o comissário, “acentuam no imaginário cristão o papel opositor do islamismo, mote para a construção de um vector im- portante da identidade nacional”, num tempo marcado pela presença constante da guerra. “Qualquer país precisa dos seus inimigos e também dos seus mártires e heróis. Os nossos heróis são os que venceram ‘o outro’, são a memória da vitória, mesmo depois de mortos e, se calhar, sobretudo depois de mortos”, diz Joaquim Caetano. Saídos deste primeiro módulo, Por- tugal na Espanha Árabe, evocação do historiador António Borges Coelho e desta obra homónima fundamentalsobre a ocupação árabe da Península Ibérica, o visitante entra noutro (Viver em Tempos de Cruzada) que não seria possível sem as escavações que, so- bretudo no Sul do país, se começaram a fazer a partir do final da década de força ainda no século XI, com o fim do califado do grande apogeu muçul- mano da Península Ibérica, que cria uma verdadeira corte imperial orien- tal no ocidente, mas só depois da to- mada de Lisboa, que coincide com a afirmação do poder almóada, é que a coisa se radicaliza. Até aí igrejas e mesquitas co-existem.” Para Joaquim Caetano, o império almóada — a maior potência do Medi- terrâneo ocidental, uma das maiores do mundo islâmico, segundo o histo- riador Hermenegildo Fernandes, um dos autores do catálogo de Guerreiros e Mártires — trouxe uma verdadeira jihad à medida do século XII, com episódios como o dos Mártires a su- blinhar a ruptura com o passado. Entre a conquista de Lisboa e o epi- sódio dos Mártires, em Janeiro de 1220, é todo o Sudoeste peninsular que tenta resistir ao avanço dos cris- tãos. A um Portugal em modo de afir- mação contrapõe-se, então, um islão ibérico que está já na fase do deses- pero, do declínio. “O princípio do século XIII marca um ponto de não- -retorno em relação à reconquista”, resume Santiago Macias. Território cosmopolita Os Papas da primeira metade do sé- culo XIII procuram, sistematica- mente, “colocar a guerra contra o is- lão no centro das preocupações dos reis peninsulares”, mas, ao mesmo tempo, aceitam abrir excepções para garantir que as trocas comerciais no Mediterrâneo, envolvendo muçulma- nos e cristãos, decorrem sem inciden- tes de maior, explica Hermenegildo Fernandes no seu ensaio. É preciso ver que o Gharb al-Anda- lus, os territórios ocidentais da Pe- nínsula Ibérica controlados pelo is- lão nos séculos XII e XIII, era uma região cosmopolita em que os inter- câmbios comerciais tinham grande peso, sublinha Susana Gómez Mar- tínez, investigadora do Campo Ar- queológico de Mértola, tal como Macias. Produziam-se cerâmicas e vidros de grande qualidade, de que há exemplares na exposição do mu- seu de Arte Antiga, e era evidente o avanço científico em várias áreas. “A produção de materiais era mui- tíssimo sofisticada, assim como a pro- dução literária, sobretudo a de poesia. Durante muito tempo, cristãos e mou- ros conviveram, sem se misturarem muito, como diz o Hermenegildo [Fernandes], mas também sem vive- rem em guetos, como acontece aos muçulmanos de Lisboa pós-1147, con- finados à mouraria, onde ficam as duas únicas mesquitas da cidade, ao passo que pré-1147, as igrejas cristãs estão espalhadas”, acrescenta Macias, falando num período de “um certo retrocesso civilizacional” imposto pela reconquista e de “séculos de hi- bridação, de contaminação” entre cristãos e mouros. “À nossa chegada, tinha a cidade 60 mil famílias. O alto do monte é cingido por uma muralha circular, e os muros da cidade descem pela encosta, à di- reita e à esquerda, até à margem “Qualquer país precisa dos seus inimigos e também dos seus mártires e heróis. Os nossos heróis são os que venceram ‘o outro’, são a memória da vitória, mesmo depois de mortos e, se calhar, sobretudo depois de mortos”, diz Joaquim Caetano 70, com a criação do Campo Arqueo- lógico de Mértola, cidade alentejana à beira do Guadiana que tem estu- dado o seu passado islâmico melhor do que qualquer outra em Portugal (são oriundas de Mértola 40 das peças expostas). É nesta segunda sala que se encon- tra a maior parte das cerâmicas desta exposição que nos mostra também esculturas, têxteis, marfins, peças de ourivesaria, livros iluminados, vidros e armas, combinando objectos de um quotidiano modesto com outros que são verdadeiros artigos de luxo. Os objectos — “um passado que es- tava todo enterrado”, sublinha o ou- tro comissário, Santiago Macias, apontado para uma enorme talha e para um tabuleiro de jogo dos séculos XII-XIII — mostram bem as contami- nações entre cristãos e mouros, con- centrando-se mais no que partilham do que naquilo que os separa. “Quisemos que as pessoas pensas- sem como é que esta relação entre o mundo islâmico e o cristão contribuiu para a criação deste país sem avançar uma resposta, mas dizendo que as coisas não são a preto e branco como, infelizmente, ainda ensinam os ma- nuais escolares, são em espelho”, explica Macias. Um espelho que con- traria interpretações maniqueístas sobre o que aqui se passou entre os séculos VIII e XII-XIII. “Isto não foi um tabuleiro com maus de um lado e bons do outro. Se houve momentos em que foi ‘nós [cristãos] contra eles [mouros]’, pe- ríodos de grande violência, outros houve em que foi ‘nós com eles’, de convivência, de tolerância tensa, mas de tolerância.” É a conquista de Lisboa, em 1147, que marca um extremar de posições de um e de outro lado, diz Macias, também arqueólogo e responsável pelas escavações no castelo de Moura: “A reconquista cristã começa a ganhar e Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. 14 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 “O que vivemos hoje, a radicalização do discurso com a identificação dos árabes como o inimigo em cenários de guerra, de terrorismo ou em relação aos refugiados, não é novo” O país e a ideologia da reconquista Pias de abluções, calvários em ma- deira, lápides funerárias, exemplares da Bíblia e do Corão, placas de cedro para o ensino da escrita árabe, pintu- ras de Nuno Gonçalves represen- tando muito provavelmente Santo António, o mais importante dos san- tos portugueses, e São Teotónio, o primeiro, integram os dois núcleos que encerram a exposição: Rezar e Identificação de um país, este último com o título decalcado do longo en- saio sobre as origens de Portugal que o historiador José Mattoso publicou em 1995 (reeditado pela Temas e De- bates em 2015). “O que José Mattoso nos vem dizer é que a reconquista cristã não é só um projecto para expulsar os árabes do território, é também uma questão de política interna, já que é preciso responder às aspirações da igreja e da nobreza, os senhores da guerra que querem mais terra”, resume Joa- quim Caetano. No pós-reconquista, acrescenta Santiago Macias, “há uma verdadeira reforma agrária”, com o rei a apossar--se das melhores terras para depois as arrendar a quem já as trabalhava, com pesados impostos que podiam chegar a 50% do que elas produziam. Tal como Leão e Castela, lembra, por seu lado, o historiador Hermene- gildo Fernandes, Portugal tem como “matriz identitária a ideologia da ‘re- conquista’, que é uma importante fonte de legitimidade política ainda mais do que de acção militar”. Para essa “matriz identitária” con- tribuem episódios como o dos fran- ciscanos que o Miramolim manda matar em Marraquexe e cujas relí- quias são depositadas no Mosteiro de Santa Cruz, que teve em São Teotónio o seu primeiro abade. “Santa Cruz é gerido como uma catedral, numa cidade que era, antes da conquista de Lisboa, a capital do reino, se é que essa noção existe”, explica Caetano. “É uma casa que está ligada desde sempre ao poder dos reis. Um importante centro inte- lectual e de renovação plástica no Renascimento. O facto de Santo An- tónio lá ter estado contribui, em muito, para que Santa Cruz produza a sua própria mitologia.” É oriunda deste mosteiro a cruz processional (1214) em ouro e pedras preciosas que D. Sancho I manda fa- zer em testamento e que se pode ver agora no MNAA, numa exposição que se fez graças ao apoio mecenáticoda Fundação La Caixa-BPI e cujo catá- logo resulta de uma parceria com a Imprensa Nacional Casa da Moeda. Perto da cruz do filho de Afonso Henriques, e já quase no fim de Guer- reiros e Mártires, está a réplica de uma lápide do Castelo do Alandroal (1294-98), escrita na primeira pessoa e em jeito de desafio por aquele que parece ser um “mestre de obras” de nome Galvo ou Calvo. Começa com a divisa do reino de Granada, o último islâmico da Península Ibérica, que só cai em 1492, e transcreve, em carac- teres latinos, o som da frase em árabe “não há vencedor senão Deus”. “É uma provocação de alguém que ficou e que diz ‘no meio disto tudo, vocês não ganharam’”, acrescenta Santiago Macias. “O que vivemos hoje, com a radicalização do dis- curso em alguns sectores da socie- dade, da política, com a identificação dos árabes como o inimigo em cená- rios de guerra, de terrorismo ou em relação aos refugiados, não é novo. E essa radicalização faz-se ignorando que continua a haver territórios no islão em que há cristãos há séculos e cristãos com poder.” Conhecer o passado para com- preender o presente é urgente, de- fende o historiador, sobretudo quando há muito quem queira resu- mir esse presente a um “nós contra eles”. Arca em pedra dos séculos XII-XIII semelhante à que terá guardado as relíquias dos Mártires à chegada a Coimbra. Em baixo, à esquerda, uma talha do al-Andalus, dois bustos-relicários em prata e uma lápide funerária com um calvário e uma representação da Virgem com o Menino do Tejo. Ao sopé dos muros exis- tem arrabaldes alcandorados nos rochedos cortados a pique, e são tan- tas as dificuldades que os defendem, que se podem ter em conta de caste- los bem fortificados. Os seus edifícios estão aglomerados tão apertada- mente que, a não ser entre as dos comerciantes, dificilmente se achará uma rua com mais de oito pés de lar- gura”, descreve o cruzado inglês da Carta a Osberno, num trecho que se pode ouvir numa das salas da exposi- ção, Guerrear, em que merecem des- taque um pendão de guerra islâmico (século XII) e uma pintura de Santiago (XIV) — o “Santiago Mata- mouros” da tradição popular — atribuída ao Mes- tre da Lourinhã, provavelmente um pintor flamengo. “Ao longo desta exposição quere- mos que se perceba que isto não foi um passeio triunfal do cristianismo”, diz o historiador de arte, que houve momentos de violência extrema de parte a parte, mas também de coe- xistência, com mais ou menos so- bressaltos. Obras como o precioso Manuscrito Hadith Bayad wa Riyad (século XIII) — em Guerreiros e Mártires esta obra da Biblioteca do Vaticano surge numa reprodução digital —, docu- mento que conta a história de amor entre um mercador de Damasco e a escrava de um vizir iraquiano, são reflexo da sofisticação do al-Andalus de que falam Macias e Martínez. As Cantigas de Santa Maria (1221-1284), atribuídas a Afonso X de Leão e Cas- tela, que relatam milagres da Virgem Maria quando há ainda muçulmanos na Península Ibérica, são produto dessa coexistência. “As confissões coexistem de forma mais ou menos pacífica a maior parte do tempo, como no Líbano ou na Sí- ria. Ainda hoje cidades como Alepo, muçulmanas, têm comunidades cris- tãs com grande poder de influência”, argumenta Santiago Macias. e RU I G A U D ÊN C IO RU I G A U D ÊN C IO RU I G A U D ÊN C IO RU I G A U D ÊN C IO Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A. ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 | 15 D R Dah Shinin’ (1995), álbum fundacional da golden age do hip-hop nova-iorquino (anos 90), celebrou em 2020 as suas 25 primaveras. Mas os Smif-N-Wessun estão com os olhos nas próximas 25 e The All, o seu último álbum, é um grande regresso — às origens, também. As bodas de prata dos Smif-N-Wessun Francisco Noronha The All, o trabalho com que voltaram após oito anos de ausência, é um dos grandes álbuns da sua carreira, mesmo se não teve o eco na imprensa que outras figuras dos anos 90 auferiram recentemente aquando do seu regresso E m Hip-Hop Evolution, a série documental que faz a genea- logia do hip-hop americano (exibida na Netflix), Steele e Tek, dupla que compõe os Smif-N-Wessun, não são um dos grupos entrevistados. Não “apa- recem”. Nem na série globalmente considerada, nem no episódio dedi- cado ao hip-hop nova-iorquino dos anos 90. Ou melhor: até os vemos quando, por breves segundos, o seu nome surge em nota de rodapé (lite- ralmente), mais rigorosamente no canto da capa de uma edição de 1994 da revista Rap Pages. Como se expli- cará a invisibilidade de um dos grupos definidores do som clássico, boom- bap e hardcore, e simultaneamente — subtextualmente — político de uma era? Como se compreende que os obreiros de Dah Shinin’, um dos ál- buns fundacionais dessa mesma era, não sejam tidos nem achados no rac- conto de uma cultura popular hoje planetária? Dah Shinin’ (1995), estreia em nome próprio depois de uma primeira apa- rição no não menos clássico Enta Da Stage dos até hoje compagnons de route Black Moon, foi um trabalho que, a partir de Brooklyn, influenciou decisivamente a expansão e o furor global do hip-hop, inclusivamente moldando grande parte do som que, em paragens distantes, emulava a proposta original nova-iorquina — Portugal não foi excepção e Sem Ceri- mónias, o super-álbum dos Mind Da Gap editado apenas dois anos depois do disco da dupla americana, é disso bem ilustrativo. Voltando à questão acima enun- ciada, a resposta poder-se-á acharcer- tamente, como quase sempre estas coisas se acham: muita — virtualmente infinita — gente para entrevistar, esco- lhas legítima e naturalmente subjec- tivas, razões de agenda e de oportu- nidade... Se não interessa, portanto, fazer apreciações sobre a justiça deste tipo de objectos — porque, no início e no fim, está o gosto pessoal de quem os cria e é também ele que forja o mé- rito e a singularidade do olhar (ou da falta dele) —, permanece a importân- cia em resgatar, sublinhar a traço grosso, a relevância de alguns desses nomes esquecidos da música popular americana das últimas décadas. Não apenas por mero exercício nostálgico, antes porque o presente dos Smif-N- Wessun — que, em tempos idos, à conta de um processo legal interposto pela fabricante de armamento Smith & Wesson, tiveram de alterar o seu nome para Cocoa Brovaz — continua vibrante como quando apareceram ao mundo e lhe ordenaram que “Wrekonize”. Sim: The All, o trabalho com que voltaram após oito anos de ausência, é um dos grandes álbuns da sua car- reira, mesmo se não teve o eco na imprensa que outras figuras dos anos 90 auferiram recentemente aquando do seu regresso (A Tribe Called Quest, Gang Starr, etc.). A mágoa é real, mas não chega para desviar os Smif-N-Wes- sun, dupla de Brooklyn — Tek de Bed- ford-Stuyvesant, Steele de Browns- ville — do seu caminho. Umbilical- mente ligados ao mais populoso borough de Nova Iorque (um dos cinco históricos do hip-hop nova-ior- quino, de par com Manhattan, Queens, Staten Island e, claro, o Bronx), ao seu conterrâneo Buckshot (figura central dos Black Moon e com quem formam, juntamente com os Heltah Skeltah e os O.G.C, o super- grupo Boot Camp Click, hoje desfal- cado após o doloroso desapareci- mento de Sean Price) e à editora Duck Down (co-fundada em 1995 por Buckshot), os dois rappers, hoje ho- mens crescidos e pais de família, estão aí para curvas — mas ao seu próprio ritmo, de que não abdicam. Depois do concerto de celebração no início do ano no Gramercy Theatre, em
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