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Ipsilon-20201204

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Artemisia 
O reconhecimento, 
400 anos depois, 
na National Gallery 
de Londres
um nome 
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2 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020
Já ouviu falar nela? Já lhe enviaram um postal 
com uma das suas obras? Tem algum livro onde 
apareça o seu nome? Já a viu num dos grandes 
museus? Artemisia Gentileschi continua a não 
integrar o cânone ensinado nos departamentos 
de história da arte das universidades, onde não 
se questiona a masculinidade naturalizada 
do que se ensina. Nem é um dos nomes 
reconhecidos pelas elites cultas que enunciam, 
sem hesitar, uma dúzia de pintores italianos do 
“renascimento” ou “barroco”. As historiadoras 
da arte feministas, sobretudo norte-americanas, 
já tinham descoberto a pintora desde a década 
de 1970. Mas só agora — com a exposição 
re-inaugurada ontem, 3 de Dezembro, na 
National Gallery de Londres — é que Artemisia 
vai passar a ser um nome mais familiar. 
Filipa Lowndes Vicente
Artemisia 
o reconhecimento 
400 anos 
depois 
na National Gallery de Londres: 
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Qualquer ideia de “delicadeza” dos traços e temas 
femininos — estereótipo tão repetido pela crítica 
de arte nos séculos XIX e XX — é subvertida pela 
intensidade e força de uma Judite a degolar um 
Holofernes com a ajuda de uma “criada” que, não 
tendo direito a nome, nada tem de subalterno 
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4 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020
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evia ter inaugurado em Abril mas só abriu em 
Outubro por causa da pandemia. Um mês depois 
voltou a fechar pelas mesmas razões. Reabriu 
ontem na National Gallery de Londres a retros-
pectiva de Artemisia Gentileschi (Roma, 1593-Ná-
poles, c.1656), a primeira grande exposição de-
dicada à pintora num museu deste prestígio e dimensão. 
São mais de 30 os quadros expostos, cerca de metade do 
total da obra de Artemisia, mas é o suficiente para impres-
sionar quem a vir. As críticas não podiam ser mais entu-
siastas. No Guardian, Jonathan Jones chamou-a uma “re-
volutionary exhibition” e, sobretudo, “the most thrilling 
exhibition I have ever experienced at the National Gallery”. 
A exposição começou a ser pensada em 2018 quando a 
National Gallery comprou o auto-retrato da artista repre-
sentada como Catarina de Alexandria. Pintado entre 1615 
e 1617, foi a primeira obra de Artemisia a fazer parte de uma 
coleção pública britânica. Mas é apenas a oitava obra de 
uma mulher artista exposta no principal museu de Trafal-
gar Square, que conta com 700 pintores. Tamanha dispa-
ridade não é proporcional à realidade. Como têm demons-
trado muitos estudos e exposições nos últimos anos, são 
muitas mais — e melhores — as artistas mulheres do pas-
sado do que aquilo que a história da arte nos dá a conhecer 
através das várias dimensões em que se constrói enquanto 
disciplina — museus, exposições, livros, revistas académi-
cas e de divulgação, ou programas universitários. 
Em 2018, outro grande museu de “arte antiga”, o Mu-
seu do Prado, iniciou um questionamento sobre o lugar 
das mulheres artistas nas suas colecções e exposições. 
Uma das consequências foi ter retirado das reservas o 
Nascimento de São João Baptista de Artemisia Gentileschi. 
Mesmo assim, entre as 1700 obras do maior museu da 
Península Ibérica apenas 7 são de mulheres. Mas o efeito 
mais visível deste repensar do cânone foi a exposição 
sobre duas pintoras italianas, antecessoras de Genti-
leschi, inaugurada em Madrid em Outubro de 2019: His-
toria de dos pintoras. Sofonisba Anguissola y Lavinia Fon-
tana. O mesmo trabalho de reflexão sobre a disciplina 
da história da arte resultou na exposição recentemente 
inaugurada em Madrid, Invitadas. Fragmentos sobre mu-
jeres, ideología y artes plásticas en España (1833-1931). 
Mesmo assim, e antes desta iniciativa da National 
Gallery, Artemisia era a artista feminina da “arte antiga” 
sobre a qual mais se tinha escrito e mais exposições indi-
viduais se tinham realizado. Isto poderá dever-se a três 
razões principais: em primeiro lugar, existe uma quanti-
dade substancial de obras assinadas e documentos escri-
tos, nomeadamente em grandes colecções italianas, 
apesar da atribuição da sua obra continuar em revisão. 
Em segundo lugar, a sua história de vida, marcada pela 
violação que sofreu e o processo judicial que se seguiu, 
atraiu sobre ela uma curiosidade inusitada e tornou-se 
indissociável da construção da sua personalidade artís-
tica. Por último, ao privilegiar mulheres fortes e temas 
 Artemisia recorreu a uma iconografia de “mulheres fortes” da Antiguidade, 
 do Antigo Testamento e da história romana, que se distinguiram pelo 
 determinado. Judite, Madalena, Susana, Lucrécia, Cleópatra, mas também 
 ou deusas como Clio, deusa da história, e Minerva, deusa 
 e sabedoria. Mulheres do passado, histórico ou mitológico, vestidas com 
bíblicos onde personagens masculinas se convertem nas 
vítimas, mortais, dos seus actos de violência, favoreceu 
uma leitura em espelho entre vida e obra, bem como a 
identificação da própria pintora como feminista, vários 
séculos antes de a palavra existir. 
Já foi escrito inúmeras vezes, e também a propósito de 
Artemisia, que é preciso ter cuidado com as interpreta-
ções espelhadas entre vida e obra. Mas como não o fazer 
no caso da pintora? As Judites e Holofernes são pintadas 
logo depois da violação e há na iconografia da pintora 
uma persistência de homens abusadores e predadores e 
de mulheres que se vingam da violência, ou que pelo 
menos lhe resistem. Mulheres que matam ou que se ma-
tam, mulheres que não aceitam passivamente serem ví-
timas, mulheres onde Artemisia converge alegoria e auto-
retrato, ficção e realidade — como no extraordinário La 
Pittura [imagem da capa desta edição], na colecção real 
da Rainha Isabel II de Inglaterra, em que uma enorme 
pintora (ela própria?) transborda a tela enquanto pinta, 
como se a vida nunca lhe chegasse. E assina: Arte-mi-sia 
— “que a arte me seja”. 
Artemisia, um nome de guerra 
Tentei fazer um exercício semelhante ao que têm feito 
muitas instituições culturais em todo o mundo — quando 
e onde é que ouvi, li ou vi o nome ou a obra de Artemisia 
Gentileschi? Licenciei-me em Lisboa, em História e His-
tória da Arte, entre 1990 e 1994, mas aí nunca ouvi falar 
de Artemisia, tal como nunca ouvi falar de nenhuma mu-
lher artista. Mais problemática, no entanto, não foi a total 
ausência de nomes femininos nos cânones que me foram 
sendo transmitidos na universidade “da Idade Média ao 
início do século XX”. Mais grave foi eu não ter reparado 
nisso. A masculinidade do conhecimento está tão natura-
lizada que dificilmente nos apercebemos dela. 
Só quando fui estudar para Londres, em 1994, é que fui 
confrontada com abordagens feministas à história da arte 
e pela primeira vez ouvi falar de mulheres artistas dos 
séculos XIX e início do XX. Mas também não foi em Ingla-
terra que ouvi falar de Artemisia nem a vi em nenhum 
museu. Em 1638-39 Artemisia passara uma temporada 
em Londres a visitar o pai, Orazio, então pintor da corte 
do rei Charles I, grande coleccionador e mecenas. Mas as 
encomendas que nesse período foram feitas a Artemisia 
pela nobreza inglesa permaneceram todas em colecções 
privadas, e inacessíveis ao público. Até agora. 
A primeira vez que vi o seu nome impresso foi num 
livro humorístico publicado em 1998 pelas Guerrilla 
Girls, o grupo de artistas-ativistas nova-iorquino e anó-
nimo que, com humor, tem denunciado, desde há 35 
anos, as desigualdades de género no mundo da arte. 
Susana e os Velhos — a história bíblica em que dois ho-
mens lascivos assediam uma jovem ameaçando-a com 
a acusação de adultério, caso ela não ceda aos seus avan-
ços — é a primeira pintura assinada por uma Artemisia 
ainda adolescente e é também a obra que abre este com-
pêndio de história da arte ocidental feito só de artistas 
mulheres, em jeito de paródia às histórias da arte só com 
nomes masculinos, ou seja, aquelas por onde estudei. 
Em 2000, quando fui viver para Florença, pude ver, 
pela primeira vez, a obra de Artemisia. Era a única mulher 
artista exposta nos Uffizi, um dos museus mais visitados 
do mundo, onde os locais só vão quando os turistas dão 
algum descanso à cidade, entre Janeiro e Março. Qualquer 
ideia de “delicadeza” dos traços e temas femininos — es-
tereótipo tão repetido pela crítica de arte sobretudo nos 
séculos XIX e XX — é logo subvertida pela intensidade e 
força de uma Judite a degolar um Holofernes com a ajuda 
de uma “criada” que, não tendo direito a nome, nada tem 
de subalterno. As duas aliadas para se vingarem do ho-
mem assírio que atacara os judeus. Como numa BD seis-
centista, a cena seguinte — a cabeça de Holofernes já 
dentro de um cesto carregado pela mesma dupla, Judite 
e criada — encontra-se exposta na Galeria Palatina do Pa-
lazzo Pitti, a dez minutos a pé, do outro lado da Ponte 
Vecchio. Poucos anos depois, no Museo di Capodimonte, 
em Nápoles, voltei a ver uma pintura da artista, a sua 
primeira versão de Judite e Holofernes pintada antes da-
quela que está exposta nos Uffizi florentinos. Neste mo-
mento, as duas pinturas encontram-se expostas em Lon-dres, lado a lado. 
Só em 2012, já depois de ter dedicado a Artemisia Gen-
tileschi um capítulo do meu livro A Arte sem História. 
Mulheres e Cultura Artística (XVI-XX) é que tive a oportu-
nidade de ver, no pequeno Musée Maillot em Paris, uma 
exposição retrospectiva: Artemisia. Gloire, pouvoir et 
passions d’une femme peintre. O fascínio que já tinha por 
ela — obra e vida — só aumentaram. 
“É verdade, é verdade, é verdade”... 
A vida faz parte da obra 
Nasceu em Roma, em finais de 1593, onze anos depois da 
morte de Santa Teresa d’Ávila (1515-82) e umas décadas 
antes do nascimento de Josefa de Óbidos (1630-84). Mor-
reu cerca de 1656, com sessenta e poucos anos, na cidade 
de Nápoles. Como acontece com grande parte das mu-
lheres pintoras até ao século XIX, era filha de pintor e foi 
no atelier paterno que fez a sua formação. Quando as 
mulheres não tinham acesso a outros espaços de apren-
dizagem esta era a única forma de o talento artístico de 
uma mulher se manifestar. A mãe morreu de parto 
quando Artemisia contava 12 anos e a adolescência foi 
passada a pintar (e a tomar conta dos três irmãos mais 
novos). Ao contrário de pintoras suas antecessoras como 
Sofonisba Anguissola ou Lavinia Fontana, para quem a 
pintura fez parte de uma educação sofisticada, Artemisia 
não aprendeu a ler nem a escrever. O atelier do pai foi a 
sua escola. Não podendo, devido ao seu género, frequen-
tar as academias de nu onde se aprendia anatomia, ou 
mesmo sair de casa, terá aprendido a copiar quadros e
Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. 
Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.
A sua obra, onde há uma 
persistência de homens 
predadores e de mulheres que 
se vingam da violência, 
ao privilegiar mulheres fortes 
e temas bíblicos onde 
personagens masculinas se 
convertem nas vítimas dos seus 
actos de violência, favoreceu 
a identificação da pintora como 
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m Santa Catarina, 
 das artes, comércio 
 trajes do século XVII
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do pai e gravuras, objectos 
baratos e acessíveis na sua Roma 
contemporânea. Aos 17 anos, 
quando o pai já lhe reconhecera 
o enorme talento e já assinava 
telas em nome próprio, foi vio-
lada por Agostino Tassi (1578-
1644), pintor conhecido do pai 
que este contratara para lhe dar 
aulas. Sobre este acontecimento 
de Maio de 1611 nada saberíamos 
se Orazio Gentileschi não tivesse denunciado o seu colega 
de profissão (não sem antes ter tentado que este se casasse 
com a filha para encobrir o sucedido) e não se conhecesse 
o processo judicial que prova bem a humilhação — e 
mesmo a tortura — a que uma mulher seiscentista se tinha 
que sujeitar se, como Artemisia, se atrevesse a denunciar 
o seu agressor. O processo foi descoberto no século XIX, 
mas só publicado em 1981 por Eva Menzio, e depois tra-
duzido do italiano para outras línguas. Pode agora ser 
visto, pela primeira vez, na exposição londrina. 
O julgamento teve lugar em 1612, na corte do Papa Paulo 
V, e, como aconteceu a tantas mulheres ao longo dos sé-
culos, sujeitou a vítima a nova agressão. Artemisia foi 
submetida a um exame ginecológico descrito publica-
mente e sofreu a denominada tortura das Sibilas, para 
provar que não estava a mentir — “è vero, è vero, è vero” 
— repetiu enquanto as cordas apertavam os seus dedos 
até aos limites da dor. Tassi foi considerado culpado, mas 
como o Papa apreciava a sua pintura, a única condenação 
que sofreu foi a de ter de sair, temporariamente, da cidade. 
Uma pena que, de facto, nunca chegou a cumprir. As con-
sequências deste evento na vida de Artemisia foram ime-
diatas e profundas. Para tentar mitigar os danos e a ver-
gonha do processo público e possibilitar-lhe um recomeço, 
o pai julgou oportuno trocar Roma por Florença e lá casar 
a filha com um pintor, desconhecido, da sua eleição. 
A arte, a vida e a carreira: as cartas 
Em Florença, Artemisia deixou telas, conhecimentos e 
cartas. Aprendeu a ler e a escrever, assistiu ao teatro, 
música, dança e todo o tipo de eventos performativos 
que os Medici promoviam na sua corte, recebeu enco-
mendas de Cosimo II e foi a primeira mulher a inscrever-
se na Accademia delle Arti del Disegno, em 1616. Mas se 
em Florença se fez pintora profissional, alcançou reco-
nhecimento e prestígio e teve o seu primeiro atelier in-
dividual, também foi lá que contingências da vida pessoal 
a fizeram regressar a Roma anos depois. “Inquietação, 
inquietação”. O casamento arranjado do qual nasceram 
cinco filhos, quase todos mortos na primeira infância, 
cedo se tornou numa entente cordiale, que permitiu a 
Artemisia consumar a sua paixão pelo amante, um aris-
tocrata florentino, que ajudou o casal materialmente em 
inúmeras ocasiões. As cartas que escreveu durante este 
Susana e os Velhos — a história bíblica em que dois homens lascivos assediam uma jovem ameaçando-a com a acusação de adultério, caso ela não ceda aos seus 
avanços — é a primeira pintura assinada por uma Artemisia ainda adolescente e é também a obra que abre um livro humorístico publicado em 1998 pelas Guerrilla Girls, 
o grupo de artistas-ativistas nova-iorquino que, com humor, tem denunciado, desde há 35 anos, as desigualdades de género no mundo da arte
período permitem-nos saber de uma intimidade que só 
o tempo — a história — pode legitimar. 
No catálogo da National Gallery, Francesco Solinas 
assina um artigo sobre toda a correspondência escrita 
por Artemisia, com destaque para as cartas de amor en-
viadas ao amante, que ele próprio descobriu apenas em 
2011, no arquivo privado da família florentina Fresco-
baldi. São as únicas escritas pela sua própria mão — ou 
seja, com os erros gramaticais e a letra pueril a revelarem 
uma alfabetização tardia e frágil. As muitas outras cartas 
enviadas por Artemisia — a mecenas, príncipes, aristo-
cratas, familiares e amigos — eram ditadas a secretários 
enquanto pintava, segundo ela própria explicou. 
Nestes fascinantes espólios de correspondência a sua 
personalidade transparece — crua, impetuosa, ambi-
ciosa, insatisfeita, exigente, apaixonada, directa, sem 
rodeios e sem pudor em pedir dinheiro adiantado por 
trabalho não feito, a queixar-se de dívidas contraídas ou 
a justificar anos de atraso na entrega de encomendas. 
Tal como o pai, a filha tinha dificuldade em gerir a insta-
bilidade financeira da sua profissão. Corajosa e deste-
mida também, muito. O que esta teia de cartas também 
mostra é o modo como se constrói e gere uma carreira 
artística, do papel determinante das relações pessoais, 
das decisões pragmáticas de temas e trabalhos, da falta 
de dinheiro, do custo em pagar a modelos nus, ou dos 
roubos de ideias por parte de outros artistas. Enfim, do 
equilíbrio nem sempre fácil entre o ofício de atelier, as 
mãos sujas de tinta, e o espaço (e as verbas) necessárias 
à representação social e aos conhecimentos, sem os 
quais não havia talento que subsistisse. 
Apenas nas cartas escritas ao amante é que Artemisia 
se revela também vulnerável, ansiosa, a sofrer pela perda 
de mais um filho, ou com saudades de o rever. Ou seja, 
esta documentação escrita — tão bem explorada pela Na-
tional Gallery, quer na exposição quer no catálogo — vem 
estabelecer relações entrea escrita e a pintura e demons-
trar todas as dimensões subjectivas e aleatórias de um 
percurso artístico que, tantas vezes, a história da arte não 
tem em conta. As cartas também contribuem para traçar 
a geografia, itinerante, de Artemisia, ao sabor de enco-
mendas e trabalho, mas também da sua vida pessoal, in-
tensa, atípica e atribulada — quando a sua relação extra-
conjugal com Francesco Maria Maringhi se tornou dema-
siado comentada em Florença, Artemisia, ainda 
acompanhada pelo marido, regressou à sua Roma natal. 
Passou ainda umas temporadas em Veneza — uma ci-
dade mais livre e aberta, também por estar longe do Va-
ticano — onde o estatuto das mulheres (questione della 
donna) era então assunto de debate público e defendido 
por escritoras feministas com várias obras publicadas 
como Lucrezia Marinella (1571-1653) ou Arcangela Tara-
botti (1604-1652), uma freira que condenou a misoginia 
e a sociedade patriarcal de seiscentos. Gentileschi traba-
lhou ainda em Génova, Modena e Turim e, após algumas 
 As abordagens à obra e vida de Artemisia 
 duas perspectivas: de Itália 
 e centrada na obra, dos EUA uma história 
 em conta os contextos em que 
 o pensamento crítico que reflecte 
e
Auto-retrato 
como Santa 
Catarina 
de Alexandria
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britânica Breach Theatre que compreendeu o potencial 
da história da pintora no contexto do MeToo. 
Bela e nua: uma exposição 
em Florença (1991) 
Só em 1991 é que foi organizada em Itália a primeira 
grande exposição individual sobre a artista. Começou na 
Casa Buanorroti, museu secundário e discreto numa Flo-
rença com tantas outras escolhas mais reconhecidas, e 
seguiu depois para Roma. Em 2011-12, Artemisia voltaria 
a merecer uma exposição monográfica em Itália, já num 
lugar de maior prestígio, o Palácio Real de Milão. 
A Casa Buonarroti foi construída em meados do século 
XVI, no centro de Florença, por um sobrinho do, já na 
altura, famoso Michelangelo (Buonarroti) que, admirador 
de Artemisia, a convidou para pintar um fresco no edifí-
cio que desenhara para o tio. A perspectiva feminista da 
vida e da obra de Artemisia que na mesma altura estava 
a ser escrita pelas historiadoras da arte norte-americanas 
não esteve presente nem na exposição nem nos textos 
do catálogo, onde dominou uma linguagem formalista 
sobre as escolhas estéticas da artista e um esforço de 
identificação da sua obra. Longe de darem destaque às 
suas muitas telas de conteúdo violento, onde persona-
gens femininas dominadoras exercem a sua força, tam-
bém a física, os comissários preferiram sublinhar a Ar-
temisia “feminina”, que usava o seu auto-retrato em 
múltiplas figuras de mulheres voluptuosas e sensuais. 
Na capa do catálogo está a bíblica Susana, desnuda, a 
ser assediada pelos velhos, o seu primeiro quadro datado 
e assinado, de 1610, quando Artemisia tinha apenas 17 
anos. A Alegoria da Inclinação, num nu que se pensa ser 
também um auto-retrato (o pano drapejado a cobrir-lhe 
parcialmente o corpo terá sido acrescentado poste-
 Gentileschi têm oscilado entre 
 vem a mais tradicional 
 da arte mais holística, que tem 
 a obra é realizada e integra 
 sobre o passado
tentativas falhadas para ser acolhida como pintora em 
mais uma corte italiana, rumou a Londres. Teria sido in-
centivada pelo seu pai, já velho, há treze anos ao serviço 
do monarca-mecenas britânico e a precisar de ajuda para 
empreitadas como a dos tectos da Queen’s House em 
Greenwich, a sul de Londres? Sobre o seu período lon-
drino sabe-se menos. O pai morreu pouco depois, em 
1639, e Artemisia ainda ficou lá uns tempos a finalizar 
encomendas, para finalmente regressar definitivamente 
a Nápoles onde estabeleceu um atelier com Prudenza, a 
única dos seus filhos que sobreviveu até à idade adulta. 
“La Pittora” morreu em Nápoles depois de 1654 (a data 
exacta é ainda incerta, mas pensa-se que terá sido na epi-
demia que assolou a cidade em 1656), depois de pelo me-
nos 15 prolíficos anos numa cidade então dominada pelos 
espanhóis. Terá conhecido Velázquez na corte quando 
este foi a Nápoles prestar homenagem a uma Infanta de 
Espanha? São deste período as cartas que enviou a um dos 
seus principais mecenas, grande coleccionador italiano, 
António Ruffo. Foi a ele que escreveu — “Mostrar-lhe-ei, 
Ilustre Senhor, o que uma mulher é capaz de fazer”. 
Em vida, teve muitas das componentes que permitem 
identificar uma carreira artística. Teve obra encomendada 
por mecenas prestigiados e em diferentes espaços geográ-
ficos, reconhecimento pelos seus pares, pagamento pelo 
trabalho e menções em livros sobre artistas, uma tradição 
italiana que faz com que saibamos hoje muito mais sobre 
pintores nascidos em Itália — também mulheres — do que 
sobre os de outros países. Mas quando é que Artemisia foi 
realmente descoberta? Que livros e exposições é que lhe 
foram dedicados? Como é que a sua obra foi interpretada? 
Ao longo do século XX várias abordagens à sua obra, vindas 
de Itália como dos EUA, consolidaram o seu nome, en-
quanto revelaram as transformações da disciplina de his-
tória da arte ao longo do tempo e os modos como ela se 
desenvolveu de forma distinta em países diferentes. 
“Artemisia” entre as duas guerras 
Foi em 1916, há pouco mais de cem anos, que o historiador 
da arte italiano Roberto Longhi (1890-1970) publicou um 
livro sobre Orazio Gentileschi e Artemisia Gentileschi, pai 
e filha, pintor e pintora, onde ela ainda tem papel secun-
dário. Umas décadas depois, em 1947, a sua mulher, Lucia 
Lopresti, ou Longhi, de casada, também historiadora da 
arte, publica a novela Artemisia numa Florença ainda 
ferida pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial. O 
livro, assinado com o pseudónimo de Anna Banti, conju-
gava uma investigação histórica do processo jurídico de 
violação, aspectos autobiográficos da vida da própria 
autora, que perdeu o primeiro manuscrito quando a sua 
casa florentina foi bombardeada pelos alemães em Agosto 
de 1944, e uma narrativa ficcionada em que Artemisia 
servia como pretexto para uma reflexão sobre a criativi-
dade feminina. É esta última perspectiva que Anna Banti 
irá explorar num livro publicado muito mais tarde, já em 
1982: Quando anche le Donne si Misero a Dipingere [Quando 
também as mulheres começaram a pintar]. 
A novela de Anna Banti contribuiu muito para divulgar 
a artista para lá de um reduzido grupo de especialistas e 
foi mesmo considerada pioneira, de um ponto de vista 
literário, por Susan Sontag. Num ensaio publicado no 
London Review of Books, A Double Destiny. On Anna Banti’s 
Artemisia, Sontag comparou a Artemisia de Banti a Or-
lando, personagem criada por Virginia Woolf e às Memó-
rias de Adriano de Marguerite Yourcenar, e destacou este 
duplo cruzamento entre autora e personagem, entre pre-
sente e passado, entre Anna Banti e Artemisia Gentileschi. 
“Non piangere”, “não chores”, são as primeiras palavras 
do livro — quem o diz a quem? As vozes alternadas de es-
critora e pintora confundem-se, entrelaçam-se entre in-
timidade e história numa obra que, como Fénix renascida, 
escreve Sontag, se perdeu e teve de ser reescrita. 
Depois de Banti foram publicadas outras versões ro-
manceadas da vida de Artemisia: a primeira, de 1998, é 
assinada por Alexandra Lapierre, e sai em Paris; a se-
gunda, de Susan Vreeland, intitula-se The Passion of Arte-
misia, e foi publicada em Nova Iorque em 2002. A sua vida, 
tão intensa como a sua obra, terá contribuídotambém 
para que, dos livros, a sua história ficcionada passasse 
para o cinema. Em 1997, foi apresentada Artemisia, uma 
produção francesa, alemã e italiana realizada por Agnès 
Merlet. No excelente livro editado pela holandesa Mieke 
Bal — The Artemisia files: Artemisia Gentileschi for feminists 
and other thinking people, de 2005 — a historiadora de arte 
Griselda Pollock considera, no entanto, que o filme apenas 
explora a pintora nas suas relações com os diferentes ho-
mens da sua vida. Mais recentemente, as palavras de Ar-
temisia — “è vero, è vero, è vero” — proferidas sob tortura, 
foram usadas como título da peça da companhia de teatro e
Grande Prémio de Tradução Literária Francisco Magalhães 
(2020)
Na impossibilidade da entrega presencial do Grande Prémio de Tradução Literária na 
Sociedade Portuguesa de Autores, como tem sido hábito, o júri vem, por este meio, publicitar 
os resultados do concurso referente ao ano de 2019.
Concorreram à presente edição do Prémio 40 obras, traduzidas do inglês, francês, espanhol, 
alemão, neerlandês, romeno, polaco e sueco, publicadas por 17 editoras, e com tradutores de 
várias gerações.
É a seguinte a classificação atribuída pelo júri:
1º Prémio – Arie Pos, pela tradução de Guerra e Terebintina, de Stefan Hertmanns (D. Quixote)
Três menções honrosas ex aequo
Teresa Swiatkiewicz, pela tradução de Viagens, de Olga Tokarczuk (Cavalo de Ferro)
Hugo van der Ding, pela tradução de Notas de um Velho Nojento, de Charles Bukowski 
(Alfaguara)
Ana Maria Chaves e Márcia Montenegro, pela tradução de As Aventuras de Tom Sawyer, de 
Mark Twain (Livraria Lello)
O Júri, a APT e a SPA agradecem todas as candidaturas e felicitam vivamente os premiados.
Lisboa, em Novembro de 2020
O júri
Teresa Seruya
Alexandra Ambrósio Lopes
João Ferreira Duarte
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riormente) é o título do fresco pintado no tecto da 
casa de Michelangelo Buonarruoti, e foi outra das imagens 
escolhidas para ilustrar a exposição. Assim, ao dar mais 
destaque às mulheres de Artemisia que correspondem 
às tradicionais representações de beleza feminina e não 
a uma das suas violentas, poderosas, rudes e, até, feias 
Judites, Cleópatras ou Lucrécias, a exposição acabou por 
reificar uma correspondência entre “mulher-artista” e 
“mulher-bela” que esteve presente desde o Renascimento 
e que se traduziu numa valorização dos auto-retratos de 
artistas mulheres como forma de dupla beleza. 
Curiosamente, quando, em 1681, Filippo Baldinucci 
traçara o perfil de Artemisia Gentileschi na sua obra de 
vários volumes sobre vidas de artistas, também dera um 
especial destaque à sua Inclinazione, ou Alegoria da Incli-
nação: “Esta virtuosa mulher pinta de uma maneira be-
líssima uma figura muito próxima do natural, refiro-me 
a uma mulher de aspecto belíssimo, muito vivo e orgu-
lhoso.” O outro destaque dado por Baldinucci à obra de 
Artemisia é o de uma Aurora, uma mulher nua de cabelos 
soltos, que está muito longe das personagens que hoje 
associamos a Artemisia. A estas, o autor dedicou apenas 
umas curtas frases para passar logo a referir o seu talento 
para pintar “todo o género de frutas”. A força desta chave 
de leitura da arte feminina fez com que Baldinucci, que 
até se mostrou especialmente aberto às possibilidades 
artísticas das mulheres, como o demonstram vários dos 
seus textos, escrevesse que Artemisia Gentileschi era 
conhecida sobretudo pelos seus retratos e naturezas-mor-
tas. Ora, um olhar sobre a sua obra é suficiente para re-
velar que estes dois géneros estão especialmente ausen-
tes das suas escolhas pictóricas. Mas se Itália a tornou 
“feminina”, os Estados Unidos fizeram-na “feminista”. 
Do outro lado do Atlântico: 
as abordagens feministas 
Artemisia recorreu a uma iconografia de “mulheres for-
tes” da Antiguidade, da hagiografia católica, do Antigo 
Testamento e da história romana, que se distinguiram 
pelo seu carácter determinado. Judite, Madalena, Susana, 
Lucrécia, Cleópatra, mas também Santa Catarina, ou deu-
sas como Clio, deusa da história, e Minerva, deusa das 
artes, comércio e sabedoria. Mulheres do passado, histó-
rico ou mitológico, vestidas com trajes do século XVII. É 
certo que estes eram temas da época, mas o modo como 
Artemisia os pintou, e a persistência com que o fez, nada 
tinha de comum. Mesmo as criadas são anónimas, mas 
actuantes, tal como sucede muito mais tarde com as de 
Paula Rego. Quando vejo a obra de Paula Rego, aliás, 
penso muitas vezes em Artemisia Gentileschi e agora, de 
alguma forma, juntaram-se as duas na National Gallery 
pois, em 1990, a portuguesa-londrina assinou o enorme 
mural no restaurante do museu, Crivelli’s Garden. 
Embora, proporcionalmente, as mulheres artistas dos 
séculos XVI, XVII e XVIIII pintem mais retratos de mulhe-
res ou auto-retratos do que os seus congéneres masculi-
nos, não houve uma tendência para a escolha de uma 
iconografia feminina “feminista”, como acontece nos 
casos de Artemisia ou de Elisabetta Sirani (1638-65), uma 
pintora bolonhesa na geração seguinte que também se 
distinguiu pela escolha temática das mulheres fortes do 
passado. É só na década de 1970, ou seja, vários séculos 
mais tarde, que se dá uma coincidência entre a prática 
artística de mulheres e a escolha de temas feministas. É 
também na década de 1970 que Gentileschi é descoberta 
pelas historiadoras da arte feministas norte-americanas 
e que a artista Judy Chicago a “sentou à mesa” na sua fa-
mosa instalação Dinner Party, hoje exposta na ala de arte 
feminista do Brooklyn Museum, ao lado de outras trinta 
e oito mulheres que, de alguma forma, se notabilizaram 
na história (a única outra artista presente é a norte-ame-
ricana Georgia O’Keeffe [1887-1986], conhecida pelas suas 
pinturas evocativas da sexualidade feminina). 
A artista romana foi uma das pintoras a integrar a ex-
posição organizada em Los Angeles logo em 1976 — Wo-
men Artists: 1550-1950 —, a primeira grande exposição 
com consciência feminista que veio questionar a mascu-
linidade naturalizada do cânone da “história da arte”. 
Na década seguinte, em 1989, a académica Mary D. Gar-
rard publicou Artemisia Gentileschi: The image of the fe-
male hero in italian baroque art, onde a dimensão de 
género constitui o principal critério de análise da obra, 
e a artista italiana do século XVII é considerada como 
portadora de uma voz protofeminista. 
Já nos anos 90, a mesma autora publicou outro livro, 
desta vez sobre alguns exemplos específicos de quadros 
de Gentileschi, e aproveitou a introdução para responder 
às críticas que a sua obra anterior havia provocado, no-
meadamente por parte de outras historiadoras da arte 
feministas, como Griselda Pollock. Garrard foi acusada de 
ler a arte como mera expressão autobiográfica. O seu livro 
era também criticado por heroicizar o objecto do seu es-
tudo, de uma forma que reproduzia as tradicionais abor-
dagens historiográficas que consagravam a genialidade de 
determinado homem artista. No fundo, um caso que serve 
de exemplo ao debate mais alargado sobre os usos do fe-
minismo na história da arte durante aquele período. Por 
um lado, uma abordagem mais ligada aos métodos tradi-
cionais e, por outro, uma perspectiva que analisa a obra 
da arte como um produto cultural e não como o resultado 
do génio artístico; e que alerta para os riscos de substituir 
um cânone masculino por um feminino, que não ques-
tione os próprios critérios de definição do cânone. 
Em 2007 o National Museum of Women in the Arts, em 
Washington, organizou uma exposição intitulada Italian 
Women Artists from Renaissanceto Baroque, em que Ar-
temisia Gentileschi foi uma das quatro protagonistas — 
além de escolhida para capa do catálogo —, ao lado de 
Sofonisba Anguissola (1535-1625), Lavinia Fontana (1552-
1614) e Elisabetta Sirani e outras pintoras, escultoras e 
gravadoras da Itália dos séculos XVI e XVII. A exposição 
teve lugar no museu que alberga a colecção de mulheres 
artistas realizada pelo casal Wilhelmina Cole Holladay e 
Wallace F. Holladay no mesmo período em que “as” (e 
não “os”) historiadoras de arte começaram a questionar 
a ausência de mulheres de colecções, museus e exposi-
ções. Mas ser objecto de uma exposição no belo edifício 
maçónico onde se instalou o National Museum of Women 
in the Arts não é o mesmo que merecer uma retrospectiva 
na National Gallery of Art de Washington ou, como só 
agora aconteceu, na homónima de Londres. Artemisia 
estava ainda longe de alcançar o reconhecimento mere-
cido que raras vezes se obtém em exposições ou livros 
com a palavra “mulher” escrita no título. 
Londres, 2020: o encontro 
de diferentes historiogra as 
Podemos afirmar que as abordagens à obra e vida de 
Artemisia Gentileschi têm oscilado entre estas duas pers-
pectivas que, não por acaso, tendem a estar divididas 
geograficamente: de Itália vem a história da arte mais 
tradicional e mais centrada na obra, dos Estados Unidos 
uma história da arte mais holística, que tem em conta os 
contextos em que a obra de arte é realizada e integra as 
transformações do pensamento crítico que reflecte sobre 
o passado. A exposição na National Gallery de Londres 
— a consagração no século XXI — representa a fusão de 
linhagens historiográficas distintas (a curadora é italiana, 
e o atual director do prestigiado museu é ítalo-britânico), 
mas nenhum museu italiano teria conseguido dar a Ar-
temisia a projeção que advém de um potencial blockbus-
ter que apenas a pandemia veio perturbar. 
Artemisia, em Londres, propõe-nos um percurso cro-
nológico por uma prática artística desenvolvida ao longo 
de mais de 40 anos. Entre 1610, com Susana e os Velhos, 
e 1652, com o Autoretrato como alegoria da Pintura, Arte-
misia demonstrou ser uma extraordinária pintora, agora 
conhecida por um número cada vez mais alargado de 
pessoas. Mais importante do que estar entre os maestri 
é a forma como o seu caso exemplifica a história do co-
nhecimento, fazendo-nos ser mais críticos em relação ao 
que nos é ensinado e mostrado. É verdade que há muitos 
pintores esquecidos que são depois descobertos. Cara-
vaggio, por exemplo, hoje mais do que reconhecido, foi 
redescoberto por Roberto Longhi na década de 1930. 
Contudo Caravaggio pode ter sido injustamente ignorado 
por muitas razões, mas nunca por ser “homem”. O per-
curso de um homem artista também está marcado pelo 
facto de ele ser um “homem” tal como é indissociável do 
contexto geográfico, social e cultural onde cresceu. Po-
rém, o facto de se ser “homem” nunca constituiu um 
obstáculo ou uma limitação às possibilidades de um per-
curso artístico porque, ao longo da história, a masculini-
dade esteve sempre implícita na prática artística. En-
quanto o ser “mulher”, pelo contrário, se tornou quase 
sinónimo de “não-reconhecimento”, constituindo-se, 
assim, num factor mais determinante da construção his-
tórica que inclui uns e exclui outros, com a grande “arte”, 
equívoca mais eficaz, de fazer parecer que “história” e 
“realidade” sejam uma e a mesma coisa. Que aquilo que 
conhecemos é aquilo que merece ser conhecido. 
 
Investigadora do Instituto de Ciências Sociais 
da Universidade de Lisboa
e
Privilegiar mulheres fortes e temas bíblicos onde personagens 
masculinas se convertem nas vítimas dos seus actos de violência 
favoreceu uma leitura em espelho entre vida e obra, bem como a 
sua identificação como feminista, séculos antes de a palavra existir
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A escultora 
franco-americana via na 
arte a forma de “garantir 
a sanidade”. Foi com 
ela que esta artista 
que atravessou o século 
XX “deslaçou o tormento” 
da sua vida. Uma história 
que nos é contada na 
retrospectiva inaugurada 
no Museu 
de Serralves, a partir 
da Colecção Glenstone, 
e depois de ter 
também passado pelos 
Países Baixos.
Sérgio 
C. Andrade
Louise Bourgeois: a mãe 
de todas as mulheres-aranha
Q
uem está familiarizado com 
a imagem mais icónica da 
obra de Louise Bourgeois 
(1911-2010) tenderá a iniciar 
a visita à exposição Deslaçar 
um Tormento, que sexta-feira 
é inaugurada no Museu de Arte Con-
temporânea de Serralves (MACS) 
pelo jardim, pelo parterre frente à 
Casa de Serralves, onde repousará, 
até 4 de Junho de 2021, a sua impo-
nente aranha de bronze, aço e már-
more, Maman. 
É a mãe de todas as “mulheres-ara-
nha”, uma peça que a escultora fran-
co-americana dedicou à mãe, uma 
tecelã de tapeçarias que morreu 
quando Louise era ainda uma jovem 
de vinte anos à procura de um sen-
tido para a vida, e para ultrapassar 
uma infância atormentada por cir-
cunstâncias familiares complicadas.
Esculpida em 1999 para assinalar a 
inauguração, no ano seguinte, da 
Turbine Hall da Tate Modern, em 
Londres — parte da instalação I Do, I 
Undo, I Redo —, Maman era apresen-
tada como homenagem à mãe, mas 
também uma metáfora da repara-
ção. “Venho de uma família de repa-
radores. A aranha é uma reparadora. 
Se estragas a teia de uma aranha, ela 
não se zanga. Volta a tecê-la para a 
reparar”, escreveu Louise a propó-
sito desta peça que nos convoca tam-
bém para este insecto de ressonân-
cias mitológicas, simultaneamente 
assustador e protector. 
A aranha é igualmente um alter 
ego da figura da escultora que mar-
cou a paisagem artística da segunda 
metade do século XX, mesmo se se 
manteve activa até à sua morte a 31 
de Maio de 2010, aos 98 anos. 
“Eu tive ainda a ocasião de a co-
nhecer pessoalmente, na sua casa em 
Manhattan, alguns meses antes do 
seu desaparecimento”, confidencia 
ao Ípsilon Philippe Vergne, director 
do MACS e responsável pela apresen-
tação no Porto desta retrospectiva 
que é a maior exposição em Portugal 
da sua obra — a anterior tendo acon-
tecido já em 1998, no Centro Cultural 
de Belém, em Lisboa, com um con-
junto de “obras recentes”, e estando 
ela representada na Colecção Be-
rardo com um múltiplo de Torso/ Self 
portrait (1963/64). 
“Foi um encontro muito como-
vente, e simultaneamente intimi-
dante, ver-me perante uma artista 
que já não tinha de provar nada, mas 
cuja energia continuava concentrada 
no trabalho, que fez até ao fim: ela 
estava ali na sua casa, quase não se 
mexia, a desenhar sobre uma pe-
quena mesa, a fazer assemblages de 
desenhos — um cordão umbilical 
enorme —, rodeada de todos aqueles 
objectos e memórias”. 
“Foi um privilégio enorme”, e
Maman é uma peça que a escultora dedicou à mãe, uma tecelã de tapeçarias que morreu quando Louise tinha vinte anos 
e procurava um sentido para a vida e para ultrapassar uma infância atormentada 
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10 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020
@teatroaveirense
10’DEZ · 21h · M/6
D’ALVA
novas quintas
um dia se apresentou no estúdio de 
Robert Mapplethorpe para ser foto-
grafada) documentam a presença da 
sexualidade, da decapitação, da cas-
tração, que fez com que a artista 
fosse erigida em porta-estandarte do 
movimento feminista.“Mesmo recusando a etiqueta de 
militante, a sua obra ajudou a liber-
tar a linguagem feminista e o lugar 
da mulher na sociedade”, nota o di-
rector do MACS, chamando a aten-
ção para o definitivo reconhecimento 
da obra de Louise Bourgeois a partir 
da década de 80 (em 1982, o MoMA 
fez com ela a sua primeira exposição 
retrospectiva feminina), “a altura em 
que o tema do corpo ganhou uma 
importância particular, principal-
mente em Nova Iorque, por via do 
aparecimento da sida”. 
Comer o pai 
As duas salas seguintes são preenchi-
das com as Células, as instalações de 
espaços fechados, familiares, ínti-
mos, com que a artista invocou/su-
blimou a infância problemática. “As 
Células representam diferentes tipos 
de dor: física, emocional e psicoló-
gica, mental e intelectual. Quando é 
que a emoção se torna física? Quando 
é que a dor física se torna emocional? 
É um círculo que gira e gira”, escre-
veu a artista. 
Este capítulo da visita abre com A 
destruição do pai (1974), gruta onde 
Louise materializa uma sua fantasia 
de infância, um “festim nu”, canibal, 
em que se vinga do pai tirano e adúl-
tero devorando-o à mesa… 
Nas “células” seguintes, criadas na 
década de 90, dedica-se a “liquidar” 
outras feridas do passado: a dor e a 
doença prolongada da mãe; o quarto 
confinado entre paredes formadas 
por portas antigas; os objectos da vida 
doméstica; a maqueta, sob uma gui-
lhotina, da casa que Louise criança 
habitou em Choisy-le-Roy, a sul de 
Paris, onde os pais tinham uma ofi-
cina de tapeçaria; a finalizar com Lady 
in waiting (2003), a cabina onde se 
auto-retratou na figura de uma mario-
neta sentada num enorme cadeirão 
estofado, e com o corpo rodeado/
preso numa… teia de aranha.A ara-
nha sempre presente, também vista 
como metáfora da sua escultura. “Eu 
preciso das minhas memórias; elas 
são os meus documentos; e a arte é 
a garantia da sanidade”, escreveu a 
artista, cuja vida e obra praticamente 
atravessaram o século XX. 
“Louise Bourgeois foi testemunha 
de todas as mudanças: viveu duas 
guerras mundias, Paris e Nova Ior-
que, as mudanças sociais, os movi-
mentos estéticos, as descobertas 
científicas, a exploração do espaço, 
as revoluções e evoluções...”, re-
corda Philippe Vergne, realçando 
que a sua obra, sem ser didáctica, 
reflecte todas essas vivências. “Ela 
foi uma storytailor, uma contadora 
de histórias, que conseguiu reunir a 
figuração e a abstracção, e que mu-
dou, libertou, a forma de fazer escul-
tura”, sintetiza.
recorda Vergne, que nesse ano 
de 2010 visitara a escultora por via do 
seu trabalho na direcção da Dia Art 
Foundation, em Nova Iorque. 
A exposição Louise Bourgeois: Des-
laçar um Tormento, comissariada por 
Jerry Gorovoy, chega agora ao Porto 
depois de ter sido apresentada nos 
Países Baixos (Museu Voorlinden, em 
Wassenaar), trazendo à Europa a co-
lecção que o museu privado Glens-
tone, na costa leste dos EUA, entre 
Baltimore e Filadélfia, guarda da ar-
tista nascida em Paris em 1911. “É uma 
das duas ou três colecções de Louise 
Bourgeois mais importantes no 
mundo”, explica Vergne. 
Reunido pela coleccionadora cana-
diana Emily Wei Rales (com o seu 
marido, o empresário e coleccionador 
americano Mitchell Rales), este espó-
lio de Louise Bourgeois “resulta de 
uma escolha muito precisa, desde o 
início, e que dá uma ideia muito clara 
do percurso estético da artista, a sua 
relação com os materiais usados, os 
diferentes momentos da história da 
arte que atravessou e também as 
preocupações, e não unicamente es-
téticas, que habitam a sua obra: a se-
xualidade, os traumas da infância, a 
maternidade, a paternidade, o espaço 
doméstico, a arquitectura”, explica o 
director do MACS guiando o Ípsilon 
pela exposição ainda em montagem 
nas salas da fundação portuense. 
Regressando à “mãe-aranha”, não 
deixa de ser uma experiência inusi-
tada confrontarmo-nos com esta 
peça construída em bronze, aço e 
mármore (os 17 ovos que o gigan-
tesco insecto guarda na sua bolsa), 
que em Serralves ganha uma resso-
nância muito especial enquadrada, 
seja com a Casa actualmente em 
obras (um trabalho de “reparação”, 
que de algum modo a aranha super-
intende), seja face ao jardim ou à 
alameda dos liquidâmbares, cuja 
idade e altura parecem rivalizar com 
os mais de nove metros de enverga-
dura de Maman. 
Se esta peça ganhou esta monu-
mentalidade por via da encomenda 
da Tate Modern, a aranha é uma pre-
sença antiga, e recorrente, na obra 
de Bourgeois. Isso mesmo o visitante 
poderá ver documentado no MACS 
logo na primeira secção da sala de 
entrada em Deslaçar um Tormento. 
Num painel, dispõem-se as 11 gravu-
ras coloridas à mão sobre papel com 
que a escultora-autora realizou He 
Disappeared into Complete Silence 
(1947-2005). Trata-se de um conjunto 
de trabalhos gráficos iniciados nos 
anos 40 — uma década após a artista 
ter-se radicado em Nova Iorque, de-
pois de, em 1938, ter casado com o 
professor e historiador de arte ame-
ricano Roberto Goldwater (1907-
1973) —, e que em 2005 foi comple-
tado para uma reedição impressa. 
Numa das gravuras deste portfolio, 
a figura da aranha surge agarrada ao 
tecto da arquitectura de uma casa, 
num geometrismo e numa referência 
a estas disciplinas que sempre mar-
caram a obra da artista. “A aranha 
aparece logo aqui, esta noção de um 
corpo híbrido, numa relação com a 
arquitectura e também com o espaço 
privado”, diz Philippe Vergne, real-
çando o interesse que Bourgeois 
manteve com a arquitectura, seja 
com a casa francesa da sua infância, 
seja depois com os arranha-céus de 
Nova Iorque. 
Expressionismo 
e abstraccionismo 
Da mesma época (1947-54) são as 
“personagens” em madeira pintada 
que vemos a abrir o percurso da ex-
posição, uma instalação ambiental 
que remete para a escultura de Bran-
cusi e Giacometti, para o expressio-
nismo e abstracionismo, mas tam-
bém para a arte africana, a lingua-
gem moderna das artes que Louise 
bebeu na sua formação académica 
na Paris dos anos 20/30, onde traba-
lhou com Fernand Léger. 
Na segunda secção da primeira sala 
de Deslaçar um Tormento, temos uma 
selecção das peças mais reconhecíveis 
no conjunto da obra de Bourgeois: os 
órgãos sexuais femininos e masculi-
nos, e pedaços, seccionamentos do 
corpo humano em referências explí-
citas à sexualidade e às suas leituras 
pela Psicanálise — disciplina pela qual 
Louise se interessou. 
Depois da pintura da mulher sem 
cabeça — Ste. Sebastienne (1998), que, 
na verdade, é uma representação do 
mártir cristão São Sebastião, cujo 
corpo foi atravessado por setas —, 
peças criadas no final dos anos 60, 
como Noir veine, Avenza Revisited II, 
Hanging Janus e Fillette (o falo sobre-
dimensionado, de bronze, com que 
e 
Marcou a paisagem artística da segunda metade do século XX, 
mantendo-se activa até à sua morte a 31 de Maio de 2010, 
aos 98 anos 
“Mesmo recusando 
a etiqueta de 
militante, a sua obra 
ajudou a libertar 
a linguagem 
feminista e o lugar 
da mulher 
na sociedade”
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12 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020
Nova exposição 
no Museu 
Nacional de Arte 
Antiga leva-nos a 
um reino ainda 
em formação, 
partindo do 
martírio de cinco 
franciscanos em 
Marrocos, há 800 
anos. Arte e 
arqueologia em 
diálogo paraevocar uma 
história do nosso 
imaginário, mas 
que não foi bem 
como nos 
contaram.
O Portugal de mouros 
e cristãos não foi só guerra
Lucinda 
Canelas
A
 cidade esteve cercada mais 
de quatro meses e a 25 de 
Outubro de 1147 rendeu-se. 
A população estava 
exausta, havia fome, doen-
ças, e as brechas abertas na 
muralha pelos atacantes terão tor-
nado impossível a sua defesa. No dia 
que se seguiu à entrada vitoriosa dos 
cruzados e dos soldados de Afonso 
Henriques em Lisboa, a mesquita foi 
consagrada à fé cristã. Não podia 
haver dúvidas de que as coisas ti-
nham mudado. O bispo moçárabe 
fora decapitado, possivelmente con-
fundido com um muçulmano, e a 
cidade saqueada de imediato. 
“Aberta a porta e dada a permissão 
de entrar aos escolhidos para isso, 
os [cruzados] colonenses e flamen-
gos (…) vendo na cidade tantos exci-
tativos de cobiça não observam res-
peito algum ao juramento e fideli-
dade; correm aqui e ali; fazem presa; 
arrombam portas; esquadrinham os 
interiores de cada casa; afugentam 
os habitantes afrontando-os com 
injúrias; estragam vasos e vestidos; 
procedem injuriosamente para com 
as donzelas; igualam o lícito ao ilí-
cito; e às ocultas surripiam tudo que 
devia ser dividido por todos. Contra 
o direito e o lícito matam até o bispo 
da cidade, já muito idoso, cortando-
-lhe o pescoço”, relata o autor da 
Carta a Osberno, uma das principais 
fontes históricas da conquista de 
Lisboa, escrita na segunda metade 
do século XII ou na primeira do XIII 
por uma testemunha ocular cuja 
identidade é ainda incerta. 
Dando conta dos avanços e recuos 
das tropas leais a D. Afonso Henri-
ques, e com um destinatário também 
por identificar, o homem que escreve 
esta carta — provavelmente um cru-
zado inglês, certamente culto, dado 
o domínio que tem do latim — não se 
concentra apenas em episódios de 
batalha nem nas quezílias entre cru-
zados de várias origens. Fala, tam-
bém, das negociações dos represen-
tantes do primeiro rei de Portugal 
com os desta força internacional, 
como hoje diríamos, que desembarca 
no Porto com a intenção de continuar 
o seu caminho até à Terra Santa e que 
se deixa convencer a adiar a viagem 
para participar na tomada de Lisboa, 
talvez tão aliciada pela oportunidade 
de vir a impor mais uma derrota ao 
islão aliando-se a um dos mais recen-
tes monarcas da cristandade como 
pela possibilidade de saquear aquela 
que era uma das mais prósperas cida-
des do Ocidente. 
“A Carta a Osberno é uma reporta-
rem martirizados pelo islão”, diz 
Joaquim Caetano, director do MNAA 
e co-comissário de Guerreiros e Már-
tires, explicando em seguida que os 
irmãos Berardo, Otão, Pedro, Acúr-
sio e Adjuto “são os primeiros a fazer 
dos árabes os grandes inimigos dos 
cristãos”, deixando um “lastro ico-
nográfico” e uma “devoção” que se 
mantêm até hoje. 
Já não se usa a pintura para divulgar 
este episódio histórico amplamente 
aproveitado em termos religiosos e 
políticos, como no século XV e seguin-
tes, mas ainda há quem continue a 
acreditar no poder das relíquias dos 
Mártires, ossos e fragmentos que po-
demos encontrar na exposição, guar-
dados no medalhão que foi usado por 
D. Fernando, um dos filhos do rei D. 
Duarte, e em riquíssimas peças de 
ourivesaria, como a que pertenceu a 
uma abadessa do Mosteiro de Santa 
Maria do Lorvão, neta de D. Pedro I e 
de Inês de Castro. 
A pintura de Francisco Henriques 
que representa a execução dos cinco 
frades — Mártires de Marrocos (1508- 
Os cinco Mártires de Marrocos numa pintura do século XVIII atribuída ao franciscano Diego de Frutos, hoje à guarda do Museu 
de Valladolid. Em baixo, os dois comissários da exposição: Santiago Macias e Joaquim Caetano
gem fabulosa com mais de 800 anos 
que nos traz a luta pela cidade entre 
cristãos e mouros, mas que nos dá 
também informações importantes 
sobre a maneira como Lisboa estava 
organizada do ponto de vista urbano, 
social. E com preocupações de rigor 
e pormenor, sem abdicar do ritmo, 
da emoção”, diz o historiador e ar-
queólogo Santiago Macias, comissário 
de Guerreiros e Mártires: A Cristan-
dade e o Islão na Formação de Portu-
gal, a mais recente exposição do Mu-
seu Nacional de Arte Antiga (MNAA), 
em Lisboa (até 28 de Fevereiro). 
Tendo por pretexto o aniversário 
dos Mártires de Marrocos — cinco 
franciscanos italianos torturados e 
decapitados em Marraquexe há 800 
anos a mando do califa Abu Yusuf al-
Mustansir, que no imaginário popular 
português ficou conhecido como Mi-
ramolim —, esta exposição que reúne 
mais de 200 peças procura mostrar 
como foram determinantes a convi-
vência e o confronto de duas religiões, 
de duas civilizações, no contexto da 
criação do reino de Portugal. 
“Há um importante simbolismo 
em torno destes cinco franciscanos 
que vão para o Norte de África para 
se deixarem matar em nome da sua 
fé porque eles são os primeiros a se-
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Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público. 
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ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 | 13 
-1511), tábua do Retábulo de São Fran-
cisco de Évora, feito para uma igreja 
que era, ao mesmo tempo, a de um 
mosteiro franciscano e a de um palá-
cio real, o de D. Manuel I — e as ima-
gens da procissão de Travassô, reco-
lhidas em 1969 e em 2019, que inte-
gram o primeiro dos seis núcleos 
desta exposição, são dois dos exem-
plos desse “lastro iconográfico” e 
devocional, dessa memória que está 
intimamente ligada a um tempo em 
que Portugal estava a definir-se como 
unidade territorial, como país. 
“Os Mártires ganham um cunho 
guerreiro que, depois, se valoriza 
muito com a expansão portuguesa 
para o Norte de África no século XV”, 
acrescenta o historiador de arte Joa-
quim Caetano, chamando a atenção 
para a qualidade da pintura de Fran-
cisco Henriques, cuja composição é 
encimada pelos carrascos mouros, e 
para a vitrina ao lado, que reúne uma 
cruz decorada com motivos islâmicos 
e um cofre de marfim para jóias ou 
perfumes que pertenceu a um digni-
tário muçulmano e acabou a guardar 
hóstias ou relíquias na Sé de Braga. 
“A religião cristã é uma religião da 
morte, do culto funerário. A grande 
ideia é a superação da morte, daí que 
a relíquia seja um instrumento impor-
tante na história que é contada.” 
Um infante português 
na corte do califa 
O culto dos Mártires de Marrocos, 
lembra o comissário no catálogo, foi 
amplamente difundido pela ordem 
franciscana e pelo Mosteiro de Santa 
Cruz de Coimbra, onde a maior parte 
das relíquias foi depositada depois 
de o infante Pedro Sanches, irmão 
do rei Afonso II, a quem se opunha, 
as trazer para Portugal. Sanches, re-
corde-se, assistira à execução dos 
frades integrado nas tropas do califa, 
e os cinco religiosos tinham passado 
por este mosteiro da ordem de Santo 
Agostinho a caminho do Norte de 
África, precisamente numa altura 
em que lá vivia e estudava Santo An-
tónio, a quem viriam a influenciar 
profundamente. 
As práticas rituais e a produção de 
imagens, escreve o comissário, 
“acentuam no imaginário cristão o 
papel opositor do islamismo, mote 
para a construção de um vector im-
portante da identidade nacional”, 
num tempo marcado pela presença 
constante da guerra. 
“Qualquer país precisa dos seus 
inimigos e também dos seus mártires 
e heróis. Os nossos heróis são os que 
venceram ‘o outro’, são a memória 
da vitória, mesmo depois de mortos 
e, se calhar, sobretudo depois de 
mortos”, diz Joaquim Caetano. 
Saídos deste primeiro módulo, Por-
tugal na Espanha Árabe, evocação do 
historiador António Borges Coelho e 
desta obra homónima fundamentalsobre a ocupação árabe da Península 
Ibérica, o visitante entra noutro (Viver 
em Tempos de Cruzada) que não seria 
possível sem as escavações que, so-
bretudo no Sul do país, se começaram 
a fazer a partir do final da década de 
força ainda no século XI, com o fim 
do califado do grande apogeu muçul-
mano da Península Ibérica, que cria 
uma verdadeira corte imperial orien-
tal no ocidente, mas só depois da to-
mada de Lisboa, que coincide com a 
afirmação do poder almóada, é que a 
coisa se radicaliza. Até aí igrejas e 
mesquitas co-existem.” 
Para Joaquim Caetano, o império 
almóada — a maior potência do Medi-
terrâneo ocidental, uma das maiores 
do mundo islâmico, segundo o histo-
riador Hermenegildo Fernandes, um 
dos autores do catálogo de Guerreiros 
e Mártires — trouxe uma verdadeira 
jihad à medida do século XII, com 
episódios como o dos Mártires a su-
blinhar a ruptura com o passado. 
Entre a conquista de Lisboa e o epi-
sódio dos Mártires, em Janeiro de 
1220, é todo o Sudoeste peninsular 
que tenta resistir ao avanço dos cris-
tãos. A um Portugal em modo de afir-
mação contrapõe-se, então, um islão 
ibérico que está já na fase do deses-
pero, do declínio. “O princípio do 
século XIII marca um ponto de não- 
-retorno em relação à reconquista”, 
resume Santiago Macias. 
Território cosmopolita 
Os Papas da primeira metade do sé-
culo XIII procuram, sistematica-
mente, “colocar a guerra contra o is-
lão no centro das preocupações dos 
reis peninsulares”, mas, ao mesmo 
tempo, aceitam abrir excepções para 
garantir que as trocas comerciais no 
Mediterrâneo, envolvendo muçulma-
nos e cristãos, decorrem sem inciden-
tes de maior, explica Hermenegildo 
Fernandes no seu ensaio. 
É preciso ver que o Gharb al-Anda-
lus, os territórios ocidentais da Pe-
nínsula Ibérica controlados pelo is-
lão nos séculos XII e XIII, era uma 
região cosmopolita em que os inter-
câmbios comerciais tinham grande 
peso, sublinha Susana Gómez Mar-
tínez, investigadora do Campo Ar-
queológico de Mértola, tal como 
Macias. Produziam-se cerâmicas e 
vidros de grande qualidade, de que 
há exemplares na exposição do mu-
seu de Arte Antiga, e era evidente o 
avanço científico em várias áreas. 
“A produção de materiais era mui-
tíssimo sofisticada, assim como a pro-
dução literária, sobretudo a de poesia. 
Durante muito tempo, cristãos e mou-
ros conviveram, sem se misturarem 
muito, como diz o Hermenegildo 
[Fernandes], mas também sem vive-
rem em guetos, como acontece aos 
muçulmanos de Lisboa pós-1147, con-
finados à mouraria, onde ficam as 
duas únicas mesquitas da cidade, ao 
passo que pré-1147, as igrejas cristãs 
estão espalhadas”, acrescenta Macias, 
falando num período de “um certo 
retrocesso civilizacional” imposto 
pela reconquista e de “séculos de hi-
bridação, de contaminação” entre 
cristãos e mouros. 
“À nossa chegada, tinha a cidade 60 
mil famílias. O alto do monte é cingido 
por uma muralha circular, e os muros 
da cidade descem pela encosta, à di-
reita e à esquerda, até à margem 
“Qualquer país 
precisa dos seus 
inimigos e também 
dos seus mártires 
e heróis. Os nossos 
heróis são os que 
venceram ‘o outro’, 
são a memória 
da vitória, mesmo 
depois de mortos e, 
se calhar, sobretudo 
depois de mortos”, 
diz Joaquim Caetano 
70, com a criação do Campo Arqueo-
lógico de Mértola, cidade alentejana 
à beira do Guadiana que tem estu-
dado o seu passado islâmico melhor 
do que qualquer outra em Portugal 
(são oriundas de Mértola 40 das peças 
expostas). 
É nesta segunda sala que se encon-
tra a maior parte das cerâmicas desta 
exposição que nos mostra também 
esculturas, têxteis, marfins, peças de 
ourivesaria, livros iluminados, vidros 
e armas, combinando objectos de um 
quotidiano modesto com outros que 
são verdadeiros artigos de luxo. 
Os objectos — “um passado que es-
tava todo enterrado”, sublinha o ou-
tro comissário, Santiago Macias, 
apontado para uma enorme talha e 
para um tabuleiro de jogo dos séculos 
XII-XIII — mostram bem as contami-
nações entre cristãos e mouros, con-
centrando-se mais no que partilham 
do que naquilo que os separa. 
“Quisemos que as pessoas pensas-
sem como é que esta relação entre o 
mundo islâmico e o cristão contribuiu 
para a criação deste país sem avançar 
uma resposta, mas dizendo que as 
coisas não são a preto e branco como, 
infelizmente, ainda ensinam os ma-
nuais escolares, são em espelho”, 
explica Macias. Um espelho que con-
traria interpretações maniqueístas 
sobre o que aqui se passou entre os 
séculos VIII e XII-XIII. 
“Isto não foi um tabuleiro com 
maus de um lado e bons do outro. Se 
houve momentos em que foi ‘nós 
[cristãos] contra eles [mouros]’, pe-
ríodos de grande violência, outros 
houve em que foi ‘nós com eles’, de 
convivência, de tolerância tensa, mas 
de tolerância.” 
É a conquista de Lisboa, em 1147, 
que marca um extremar de posições 
de um e de outro lado, diz Macias, 
também arqueólogo e responsável 
pelas escavações no castelo de Moura: 
“A reconquista cristã começa a ganhar e
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14 | ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020
“O que vivemos hoje, 
a radicalização 
do discurso com a 
identificação dos 
árabes como 
o inimigo em 
cenários de guerra, 
de terrorismo 
ou em relação 
aos refugiados, 
não é novo”
O país e a ideologia 
da reconquista 
Pias de abluções, calvários em ma-
deira, lápides funerárias, exemplares 
da Bíblia e do Corão, placas de cedro 
para o ensino da escrita árabe, pintu-
ras de Nuno Gonçalves represen-
tando muito provavelmente Santo 
António, o mais importante dos san-
tos portugueses, e São Teotónio, o 
primeiro, integram os dois núcleos 
que encerram a exposição: Rezar e 
Identificação de um país, este último 
com o título decalcado do longo en-
saio sobre as origens de Portugal que 
o historiador José Mattoso publicou 
em 1995 (reeditado pela Temas e De-
bates em 2015). 
“O que José Mattoso nos vem dizer 
é que a reconquista cristã não é só 
um projecto para expulsar os árabes 
do território, é também uma questão 
de política interna, já que é preciso 
responder às aspirações da igreja e 
da nobreza, os senhores da guerra 
que querem mais terra”, resume Joa-
quim Caetano. No pós-reconquista, 
acrescenta Santiago Macias, “há uma 
verdadeira reforma agrária”, com o 
rei a apossar--se das melhores terras 
para depois as arrendar a quem já as 
trabalhava, com pesados impostos 
que podiam chegar a 50% do que elas 
produziam. 
Tal como Leão e Castela, lembra, 
por seu lado, o historiador Hermene-
gildo Fernandes, Portugal tem como 
“matriz identitária a ideologia da ‘re-
conquista’, que é uma importante 
fonte de legitimidade política ainda 
mais do que de acção militar”. 
Para essa “matriz identitária” con-
tribuem episódios como o dos fran-
ciscanos que o Miramolim manda 
matar em Marraquexe e cujas relí-
quias são depositadas no Mosteiro de 
Santa Cruz, que teve em São Teotónio 
o seu primeiro abade. 
“Santa Cruz é gerido como uma 
catedral, numa cidade que era, antes 
da conquista de Lisboa, a capital do 
reino, se é que essa noção existe”, 
explica Caetano. “É uma casa que 
está ligada desde sempre ao poder 
dos reis. Um importante centro inte-
lectual e de renovação plástica no 
Renascimento. O facto de Santo An-
tónio lá ter estado contribui, em 
muito, para que Santa Cruz produza 
a sua própria mitologia.” 
É oriunda deste mosteiro a cruz 
processional (1214) em ouro e pedras 
preciosas que D. Sancho I manda fa-
zer em testamento e que se pode ver 
agora no MNAA, numa exposição que 
se fez graças ao apoio mecenáticoda 
Fundação La Caixa-BPI e cujo catá-
logo resulta de uma parceria com a 
Imprensa Nacional Casa da Moeda. 
Perto da cruz do filho de Afonso 
Henriques, e já quase no fim de Guer-
reiros e Mártires, está a réplica de uma 
lápide do Castelo do Alandroal 
(1294-98), escrita na primeira pessoa 
e em jeito de desafio por aquele que 
parece ser um “mestre de obras” de 
nome Galvo ou Calvo. Começa com a 
divisa do reino de Granada, o último 
islâmico da Península Ibérica, que só 
cai em 1492, e transcreve, em carac-
teres latinos, o som da frase em árabe 
“não há vencedor senão Deus”. 
“É uma provocação de alguém que 
ficou e que diz ‘no meio disto tudo, 
vocês não ganharam’”, acrescenta 
Santiago Macias. “O que vivemos 
hoje, com a radicalização do dis-
curso em alguns sectores da socie-
dade, da política, com a identificação 
dos árabes como o inimigo em cená-
rios de guerra, de terrorismo ou em 
relação aos refugiados, não é novo. 
E essa radicalização faz-se ignorando 
que continua a haver territórios no 
islão em que há cristãos há séculos e 
cristãos com poder.” 
Conhecer o passado para com-
preender o presente é urgente, de-
fende o historiador, sobretudo 
quando há muito quem queira resu-
mir esse presente a um “nós contra 
eles”.
Arca em pedra dos séculos XII-XIII semelhante à que terá guardado as relíquias dos Mártires à chegada a Coimbra. Em baixo, à esquerda, uma talha 
do al-Andalus, dois bustos-relicários em prata e uma lápide funerária com um calvário e uma representação da Virgem com o Menino
do Tejo. Ao sopé dos muros exis-
tem arrabaldes alcandorados nos 
rochedos cortados a pique, e são tan-
tas as dificuldades que os defendem, 
que se podem ter em conta de caste-
los bem fortificados. Os seus edifícios 
estão aglomerados tão apertada-
mente que, a não ser entre as dos 
comerciantes, dificilmente se achará 
uma rua com mais de oito pés de lar-
gura”, descreve o cruzado inglês da 
Carta a Osberno, num trecho que se 
pode ouvir numa das salas da exposi-
ção, Guerrear, em que merecem des-
taque um pendão de guerra islâmico 
(século XII) e uma pintura de Santiago 
(XIV) — o “Santiago Mata- mouros” da 
tradição popular — atribuída ao Mes-
tre da Lourinhã, provavelmente um 
pintor flamengo. 
“Ao longo desta exposição quere-
mos que se perceba que isto não foi 
um passeio triunfal do cristianismo”, 
diz o historiador de arte, que houve 
momentos de violência extrema de 
parte a parte, mas também de coe-
xistência, com mais ou menos so-
bressaltos. 
Obras como o precioso Manuscrito 
Hadith Bayad wa Riyad (século XIII) 
— em Guerreiros e Mártires esta obra 
da Biblioteca do Vaticano surge 
numa reprodução digital —, docu-
mento que conta a história de amor 
entre um mercador de Damasco e a 
escrava de um vizir iraquiano, são 
reflexo da sofisticação do al-Andalus 
de que falam Macias e Martínez. As 
Cantigas de Santa Maria (1221-1284), 
atribuídas a Afonso X de Leão e Cas-
tela, que relatam milagres da Virgem 
Maria quando há ainda muçulmanos 
na Península Ibérica, são produto 
dessa coexistência. 
“As confissões coexistem de forma 
mais ou menos pacífica a maior parte 
do tempo, como no Líbano ou na Sí-
ria. Ainda hoje cidades como Alepo, 
muçulmanas, têm comunidades cris-
tãs com grande poder de influência”, 
argumenta Santiago Macias. 
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ípsilon | Sexta-feira 4 Dezembro 2020 | 15
D
R
Dah Shinin’ (1995), álbum 
fundacional da golden age 
do hip-hop nova-iorquino 
(anos 90), celebrou em 2020 
as suas 25 primaveras. Mas 
os Smif-N-Wessun estão com os 
olhos nas próximas 25 e The All, o 
seu último álbum, é um grande 
regresso — às origens, também.
As bodas de prata 
dos Smif-N-Wessun
Francisco Noronha
The All, o trabalho com que voltaram após oito anos de ausência, é um dos grandes 
álbuns da sua carreira, mesmo se não teve o eco na imprensa que outras figuras 
dos anos 90 auferiram recentemente aquando do seu regresso
E
m Hip-Hop Evolution, a série 
documental que faz a genea-
logia do hip-hop americano 
(exibida na Netflix), Steele e 
Tek, dupla que compõe os 
Smif-N-Wessun, não são um 
dos grupos entrevistados. Não “apa-
recem”. Nem na série globalmente 
considerada, nem no episódio dedi-
cado ao hip-hop nova-iorquino dos 
anos 90. Ou melhor: até os vemos 
quando, por breves segundos, o seu 
nome surge em nota de rodapé (lite-
ralmente), mais rigorosamente no 
canto da capa de uma edição de 1994 
da revista Rap Pages. Como se expli-
cará a invisibilidade de um dos grupos 
definidores do som clássico, boom-
bap e hardcore, e simultaneamente 
— subtextualmente — político de uma 
era? Como se compreende que os 
obreiros de Dah Shinin’, um dos ál-
buns fundacionais dessa mesma era, 
não sejam tidos nem achados no rac-
conto de uma cultura popular hoje 
planetária? 
Dah Shinin’ (1995), estreia em nome 
próprio depois de uma primeira apa-
rição no não menos clássico Enta Da 
Stage dos até hoje compagnons de 
route Black Moon, foi um trabalho 
que, a partir de Brooklyn, influenciou 
decisivamente a expansão e o furor 
global do hip-hop, inclusivamente 
moldando grande parte do som que, 
em paragens distantes, emulava a 
proposta original nova-iorquina — 
Portugal não foi excepção e Sem Ceri-
mónias, o super-álbum dos Mind Da 
Gap editado apenas dois anos depois 
do disco da dupla americana, é disso 
bem ilustrativo. 
Voltando à questão acima enun-
ciada, a resposta poder-se-á acharcer-
tamente, como quase sempre estas 
coisas se acham: muita — virtualmente 
infinita — gente para entrevistar, esco-
lhas legítima e naturalmente subjec-
tivas, razões de agenda e de oportu-
nidade... Se não interessa, portanto, 
fazer apreciações sobre a justiça deste 
tipo de objectos — porque, no início e 
no fim, está o gosto pessoal de quem 
os cria e é também ele que forja o mé-
rito e a singularidade do olhar (ou da 
falta dele) —, permanece a importân-
cia em resgatar, sublinhar a traço 
grosso, a relevância de alguns desses 
nomes esquecidos da música popular 
americana das últimas décadas. Não 
apenas por mero exercício nostálgico, 
antes porque o presente dos Smif-N-
Wessun — que, em tempos idos, à 
conta de um processo legal interposto 
pela fabricante de armamento Smith 
& Wesson, tiveram de alterar o seu 
nome para Cocoa Brovaz — continua 
vibrante como quando apareceram 
ao mundo e lhe ordenaram que 
“Wrekonize”. 
Sim: The All, o trabalho com que 
voltaram após oito anos de ausência, 
é um dos grandes álbuns da sua car-
reira, mesmo se não teve o eco na 
imprensa que outras figuras dos anos 
90 auferiram recentemente aquando 
do seu regresso (A Tribe Called Quest, 
Gang Starr, etc.). A mágoa é real, mas 
não chega para desviar os Smif-N-Wes-
sun, dupla de Brooklyn — Tek de Bed-
ford-Stuyvesant, Steele de Browns-
ville — do seu caminho. Umbilical-
mente ligados ao mais populoso 
borough de Nova Iorque (um dos 
cinco históricos do hip-hop nova-ior-
quino, de par com Manhattan, 
Queens, Staten Island e, claro, o 
Bronx), ao seu conterrâneo Buckshot 
(figura central dos Black Moon e com 
quem formam, juntamente com os 
Heltah Skeltah e os O.G.C, o super-
grupo Boot Camp Click, hoje desfal-
cado após o doloroso desapareci-
mento de Sean Price) e à editora Duck 
Down (co-fundada em 1995 por 
Buckshot), os dois rappers, hoje ho-
mens crescidos e pais de família, estão 
aí para curvas — mas ao seu próprio 
ritmo, de que não abdicam. Depois 
do concerto de celebração no início 
do ano no Gramercy Theatre, em

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