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A discussão da pedofilia no campo da Educação Jackson Ronie Sá-Silva Marcos Eduardo Miranda Santos Yuri Jorge Almeida da Silva Organizadores 2018 A discussão da pedofilia no campo da Educação OI OS E D I T O R A © Dos autores – 2018 Editoração: Oikos Capa: Yuri Jorge Almeida da Silva Revisão: Geraldo Korndörfer Arte-final: Jair de Oliveira Carlos Impressão: Rotermund Editora Oikos Ltda. Rua Paraná, 240 – B. Scharlau 93120-020 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3568.2848 contato@oikoseditora.com.br www.oikoseditora.com.br A discussão da pedofilia no campo da Educação / Organizadores: Jackson Ronie Sá-Silva, Marcos Eduardo Miranda Santos e Yuri Jorge Almeida da Silva – São Leopoldo: Oikos, 2018. 151 p.; 14 x 21 cm. ISBN 978-85-7843-820-3 ISBN 978-85-8227-204-6 (Editora UEMA) 1. Educação. 2. Pedofilia. I. Sá-Silva, Jackson Ronie. II. Santos, Marcos Eduardo Miranda. III. Silva, Yuri Jorge Almeida. CDU 34 D611 Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184 Conselho Editorial (Editora Oikos) Antonio Sidekum (Ed.N.H.) Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL) Danilo Streck (Unisinos) Elcio Cecchetti (UNOCHAPECÓ e GPEAD/FURB) Eunice S. Nodari (UFSC) Haroldo Reimer (UEG) Ivoni R. Reimer (PUC Goiás) João Biehl (Princeton University) Luís H. Dreher (UFJF) Luiz Inácio Gaiger (Unisinos) Marluza M. Harres (Unisinos) Martin N. Dreher (IHSL) Oneide Bobsin (Faculdades EST) Raúl Fornet-Betancourt (Aachen/Alemanha) Rosileny A. dos Santos Schwantes (Uninove) Vitor Izecksohn (UFRJ) Conselho Editorial (Editora UEMA) Alan Kardec Gomes Pachêco Filho Ana Lucia Abreu Silva Ana Lúcia Cunha Duarte Eduardo Aurélio Barros Aguiar Fabíola Oliveira Aguiar Helciane de Fátima Abreu Araújo Helidacy Maria Muniz Corrêa Jackson Ronie Sá da Silva José Roberto Pereira de Sousa José Sampaio de Mattos Jr Luiz Carlos Araújo dos Santos Marcelo Cheche Galves Márcia Milena Galdez Ferreira Maria Claudene Barros Maria Sílvia Antunes Furtado Agradecimentos O livro A discussão da pedofilia no campo da Educação foi cons- truído coletivamente e com desejos: desejo de conhecer; desejo de pesquisar; desejo de interagir; desejo de ensinar e aprender; desejo de ética, cidadania e respeito às pessoas. Sendo assim, a característica principal desta obra é ser um texto pensado por pes- soas que se dedicaram de forma admirável e responsável à pro- blematização de um tema instigante, contraditório, complexo e socialmente relevante. Os primeiros agradecimentos são para as bolsistas de inicia- ção científica Liana Assunção Pereira e Milena Conceição de Moraes e para os bolsistas Marcos Eduardo Miranda Santos, Raildson Sá Menezes Marques e Yuri Jorge Almeida da Silva. Pessoas que estiveram comigo do início ao fim nestes valorosos e importantes projetos de iniciação científica realizados no perío- do de 2013 a 2015 cujo tema central foi a pedofilia e seus atraves- samentos no campo da Educação. Estendo meus agradecimentos também a Ludmilla Guimarães Silva, bolsista de extensão uni- versitária, que realizou um importante trabalho com professores e professoras do ensino fundamental abordando o tema da pedo- filia em oficinas didáticas no período de 2013 a 2014. O apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Estadual do Maranhão (PPG/UEMA) e da Pró- Reitoria de Extensão e Assuntos Estudantis (PROEXAE/UEMA) na concessão, organização e gestão de todo o processo de acom- panhamento dos bolsistas de iniciação científica e extensão foi fundamental. Sou grato! Ao Centro de Educação Ciências Exatas e Naturais (CECEN), ao Departamento de Química e Biologia (DQB) e ao Curso de Ciências Biológicas Licenciatura (CCB) da Universidade Estadual do Maranhão, espaços institucionais que possibilitaram a realiza- ção das pesquisas, reuniões, aulas, oficinas, etc., relacionadas aos projetos de extensão e pesquisa sobre o tema da pedofilia no cam- po da educação. Ao Grupo de Pesquisa Ensino de Ciência, Saúde e Sexua- lidade (GP-ENCEX), pelo espaço de pesquisa, ensino e extensão na construção de conhecimentos socialmente relevantes e por seu compromisso institucional na condução de investigações qualita- tivas com enfoques educacionais hipercríticos. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão de duas bolsas de iniciação científica para que estudantes do Curso de Ciências Biológicas Licenciatura pudessem participar de uma pesquisa científica edu- cacional de relevância social cujos resultados apresentamos nesta produção em formato de livro. À Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) pela conces- são de duas bolsas de iniciação científica para que estudantes do Curso de Ciências Biológicas Licenciatura pudessem participar de uma pesquisa científica educacional de relevância social cujos resultados apresentamos nesta produção em formato de livro. À Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universi- dade Estadual do Maranhão (PPG – UEMA) pela concessão de uma bolsa de iniciação científica para que um estudante do Cur- so de Ciências Biológicas Licenciatura pudesse participar de uma pesquisa científica educacional de relevância social cujos resulta- dos apresentamos nesta produção em formato de livro. Estendo meus agradecimentos numa perspectiva mais ampla à Universi- dade Estadual do Maranhão (UEMA), instituição à qual sou vin- culado e que me permite realizar ensino, pesquisa e extensão com competência e qualidade. À Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Estudantis da Uni- versidade Estadual do Maranhão (PROEXAE – UEMA) pela con- cessão de uma bolsa de extensão para que uma estudante do cur- so de Ciências Biológicas Licenciatura pudesse participar de uma extensão universitária junto a professores e professoras do Ensi- no Fundamental conduzindo oficinas pedagógicas com temáti- cas relacionadas à pedofilia. À Secretaria da Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI), órgão vinculado ao Governo do estado do Maranhão, por pro- porcionar os recursos financeiros e o apoio institucional junto à Universidade Estadual do Maranhão e à FAPEMA. À Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) por nos conceder acesso ao acer- vo de obras históricas durante a pesquisa documental do projeto “História, Medicina e Educação: discursos sobre a pedofilia e o pedófilo em livros de Medicina do século XX”. Aos professores e às professoras da rede pública municipal de ensino de São Luís, Maranhão, por nos conceder entrevistas e a realização de oficinas pedagógicas durante a execução do projeto de pesquisa “Pedofilia: o papel da escola e dos/as professores/as na discussão desse fenômeno sociocultural complexo” e do projeto de extensão “Problematizando o tema da pedofilia entre professo- res e professoras da educação infantil e do ensino fundamental do 1º ao 5º ano de uma escola pública municipal de São Luís – MA”. Prof. Dr. Jackson Ronie Sá da Silva Departamento de Química e Biologia – DQB Universidade Estadual do Maranhão – UEMA As representações sobre sexualidade, corpo e gênero veiculadas em especial pela mídia têm subjetivado não só adultos, homens e mulheres, mas também têm trabalhado minuciosamente para a formação das identidades infantis e juvenis nos nossos dias. Tais reflexões, no entanto, não devem reafirmar uma espécie de pânico moral e até mesmo um certo saudosismo em relação a uma infância ingênua e terna de tempos atrás, mas talvez devamos olhar com mais atenção para nossas próprias contradições e nos perguntarmos: afinal, quem é mesmo pedófilo? Jane Felipe Sumário Prefácio .................................................................................11 Jane Felipe Apresentação ........................................................................15 Jackson Ronie Sá-Silva Marcos Eduardo Miranda Santos Yuri Jorge Almeida da Silva O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais ...................................23Lúcio Izidro Jane Felipe Problematizando a pedofilia em contexto de midiatização e educação ........................................................41 Cristóvão Domingos de Almeida Jackson Ronie Sá-Silva Joel Felipe Guindani Ciência médica e pedofilia: saberes, discursos e representações sobre a pedofilia e o pedófilo descritos em livros de Medicina no período de 1910 a 1990 ..................59 Jackson Ronie Sá-Silva Marcos Eduardo Miranda Santos Raildson Sá Menezes Marques A CPI da pedofilia e os discursos sobre o pedófilo .................82 Jackson Ronie Sá-Silva Yuri Jorge Almeida da Silva O que dizem as produções educacionais sobre a pedofilia? .....98 Jackson Ronie Sá-Silva Milena Conceição de Moraes 10 Professoras e professores do Ensino Fundamental falam sobre a pedofilia ........................................................ 123 Jackson Ronie Sá-Silva Marcos Eduardo Miranda Santos Discursos de professores de uma escola pública municipal de São Luís – MA sobre a pedofilia ..................................... 137 Jackson Ronie de Sá-Silva Liana Assunção Pereira As autoras e os autores ........................................................ 149 11 A discussão da pedofilia no campo da Educação Prefácio Elaborar um livro não é tarefa fácil, em especial quando nos propomos como desafio colocar em discussão temas tão sen- síveis que, em seu conjunto, problematizam infâncias, relações de gênero, desejo, sexualidade e violências. No entanto, para nós, pesquisadoras e pesquisadores, que operamos com tais conceitos e também lidamos com a formação docente, escrever, refletir, de- bater se constituem não apenas em um desejo de ampliar conhe- cimentos, mas em uma necessidade, uma urgência. Somos, portanto, movidas/os pelo desejo: de conhecer, de compartilhar, de trocar experiências, de pensar o mundo, as rela- ções de poder, os discursos, as instituições, os conceitos (embora saibamos que estes são contingentes, elaborados a partir de certas condições de possibilidade). Somos instigadas/os pelo senso de responsabilidade e éti- ca, especialmente quando nos deparamos com índices cada vez maiores de violência contra crianças e adolescentes. Em junho de 2018, o Ministério da Saúde divulgou dados alarmantes em rela- ção à violência sexual – assédio, estupro, pornografia infantil e exploração sexual – contra crianças e adolescentes. Entre os anos de 2011 e 2017, houve um aumento de 83% no número de notifi- cações de violências sexuais, e o tipo mais notificado foi o estu- pro de crianças (62%) e adolescentes (70,4%). Os dados apontam ainda que o maior número de casos de violência sexual acontece com crianças entre 1 e 5 anos (51,2%), chegando ao patamar de 67,8% na faixa etária entre 10 a 14 anos. No espectro das desigualdades e vulnerabilidades, as vio- lências se acentuam ainda mais quando nos deparamos com o fato de que a maioria das violências sexuais acontecem dentro de casa, perpetradas por homens (pais, padrastos, pessoas conheci- 12 das da família), sendo as crianças e adolescentes do sexo femini- no as maiores vítimas, 74,2% e 92,4%, respectivamente. Em rela- ção às vítimas negras, os índices de violência sexual chegaram a 55,5% entre as crianças e 45,5% entre os/as adolescentes. Diante de tais estatísticas que escancaram o machismo da nossa sociedade, responsável por produzir inúmeras formas de violência contra segmentos vulneráveis da população, torna-se ne- cessário e urgente discutirmos sobre o tema do abuso/violência sexual e suas diversas formas de expressão, dentre as quais desta- camos a pedofilia, uma das modalidades de violência sexual con- tra crianças. Este livro traz, portanto, importantes contribuições para re- fletirmos sobre a complexidade do tema da pedofilia e do pedófi- lo na contemporaneidade. Entender a origem dos termos e perce- ber como eles foram se configurando historicamente, em especial no campo médico e psicológico como sinônimos de um compor- tamento doentio e eticamente reprovável. Conhecer de que for- ma o campo jurídico tem encaminhado as situações de violência sexual, impondo sanções para aqueles/as que molestam crianças e adolescentes. Analisar de que modos as sociedades e suas res- pectivas culturas têm entendido essa questão e como determina- dos campos do conhecimento podem contribuir nesse debate. Em que medida a formação docente pode ser uma grande aliada na proteção às infâncias, discutindo a constituição histórica, cultu- ral e social das identidades de gênero e das identidades sexuais, mesmo em tempos de retrocessos. Cancelamento de exposições em museus, execração públi- ca de artistas e intelectuais, perseguição às/aos professoras/es que trabalham na perspectiva do respeito às diferenças, contra o ma- chismo, contra o racismo e contra a homofobia, escancaram nos- sa ignorância e hipocrisia sobre estes e tantos outros temas que envolvem a sexualidade, a construção das identidades de gênero e as relações de poder entre adultos e crianças. FELIPE, J. • Prefácio 13 A discussão da pedofilia no campo da Educação Estes são alguns desafios propostos nos artigos aqui pre- sentes, gestados a partir de pesquisas realizadas por jovens e ta- lentosos/as pesquisadores/as, que carregam o compromisso éti- co com a justiça e com os direitos humanos fundamentais. Pro- duzir pesquisas é, antes de tudo, produzir perguntas, desestabili- zar certezas, analisar contextos e propor um debate profícuo so- bre os temas que nos afligem. Jane Felipe Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS 14 15 A discussão da pedofilia no campo da Educação Apresentação Pedofilia, tema social sério que merece discussões profun- das, complexas, multifacetadas e éticas. Pedofilia, assunto que suscita debates e inúmeros posicionamentos. A discussão da pe- dofilia deve perpassar pelo debate plural e cultural. Entendendo dessa forma e compreendendo esse fenômeno social para além dos cânones médicos, jurídicos e morais, desafiamo-nos a pesqui- sar e pensar sobre a pedofilia adicionando a dimensão sociocul- tural para melhor compreensão desse tema. Desta forma, realiza- mos uma pesquisa qualitativa educacional cujo principal objetivo foi compreender a pedofilia como fenômeno cultural que envolve saberes dos mais variados: saberes médicos, saberes jurídicos, sa- beres das religiões, saberes da Psicologia, saberes da Sociologia, saberes da Antropologia, saberes da Educação e, principalmente, saberes do discurso midiático. Ao adicionarmos diferentes campos do conhecimento que auxiliam a pensar sobre os conceitos envolvidos nessa prática con- denada socialmente, acabamos por avançar na discussão: incor- poramos o pensamento educacional hipercrítico entendendo sua importância como prática cidadã, ou seja, pensar a escola, os cur- rículos, as metodologias de ensino e as práticas pedagógicas como espaços para a realização de educação sexual contextualizada e atenta às demandas da sociedade pós-moderna e midiática. A escola se insere como local produtivo para falar sobre a pedofilia tendo os professores e as professoras como sujeitos da compreensão e da problematização desse fenômeno tão angus- tiante para pais e mães, educadores, educadoras e outros sujeitos sociais. Os docentes da Educação Básica podem promover o em- poderamento daqueles e daquelas (crianças, adolescentes, pais, mães, amigos/as, vizinhos/as, etc.) que sofrem violências sexuais tendo como pano de fundo as práticas de pedofilia. 16 Professores e professoras podem ser aliados intelectuais no desvelar das tramas envolvidas nas violências praticadas por pes- soas pedófilas. Nosso entendimento: o problema da pedofilia não está restrito ao pedófilo com suas práticas violentas envolvendo crianças e adolescentes. O pedófilo (e a pedófila) faz parte de uma rede de saberes e poderes construídos socialmente. A sociedade produz estímulos à pedofilia, mas não enxer- ga isso. Como se constitui esse processo de estimulação social da pedofilia? JaneFelipe (2006)1 alerta sobre o processo de pedofili- zação social: a sociedade cria mecanismos de proteção das crian- ças, mas ao mesmo tempo as expõe quando promove a sexualiza- ção dos corpos infantis através de artefatos culturais como músi- cas, brinquedos, roupas, produtos de beleza, etc. Mas ninguém fala sobre isto de forma crítica, contextuali- zada e usando a ferramenta da relativização social tão necessária atualmente. Precisamos expor e discutir esse tema pela via da hi- percrítica. Precisamos desvelar os conceitos naturalizados e pro- blematizar as metanarrativas que apontam, mas não têm a capa- cidade de olhar o tema de forma caleidoscópica e multifacetada. Precisamos nos posicionar sobre o não visível da pedofilia. O campo educacional deve participar ativamente da cons- trução do empoderamento das pessoas para o enfrentamento das violências que a pedofilia promove. O discurso educacional hi- percrítico promove prevenção contextualizada. Não se trata de prevenir por prevenir. Mas informar, discutir, problematizar, por- menorizar, ouvir e dizer com o cuidado de perceber as diversida- des e as adversidades. Trata-se de realizar educação sexual críti- ca, inclusiva e com a perspectiva da alteridade. Relaciona-se a realizar cidadania percebendo as contradições sociais. A pedofilia é um desses temas inesgotáveis e contraditórios que requer interdisciplinaridade para sua compreensão. Esse foi o desafio de pesquisar sobre a pedofilia tendo como pano de 1 FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo? Cadernos Pagu, n. 26, jan./ jun., p. 201-223, 2006. SÁ-SILVA, J. R.; SANTOS, M. E. M.; SILVA, Y. J. A. • Apresentação 17 A discussão da pedofilia no campo da Educação fundo o pensamento pós-estruturalista educacional apoiado pe- los Estudos Culturais em Educação, Estudos Feministas, Estu- dos Gays e Lésbicos, Estudos Foucaultianos e Estudos Queer. Os dois primeiros textos do livro A discussão da pedofilia no campo da Educação são estudos teóricos que aprofundam o olhar sobre a pedofilia trazendo os Estudos Culturais para um diálogo extremamente enriquecedor. Os cinco capítulos subsequentes são os resultados de pesquisas de iniciação científica e de extensão universitária, coordenadas pelo Prof. Dr. Jackson Ronie Sá da Silva e realizadas no Departamento de Química e Biologia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) junto ao Curso de Ciências Biológicas Licenciatura (CCBL) e ao Grupo de Pesqui- sa Ensino de Ciências, Saúde e Sexualidade (GP-ENCEX), no câmpus Paulo VI, São Luís, Maranhão, Brasil, desenvolvidas no período de 2013 a 2015. Dois projetos de pesquisa foram desenvolvidos tendo como objeto de investigação os discursos sobre a pedofilia e seus atra- vessamentos no campo da educação: Projeto 1 – “Pedofilia: o pa- pel da escola e dos/as professores/as na discussão desse fenôme- no sociocultural complexo”; Projeto 2 – “História, Medicina e Educação: discursos sobre a pedofilia e o pedófilo em livros de Medicina do século XX”. Os referidos projetos foram apoiados com bolsas de inicia- ção científica direcionadas a cinco estudantes do Curso de Ciên- cias Biológicas Licenciatura da Universidade Estadual do Ma- ranhão: duas bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimen- to Científico e Tecnológico (CNPq), agência do Ministério da Ciên- cia, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC); duas bol- sas da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) e uma bolsa oriunda da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Univer- sidade Estadual do Maranhão (PPG – UEMA). O segundo proje- to foi de extensão universitária e intitulou-se: “Problematizando o tema da pedofilia entre professores e professoras da educação infantil e do ensino fundamental do 1º ao 5º ano de uma escola pública municipal de São Luís – MA”. 18 O primeiro capítulo, intitulado O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais, escrito por Lúcio Izidro e Jane Felipe, apresenta uma instigante proble- matização sobre a pedofilia e as tensões entre os discursos médi- cos, jurídicos e culturais. Destaca a importância do entendimen- to dos conceitos nas suas origens e nos seus desdobramentos e estabelece as diferenças entre o conceito de pedofilia e pedofiliza- ção como prática social contemporânea. O segundo capítulo, intitulado Problematizando a pedofilia em contexto de midiatização e educação, é um estudo teórico realiza- do pelos professores doutores Cristóvão Almeida da Silva (Uni- versidade Federal do Pampa / UNIPAMPA – Rio Grande do Sul), Jackson Ronie Sá-Silva (Universidade Estadual do Maranhão / UEMA) e Joel Felipe Guindani (Universidade Federal do Pampa / UNIPAMPA – Rio Grande do Sul), que problematiza o concei- to de pedofilia especialmente neste momento em que o fenôme- no da midiatização tem provocado crescentes impactos nas vi- vências e cotidianos das pessoas. Esses impactos têm reflexos também no processo educati- vo, uma vez que os relatos sobre a temática estão disponíveis e podem ser acessados nos lares, na rua, na escola e em tantos ou- tros espaços sociais. Mesmo sendo uma discussão inicial e apro- ximativa, a reflexão foi construída a partir de três dimensões: a) complexidade do conceito de pedofilia, compreendendo-o como um fenômeno social que afeta as diferentes áreas do conhecimen- to, muito embora os campos da Medicina, Psiquiatria, Psicologia e Direito normalmente sejam autorizados a nominar o perfil da pessoa que a pratica; b) os impactos na realidade social dos sujei- tos e qual o papel da mídia e da escola nesse cenário; c) veicula- ção dos casos de pedofilia na mídia. Para a compreensão dessas dimensões acerca da complexi- dade da pedofilia, foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre o tema. Outro instrumento metodológico utilizado na problema- tização foi a análise de uma reportagem sobre pedofilia exibida num programa de televisão. Fundamentou-se a discussão teórica SÁ-SILVA, J. R.; SANTOS, M. E. M.; SILVA, Y. J. A. • Apresentação 19 A discussão da pedofilia no campo da Educação a partir da hipótese de agendamento que o processo de midiatiza- ção realiza junto ao receptor. O papel educativo dos meios de comunicação, neste caso, as construções representacionais, colo- ca a questão da pedofilia como um problema apenas do indiví- duo, patologizando-o e transformando-o em “monstro”. Trazer esse tema de forma plural e com hipercrítica é uma boa maneira de começar a compreender o fenômeno da pedofilia para além de sua existência midiatizada. O terceiro capítulo, intitulado Ciência Médica e Pedofilia: sa- beres, discursos e representações sobre a pedofilia e o pedófilo em livros de Medicina – décadas de 1910 e 1990, apresenta uma investigação do- cumental realizada por Jackson Ronie Sá-Silva, Marcos Eduardo Miranda Santos e Raildson Sá Meneses Marques que revelou e problematizou os discursos médicos sobre as ideias de pedofilia e pedófilo divulgadas em livros de Medicina publicados no decor- rer do século XX no Brasil. A investigação fundamentou-se nos pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa documental, dos Estudos Culturais e da perspectiva foucaultiana de análise. A pe- dofilia, tal como ocorre hoje, era vista como uma doença e o pe- dófilo categorizado como um doente, um anormal. Assim como na atualidade, as ideias médicas sobre a pedofilia e o pedófilo no século XX são construídas no ideário da patologia, da perversão e do delito. O quarto capítulo, A CPI da pedofilia e os discursos sobre o pedófilo, escrito por Jackson Ronie Sá-Silva e Yuri Jorge Almeida da Silva, apresenta uma análise documental dos discursos sobre a pedofilia e o pedófilo que foram divulgados no Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pedofilia (CPI da Pedofi- lia) e encaminhados ao Senado Federal brasileiro no ano de 2010. A discussão empreendida pelos autores problematiza as represen- tações da pedofilia e do pedófilo elaboradas pelos parlamentares a partir dos pressupostos teórico-metodológicosdos Estudos Cul- turais em sua vertente pós-estruturalista. Assim, a pedofilia foi percebida como uma prática criminosa, doentia e socialmente reprovável e o pedófilo como um sujeito criminoso, doente e 20 monstruoso. No entanto, apresenta-se o argumento de que a pe- dofilia não é produzida exclusivamente pelo viés biomédico, jurí- dico e do senso comum, como foi descrito pelos senadores. Há uma cultura de erotização dos corpos infantis pela sociedade, e o entendimento da pedofilia como prática cultural é fundamental para que possamos agir contra a violação sexual de crianças e adolescentes. No quinto capítulo, O que dizem as produções educacionais so- bre a pedofilia?, Jackson Ronie Sá-Silva e Milena Conceição de Mo- raes apresentam os resultados de uma pesquisa bibliográfica so- bre o posicionamento de alguns autores e algumas autoras do cam- po educacional sobre o fenômeno da pedofilia. Assim, livros, ar- tigos, dissertações e teses foram os materiais de pesquisa utiliza- dos para a compreensão e problematização do que tais produções dizem sobre o papel da escola e de professores e professoras na discussão do tema pedofilia. O campo educacional deve estar aten- to para discutir o tema pedofilia no espaço escolar, pois a socie- dade autoriza e desautoriza certos comportamentos no campo da sexualidade e, no caso da pedofilia, norteia um fenômeno socio- cultural denominado “pedofilização social”: artefatos culturais como livros, televisão, cinema, música e outros constroem dis- cursos e estimulam diferentes desejos (sexuais ou não) e, ao mes- mo tempo, condenam a pedofilia. Professores do ensino fundamental falam sobre a pedofilia é o sex- to capítulo. A problematização escrita por Jackson Ronie Sá-Sil- va e Marcos Eduardo Miranda Santos apresenta de forma hiper- crítica os discursos sobre a pedofilia elaborados por professores da Educação Básica de uma escola pública de São Luís, Mara- nhão, Brasil. A discussão deixou evidente que são várias as repre- sentações acerca da pedofilia na atualidade. As mesmas estão for- temente influenciadas por aquilo que é veiculado na mídia, que por sua vez assume o papel de inquisidora, quando na verdade é cúmplice do ato. A violência sexual de crianças é um crime he- diondo, pois as crianças, sendo sujeitos de moral, não podem ser- vir como objetos para satisfazer o desejo sexual de uma pessoa. SÁ-SILVA, J. R.; SANTOS, M. E. M.; SILVA, Y. J. A. • Apresentação 21 A discussão da pedofilia no campo da Educação Sendo assim, o conhecimento das representações dos (as) educa- dores (as) sobre esse fenômeno é fundamental para que a partir de suas ideias, seja possível realizar intervenções educativas que ampliem as visões sobre violências sexuais para que sejam divul- gadas nas ações de educação sexual na educação básica. Finalizando temos o capítulo: Discursos de professores de uma escola pública municipal de São Luís – MA sobre a pedofilia, escrito por Jackson Ronie Sá-Silva e Liana Assunção Pereira. O texto apre- senta os discursos de professores e professoras do Ensino Funda- mental e da Educação Infantil a partir de uma pesquisa qualitati- va tendo os Estudos Culturais e a perspectiva foucaultiana como pano de fundo nas análises. As entrevistas revelaram as seguintes representações de pedofilia e pedófilo: a pedofilia é uma patolo- gia, e o pedófilo, um doente; o pedófilo apresenta uma constitui- ção biológica para agir assim; o pedófilo é um sujeito traumatiza- do psicologicamente ou seria uma vítima de um ato de pedofilia; a identificação da figura do pedófilo é realizada, quase sempre, com a ideia de ser uma pessoa próxima ou mesmo um parente (representado principalmente pelo padrasto); a escola é percebida como uma instituição importante na apresentação e discussão do tema pedofilia; os professores e as professoras expuseram po- sicionamentos sobre a importância de se discutir em sala de aula a temática da pedofilia. Que este livro incite a vontade de saber sobre tão importan- te temática no campo educacional. Desejamos a vocês uma boa leitura! Jackson Ronie Sá-Silva Marcos Eduardo Miranda Santos Yuri Jorge Almeida da Silva (Organizadores) 22 23 A discussão da pedofilia no campo da Educação O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais Lúcio Izidro Jane Felipe Introdução Quando se fala em pedofilia na contemporaneidade, a pri- meira ideia é que se trata de algo errado do ponto de vista social e, sobretudo, numa perspectiva jurídica. O senso comum indica, a partir dos agentes atípicos da moral, que o predicativo/adjetivo é pejorativo. Todavia, nos seus primórdios, a expressão não tinha tal significado social; portanto, pode-se dizer que ser pedófilo nem sempre foi um ponto fora da curva dos comportamentos que de- mandavam alguma acuidade num juízo maniqueísta. Ainda há uma enorme confusão em descrever pedofilia como crime, o que na verdade não é. Aliás, esta categoria científi- ca é típica da psiquiatria, chegando ao universo jurídico como comportamento que pode gerar alguns crimes previstos no capí- tulo dos crimes contra a liberdade sexual, no Código Penal brasi- leiro e, bem assim, na legislação penal especial (a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente1), como será detalhado mais adiante. O presente trabalho visa lançar algumas questões para uma compreensão sobre a problemática que orbita o tema, na qual se verificam controvertidas discussões nas mais variadas esferas do conhecimento. Daí a importância de entendermos os conceitos 1 Lei Federal 8.069/90, comumente denominada de ECA. 24 nas suas origens e nos seus desdobramentos, assim como em seus diversos atravessamentos. Para tanto, segue-se uma taxonomia, ou seja, descreve-se, identifica-se, classifica-se e, ademais, apre- senta-se alguma eventual casuística, o que facilitará o desafio de abordar o tema de forma simples e didática, estabelecendo as di- ferenças entre o conceito de pedofilia e o de pedofilização como prática social contemporânea (FELIPE, 2003; 2006). Em relação ao primeiro, cabe considerar que se trata, na atualidade, de um conceito médico-psiquiátrico, embora na sua origem o conceito de pedofilia tenha se vinculado à ideia de amor às crianças. Em primeiro lugar, é preciso resgatar a etimologia da pala- vra pedofilia, para entendermos seu significado. Na sua origem grega, phaidóphilos significa aquele que gosta de crianças (paidós = criança). Dessa mesma origem resulta a pediatria, uma especiali- dade da medicina que estuda as doenças infantis. Puericultura (do latim, puer, pueris = criança), por sua vez, consiste num “con- junto de técnicas que objetiva assegurar o perfeito desenvolvimento da crianças, desde a gestação2”. Portanto, é possível observar que o radical etimológico também serve de base para outras expres- sões, quando traz as definições de pediatria e puericultura. Doutra banda, com uma variação conceitual que foi se cons- tituindo ao longo do tempo pela área médica, a pedofilia passou então a ser caracterizada como “atração sexual de um adulto por crianças”3, acrescentando ao conceito originário um sentimento libidinoso (atração sexual). No mesmo mote, diante da pluralidade vernacular, resta de- finir podofilia (ou podolatria), expressão que, em certa medida, con- funde-se com pedofilia, dado serem vocábulos parônimos. Neste dia- pasão, o podólatra seria aquele indivíduo que sente atração sexual por pés4, também reclamando espaço neste contexto explicativo. 2 Disponível em: <http://.estacio.br/instituto da palavra/palavras.asp#PPP>. Acesso em: 4 nov. 2017. 3 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Disponível em: <https://dicionariodoaurelio.com/pedofilia>. Acesso em: 4 nov. 2017. 4 Disponível em: <https://www.priberam.pt/dlpo/podólatra>. Acesso em: 4 nov. 2017. IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 25 A discussão da pedofilia no campo da Educação A podofilia, como qualqueroutro comportamento, pode ser diagnosticada a partir de uma tênue linha divisória entre o aceitável e o inaceitável, ou seja, não é anormal gostar de pés, assim como não é um problema gostar de crianças. No entanto, o exagero, a obsessão e o desejo incontido ultrapassam o marco divisório entre o que se considera normal e/ou patológico em uma determinada cultura, em um dado tempo histórico. Ainda que o foco do presente artigo seja dissecar o tema da pedofilia, estabelecendo ainda as diferenças conceituais entre pe- dofilia e pedofilização como prática social contemporânea, cabe pontuar que existem outros tantos comportamentos considerados perversões, transtornos sexuais ou parafilias (expressões sinônimas) que são estudadas pela Medicina Legal, no capítulo mais conhecido como Sexologia Forense5. Quando se debruça sobre o histórico dos conceitos e do que, em cada cultura, foi/é considerado aceitável ou não, ver-se- ão interessantes transformações. É preciso analisar como se de- ram tais mudanças, pois determinados comportamentos, antes vistos como corriqueiros e normais, a partir de um dado momen- to podem ser entendidos como danosos e passíveis de sanções, como no caso da pedofilia. As palavras – e os conceitos – apresentam-se de forma di- nâmica. O contrário também acontece. Comportamentos antes tidos como doentios podem ser aceitos com o passar do tempo, como foi o caso da homossexualidade, do sexo anal, entre outros. Os conceitos sempre escapam e não dão conta da complexidade dos sujeitos. No entanto, é preciso considerar que, em se tratando de crianças, a relação entre elas e os adultos será sempre uma relação de poder, e, não raro, os adultos se aproveitam da situa- ção de fragilidade e inocência infantil para dela tirar proveito. 5 Com o intuito de despertar a curiosidade no leitor, citam-se os mais comuns entre tantos comportamentos, taxiologicamente classificados assim, segundo os manuais de Medicina Legal: anafrodisia; frigidez; erotismo; autoerotismo; anorgasmia; erotomania; frotteurismo; exibicionismo; narcisismo; gerontofilia ou cronoinversão; dolismo; donjuanismo; pedofilia; riparofilia; necrofilia; mi- xoscopia ou voyeurismo; lubricidade senil; fetichismo; vampirismo; bestialis- mo; sadismo; masoquismo, etc. 26 Pedofilização como base para a cultura do estupro O conceito de pedofilização como prática social contem- porânea começou a ser utilizado por Jane Felipe em 2002, a par- tir de dois desdobramentos. O primeiro deles chamava atenção para o fato de termos leis de proteção à infância e adolescência (ECA, 1990) e por outro lado convivermos com o estímulo cons- tante à erotização dos corpos infantis e juvenis, como se dissésse- mos: desejem esses corpos, vejam como eles podem ser desejá- veis. Dentro de uma sociedade de espetacularização do corpo e da sexualidade, em que a lógica do consumo se faz presente em todas as esferas, nada como visibilizar também os corpos infanto- juvenis. Portanto, o conceito de pedofilização surge não como sinônimo de doença, mas procura analisar e entender a dinâmica dessas contradições sociais em torno da erotização dos corpos infantis em sua complexidade. No campo da cultura, essa exposição dos corpos infantis, em especial os corpos femininos, são colocados como objetos de desejo e consumo. Através da mídia, da moda, da publicidade, da TV, é possível observarmos tal movimento, interferindo, assim, nas formas de se vestir, de se maquiar, de andar e de se comportar das meninas. Por outro lado, o segundo aspecto do conceito de pedofilização se refere à exploração do universo “infantil” como potencialmente erótico, em que a infância tem sido usada como fetiche para a temática de sedução. Dessa forma, objetos caracte- rísticos do mundo infantil são acionados como cenários erotiza- dos (ensaios fotográficos sensuais de modelos usando bichinhos de pelúcia, uniformes colegiais, brinquedos, etc.). Mais recentemente, a partir das discussões sobre o primei- ro assédio, o conceito de pedofilização pode ser entendido em seu terceiro desdobramento, a saber: a pedofilização pode funcio- nar como preparação, uma espécie de preâmbulo para o assédio e o abuso/violência e exploração sexual. Ou seja, uma vez que a pedofilização está calcada na erotização dos corpos infantis, po- demos dizer que ela alimenta e alicerça esse processo, banalizan- do e naturalizando o assédio sexual. IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 27 A discussão da pedofilia no campo da Educação De acordo com o código penal brasileiro, a violência sexual é definida como uma ação na qual uma pessoa, em situação de poder, obriga uma outra à realização de práticas sexuais, contra a vontade, por meio de força física, influência psicológica, uso de armas ou drogas. Ex.: jogos sexuais, práticas eróticas impostas a outros/as, estupro, atentado violento ao pudor, sexo forçado no casamento, assédio sexual, pornografia infantil, voyeurismo, etc. As estatísticas trazem dados alarmantes, mostrando que em 2011, por exemplo, 10.425 crianças e adolescentes foram vítimas de violência sexual e que de todas elas cerca de 83,2% eram do sexo feminino. A maior incidência ocorreu na faixa etária dos 10 aos 14 anos (23,8 notificações/100 mil crianças e adolescentes), segundo o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN/MS). Entre a faixa etária dos 15 aos 19 anos, 93,8%. Foram 16,4 atendimentos para cada 100 mil casos (WAISELFISZ, 2012, p. 70). Tais comportamentos de abuso e violência contra crianças e adolescentes precisam ser entendidos a partir de uma construção histórica, social e cultural, promotora de desigualda- des por conta de uma cultura machista que acaba por naturalizar tais comportamentos. Portanto, é necessário discutir e entender essas nuances entre o que se compreende como pedofilia e pedo- filização (MACEDO; FELIPE, 2016; FELIPE, 2003). Pedofilia versus crime: breve histórico Retomando o assunto polêmico pedofilia versus crime, no Brasil a questão toma especial dimensão a partir de uma altera- ção ocorrida no Código Penal de 1940, que cria o tipo penal de- nominado estupro de vulnerável6, ou seja, aquele que mantiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 6 Cf. Lei Federal 12.015 de 2009: Art. 3º O Decreto-Lei nº 2.848, de 1940, Códi- go Penal, passa a vigorar acrescido dos seguintes arts. 217-A, 218-A, 218-B, 234-A, 234-B, e 234-C: “Estupro de vulnerável – Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. […]”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2-10/2009/ Lei/L12015.htm#art3>. Acesso em: 5 nov. 2017. 28 14 anos7 responderá judicialmente pelo crime acima referido. No entanto, antes da vigência da atual alteração no supracitado códi- go, aquele que mantivesse relações sexuais com uma criança “não maior de 14 anos”8, presumia-se pela violência e, via de conse- quência, a conduta havida, ainda que consentida, era considera- da criminosa. Dito de outra forma, todos aqueles que mantives- sem relações sexuais com um/uma “não maior de 14 anos” en- quadravam-se na violência presumida em razão da imaturidade da vítima, que seria incapaz de entender o caráter do ato de libe- ralidade praticado, não podendo, portanto, assumir a responsabi- lidade de sua decisão, salvo se esta imaturidade fosse provada- mente desconsiderada em razão de dados sociais que indicassem ser a vítima de vida considerada como desregrada e aparentasse fisicamente uma idade superior àquela protegida pela norma9, com isso levando a engano o parceiro. A hermenêutica jurídica funcionava conjugando os elemen- tos definidores de dois dispositivos penais. De um lado, o crime de estupro, que à época se definia como “ter conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça”, e, do outro lado, a regra da violência presumida, ou seja, manter relações sexuais com um/ uma “não maior de 14 anos”. Ao cotejar as duas normas penais, chegava-seao crime de estupro ou atentado violento ao pudor, ambos por violência presumida. Caso não ocorresse este artifício legal, a criança que consentisse na prática do ato sexual corrobo- 7 A expressão “menor de 14 anos” é adotada pelo Código Penal brasileiro. Opor- tuno salientar que o Estatuto da Criança e Adolescente define criança a partir do nascimento até os 12 anos. Portanto, a partir dos 12 anos e 1 dia até os 18 anos o destinatário da norma é definido como adolescente. 8 A expressão jurídica era utilizada para definir a idade em que se considerava o menor protegido, ou seja, do nascimento até o dia do aniversário. Dito de outra forma, caso o ato sexual fosse mantido no dia seguinte ao aniversário, o menor já não se enquadrava na proteção legal. 9 A jurisprudência à época solidificou o seguinte entendimento: se a vítima, ain- da que menor de 14 ano, tivesse uma prática sexual considerada “desregrada”, aparentando uma idade superior à protegida pela norma, poderia levar o agres- sor ao engano (por considerar a vítima mais velha). Desse modo os juízes pode- riam não condenar o agressor. IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 29 A discussão da pedofilia no campo da Educação raria o fato lícito e, portanto, crime algum ocorreria. À época da vigência do referido dispositivo era possível, também por autorização legal, que ocorresse extinção da punibi- lidade se a vítima casasse com o autor do crime. Atualmente esta exegese jurídica não mais existe, pois, como já referido acima, ocorreu uma alteração no Código Penal Brasileiro que criou a figura do estupro de vulnerável. Para além desta novidade legal, também foi revogado o crime de atentado violento ao pudor (AVP), sigla que usarei em substituição à expressão jurídica que antes era uma figura típica autônoma e se definia como “qualquer ato libi- dinoso diverso da conjunção carnal”, passando a compor os ele- mentos nucleares do crime de estupro. Assim, na anterior estrutura, no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, existiam dois crimes autônomos, estupro e AVP, que atualmente foram agrupados em única figura típica legal, a saber, no crime de estupro. Neste diapasão, define-se atualmente o crime de estupro como constranger alguém a ter conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça à pessoa10. Em apego à boa informação, cabe esclarecer a alteração no elemento nuclear do tipo penal estupro, portanto, acrescentando em sua estrutura os elementos que configuravam o crime de AVP, com o escopo de consertar uma grave anomalia entre as duas fi- guras típicas (estupro e AVP), o que ocorria quando a vítima, em razão da ação sexual, restava grávida e tinha o consentimento legal (portanto, exclusão da ilicitude) para a prática do aborto (numa melhor terminologia: abortamento). A teratologia legal ocorria, pois a vítima de estupro podia obter um consentimento legal para o abortamento, mas a vítima de AVP não gozava de tal beneplácito jurídico. Com a junção dos 10 Cf. Lei Federal 12.015, de 2009: “Estupro. Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso. [...]”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017. 30 elementos nucleares dos tipos penais em apenas um, conserta-se tal escatologia legal que antes lançava mão de uma técnica de integração da norma penal denominada “analogia in bonam par- tem”, ou seja, onde há a mesma razão, há o mesmo direito; logo, se a vítima do estupro tinha autorização legal para a manobra abortiva, a vítima do AVP também deveria ser beneficiada, ainda que não existisse norma para o segundo caso. Não fazia sentido que uma vítima de estupro pudesse ter acesso à autorização legal para o abortamento e a vítima de AVP não gozasse do benefício, porquanto assim seria duplamente violentada: uma vez pelo cri- minoso e outra vez pela legislação leniente. Pedofilia: uma categoria médica É preciso retomar o assunto sensível já iniciado nos pará- grafos anteriores de que o pedófilo não é necessariamente um cri- minoso. Parte-se da ideia de que pedofilia é uma categoria de aná- lise psiquiátrica e que seu diagnóstico demanda a avaliação de um profissional especialista, que atestará a patologia. Isso não implica necessariamente que, ao ser diagnosticado como tal, ime- diatamente já passe à categoria jurídica de criminoso. O sujeito pode viver toda sua vida sendo pedófilo, isto é, desejando sexualmente crianças, e nunca praticar quaisquer das condutas descritas no Código Penal Brasileiro, assim como no ECA. Portanto, não necessariamente o pedófilo será um crimino- so, uma vez que nem todos praticam o abuso sexual contra crian- ças. Relembrando que a definição de pedofilia se refere ao “adul- to que sente atração sexual por uma criança”. A partir deste gatilho conceitual, é possível afirmar que o sujeito pode sentir atração sexual por crianças durante toda sua vida e nunca ter com elas qualquer atividade sexual que configure os tipos penais definidores em nossa legislação. Também o con- trário é verdadeiro: o sujeito pode não ser diagnosticado como pedófilo e ter contato sexual com crianças, incidindo nas figuras típicas penais previstas no sistema jurídico brasileiro. Em síntese, a pedofilia está tipificada no campo médico como um transtorno IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 31 A discussão da pedofilia no campo da Educação mental, uma parafilia, em que o sujeito sente atração sexual por crianças, mas que não implica necessariamente praticar ações ti- das e havidas como crime. Em muitos casos, tais indivíduos assim o fazem por uma ques- tão de oportunidade e machismo, entendendo que o corpo infantil, em especial o corpo feminino, pode ser utilizado a seus serviços. São sujeitos que se relacionam sexualmente com pessoas adultas, mas também se aproveitam da fragilidade infantil para obter favo- res sexuais. Cabe lembrar que a maioria dos abusos sexuais contra crianças ocorre dentro de casa, ou por pessoas próximas à família. Segundo dados estatísticos divulgados pelo Disque 100 em maio de 2016, quase 18 mil crianças podem ter sido vítimas de abuso sexual em 2015, o que daria uma média de mais de 50 crianças por dia. Foram registradas, ao longo de 2015, 80.437 de- núncias sobre abuso sexual, negligência e violência psicológica. As maiores vítimas eram meninas, em torno de 54%, na faixa etária de 4 a 11 anos (40%), crianças negras/pardas (57,5%). De acordo com o Centro de Estudos das Relações de Tra- balho e desigualdades, trata-se de um problema mundial, pois, segundo os dados do Conselho da Europa, “uma em cada cinco crianças é vítima de algum tipo de violência sexual (abuso na pró- pria família, pornografia e prostituição infantil, solicitação pela internet), sendo que, em 70% a 85% dos casos, a criança conhece e confia na pessoa que pratica esse abuso11”. No sentido de reforçar o argumento acima explanado, é preciso lembrar que, para se configurar um crime12 no sistema jurídico penal brasileiro (legal, doutrinário e jurisprudencial), três 11 <https://www.ceert.org.br/noticias/crianca-adolescente/12347/50-criancas- por-dia-sofreram-violencia-sexual-em-2015-no-brasil>. 12 BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método entimemático. Coimbra: Almedina. 2012, p. 26-27, in verbis: “A dogmática penal é sustentada através de três grandes pilares: a teoria da pena, a teoria do crime e a teoria da lei penal. A teoria do crime, entretanto, é a que mais se desenvolveu com vistas a conferir cientificidade ao direito penal. [...] A teoria do crime confere cientificidade para o direito penal porque ela representa um método. Com efeito, caberá à teoria do crime construir um arcabouço conceitual para que a açãoseja convertida em delito; portanto, ao 32 elementos são exigidos13 14: primeiro, que seja o fato típico; se- gundo, que seja ilícito; terceiro, que haja culpabilidade15. Para fins de esclarecer com maior propriedade o argumen- estabelecer esquemas conceituais necessários para a qualificação do compor- tamento (como um crime) ela é um método. Porém, o método da teoria do crime não esgota o direito penal. É que a consequência (pena), que necessita logicamente de uma causa (crime), é conceitualmente distinta da sua causa. Assim, é necessário um método diverso para a aplicação da pena, que será o método limitador da violência aplicada a um sujeito por este ramo do direito. Este segundo método traduzirá a aplicação concreta do tipo penal, o qual traz a descrição do comportamento proibido associado a uma pena, em uma sen- tença” [Grifo nosso]. 13 Parte da doutrina se controverte quanto aos elementos estruturantes do crime, ou seja, parte da doutrina adota o critério tripartite e outra parte adota o crité- rio bipartite (cf. MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal Esquematizado Parte geral. v. l, 4. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2011, p. 175-177). 14 Conforme se verifica na doutrina, sem entrar na discussão de qual critério é mais correto, eis como se define: “Aspecto analítico: é aquele que busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais do crime. A finalida- de deste enfoque é propiciar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador e intérprete desenvolva seu raciocínio em etapas. Sob esse ângulo, crime é todo fato típico e ilícito. Dessa maneira, em primeiro lugar deve ser observada a tipicidade da conduta. Em caso positivo, e só neste caso, verifica-se se ela é lícita ou não. Sendo o fato típico e ilícito, surge a infração penal. A partir daí é só verificar se o autor foi culpado ou não pela sua prática, isto é, se deve ou não sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu. (Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de Direi- to Penal parte geral, vol. I (arts. 1º a 120). 7. ed. rev. e atual. de acordo com as leis 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) 10.763/2003 e 10.826/2003. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 106.). 15 Welzel “dizia que a metodologia sequencial consistia em três estágios. Um sequenciado pelo outro conduz a um alto grau de racionalidade e segurança jurídica, porque o elemento antecedente será pressuposto necessário do ele- mento subsequente: (1º) tipicidade; (2º) antijuridicidade e (3º) culpabilidade.” (WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Bustos Ramirez e Ser- gio Yáñez Pérez. Santiago: Ed. Jurídica do Chile, 1970, p. 79); BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do prin- cípio da legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 134; BRANDÃO, Cláu- dio. Tipicidade penal: dos elementos…, op. cit., 2012, p. 46-48; CAPEZ, Fer- nando. Curso..., op. cit., 2004, p. 106; MASSON, Cleber Rogério. Direito..., op. cit., 2011, p. 177; IZIDRO, Lúcio. Direito Penal Econômico: crime na relação de consumo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 59-60; IZIDRO, Lúcio. Do Direito Penal Clássico ao Direito Penal Econômico: perspecti- vas de um giro epistemológico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 16-18. IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 33 A discussão da pedofilia no campo da Educação to, cabe considerar a definição de fato típico16: todo fato material que se amolda com perfeição aos elementos conduta, resultado, nexo causal e tipicidade (cf. art. 13 e seguintes do CP/40)17. Des- taca-se desta definição o elemento conduta, que se configura a partir de uma hermenêutica legal como sendo “toda ação ou omissão humana, consciente, voluntária, exteriorizável, dirigida a uma finalidade”18. Ora, se uma conduta criminosa exige exteriorização, ou seja, se é preciso desenclausurar seus desejos do universo das ideias para o mundo fático, cabe então perguntar: é possível um sujeito diagnosticado como pedófilo, mas que nunca pôs em prática seus desejos e atrações sexuais, ser considerado um criminoso? A res- posta é negativa, pois para que um pedófilo seja considerado crimi- noso é exigência do Código Penal brasileiro que preencha os ele- mentos estruturantes do fato típico (para além de não ser ilícito e de que não haja culpabilidade), mais precisamente: que exteriorize seus desejos em atos tipificados. Aliás, não só o diagnosticado pe- dófilo, mas todos, transtornados ou não, devem preencher os ele- mentos edificantes do crime para serem responsabilizados. A seguir, apresenta-se mais uma definição e um questiona- mento. O terceiro elemento do crime19 é a culpabilidade e uma de suas definições é ser “pressuposto para aplicação da pena”20, sen- do seus elementos edificantes: 1. imputabilidade; 2. potencial cons- 16 CAPEZ, Fernando. Curso..., op. cit., 2004, p. 108; MASSON, Cleber Rogé- rio. Direito..., op. cit., 2011, p. 209. 17 BRASIL. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e dá outras providências. Presidência da República: Art. 13: O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputá- vel a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017. 18 CAPEZ, Fernando. Curso..., op. cit., 2004, p. 108; MASSON, Cleber Rogé- rio. Direito..., op. cit., 2011, p. 213. 19 Filia-se, neste trabalho, a doutrina que entende ser a culpabilidade um dos elementos do crime, adotando assim o critério tripartite. 20 Implica dizer que só há punibilidade se presente estiver a culpabilidade. Cf. CAPEZ, Fernando. Curso…, op. cit., p. 280. 34 ciência da ilicitude; 3. exigibilidade de conduta diversa. Destaca- se o elemento imputabilidade que, segundo preceitua o art. 26 do Código Penal brasileiro21, é definido como “capacidade de enten- der uma conduta e determinar-se conforme esse entendimento”. Sendo a pedofilia um transtorno mental de possível diagnóstico psiquiátrico, que pode ter eliminada sua imputabilidade, ou seja, capacidade de entendimento e de se determinar conforme esse entendimento, é dirigida a ele punição ou tratamento? Se a res- posta for positiva para tratamento, o pedófilo que provar, através de perícia, que agiu sem entendimento ou autodeterminação, não restará punido, pois, como já comentado anteriormente, a falta do elemento imputabilidade22 faz cessar a culpabilidade, sendo esta última um pressuposto de aplicação da pena; inexistindo a culpabilidade, restará, por silogismo dialético, a não punibilida- de, ou seja, a aplicação de sanção penal, mas sim de uma medida de segurança23. Feitas algumas considerações no sentido de demonstrar o quão intrincado é o universo jurídico, sobretudo no tocante à ciência penal, o certo é que no Brasil, desde 2008, vêm se imple- mentando na legislação formas de combate ao comportamento pedófilo. Tal combate se estabelece com as redações alteradas em alguns artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim 21 Cf. Código Penal brasileiro de 1940: Inimputáveis. Art. 26 É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retar- dado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Disponível em: <https:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017. 22 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso…, op. cit., p. 289ss. 23 Cf. Código Penal brasileiro de 1940: Das Medidas de segurança. Art. 97 Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, toda- via, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz sub- metê-lo a tratamento ambulatorial. (Redação dada pela Lei nº 7.209,de 11.7.1984). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto- Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017; CAPEZ, Fernando. Curso..., op. cit., 2004, p. 400ss. IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 35 A discussão da pedofilia no campo da Educação como, em 2009, no Código Penal brasileiro, fruto de Tratados e Convenções que o Brasil subscreveu. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança prevê, em seu artigo 19, a obrigação dos Estados quanto à adoção de medidas que protejam a infância e a adolescência do abuso, ameaça ou lesão à sua integridade se- xual. O Brasil aprovou a convenção pelo Decreto 99.710, de 11/ 12/199024. No sistema jurídico brasileiro, a pedofilia não configura um tipo penal; na verdade, como já dito acima, esta é uma categoria ou um termo médico. Trata-se de uma parafilia, doença cataloga- da pela Organização Mundial de Saúde25. Considerando que no Brasil não há um tipo penal específi- co que defina a pedofila como crime, ao se verificar comporta- mentos tidos como tais, caberá ao operador do direito cotejar a 24 BRASIL. DEC 99.710/1990 (Decreto do Executivo) de 11/21/1990. Presi- dência da República: Art. 17. Os Estados Partes reconhecem a função impor- tante desempenhada pelos meios de comunicação e zelarão para que a criança tenha acesso a informações e materiais procedentes de diversas fontes nacio- nais e internacionais, especialmente informações e materiais que visem a pro- mover seu bem-estar social, espiritual e moral e sua saúde física e mental. Para tanto, os Estados Partes: a) incentivarão os meios de comunicação a difundir informações e materiais de interesse social e cultural para a criança, de acordo com o espírito do artigo 29; b) promoverão a cooperação internacional na produção, no intercâmbio e na divulgação dessas informações e desses materiais procedentes de diversas fon- tes culturais, nacionais e internacionais; c) incentivarão a produção e a difusão de livros para crianças; d) incentivarão os meios de comunicação no sentido de, particularmente, con- siderar as necessidades linguísticas da criança que pertença a um grupo mino- ritário ou que seja indígena; e) promoverão a elaboração de diretrizes apropriadas a fim de proteger a criança contra toda informação e material prejudiciais ao seu bem-estar, tendo em conta as disposições dos artigos 13 e 18. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/ D99710.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017. 25 Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS), o item F65.4 define a pedofilia como: o foco para- fílico da Pedofilia envolve atividade sexual com uma criança pré-púbere. Dis- ponível em: <http://cid10.bancodesaude.com.br/cid-10-f/f654/pedofilia>. Acesso em: 5 nov. 2017. 36 legislação vigente e, existindo algum correspondente penal, en- quadrar o fato na norma penal, ou dito de outra forma, estabele- cer a subsunção do suporte fático ao suporte jurídico e conse- quentes repercussões legais. Os crimes que podem ser enquadrados nesta parafilia são os previstos no Título VI (Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual) do Capítulo II (Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável) do Código Penal brasileiro, respectivamente, Estupro de vulnerável (incluí- do pela Lei nº 12.015, de 2009) Art. 217-A; Corrupção de meno- res Art. 218; Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) Art. 218-A; e favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (Redação dada pela Lei nº 12.978, de 2014) Art. 218-B26. Outra significativa alteração ocorreu no Estatuto da Crian- ça e Adolescente (ECA), com a promulgação da Lei Federal 8.069, de 1990, ocasião em que o Brasil aprovou o Decreto da Conven- ção Internacional sobre os Direitos da Criança. Não se pode olvidar o enorme avanço ocorrido nos dispo- sitivos do ECA, em especial nos arts. 240 e 241. O ponto de cul- minância para esta ação foi a “CPI da Pedofilia”; a partir de tais discussões, o Plenário da Câmara aprovou, no dia 11 de novem- bro de 2008, o projeto de lei 3.773/08, tornando fato típico con- dutas relacionadas à pedofilia na internet, sancionado pelo presi- dente Luiz Inácio Lula da Silva27. Conforme se depreende da lei federal 11.829/08, há um esforço legislativo imenso na direção de combater a pedofilia de forma aparentemente direta, todavia operando transversalmente na parafilia, ou seja, alterando os artigos 240 e 241 do ECA, re- 26 BRASIL. Código Penal e suas alterações legislativas. Presidência da Repúbli- ca. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/ Del2848compilado.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017. 27 BRASIL. Decreto 3.773, de 2008. Presidência da República. Disponível em: <http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/projeto_lei_3773_08.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2017. IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 37 A discussão da pedofilia no campo da Educação crudescendo o combate à produção, venda e distribuição de por- nografia infantil, passando a configurar crime a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na in- ternet. O aumento de condutas recém-configuradas como crime e, bem assim, a ampliação dos preceitos secundários (sanção penal) demonstram de forma cristalina a tentativa de combate a esta pa- rafilia, todavia, não é de boa técnica combater um transtorno se- xual tentando aplicar pena. Visa-se ao combate de comportamen- tos contra as crianças, o que não necessariamente é praticado por um transtornado sexual, com diagnosticada parafilia, o que pode até mesmo levar à extinção da punibilidade, desde que comprova- da a imputabilidade, tornando-se portanto o acusado merecedor de medida de segurança28. Em se tratando de legislação ao combate da pornografia infantil na internet, pode-se asseverar que é uma das leis mais avançadas. Todavia, o que chama atenção é como se efetivará tal legislação no plano da eficácia, pois, quando algo é veiculado na rede mundial de computadores, o estrago produzido extrapola a fronteira do controlável, gerando dificuldades no que muito recen- temente no Brasil, via Judiciário, se vem discutindo, modulando e amadurecendo, que é o “direito ao esquecimento”, signatário lógi- co do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e, de forma mais precisa, do princípio da intimidade, privacidade e segredo. Apenas para despertar atenção, no caso da criança que teve suas imagens expostas, sendo obrigada a conviver com tal fato e a reviver as conversas e postagens lançadas na rede mundial de com- putadores, como se deve agir? Haverá formas de controle para garantir o direito ao esquecimento, ainda que se combatam tais ações com a aplicação de severas sanções penais? Para tanto, será sumamente importante uma legislação que 28 BRASIL. Lei Federal 11. 829 de 2008. Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/ L11829.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017. 38 regule as atividades dos provedores de serviços de internet, pois tais provedores disporão de dupla obrigação: primeira, remover o acesso ao conteúdo pornográfico, decorrente das denúncias; e se- gunda, deverão preservar tais conteúdos com o intuito de identi- ficar o(s) autor(es) e/ou partícipe(s) do crime. O desprovimento de uma legislação efetivamente regulatória quanto às atividades dos provedores geraria uma inefetividade da lei no combate à pe- dofilia na internet. De todo o exposto, considerando a complexidade do tema, para além da legislação que inicialmente, nesta primeira dimen- são, propõe combater a parafilia (pedofilia) com o uso de uma legislação penal que não determina ser conduta típica, ilícita e culpável, mas tenta, através de outros tipos penais generalizantes, resolver a violência porque passam as crianças, conclui-se que as ações estão em pleno curso e, em que pese serem tidas e havidas como avançadas, ainda demandam variadas modulações para to- das as idiossincrasias que envolvem o assunto, requerendo dis- cussões mais aprofundadas dos setores de expertise. Enfim, o Brasil e o restante do mundo precisam continuar avançando nos mecanismos de combate, tornando-se cada vez mais especializados, com legislações mais efetivas e eficazes na proteção às crianças, que naturalmente são vulneráveis a ações tão sutilmente elaboradas neste sentido. Sem descuidar de sepa- rar criminosos, merecedores da severidade da lei, dos transtorna- dos sexuais, que se categorizam em doenças psiquiátricas e são dignos de tratamento. Cabe ainda refletir a importância de enten- dermos a complexidade deste tema a partir de inúmeras transfor- mações históricas, sociais e culturais, que através de seus múlti- plos discursos e instituições, têm afetados as concepções que en- volvem as infâncias, as relações de gênero, a sexualidade, os cor- pos e seus desejos. IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 39 A discussão da pedofilia no campo da Educação Referências BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002. BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método entimemático. Coimbra: Almedina. 2012. BRASIL. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, e dá outras providências. Presidência da Repú- blica: Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto- Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017. BRASIL. DEC 99.710/1990 (Decreto do Executivo) de 11/21/1990. Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em: 5 nov. 2017. BRASIL. Lei Federal 8.069, de 1990. Presidência da República. Dispo- nível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 12/11/2017. BRASIL. Lei Federal 12.015, de 2009. Presidência da República: Art. 3º O Decreto-Lei nº 2.848, de 1940, Código Penal, passa a vigorar acres- cido dos seguintes arts. 217-A, 218-A, 218-B, 234-A, 234-B, e 234-C. Dis- ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2-10/ 2009/Lei/L12015.htm#art3>. Acesso em: 5 nov. 2017. BRASIL. Lei Federal 12.015, de 2009. Presidência da República. 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IZIDRO, L.; FELIPE, J. • O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos médicos, jurídicos e culturais 41 A discussão da pedofilia no campo da Educação Problematizando a pedofilia em contexto de midiatização e educação Cristóvão Domingos de Almeida Jackson Ronie Sá-Silva Joel Felipe Guindani Os discursos sobre a pedofilia A pedofilia é um fenômeno sociocultural complexo. Dis- cursos dos mais variados operam para caracterizar essa prática. Medicina, Psiquiatria, Psicologia e Direito são campos tradicio- nalmente autorizados a nominar e traçar o perfil da pessoa que pratica a pedofilia. Casos de pedofilia ocorrem a todo o momen- to: na Internet, na escola, na rua, na família e em outros espaços sociais. O Brasil tem sido constantemente citado pela imprensa internacional como polo de pedofilia. De acordo com um relató- rio divulgado por uma organização não governamental italiana, em 2003, o país apareceu em quarto lugar no ranking mundial de países que têm os maiores índices de casos de pedofilia. A entida- de estrangeira informou ainda que o pódio foi ocupado pelos Es- tados Unidos, Coreia do Sul e Rússia, primeiro, segundo e tercei- ro lugares, respectivamente. Três anos após a divulgação desses dados, o Brasil foi novamente destaque mundial: “[...] o País vol- tou a ficar novamente na berlinda devido à pesquisa feita pelo site nacional Censura, desta vez com um agravante: passou a liderar a lista” (AGÊNCIA NOTISA DE JORNALISMO CIENTÍFICO, 2006, p. 33). Atualmente a mídia tem-se aproximado consideravelmen- te da temática e veiculado informações sobre a pedofilia e o pedó- 42 filo que muitas das vezes não dão conta da complexidade do tema. Geralmente são informações que reforçam representações e ideias estigmatizantes. O indivíduo reconhecido como pedófilo adquire uma marca invariável: tem distúrbio, é doente, é “sem-vergonha e monstro”. Medicina e Direito são chamados para dar a sentença. Será que outros olhares não seriam importantes para a com- preensão desse fenômeno sociocultural? A discussão do tema não deveria ser alargada para outros campos do conhecimento como a Sociologia, a Antropologia e a História? Nossa legislação condena e penaliza a pedofilia. Concor- damos que as práticas de pedofilia são hediondas e devem ser combatidas. Crianças e adolescentes não podem ser objeto de desejo de indivíduos que usam de seu poder para manipulá-los e torná-los objetos sexuais sem sua autorização e consentimento. Também discordamos e desaprovamos as práticas sexuais que se aproveitam da inexperiência, da fragilidade e de diversas situa- ções do universo pueril para conseguir satisfações psicossexuais e, por isso, não somos coniventes com atos abusivos e de opres- são. Reafirmamos que os atos pedofílicos são “[...] práticas sexuais contráriasao ordenamento legal” (LIONÇO; DINIZ, 2009, p. 12). No entanto, acreditamos que esse tema deva ser problematizado a partir de diversos olhares. Para as perguntas “O que é a pedofi- lia?” e “Quem é o pedófilo?” não nos bastam apenas as explica- ções da Medicina e da legislação. Acreditamos que os aspectos socioculturais e históricos são fundamentais para nos aproximar- mos do universo complexo da pedofilia. A Agência Notisa de Jornalismo Científico (2006, p. 33) sinalizou para a importância desse debate ao reconhecer que “pou- co foi discutido sobre o pedófilo”. Landini (2004, p. 337), anali- sando a pedofilia e a pornografia infantil a partir de matérias vei- culadas na imprensa escrita, questiona: “como discutir soluções se o problema não é sequer compreendido de maneira adequa- da?”. Acreditamos que a “maneira adequada” para tratar o tema é permitir que outros olhares sejam valorizados na compreensão da pedofilia e do sujeito envolvido em tal ação. Assim, o ensaio ALMEIDA, C. D. de; SÁ-SILVA, J. R.; GUINDANI, J. F. • Problematizando a pedofilia em contexto de midiatização e educação 43 A discussão da pedofilia no campo da Educação bibliográfico que apresentamos buscou compreender a pedofilia a partir de uma visão que congrega vários saberes e conhecimen- tos, dando-se especial atenção ao que é produzido e veiculado pela mídia. Compreendendo as terminologias pedofilia e pedófilo pelas lentes da Medicina Os termos “pedófilo” e “pedofilia” têm sua origem nos radi- cais gregos paîs, paidós (criança) + philos (amigo), e, seguindo a lógi- ca etimológica, pedofilia é “amar, gostar de crianças”, e pedófilo é aquele “que gosta, ama crianças” (TAFARELLO, 2003). O Dicio- nário Aurélio descreve pedofilia como uma patologia no campo das parafilias (perversões sexuais) representada pelo desejo forte e repetido de práticas sexuais e de fantasias sexuais com crianças pré- púberes (FERREIRA, 2008). Baltieri et al. (1999) entendem que a pedofilia é uma anomalia do comportamento sexual caracterizada por repetitivas e intensas fantasias ou práticas sexuais cujo objeto de satisfação são crianças, durando pelo menos seis meses, acome- tendo alguns indivíduos com dificuldade de formação de vínculo e que, em geral, se utilizam de parceiros que não consentem na reali- zação destas fantasias ou práticas. A pedofilia é classificada na prá- tica parafílica como a relacionada ao estímulo ao orgasmo, já que, para a prática da pedofilia, não há, necessariamente, a realização do ato sexual; basta ter pensamentos, fantasias, ou impulsos se- xuais por, pelo menos, seis meses seguidos (BALTIERI et al., 1999). Del Claro (2007) nos informa que a pedofilia se caracteriza como um distúrbio de conduta sexual, em que um indivíduo adulto sente desejo compulsivo, de caráter homo ou heterossexual, por criança ou pré-adolescente. Para o pedófilo, sua fonte de desejo envolve crianças pré-puberes com no máximo 13 anos. Davidson (1996, p. 2) amplia a discussão conceitual ao caracterizar o termo pedófi- lo pelas lentes da Psiquiatria e Psicologia: [...] “pedófilo” é um termo clínico, utilizado para fazer refe- rência a um adulto que possui um desvio de personalidade, envolvendo um interesse específico e focado em crianças pré- 44 púberes. Ainda que a maioria dos pedófilos sejam homens, abusadoras mulheres não são desconhecidas, e por mais que alguns pedófilos tenham um interesse focado em meninas ou meninos, outros não possuem uma preferência consistente por qualquer gênero. A psiquiatra Carmita Abdo (2002) defende o status patoló- gico da pedofilia. Ela nos informa que a epidemiologia da pedofi- lia não é baixa e diz que essa parafilia atinge em média 1% da população mundial, consistindo o distúrbio uma atração exclusi- va por crianças, ou seja: um indivíduo que sente atração por adul- tos e crianças não é caracterizado como pedófilo. Segundo Balti- eri et al. (1999), homens com atração por crianças têm, em geral, baixa autoestima, maiores conflitos sexuais, maior impulsivida- de sexual e menor capacidade de socialização. Del Claro (2007) também enfatiza que esse transtorno ocorre na maioria em homens. Alguns são casados, todos insatisfeitos sexualmente, geralmente portadores de distúrbios emocionais que dificultam um relaciona- mento sexual saudável; sentem-se impotentes e incapazes de obter satisfação sexual com mulheres adultas. Enfatiza também que há vários fatores que potencializam o ato pedofílico como a pobreza, que induz muitos pais a prostituírem os filhos para sobreviver; as migrações e as desintegrações familiares. Entre outros fatores po- demos citar a violência na família, carência afetiva, abuso de substâncias tóxicas, deficiência na educação sexual, experiências sexuais precoces, sentimentos de inadaptação; depressão, fraco po- der de controle de seus impulsos e baixa autoestima. Assim sendo, Del-Fraro Filho (2004) afirma que nas origens do psíquico, antes de qualquer organização ou defesa, encontra-se o trauma. O autor estende a noção de trauma para além do sexual e engloba em cons- trução o castigo físico e a hipocrisia dos adultos sobre uma criança. Há dois tipos de pedofilia, a indireta e direta. A indireta é caracterizada como a necessidade de manter contato físico com a criança que geralmente não percebe o abuso que sofre. A direta é mais efetiva, quando o pedófilo agride, mantém relações sexuais. Existem vários perfis de pedófilos definidos pela Psiquiatria: os abusadores possuem estrutura psicológica vulnerável, sendo ima- ALMEIDA, C. D. de; SÁ-SILVA, J. R.; GUINDANI, J. F. • Problematizando a pedofilia em contexto de midiatização e educação 45 A discussão da pedofilia no campo da Educação turos e inseguros emocionalmente. Para eles, as criança não sig- nificam uma ameaça, por serem facilmente manipuláveis. Eles, por um lado, sentem culpa ao abusar sexualmente de uma crian- ça, e isso desencadeia uma série de outros problemas como de- pressão, alcoolismo e, por vezes, tentam suicídio; os molestado- res apresentam traços de perversidade e chegam à prática da vio- lência sexual. Eles não têm consciência do mal que fazem às víti- mas e nunca se arrependem dos atos cometidos; a agressão pode ser caracterizada como uma inocente carícia. A Medicina e a Psiquiatria tentam achar alternativas para o tratamento da pedofilia. Substâncias derivadas de progestero- na atuam diminuindo a libido e, desse modo, rompem o padrão de conduta sexual desviada e compulsiva. Para pedófilos envol- vidos em crimes sexuais, é usada, na Europa, a castração. Esse tipo de tratamento nem sempre impede a reincidência dos pedó- filos, pois os abusos sexuais com crianças nem sempre envol- vem a penetração. O abuso de crianças e pré-adolescentes não é condição sine qua non para definir-se o pedófilo. Apenas o molestamento ou a prática sexual não bastam para caracterizar quem pratica a pedo- filia. Pedófilo também é aquele que manifesta desejos sexuais ao pensar em figuras pueris. Landini (2004, p. 323) fala sobre o pra- ticante da pedofilia: [...] não é necessário uma pessoa ter cometido qualquer ato de violência sexual para que seja clinicamente diagnosticada como pedófilo – é possível que essa pessoa mantenha seus desejos sexuais apenas no nível da fantasia. O contrário tam- bém é verdadeiro: nem toda pessoa que comete um ato de violência sexual é um pedófilo, ainda que considerássemos a pedofilia de uma forma mais branda, simplesmente como o interesse sexual por crianças. Isso nos mostra que discutir a pedofilia, enquanto fenôme- no praticado por homens e mulheres, requer compreender os pon- tos de vistas dos vários campos de conhecimento, tendo o cuida- do de avaliar os discursos imbricados na definição do ser ou não pedófilo. 46 Pedofilia e legislação A Lei Federal 10.764, de 12.11.2003, atualizou e alterou al- guns dispositivos do Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/ 90) modificando a estrutura da conceituação legal, passando a pre- ver penas mais severas para alguns crimes contra crianças e adoles- centes.
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