Buscar

Resenha 3 - DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA INTERNACIONAL UM ESTUDO COMPARATIVO DOS SISTEMAS REGIONAIS EUROPEU, INTERAMERICA

Prévia do material em texto

DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA INTERNACIONAL: UM ESTUDO COMPARATIVO DOS SISTEMAS REGIONAIS EUROPEU, INTERAMERICANO E AFRICANO
Com o crescente processo de internacionalização dos direitos humanos desde o pós-guerra, não mais sob o prisma moral e político apenas, mas também sobre o jurídico, torna-se possível a proteção e a defesa dos direitos humanos no plano internacional, com instituições, procedimentos e mecanismos vocacionados à salvaguarda de parâmetros produtivos mínimos afetos à dignidade humana. Na esfera global são adotados tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no âmbito da ONU, que são monitorados por Comitês instituídos pelos próprios tratados. É importante ressaltar, entretanto, a lamentável ausência, até o momento, de um órgão jurisdicional de proteção dos direitos humanos no âmbito da ONU. Desse modo, em virtude da inexistência de uma Corte Internacional de Direitos Humanos, a proteção dos direitos humanos no sistema global restringe-se ao poder da vergonha e do constrangimento da comunidade internacional, destituída de capacidade sancionatória para enfrentar violações de direitos humanos perpetradas pelos Estados. 
No plano global, a justicialização dos direitos humanos operou-se na esfera penal, por meio da criação do Tribunal Penal Internacional. Diversamente do sistema global, os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, cada qual ao seu modo, têm revelado extraordinárias experiências no campo da justicialização dos direitos humanos, por meio da criação de Cortes de Direitos Humanos, como nos casos europeu, interamericano e africano. 
a) Sistema Europeu
O mais consolidado e amadurecido dos sistemas regionais, o sistema europeu nasce como fruto do processo de integração europeia, como resposta aos horrores e às atrocidades da Segunda Guerra Mundial. A Convenção Europeia de 1951 estabelece um catálogo de direitos civis e políticos, prevendo originalmente a Comissão e a Corte Europeias como meios de proteção. Com o advento do Protocolo nº11 em 1998, alcança-se a máxima justicialização do sistema, com a criação de uma Corte permanente à qual todo e qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos ou ONG passa a ter direto acesso.
A análise do sistema europeu permite apontar 5 conclusões:
1) A primeira delas é que a sólida e consistente integração de Estados europeus, e, sobretudo, o fato de compartilharem dos mesmos valores atinentes aos direitos humanos, democracia e Estado de Direito é fator fundamental para entender o fortalecimento do sistema, sua credibilidade e sua justicialização. A eficácia dos procedimentos internacionais depende do compromisso dos Estados, que é amplo e profundo na Europa;
2) A segunda conclusão se refere ao legado do sistema, que tem se caracterizado por responder a um padrão de conflituosidade concernente a direitos civis e políticos, sob a inspiração do paradigma liberal-individualista. Este legado envolve um rico repertório jurisprudencial, com paradigmáticas decisões sobre o direito à privacidade, à liberdade de expressão, à vida, à igualdade e à não discriminação;
3) A terceira conclusão atém-se a quem acessa o sistema. Dos sistemas regionais, o europeu é o mais democratizado, na medida em que é o único a permitir o acesso direto de indivíduos, grupos de indivíduos e ONGs à Corte Europeia, lembrando que no sistema interamericano tal acesso é restrito à Comissão e aos Estados, e no sistema africano, por sua vez, o acesso à Corte é limitado à Comissão, aos Estados e às organizações intergovernamentais africanas, sendo previsto por meio de cláusula facultativa (a depender de declaração expressa do Estado-parte para tal fim) o acesso de indivíduos e ONGs à Corte Africana. Muitas das decisões paradigmáticas do sistema europeu decorreram de casos submetidos por indivíduos, refletindo o grau de capilaridade do sistema europeu, que conta com o maior conhecimento da população em geral quanto à sua existência e importância;
4) A quarta conclusão refere-se ao impacto das decisões da Corte Europeia, que se tem mostrado extraordinário na região, em virtude da credibilidade da própria Corte, da consistente e sólida rede de cooperação entre os Estados na afirmação dos direitos humanos e do grau de respeito aos direitos humanos no plano interno dos Estados. Acrescente-se ainda a capacidade sancionatória do sistema, seja no plano político - por meio das pressões políticas - seja ainda no plano jurídico, com a possibilidade de que o Estado violador seja expulso ou suspenso do Conselho da Europa;
5) A quinta conclusão remete aos desafios do sistema europeu, concentrados em quatro fatores: a) a capacidade da Corte Europeia de manter sua elevada credibilidade na resposta adequada ao volume de casos que lhe são submetidos; b) a inserção dos países do Leste Europeu no sistema, com suas tradições e acúmulos específicos, representados pelo apego a uma ótica mais coletivista e afeta aos direitos sociais e pela existência de regimes democráticos e Estados de Direito em fase de consolidação; c) o fortalecimento da justicialidade dos direitos econômicos, sociais e culturais; d) o diálogo entre o sistema regional europeu e sua Corte, e a União Europeia e sua Corte (o chamado diálogo entre Strasbourg e Luxemburgo).
Michael O'boyle destaca as quatro razões do sucesso do sistema europeu: A primeira é que a Comissão e a Corte Europeia tiveram êxito em ganhar a credibilidade e a confiança dos Estados (e de suas Cortes Nacionais), apreciando casos de maneira judiciosa e com o apropriado grau de detalhamento e objetividade; A segunda razão é que o sistema nunca se mostrou estanque e tem demonstrado a capacidade de adaptar-se às circunstâncias de mudança; A terceira é que, até tempos recentes, a comunidade de Estados da Convenção era composta por países que compartilhavam das mesmas tradições políticas, ideais, liberdades e do princípio do Estado de Direito, havendo uma visão compartilhada em prol da necessidade de uma implementação coletiva dos direitos humanos; E a quinta razão do sucesso do modelo europeu é que a Convenção Europeia tem impactado a vida política e jurídica dos países da Europa ocidental e tem considerável apoio popular, configurando-se referência para discussões nacionais e contribuindo para a formação de uma consciência pública informada e sensibilizada para essas questões.
b) Sistema Interamericano
Quanto ao sistema interamericano, há que ser compreendido a partir de seu contexto histórico e das peculiaridades da região, a qual é marcada pelo elevado grau de exclusão e desigualdade social, ao que se soma o panorama de democracias em fase de consolidação, reminiscências dos regimes ditatoriais passados, cultura de violência e de impunidade, baixa densidade de Estados de Direitos e precária tradição de desrespeito aos direitos humanos no âmbito doméstico. Nesse contexto que, no pós-guerra, foi elaborada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, em abril de 1948, no âmbito da OEA, antecedendo a própria Declaração Universal de Direitos Humanos. Posteriormente, foi adotada a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1969, que é o instrumento central do sistema regional interamericano. Inspirada na convenção europeia de 1951, prevê um amplo catálogo de direitos civis e políticos, contemplando como meios de proteção a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A análise do sistema interamericano permite apontar 5 conclusões:
1) A primeira é que as fragilidades e insuficiências do sistema revelam, sobretudo, as fragilidades e insuficiências da proteção dos direitos humanos no âmbito interno dos Estados. Além disso, a América Latina sempre se mostrou uma firme defensora dos princípios da soberania e não intervenção, então quando normas afetas à soberania e normas afeta aos direitos humanos conflitam, geralmente as de soberania acabam por prevalecer. A partir da década de 80, entretanto, os regimes regional e global e suas instituições começaram a ter maior aceitação e impacto na América Latina;
2) A segunda conclusão refere-seao legado do sistema, que se tem caracterizado por responder a um grave padrão de conflituosidade concernente a direitos civis, especialmente violações ao direito à vida. Não se vislumbra no universo jurisprudencial da Corte um repertório temático diversificado, tal como ocorre no sistema europeu. Há um continuísmo autoritário que remanesce como desafio a consolidação democrática;
3) A terceira conclusão atém-se a quem acessa o sistema. No campo da jurisdição contenciosa da Corte, os casos lhe foram em geral enviados pela Comissão, sendo que um universo considerável deles veio a partir de denúncias submetidas por ONGs, os quais foram submetidos posteriormente pela Comissão à jurisdição da Corte. Daí se percebe a importância vital da atuação das ONGs e do ativo protagonismo da sociedade civil para o sistema interamericano. As ONGs têm se tornado indispensáveis para o movimento de direitos humanos, em virtude de suas atividades peculiares. Nesse ponto específico, o sistema interamericano se distingue do sistema europeu, cujos frutos têm decorrido em grande parte da atuação de indivíduos. Os instrumentos internacionais constituem uma relevante estratégia de atuação para as ONGs, ao adicionar uma linguagem jurídica ao discurso dos direitos humanos. A ação internacional tem também auxiliado da publicidade das violações de direitos humanos, o que oferece o risco do constrangimento político e moral ao estado violador, conferindo suporte ou estímulo para reformas internas;
4) A quarta conclusão relaciona-se ao impacto das decisões da Corte Interamericana, que se tem mostrado considerável, tanto em virtude da crescente credibilidade da Corte na região como pela capacidade de monitoramento e fiscalização da sociedade civil no que tange ao cumprimento das decisões pelos Estados. Diversamente do sistema europeu – que confia ao Comitê de Ministros a competência para supervisionar o cumprimento das decisões da Corte Europeia -, no sistema interamericano é a própria Corte que tem criado um mecanismo para avaliar o segmento de suas decisões. Ao contrário da Convenção Europeia, a Convenção Americana não estabelece uma sistemática de supervisão dos julgamentos da Corte, prevendo apenas que a Corte deve submeter relatório anual à Assembleia Geral da OEA. Seria interessante reforçar a capacidade sancionatória do sistema interamericano, à luz da experiência do sistema europeu. Deve-se destacar, também, a exitosa experiência da Corte Interamericana em relação a sua competência consultiva - que não sofre as restrições da competência consultiva da Corte Europeia -, consolidando importantes parâmetros interpretativos a respeito do alcance dos direitos da Convenção Americana, com considerável impacto nas ordens jurídicas dos Estados da região, no sentido da harmonização destas à luz dos parâmetros protetivos mínimos;
5) A quinta conclusão remete aos desafios do sistema interamericano, concentrados em 5 fatores: a) a ampliação dos espaços de participação da sociedade civil no sistema interamericano, conferindo acesso direto a indivíduos, grupos de indivíduos e ONGs à Corte; b) o fortalecimento da capacidade sancionatória do sistema, na hipótese de não cumprimento de suas decisões; c) o fortalecimento da justicialidade dos direitos econômicos, sociais e culturais; d) o reforço da dotação orçamentária para o sistema interamericano, dispondo de maiores recursos financeiros e logísticos, para reforçar sua efetividade; e) o maior comprometimento dos Estados com a proteção dos direitos humanos.
c) Sistema Africano
No que se refere ao sistema africano, sua compreensão demanda a apropriação das singularidades e especificidades do continente africano, considerando aspectos como o seu alto grau de heterogeneidade, a autodeterminação dos povos, o respeito às diversidades culturais e às tradições africanas, o combate ao colonialismos e neocolonialismo, os quais são demandas reivindicadas em um contexto de grave conflituosidade interna, que se acentua com as marcas da pobreza, desigualdade e exclusão social, da baixa densidade democrática e da incipiente observância do Estado de Direito.
Foi sob essa perspectiva que, em resposta às violações de direitos humanos da década de 70, adotou-se a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981. A Carta Africana realça identidade própria e uma gramática de direitos humanos e dos povos que em muito a diferencia das Convenções Europeia e Americana. Se estas se apegam ao ideário liberal-individualista na formulação de direitos civis e políticos, a Carta Africana contempla uma agenda de direitos humanos própria, que congrega, ao lado de direitos civis e políticos, os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. A carta endossa, ainda, os direitos dos povos e contempla deveres dos indivíduos em relação à família, à comunidade e ao Estado. 
A análise do sistema africano permite apontar 5 conclusões:
1) Tal como no sistema interamericano, a primeira conclusão é a de que as fragilidades do sistema africano revelam, principalmente, as fragilidades da proteção dos direitos humanos no âmbito interno dos Estados. 
2) Quanto ao legado do sistema africano, até março de 2010 apenas um caso havia sido submetido à Corte, que decidiu não ter jurisdição para apreciá-lo, uma vez que o Estado envolvido não havia reconhecido sua jurisdição. No entanto, assim como ocorre no sistema interamericano, acredita-se no decisivo papel da sociedade civil para fomentar e fortalecer o sistema africano, tendo em vista que são sobretudo as ONGs que têm acessado o direito de petição à Comissão Africana, possuindo as mesmas uma importância vital para a efetividade dos sistemas de proteção dos direitos humanos, especialmente nos sistemas regionais africano e interamericano. 
3) No que tange ao impacto das futuras decisões da Corte Africana, dependerá ele do papel de fiscalização, vigilância e monitoramento da sociedade civil e de suas organizações, tendo em vista, que tal como se observa no sistema interamericano e diferentemente do europeu, o africano não conta com a retaguarda da consistente sólida rede de cooperação entre Estados na afirmação dos direitos humanos, e tampouco conta com elevado grau de respeito aos direitos humanos no plano interno dos Estados;
4) Tal como o sistema europeu, o africano confia ao Conselho de Ministros a competência para supervisionar o cumprimento das decisões da Corte Africana. 
5) A quinta conclusão remete aos desafios do sistema africano, concentrados em 5 fatores: a) a credibilidade e eficácia da Corte Africana, por meio da independência, coragem e criatividade de seus membros, bem como de sua relação produtiva com a Comissão Africana; b) a ampliação dos espaços de participação da sociedade civil no sistema africano, conferindo acesso direto a indivíduos e ONGs à Corte Africana (disposição que é veiculada por meio de cláusula facultativa no Protocolo à Carta Africana); c) a eficácia da capacidade sancionatória do sistema, na hipótese de não cumprimento de suas decisões; d) o reforço da dotação orçamentária para o sistema africano, dispondo de maiores recursos financeiros e logísticos, para reforçar sua efetividade; e) o maior comprometimento dos Estados com a proteção dos direitos humanos. 
O estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano aponta a extraordinários e recentes avanços na afirmação de justiça internacional em matéria de direitos humanos. A análise desenvolvida permite demonstrar a distinta travessia histórica dos sistemas regionais de proteção, cada qual a seu modo a erguer uma plataforma de direitos humanos, sob a marca de suas singularidades e especificidades, na busca de consolidar a justiça internacional. Realça ainda o quanto acesso à justiça internacional no campo dos direitos humanos tem a potencialidade de traduzir avanços no regime de proteção desses direitos no âmbito interno, por meio de reformas legislativas, mudanças em procedimentos e transformações de práticas adotadas pelos Estados.

Continue navegando