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1. Homens e crocodilos O antropólogo contempla o mundo em perspectiva microscópica, mas fustiga seus objetos também com lentes de microscópio, esforçando-se por mostrar “todos” como efêmeros, como não sendo efetivamente “todos”, como consistindo mais apropriadamente totalizações resultantes de operações intelectuais comprometidas com determinados critérios e pontos de vista. “Todos”, são, portanto, totalizações artificiais, fadadas à dissolução quando se abalam os pontos de vista e critérios a partir dos quais foram constituídos. Existe um mundo que é independente do Homem, do qual este é um resultado, uma “modificação”. Falo do homem modificador do mundo, no sentido de inventor: criador do mundo novo, de universos não indiferentes ao homem. A apreensão que os homens têm do mundo é antropocêntrica. Tão antropocêntrica como seria, por exemplo, crocodilecêntrico o universo tal qual figurado por crocodilos. O antropocentrismo é a condição inicial e final de toda relação do homem com o universo. É o ponto de vista a partir do qual inexoravelmente construímos nossos mundos e nossas verdades. O homem não tem acesso ao mundo tal qual é – ao mundo independente das lentes de sua humanidade. É escravo de seus óculos: percebe não o que é, ou parece ser, mas o que transparece por seus cristais. 2. A cultura, as culturas Não existe rigorosamente A Cultura, que é apenas um conceito totalizador, um artifício de raciocínio, mas miríades de culturas, correspondentes à multiplicidade dos grupos humanos e a seus momentos históricos. A Cultura é uma abstração, um artefato de pensamento por meio do qual se faz economia da extraordinária diversidade que os homens apresentam entre si e com o auxílio do qual se organiza e que os homens têm de semelhante. A Cultura é também o que os distingue das demais formas vivas: a capacidade de diferir de seus coespecíficos. Viver em sociedade é de certa forma conhecer e sobretudo obedecer às regras do jogo social. A tarefa do antropólogo seria, por conseguinte, descobrir e decifrar os códigos (vocabulário e gramática) que estruturam a linguagem falada pelos membros de determinada sociedade. Certas sociedades ao invés de marcar como nós, encontros nas esquinas, frequentemente usam determinadas árvores como pontos de referência. Isso se explica, porque na base dessas visões existe uma taxionomia, um sistema de classificações, cujos princípios são postulações específicas das culturas em referência. Os japoneses, por exemplo, têm apenas uma palavra, aoi, para designar a parte do espectro que abrange o verde e o azul. Mas o fato de não fazerem distinção linguística entre elas não significa que não as possam separar se assim quiserem – pois obviamente o fazem através de descrições, comparações e metáforas. Significa apenas que a língua e, de um modo geral, a cultura japonesa não parece exigir essa distinção para os efeitos da vida cotidiana. Cada cultura guardará de maneira específica a acuidade dos órgãos do sentido em contemplação aos limites da base orgânica. Relativismo c l u u t r l a No atual estudo do conhecimento antropológico, não há dúvida de que cada cultura se aproveite dos órgãos dos sentidos para codificar o mundo. Mas seria muitíssimo importante que se observasse que cada sociedade parece codificar os próprios sentidos e as relações entre eles. Entre nós, por exemplo, parece que atribuímos posição hierarquicamente superior à visão: representamos nosso Deus, no alto das igrejas, acima dos altares, por um olho, chamamos a atenção de nossas crianças com um “olha”. Se os canais pelos quais os homens captam informações sobre o mundo exterior estão culturalmente codificados, com muito mais razão podemos compreender que o estejam as categorias intelectuais por intermédio dos quais essas informações são processadas. Boa parte do esforço fundador da escola sociológica francesa, materializada nas contribuições de Durkheim, Mauss e seus seguidores, residiu na demonstração das origens sociais das chamadas categorias de entendimento. Para eles, a noção, como causa, consequência, tempo, espaço, longe de resultarem das experiências singulares dos indivíduos (e posteriori) ou de alguma – preexistência nas mentalidades individuais (a priori), derivariam da experiência dos indivíduos em uma sociedade já organizada por uma lógica da qual essas noções proviriam. As categorias do entendimento seriam, segundo esta perspectiva, simultaneamente a priori e a posteriori: os indivíduos seriam uma tábula rasa, na qual a sociedade escreveria um texto cujas categorias gramaticais já possuísse com antecedência. A consequência disso é que o mundo apareceu antes do Homem (e que deverá desaparecer depois dele) não se limita a ser filtrado e transformado pela lente de nosso antropocentrismo. Todos os homens veem o mundo (aí incluídos os outros homens) também etnocentricamente, isto é, através das lentes de uma cultura específica, das lentes de sua cultura. Sem essas lentes somos inevitavelmente cegos, pois o etnocentrismo é o ponto de vista no qual nossa cultura nos coloca e a partir do qual são possíveis os nossos pensamentos, comportamentos e sentimentos. Poder-se-ia dizer, de certa forma, que compartilhar uma cultura é ser solidário na mesma visão etnocêntrica. 3. O etnocentrismo e sua lógica O etnocentrismo é uma condição universal da humanidade. A maioria das sociedades, no fundo, não aprecia os “estrangeiros” e os “diferentes”, censurando-lhes a maneira de ser e exibindo sentimentos de hostilidade em relação a eles. Compreende-se isso facilmente, pois simbolicamente esta é uma maneira positiva de cada sociedade afirmar para si a própria identidade: “nós somos diferentes do diferente, nós não somos eles”. Por conseguinte, nada há a estranhar no fato de que os homens, que veem o mundo através de sua cultura específica, tenham propensão a considerar o seu modo de vida particular como o mais “correto” e o mais “natural”. Mais do que isto, a experiência da diferença soa muitas vezes como verdadeira monstruosidade, despertando a tendência a repudiar pura e totalmente os preceitos éticos, estéticos, religiosos, gastronômicos, que se afastam daqueles com que nos identificamos e que, aos nossos olhos, nos identificam como “humanos”. A lógica do etnocentrismo consiste fundamentalmente em isolar uma característica da própria cultura e levá-la à condição de definidor de “natureza humana”, parâmetros ao qual os demais seres humanos deverão se ajustar (ou não), com graus diferentes de desconforto. Tal operação se faz sempre de modo a reservar para a cultura classificadora o lugar mais confortável, pois a característica isolada, considerada universal e inevitável, está acima de qualquer discussão. Nas culturas que apresentam tendência a compreender a diferença em termos de desigualdade, esta lógica adquire características mais intensas, estando na base de discriminação hierarquizantes do tipo “superior/inferior”. Isto vale para as teorias evolucionistas e desenvolvimentistas, mas também para os projetos expansionistas e colonizadores em que os “superiores” se sentem autorizados pela própria “superioridade” a interferir nos destinos dos “inferiores”, intervenção esta justificada pelo fato de os “superiores” poderem levar aos “inferiores” – “pobres coitados” – a “verdadeira humanidade”. Não encontramos aí um fundamento plausível para as atitudes racistas, xenófobas, preconceituosos? Nessas situações, é comum encontrarmos algo interessante, que poderíamos chamar de etnocentrismo invertido. Ao invés de colocar-se diante do mundo na posição definida pela sua própria cultura, enxergando-o através de suas próprias lentes,o “inferior”, não as encontrando, prefere de todo modo a lente do “superior”: vê-se então como “realmente inferior” e ao “outro” como “naturalmente superior”, racionalizando, justificando e legitimando a relação de desigualdade. 4. A relativização do etnocentrismo Relativização é o conceito que se designa a atitude intelectual diferente da do etnocentrismo. É o esforço de compreender a significação dos comportamentos, pensamentos e sentimentos do “outro”, nos termos da cultura do “outro”. A relativização é o procedimento antropológico por excelência, concebendo-se a construção histórica da antropologia como a dos progressos na direção da possibilidade de relativizar. 5. O etnocentrismo da relativização Montaigne e Bacon prenunciam critérios diferentes de produção da verdade: por isso, opõem-se em primeiro lugar ao “senso comum” à “opinião pública”, quer dizer, às formas de saber até então vigentes. Não esqueçamos, entretanto, que advogam também uma visão de mundo muito especial, provavelmente inédita, típica de uma sociedade nova: separar espírito e matéria, sujeito e objeto, natural e sobrenatural, leigos e especialistas, verdades de fato e verdades de razão, são procedimentos características de uma determinada cultura, em determinado momento de sua história. São procedimentos “científicos”. Mas também são procedimentos próprios de uma cultura cujo universo simbólico celebra a “racionalidade” como componente da vida cotidiana, de uma cultura que acredita que “tempo”, “espaço”, “causa”, “consequência”, “estrutura”, “organização”, “sistema”, etc. são meios adequados de pensar o mundo, a sociedade e os indivíduos; de uma cultura que encara a vida como uma série de “problemas” que é preciso “resolver” com teorias e métodos adequados, que se superam progressivamente. Assim, o olhar “científico” lançado sobre o mundo não deixa de ser o olhar de uma sociedade específica, através da lente de sua cultura: inapelavelmente etnocêntrico, portanto. Aliás, nada haverá provavelmente de tão etnocêntrico quanto a antropologia e sua relativização: conhecimento que se arvora capaz de constatar e capturar a verdade do “outro”, depois de ter proclamado este “outro” – por não ser científico e ser necessariamente “etnocêntrico” - incapaz de conhecer sua própria verdade, verdade que está, “além”, “por detrás”, “no fundo”, “no inconsciente” do “outro”. Iluminada pela “objetividade”, e pela “neutralidade”, a cultura da ciência (ou a “ciência da cultura”, tanto faz) seria a única capaz de realizar esta proeza. Mais ainda, poderia ter nas mãos uma verdade universal: a nossa própria e a do “outro”. A antropologia e a relativização são uma espécie de luxo que a nossa cultura se oferece: representam a utilização daquilo que uma cultura que se crê superior pensar ter de superior, a ciência, para depois – de ter transformado o outro em objeto (coisa que só ela consegue fazer) – produzir um nivelamento em que, no fundo e na prática, não acredita, e, do alto, proclamar: “não há superior nem inferior”. Essencialmente relativizador, o conceito de cultura permitiu uma compreensão mais aproximada de vários aspectos da organização das sociedades humanas e delineamento de inúmeras linhas de pesquisas. Permitiu livrar o pensamento do determinismo biológico, do determinismo geográfico, do psicologismo, do filosofismo delirante. 6. Do telescópio ao microscópio Considerar a sociedade como sociedade como sistema de comunicação e significação implica torná-la também como sistema de distanciamento e diferenças: qualquer forma de comunicação supõe necessariamente um distanciamento prévio que o ato comunicativo pretende superar. Tal distanciamento é antes de tudo teórico e jamais será abolido pela comunicação: é pré-requisito lógico, sem o qual, a própria noção de comunicação não tem razão de ser. Por exemplo, quando sonho, quando faço anotações em minha agenda, quando escrevo um rascunho, quando amarro um barbante no dedo para não esquecer de algo, existe uma “eu emissor” transmitindo uma mensagem para um “eu receptor”: embora empiricamente possa se tratar de um mesmo e idêntico “eu”, cada um desses “eus” é uma entidade teoricamente diferente. Quando formular seu conceito de “ideologia”, Marx, entre outras coisas, tinha em mente o fato importantíssimo de que a apreensão intelectual e afetiva que os indivíduos tinham da sociedade em que viviam estava relacionada com a posição particular que nela ocupassem, posição que lhes ditaria um ponto de vista específico. • Resenha Uma característica do mundo contemporâneo é que existem sociedades com a capacidade extraordinariamente desenvolvida de produção de símbolos, signos, mensagens de comunicação, enfim, sociedades que são desenvolvidas em termos de produção de símbolos. Por outro lado, existem sociedades com dificuldades de continuar viabilizando a sua própria cultura, os seus próprios símbolos. São sociedades que mal conseguem continuar a veicular e produzir, por exemplo, as suas próprias músicas. Quando se coloca sociedades que têm dificuldade de produzir o seu próprio simbolismo ao lado de sociedades que têm essa inflação de produção simbólica, a sociedade deficitária vai impactar o simbolismo de sociedades que têm essa inflação de produção. Essas sociedades deficitárias vão se identificar cada vez menos consigo mesmas, e a dor disso será suportável, até desaparecerem. A ideia da sociedade como sistema de significação é de que as relações sociais são próprias de mensagem e de que cada mínimo detalhe pode carregar informação sobre as intenções e o lugar das pessoas nela. A ideia da sociedade como um sistema de significação quer dizer que tudo nela tem sentido. Aqueles que estão fora da sociedade, supostamente excluídos, os prisioneiros, por exemplo, de certa maneira são parte integrante dela, porque significam o oposto do que ela deve ser. Antropologia e comunicação José Carlos Rodrigues Relativização Cultural 2020.1 – 1° período Professor: Antônio Carlos Rafael Barbosa
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