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A-PDF Merger DEMO : Purchase from www.A-PDF.com to remove the watermark 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Reitor Aloisio Teixeira Vicc-Reitom S}'lvia Vargas Coorde1tc1dom do Fomm de Ciência e C1dtt1ra Beatriz Resende Editora UFRJ Diretor Carlos Nelson Coucinho Coordenadora de Ediçiío de Texto Lisa Sruart Cooi·de11"dor" de Prod11çào ]anise Duacce Conselho Editodal Ca.dos Nelson Coutinho (presidente) Charles Pcssanha Diana Mau! de Carvalho José Luís Fio ri José Paulo Netto Lean(/rq Koi1der Virgínia Fontes CLIFFORD GEERTZ ◊ ◊ ◊ OBRAS E VIDAS O antropólogo como autor Tradução Vera Ribeiro 3ª edição EnrroM UFRJ 2009 http://www.a-pdf.com ◊ capítulo 1 ESTAR LÁ A antropologia e o cenário da escrita J\ ilusão de que a etnografia é uma questão de dispor fatos estranhos e irregulares em categorias familiares e orde- nadas - isto é magia, aquilo é tecnologia - foi demolida há muito tempo. O que ela é, entret,wto, não está mlÚto claro. Que talvez a etnografia seja uma espécie de escrita, um colocar as coisas no papel, é algo que tem ocorrido, vez por outra, aos que se empenham em produzi-la, consumi-la, ou ambas. Mas seu exame como tal tem sido impedido por diversas con- siderações, nenhuma das quais é muito razoável. Uma delas, de peso especial entre os produtores, tem sido, simplesmente, a de que fazer esse exame é antiantropo- . ' lógico. O que um etnógrafo propriamente dito deve fazer, propriamente, é ir a lugares, voltar de lá com informações sobre corno as pessoas vivem e tornar essas informações dis- poníveis à comunidade especializada, de uma forma prática, em vez ele ficar vadiando por bibliotecas, refletindo sobre Ç, OBRIIS E VIDAS guestôes literárias. A preocupação exagerada - 9ue, na prática, costuma significar qualquer preocupação - com a maneira como são construídos os textos etnográficos parece constituir um ensimesmamento doentio, conducente à perda de tempo, na melhor das hipóteses, ou hipocondríaco, na pior delas. O gue nos importa conhecer são os tikopianos e os talensis, e não as estratégias narrativas de Raymond Firth ou o aparato - - - - ---·· - retórico de Meyer Fortes. Outra objeção, esta proveniente sobretudo dos consu- midores, é a de que os te:xtos de antropologia não são dig11os dessa atenção esmerada. Uma coisa é investigar como um Conrad, um Flaubert ou até um Balzac obtêm seus efeitos; inves6r muna empreitada dessas a respeito de um Lowie ou um Radcliffe-Brown, para falar apenas dos mortos, parece cômico. Alguns antropólogos - Sapir, Benedict, Malinowski e, ultimamente, Lévi-Strauss - podem ser reconhecidos como dotados de um estilo literário singular, não se acanhando em usar uma ou outra figura de linguagem ocasional. Mas isso é inusitado e um tanto prejudicial para eles - sugestivo até de uma prática ardilosa. Os bons textos de antropologia são sim- ples e despretensiosos. Não convidam a uma minuciosa leitura literocrítica, nem tampouco a recompensam. Talvez a objeção mais vigorosa, no entanto, proveniente ele toda parte e, a rigor, bastante generalizada na vida inteJec- tual dos últimos tempos, seja a de que concentrar nosso olhar nas maneiras como são enunciadas as afirmações de mn saber solapa nossa capacidade de levar a sério qualquer dessas afir- mações. De algum modo, supõe-se que atentar para coisas como imageria, as metáforas., a fraseologia ou a voz leva a um relativismo corrosivo, no 9ual tudo não passa de uma ex- o 12 ◊ ESTAR LA Ç> pressão mais ou menos sagaz de opiniôes. A etnografia, dizem, torna-se um mero jogo de palavras, como se presume gue sejam os poemas e os romances. Expor de que modo a coisa é feita ec.1uivale a sugerir que, tal como a mulher serrada ao meio, ela simplesmente não se faz. Essas concepções são irrazoáveis, porque não se baseiam ------..,~xpt;.Úêr.icia-de.ameaças presentes-e-efcciv.as,-ou-que seqner estejam assomando, mas em imaginar as possíveis ameaças gue ocorreriam se, de repente, tudo fosse diferente do gue é ago- ra. Se os antropó.logos parassem de informar como são feitas as coisas na África e na Polinésia, se, em vez disso, gastassem seu tempo tentando encontrar tramas duplas em Alfred I<roe- ber ou narradores não fidedignos em Max Gluckman, e se viessem seriamente a afu:mar que as histórias de Edward Wes- termarck sobre o Marrocos e as de Paul Bowles relacionam- se com seu te1na do mesmo modo, com os mesmos recursos e as mesmas finalidades, as coisas realmente ficariam numa situação lamentável. Mas é difícil acreditar que tudo isso viria a ocorrer, se a escrita antropológica fosse levada a sério como escrita. As raízes do temor devem estar noutro lugar: talvez no sentido de 9ue, se houvesse um entendimento melhor do caráter li- terário da antropologia, alguns mitos profissionais sobre como ela consegue ser persuasiva tornar-se-iam insustentáveis. Em particular, talvez fosse difícil defender a visão de gue ;os textos etnográficos convencem, na medida em gue chegam á ser con- vincentes, pelo simples poder de sua substancialidaqe factual. A ordenação de um imenso número de detalhes culturais su- mamente específicos tem sido a principal maneira pela qual a aparência de verdade - a verossinúlhança, a vraisemblance, a o 13 ◊ ◊ OBRAS É VIDAS ESTAR LÁ ◊ U::-'ahrscheinlichkeit - é buscada nesses textos. Qualquer dúvida foi uma torre imponente como poucas, está basicamente em induzida no leitor pela estranheza do material deve ser supe- núnas, mas ele continua a ser o supra-sumo do etnógrafo. A rada por sua simples abundância. Mas a verdade é cp.ic o grau qualidade algo ultrapassada que hoje parecem ter as espe- de credibilidade, alto, baixo ou de outra natureza, efetivamen- culações psicológicas e de cultura-e-personalidade formuladas te conferido à etnografia de Malinowski, Lévi-Strauss ou qual- por Mead (Balinese character foi financiado por uma verba des- quer outro não se assenta, ao menos não primordialmente, tinada ao estudo da demência precoce, que os balineses supos- nessas bases. Se assim fosse,]. G. Frazer, ou pelo menos Oscar __________ ta_r_n_e_nte exibiriam numa forma ambulante) não parece retirar Lewis, seria de fato um rei, e seria inexplicável a suspensão grande coisa do poder de convicção de suas observações, das- - da descrença que muitas pessoas (inclusive eu) concedem aos quais nenhum de nós fica à altura, sobre como são os bali.neses. Sistemas políticos da alta Birmânia, de Edmund Leach, com sua Ao menos uma patie do trabalho de Lévi-Strauss sobreviverá pobrez.a de dados, ou ao ensaio impressionista de Margaret à dissolução do estruturalismo em seus ardorosíssimos suces- Mead intitulado Balinese character. Os etnógrafos talvez pensem, sores. Todos continuarão a ler Os nue1; mesmo que, como vem realmente, que ganham credibilidade pela extensão de suas des- tendendo a fazer, a teoria segmentar se cristalize num do6'llla. crições. (Leach tentou responder aos ataques empiristas desfe- A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério ridos contra seu livro sobre a Birmânia escrevendo um livro O que dizem tem menos a ver com uma aparência factual, ou carregado de dados factuais sobre o Sri Lanka, mas este rece- com um ar de elegância conceitua!, do que com sua capaci- beu muito menos atenção. rvfead afirmou que as centenas de dade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de fotografias feitas por Gregory Bateson demonstravam suas haverem realmente penetrado numa outra forma ele vida (ou, teses, mas praticamente ninguém, inclusive Bateson, concor- -----~e você preferir, de terem sido penetrados por ela) - de real- dou muito com ela.) Talvez se devesse acreditar nos etnógrafos mente haverem, ele um modo ou de outro, "estado lá". E é aí, pela extensão de suas descrições, mas não parece ser assim ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu,que a coisa funciona. que entra a escrita. Por que persiste a idéia de que funciona assim, é difícil dizer. Pode ser que as concepções antiquadas sobre como se "estabelecem" os "fatos" nas ciências mais exatas tenham algo a ver com isso. Seja como for, a principal alternativa para esse tipo de teoria factualista sobre o que faz os textos de antropologia serem convincentes, a saber, que eles o são pela força de seus argumentos teóricos, é igualmente implau- sível. O aparato teórico de Malinowski., que em cerra época (> 14 o As peculiaridades cruciais da escrita etnográfica, tal como a carta roubada,1 encontram-se tão plenamente à vista · que passam despercebidas: por exemplo, o fato de ela consistir 1 Alusão cio autor ao célebre conto cio mesmo nome, escrito por Edgar Alan Poe e originalmente publicado em 1845. (N. da T.) o 15 ◊ ◊ OBRAS ~: VIDAS em grande parte em asseverações incorrjgívcis. A natureza altamente situacionaJ da descrição etnográfica - um dado etnó- grafo, em tal época e tal lugar, com tais informantes, tais com- promissos e tais experiências, representante de uma dada cultura e membro de uma certa classe - confere ao grosso do c1ue é dito um caráter do tipo "é pegar ou largar". "Focê echteve lá, Sharlie?", como costumava dizer o Barão de Munchausen ___ -,-__ de Jack Pearl.2 Ainda que, como vem acontecendo cada vez mais, outros profissionais trabalhem na mesma área ou com o mesmo grupo, de tal sorte que se faz possível ao menos uma veri- ficação geral, é muito difícil invalidar o que foi ilito por alguém gue não seja obviamente desinformado. Podemos tornar a examinar os azancles, mas, se não for encontrada a complexa teoria da paixão, elo conhecimento e da causalidade que Evans- Pritchard disse ter descoberto lá, é mais provável que duvi- demos de nossos próprios poderes de observação do que dos dele - ou, quem sabe, que concluamos simplesmente que os azandes já não são os mesmos. Seja qual for o estado da re- flexão sobre a natureza das trocas do Kula no momento atual, e ela vem-se modificando rapidamente, a imagem fornecida dessas trocas em Os argonautas do Pacífico ocidental continua indelével, para todos os fins práticos. Aqueles dentre nós que desejarem reduzir sua força terão de dar um jeito, de algum modo, de deslocar nossa atenção para outras imagens. Até na 2 Jack Peru:! foi um veterano dos palcos norte-americanos que, tendo estreado no rádio em 1932, no programa "Ziegfield Follies of the Air", teve urna onda de sucesso em 1933-1 934, levando ao ar um 13arão de Munchauscn de sotaque carregado e grande comicidade. (N. da T ) v 16 ◊ ESTA.R LA ◊ situação do que, na maioria dos outros tipos de estudos em.- píricos, seria considerado uma contradição direta (Robert Redfield e Oscar Lewis falando de TepotzJan, por exemplo), a tendência, quando se trata de dois estudiosos de renome, é considerar que o problema advém do fato de tipos diferentes de mentes abordarem partes iliferentes elo elefante - e urna terceira opio.ião só faria acentuar esse e~baraço. Não signifi9 __ que tudo o que os etnógrafos dizem seja aceito <le uma vez por todas, pelo simples fato de eles o di?.erem. Urna enorme parcela, graças a Deus, não é aceita. Mas ocorre guc as razões da aceitação ou da recusa são extremamente específicas ele cada pessoa. Impossibilitados de recuperar os dados imediatos do trabalho de campo para uma reinspeção empírica, damos ouvidos a algumas vozes e ignoramos outras. Isso seria escandaloso, se déssemos ouvidos a uns e não a outros - a questão é relativa, é claro - por capricho, por hábito ou (o que é uma das explicações favoritas hoje em dia) por preconceito ou desejo político. Mas, se o fizermos por que alguns etnógrafos são mais eficientes do que outros em criar a impressão, em sua prosa, de que tiveram um contato estreito com vidas distantes, a situação talve7, seja menos desespera- dora. Ao descobrirmos de que modo, numa determinada mo- nografia ou artigo, essa impressão é criada, descobriremos, ao mesmo tempo, por c1uais critérios julgá-los. Assim como a crí- tica da ficção e da poesia brota melhor do compromisso imagi- nativo com a própria ficção e com a poesia do gue ;ele idéias importadas sobre como estas devem ser, a crítica clo.s escritos antropológicos (que, num sc:nticlo estrito, não são uma coisa nem outra, e, num sentido lato, são ambas as coisas) deve bro- tar ele um engajamento semelhante com eles, e não ele pre- C• 17 ◊ ◊ OBHAS E V IDAS concepções sobre como deve ser a antropologia para se quali- ficar como ciência. Pela natureza de nossos julgamentos nessas questões, que é específica de cada pessoa (e não "pessoal"), o lugar óbvio para iniciar esse engajamento é a questão do que vem a ser um "autor" na antropologia. Pode ser que, noutros campos ESTAR LA <:• políticos verbais), em que, na maioria dos casos, tal função não se preserva. Esse não é um dado constante, nem mesmo dentro de nossa própria tradição: na Idade Média, a maioria das narrativas ficcionais - como a Can_rão de Rolando - não tinha autor, enquanto a maioria dos tratados científicos - com0 0 Almagcsto - o tinha. Mas de discurso, .G....al.ltOLyuntamente_com_o_homem,_a..história,_o, _ _ ~;.__--- ~-'c,),,ç_orrr.!-1.un:i::d1;vc..tsão. no séculº-.1.,.YlLmL:xYITI. Os dis- di • d cursos científicos começaram a ser aceitos por eles mesmos, eu, Deus e outros petrechos da classe mé ·a) esteja morren o, no anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre rede- mas ele, ou ela, ainda está vivíssimo entre os antropólogos. monstrável; sua inserção num conjunto sistemático, e não a Em nossa ingênua disciplina, talvez uma episteme atrasada, referência ao indivíduo que os produzira, colocou-se como como de praxe, ainda é muito importante saber quem está sua garantia. A função-autor esmaeceu, servindo o nome do inventot apenas para batizar um teorema, uma proposição falando. d · d e · I l d ou um. etcrmma o eteito, propnec ac e, corpo, grupo e ele- Faço essas alusões irreverentes ao famoso artigo de Nii- chel Foucault, "What is an Author?" ( com o qual concordo, aliás, a não ser por suas prerrússas, suas conclusões e sua mentalidade), porque, independentemente do que se pense de um mundo em que todas as formas de discurso se reduziriam ao "anonimato de um murmúrio", a bem da dispersão do poder, ou do gue se pense da idéia de que Mallarmé marcou uma ruptura decisiva na história da literatura, depois da qual a noção de obra literária viria sendo sistematicamente substitLúda pela de modos textuais de dorrúnação, esse artigo situa a questão gue estou propondo com uma certa exatidão. Foucault distingue nesse texto, talvez com nitidez um tanto exagerada, dois campos de discurso: aquele - sobretudo o da ficção (mas também da história, da biografia, da filosofia e da poesia) - no gual o gue ele chama d "fu ~ " . 1m f l e nçao-autor continua razoave ente orte, pe o menos por enc1uanto, e outro, especialmente o da ciência (mas também das cartas particulares, dos contratos legais e dos ataques ◊ 18 o mentos ou síndrome patológica. D a mesma maneira, os dis- cursos literários passaram a ser aceitos somente quando eram dotados da função-autor. Hoje indagam.os, sobre cada texto poético ou ficcional, de onde ele veio, quem o escreveu, quando, em que circunstâncias ou a partir de que propósito. O sentido que lhe é atribuído e o status ou valor que lhe é conferido dependem da maneira como respondemos a essas perguntas. ( ... ) Como resultado, a função-autor desempenha hoje um papel importante [embora, na visão de Foucault, também decrescente) em nossa visão das obras literárias. (Foucault, 1979, p. 149-150)3 Fica claro gue, nesses termos, a. antropologia está prati- camente toda do lado dos discursos "literários", e não dos "científicos". Os nomes de pessoas são ligados a livros e arti- gos e, mais ocasionalmente,a sistemas de pensa~ento (o "funcionalismo radcliffe-browniano", o "estruturalismo straus- siano"). Salvo pouquíssimas exceções, eles não se yinculam 3 M. Foucault, "\Vhat is an author?", in J. V. Harari (org.), Textual strategies, lthaca, N.Y o 19 o ◊ OBRAS E VIDAS a descobertas, propriedades ou proposições (um "casamento murdockiano" seria uma piada polêmjca; "o efeito wester- marck" - deixando de lado sua realidade - talvez se quali- ficasse). Isso não nos transforma em romancistas, do mesmo modo que construir hipóteses ou escrever fórmulas não nos converte, como alguns parecem pensar, em físicos. Mas de fato su_ge~e !lê-.UJ2~S_seme!9anças de família que, tal como __ a mula norte-africana que sempre fala do irmão da mãe, o ca- valo, mas nunca do pai, o burro, tendemos a omitir em favor de outras, supostamente mais bem-vistas. ◊ ◊ o Se admitirmos, portanto, que os textos de etnografia ten- dem a parecer romances, pelo menos tanto quanto laudos laboratoriais (embora, como acontece com nossa mula, não sejam realmente iguais a nenhum dos dois), levantam-se ime- diatamente duas perguntas, ou, talve~, uma mesma pergunta, duplamente formulada: (1) Como se evidencia no texto a "fun- ção-autor" (ou, visto pretendermos ser literários a esse res- peito, que t:'11 dizer apenas "o autor"?); (2) De que - além da tautologia óbvia, "urna obra" - o autor é autor? .A primeira pergunta - chamemo-la de c1uestão da assinatura - é uma questão de construção de uma identidade autoral. A segunda, digamos, a questão do discurso, é uma questão de desenvolver um modo de enunciar as coisas - um vocabulário, uma retó- rica, um padrão de argumentação - que esteja de tal maneira ligado a essa identidade que pareça provir dela, assim como um comentário provém de uma mente. A guestão da assinatura, o estabelecimento de urna pre- sença autoral num texto, tem atormentado a etnografia desde o 20 o ESTAR LA ◊ seus primórdios, embora o tenha feito sob forma disfarçada na maioria dos casos. Disfarçada porque, em geral, não tem sido apresentada como um problema da ordem da narrativa, urna guestão da melhor maneira de fazer com que uma lústória honesta seja contada honestamente, mas como um problem-a epistemológico, uma questão de como impedir que visões sub- jetivas distorçam fatos objetivos. O choque entre as conven- ções expositivas dos textos saturados e as dos textos esvazia- dos de autor, que brota da natureza particular da empreitada etnográfica, é tido corno um choque entre ver as coisas como se deseja gue elas sejam e vê-las como realmente são. Diversos resultados lamentáveis decorreram desse sepul- t,-unento da questão de como os textos etnográficos são "autori- zados" por baixo das anb:rústias (a meu ver, bastante exage- radas) a respeito da subjetividade. Entre eles encontra-se um empirismo exagerado até para as ciências sociais, porém um dos resultados mais nocivos é o de que, embora as ambii::,rüi- dades implícitas nessa questão sejam profunda e continua- mente sentidas, tem sido extremamente difícil abordá-las de modo direto. Os antropólogos estão imbuídos da idéia de que as questões metodológicas centrais envolvidas na descrição etnográfica têm a ver com a mecânica do conhecimento - a legitimidade da "empatia", do "insight" e coisas similares en- quanto formas de co6rnição; a verificabilidade das descrições intemalistas dos pensamentos e sentimentos de outras.pessoas; o estah1to ontológico da cultura. Em consonância ~om isso ' atribuem suas dificuldades para construir tais descrições à problerná6ca do trabalho de campo, e não à problemática do discurso. Se for possível administrar a relação entre o observa- dor e o observado (rapport), a relação entre o autor e o texto (assinatura) se seguirá por si só - ao c1ue se supõe. ◊ 21 ◊ ◊ OBRAS E VIDAS ESTAR LÃ ◊ a tarefa e apresentam a obra. Portanto, para gue eu indique com mais clareza agtúlo sobre o que estou falando, permitam- me tmnar dois exemplos, um de um texto etnográfico clássico, merecidamente visto como w.11 estudo modelar, sereno e pro- fessoral, e outro de um livro muito recente, também muito bem feito, que recende à nervosa atualidade. Não se trata apenas de que isso seja inverídico, de que, por mais delicada que seja a questão de enfrentar o outro, ela não seja igual a enfrentar a página. A dificuldade está em que a estranheza de construir textos ostensivamen te científicos a partir de experiências em grande parte bio1:,rráficas, gue é o gue fazem os etnógrafos, afmal, fica inteiramente obscurecida. A questão da assinatura, tal como o etnógrafo a confronta, - ~ ----:---- _;_;,-:..----- A obra clássica. é -0JivJ:o_de Raymond Firth,.We.,_the . .Tiko- ou tal como e1ã confronta o etnógrafo, exige o olimpianismo pia, originalmente publicado em 1936. Após duas introduções, do físico não-autoral e a consciência soberana do romancista uma de Mali.nowski, para quem o livro ele Firth "reforça nossa hiper-autoral, sem de fato permirir nenhum dos dois. O primeiro convicção ele que a antropologia cultural não precisa ser uma suscita acusações de insensibilidade, de tratar as pessoas como misturada de lemas ou rótulos, uma fábrica de atalhos calcados objetos, de ouvir a letra, mas não a música, e, é claro, de em impressões gerais, ou de reconst.ruções feitas sobre conjec- etnocentrismo. J\ segunda, acusações de impressionismo, de tl.llas, [mas sim] uma ciência social - sinto-me c.p.1ase tentado tratar as pessoas como fantoches, de ouvir uma música que a dizer a única ciência entre os estudos sociais", e outra de não existe e, é claro, de etnocentrismo. Não admira que a Firth, que frisa a necessidade de "um prolongado contato pes- maioria dos etnógrafos tenda a oscilar, insegura, entre as duas soal com as pessoas [estudadas]" e se desculpa pelo fato de coisas, ora em livros diferentes, ora, com mais freqüência, no "esta exposição representar não um trabalho de cam1Jo de mesmo ]jvro. Para começo de conversa, descobrir onde se ontem, mas o de sete anos atrás", o livro em sj começa seu situar num texto do qual, ao mesmo tempo, espera-se que primeiro capítulo, "Na Polinésia primitiva": seja uma visão íntima e uma avaliação fria é quase tão desa- fiador quanto chegar a essa visão e fazer a avaliação. Na friagem da manhãzinha, pouco antes do alvorecer, a proa do S outhern Cross embicou para o leste do horizonte, É claro que, para se ter uma idéia desse desafio - de que onde era tenuemente visível um minúsculo contorno azul- maneira soar como um peregrino e um cartógrafo, ao mesmo escuro. Aos poucos, ele se avolumou numa escarpada massa tempo - e do mal-estar que ele produz, bem como do grau montanhosa que se erguia a prumo do oceano; depois, ao chegarmos a uma distância de poucas milhas, essa revelou em que ele é representado como decorrente das complexi- em sua base uma estreita faixa de terras baixas e planas, ele dades das negociações entre o eu e o outro, e não entre o eu e vegetação espessa. O dia cinzento e soturno, com suas duvens o texto, só mesmo examinando os próprios escritos etno- baixas, reforçou minha impressão intimidante de um pico gráficos. E, visto gue o desafio e o mal-estar se fazem sentir, solitário, bravio e tempestuoso, erguendo-se verticalmente numa vastidão de água. obviamente, desde a orelha da sobrecapa, um bom lubaar para d h Em cerca e uma .ora, estávamos bem perto da costa e examiná-los, ao analisar os livros de etnografia, são os come- podíamos ver canoas vindo do sul, da orla do recife, onde a ços - as páginas de abertura que situam o cenário, descrevem maré estava baixa. Essas embarcações, com estabilizadores ◊ 22 <'.> o 23 ◊ 1 1, 1 1, 1 : ! • 1 jl. ii I', 1 1 ,;, OBRAS E VIDAS fixados paralelamente ao costado, chegaram mais perto, tra- zendó em seu interior homens de tronco nu, com tangas de tecido da casca da amoreira, grandes abanadorespresos na parte posterior da cinta, argolas de casco de tartaruga ou cilindros de folhas no lóbulo das orelhas e no nariz, barba longa e cabelos compridos, que lhes desciam soltos sobre os ombros. Alguns manejavam os remos pesados e toscos, alguns levavam tapetes de folhas de pandano delicadamente trança- das, apoiados nos bancos a seu lado, outros tinham nas mãos porretes ou lanças pesados. O navio ancorou com amarras curtas na baía aberta próxima ao recife de coral. Quase antes de a corrente acabar de descer, os nativos começaram a subir a bordo, escalando o costado por todos os meios que ele ofe- recia, e gritando furiosamente uns com os outros e conosco, numa língua da qual nem uma só palavra foi entendida pelos que no navio missionário falavam mota. Perguntei a .mim mesmo como um material humano turbulento como aquele poderia jamais ser induzido a se submeter a um esh1do cien- tifico. Vahihaloa, meu "camareiro", olhando do convés superior para o costado, disse com um riso nervoso: "Palavra, mim muito assustado; mim acha que esse sujeito tá querendo me kaikai". Kaikai é o termo do inglês pzdgin equivalente a "co- mer". Talve:t pela primeira vez, o •rapaz tenha começado a duvidar da sensatez de haver cleix.ado o que era, para ele, a civilização de Tulagi, a sede do governo, siluada a quatrocentas milhas dali, a fim de passar um ano comigo nesse local remoto, em meio a selvagens de aparência tão feroz. Sem ter, eu mes- mo, muita certeza da recepção que nos esperava - embora soubesse que ela não chegaria ao canibalismo -, tranqüilizei- o, e começamos a trazer as provisões para fora. Mais tarde, fomos até a praia numa das canoas. Ao nos aproximarmos da orla do recife, nossa embarcação se deteve, por.causa da maré vazante. Descemos pela borda, pisamos nas rochas de coral e começamos a chapinhar rumo à praia, de mãos dadas com nossos anfitriões, como crianças numa festa, trocando sorrisos, em vez de qualquer coisa mais inteligível ou tangível naquele momento. Fomos cercados por bandos de garotos nus e barulhentos, com sua bela pele aveludada, de um tom ◊ 24 ◊ ESTAR LA ◊ -castanho-claro, e de cabelo liso, muito diferentes dos mela- nésios gue havíamos deixado. Eles corriam de um lado para outro, espadanando água como cardumes, e alguns, em seu entusiasmo, deixavim1-se cair de corpo inteiro nas poças. Por fim, terminou a longa caminhada pelas águas rasas, subimos a ladeira íngreme da praia, atravessamos a areia macia e seca, salpicada de agulhas das casuarinas - um togue da terra natal, parecia uma alameda de pinheiros - , e fomos conduzidos a -"-----u,.,.,_:<LClho chefe, .. que._v.estia_com grande.dignidade.um manto branco e uma tanga e nos recebeu em seu trono, sob uma árvore grande e frondosa. (Pirth, 1936, p . 1-2)4 A julgar por esse trecho, não há dúvida de que Firth, em todos os sentidos da palavra, esteve "lá". Todos os porme- nores delicados, reunidos com exuberância dickensiana e fa- talismo conradiano - a massa montanhosa azul, as nuvens b,úxas, o falatório agitado, a pele de veludo, a subida íngreme da praia, o tapete de agufüas, o chefe em seu trono -, levam à convicção de que o texto que virá a seguir, com suas SOO pá- ginas de descrição resolutamente objetivada dos costumes sociais - os tikopianos fazem isto, os tikopianos acreditam naquilo - , pode ser aceito como um fato. As inquietações de Firth quanto a induzir "um material humano turbulento como aquele (. .. ) a se submeter a um estudo científico" revelaram- se tão exageradas quanto o medo de ser comido, manifestado por seu "camareiro". Mas essas inquietações nunca desapareceram por comple- to, tampouco. As ênfases no "isto aconteceu comigo": ressur- gem periodicamente; o texto é nervosamente asst1ado e • 1 R. Firth, We; the TikojJza, Londres. Para uma contextualização desse trecho nos "escritos de viagem", ver M. L. Pratt, "Fielclwork in common places", in J Clifford e G E . Marcus (org.), Wiiting c11/t111'11: the poetics and policies of Etlmography, Berkeley, Califórnia, 1986, p. 35-37. ◊ 25 ◊ ◊ OBRAS É VIDAS ESTAR LÃ (> reassinado em toda sua extensão. Até a última linha, Pirth se forth parece mais preocupado em saber se engolirá seus debate com sua relação com O que escreveu, continuando a objetos de investigação do c.1ue se será engolido por eles, mas ver O problema em termos de metodologia de campo. 0 problema continua a ser visto como essencialmente epis- , - .temoJógico. Com uma boa dose de elipses, cito um trecho de A maior necessidade - diz essa última linha-, nas cienc1as sociais de hoje, é de uma metodologia mais refinada, tão sua introdução, intitulada "O Eu e o Outro": objetiva e desapaixonada quanto pos_sí_veJ, na qual, embora A antropologia implica, inevitavelmente, um encontro com os pressupostos decorrentes do condicwnamento e do mte- 0 Outro. Não raro, porém, a distância et11~gráfica que separa resse pessGald0-in:vestiga0<-'lr-H1.fluenGiem..se~1~resultadGs,-esse - - ---,~--- - c.,...lo---=o=-u- trn o leitor d~ textos antrop~lógicos e o próprio antro- viés seja conscientemente enfrent'ldo, ª possibihdade de outros pólogo é rigidamente mantida e, às vezes, até artificialmente pressupostos iniciais seja reconhecida e as implicaç~e_s de ca~a exagerada. Em muitos casos, esse distanciamento leva a urna um deles sejam levadas em conta no decorrer da analise. (Ibid, concentração exclusiva no Outro como primitivo, bizarro e P· 488) excêntrico. O abi!:>rno entre o "nós" conhecido e o "el.es" Num nível mais profundo, talvez as angústias de Firth e exótico é um grande obstáculo à compreensão significativa as de seu "camareiro" não fossem, na verdade, t.ão comple- do Outro, um obstáculo que só pode ser superado através de alguma forma de participação no mundo do Outro. tamente diferentes. "Forneço eSte relato um tanto egoÍSla", A manutenção dessa distância emográfica tem resultado escreve ele, em tom apologético, depois de reexaminar suas ( ... ) na banalização ou na folclorização da investigação an- técnicas de campo, sua proficiência lingüística, seu estilo de u-opológica da morte. Em vez de confrontar a importância universal da morte, muitas vezes os antropólogos a trivia-vida na ilha e assim por diante, lizam, preocupando-se com as práticas ritualísticas exóticas, ... não por considerar que a antropologia deva ser convertida curiosas e, vez por outra, violentas que acompanham a morte numa leitura leve, ( ... ) mas porque uma certa descrição das em muitas sociedades. ( ... ) Entretanto, quando é possível redu- relações do antropólogo com o povo por ele estudado é zir a distância ·entre o antropólogo e o Outro, lançar uma relevante para a natureza de seus resultados. Ela é um indi- ponte sobre o abismo entre "nós" e "eles", a meta de uma cador da digestão social de ambos - alguns povos não con- antropologia verdadeiramente humanista pode ser alcançada. seguem engolir uma pessoa de fora, enquanto outros a absor- ( ... ) [Esse] desejo de reduzir a distância entre o Eu e o Outro, vem facilmente. (Ibicl., p. 11) que instigou [minha] adoção desta [abordagem], provém ele b meu trabalho de campo. Todas as vezes em que assisti a rituais O texto recente cujas páginas de a ertura quero usar co- da morte na Grécia rnral, tive aguda consciência de um sen- mo um exemplo do mal-estar que surge no auto.r, em virtude timento paradoxal de distância e proximi<lade simultineas, da obrigatoriedade de produzir textos científicos a partir de de alteridade e identidade pessoal ( ... ) Para meus olh41s, os experiências biog.ráfi.cas, é The death rituais ef rural Greece, do lamentos fúnebres, os trajes negros do luto e os ritos ele exu- d mação eraJ?J exóticos. No entanto, ( ... ) em todos os momentos jovem etnógrafo Loring Danforth. Como muitos e sua gera- eu tinha consciência ele que não são apenas os Outr~s que ção, criados na Positivismuskritik 5 e no anticolonialismo, Dan- morrem. Eu tinha consciência de que meusamigos e parentes 5 Crítica ao positivismo. (N. da T.) o 26 o morrerão, de que eu mesmo morrerei, de <JUC a rnorte chega para todos, o Eu e os Outros. o 27 o i 1 1 ◊ OBRAS E VIDAS ESTAR LA ◊ retórica em 1982. Mas existem semelhanças ainda maiores, todas derivadas de um tojJOs comum - o estabelecimento delicado, mas bem-sucedido, ele uma sensibilidade familiar ' No decorrer de meu trabalho de campo, esses ritos "exó- ticos" adquiriram sentido, tornaram-se até alternativas atraentes para a experiência da morte tal como eu a conhecia. Sentado junto ao cadáver de um homem que haVla morndo horas antes, e ouvindo sua mulher, suas irmãs e suas filhas prantearem muito parecida com a nossa, num lugar intrigante mas des- sua morte, imaginei aqueles riros sendo praticados e aqueles conhecido, que em nada se assemelha ao nosso. O drama fir-, lamentos sendo entoados na morte de meus parentes, em thiano da chegada ao país termina em seu encontro com o minha própria morte. ( ... ) Quando o irmão do morto enu:ou no aposento 1 a~_inull2e!~( .. .) começarama--=e~n:..:to~ar'-t-'-11_n_la_n_1_en_-____ ::--_ _ _ c_h_e_f_e_, que é quase 1:1111ª ~udiência real. D_~pois disso, sabemos to sobre dois irmãos que eram violentamente separados gue eles se entenderão e tudo ficará bem . .As reflexões ator- quando se agarravam 1m1 ao outro, sentados nos galhos de mentadas <le Danforth sobre a Altcridade terminam em seu uma árvore arrastada por uma enxurrada furiosa. Pensei em meu irmão e chorei. A distância entre o Eu e o Outro havia- luto em eco, que é mais fantasia do que empatia. Depois disso, se tornado realmente pequena. (Danforth, 1982, p. 5-7)6 sabemos que o abismo se reduzirá, que a comunhão est.á pró- Há grandes diferenças, é claro, nessas duas descrições do cenário e nesses posicionamentos do sujeito: uma é um modelo de romance realista (Trollope7 nos mares do Sul), a outra, um modelo de meditação filosófica (Heidegger na Gré- cia); uma é a preocupação científica de não ser suficientemente neutro, outra, a preocupação humanista de não estar suficien- temente engajado. Expansividade r~tórica em 1936, seriedade 6 L. Danforth, The death 1it11a/s if mm! Greece, Pri.nceton, N. J. Para uma queixa moderna ou pós-moderna semelhante sobre "a antropologia da morte", nascida de uma experiência pessoal - 11 morte acidental de sua esposa no campo-, ver R. Rosaldo, "Grief anda headhunter's rage: on the cultural force of emotions", in E. Bruner (org.), Tex~plC!)\ and stOJ)\ 1983, Proceedings o( the American Ethnokgical Socie!J, Washington, 1984, p. 178-195: "[Na] maioria dos estudos antropológicos da morte, os analistas simplesmente eliminam as emoções, assumindo a posição do mais neutro observador. Sua postura também equipara o ritualístico ao obrigatório, desconhece a relação entre o órnal e a vida cotidiana e mistura o processo ritual com o processo do luto. A regra geral ( ... ) parece consistir em que se deve arrumar as coisas ao mfü-úrno, secando as lágrimas e ignorando os acessos de raiva" (p. 189). 7 Anthony Trollope (1815-1882), romancista inglês. (N. da T.) ◊ 28 o xima. Os etnógrafos precisam convencer-nos (corno fazem esses doí~, de maneira muito eficaz) não apenas de gue eles mesmos realmente "estiveram lá", mas ainda (como também fazem, se bem que de modo menos óbvio) de que, se hou- véssemos estado lá, teríamos visto o gue viram, sentido o que sentiram e concluído o que conc!Lúram. Mas nem todos os textos etnográficos, e nem sequer a. maioria deles, começam travando um combate com o dilema da assinatura de maneira tão enfática quanto esses dois. A maioria, ao contrário, tenta mantê-lo à distância, começando por descrições extensas e, não raro (em vista do que virá a seguir), excessivamente cletafüadas sobre o meio ambiente natural, a população e coisas semelhantes, ou por extensas discussões teóricas às quais não se volta a fazer mu~ta refe- rência . .As representações explícitas da presença do autor ten- dem, como outros embaraços, a ficar relegadas aos prefácios, notas ou apêndices. ' IYias a questão sempre aparece, por mais que se resista a ela, por mais que seja disfarçada. "O viajante ela África Oci- o 29 o ESTAR LA 0 C• OBRAS E VIDAS dental que penetra nesta região, vindo do sul'', escreve Meyer excêntrico, Navc11, parece consistir sobretudo em largadas frus- fortes na primeira página de seu estudo sobre os talensis (tal- tras e reconsiderações - preâmbulo após preâmbulo, epílogo vez o mais rigorosamente objetivado de todos os grandes após epílogo). De um modo ou de outro, contudo, ainda que textos etnográficos - ele soa como um texto de direito escrito de maneira irreflexiva, e sejam quais forem os recejos a respeito por um botânico), "impressiona-se com o contraste com o da adequação disso tudo, todos os etnógrafos conseguem fazê- cincurão florestal. Conforme suas preferências, ele a vera com lo. Existem livros sumamente maçantes na antropologia, mas prazer ou desalento, depois da escuridão maciça e gigantesca poucos (se algum) murmúrios anônimos. ______ ......__ - - - - - da floresta" (Fortes, 1967, p. 1).8 Não há dúvida sobre quem é esse "viajante'' ou a quem pertencem essas ambivalências, nem sobre o fato de que voltaremos a ouvir essa mesma nota, mais ou menos abafada como nesse ponto. "A Rodovia 61 estende-se por trezentos e vinte quilômetros de ricas terras negras, conhecidas como o Delta do Mississipi", começa o belo livro que William ferris escreveu, alguns anos atrás, sobre os músicos negros do Sul rural, Blues jrom the Delta, "onde fileiras de quilômetros de algodão e soja irradiam-se de suas margens e cercam cidadezinhas ocasionais, como Lula, Alli- gator, Panther Bum, Nitta Yuma, Anguilla, Arcola e On- ward"(Ferris, 1979, p. 1).9 Fica bem claro (mesmo para quem não sabe que Ferris nasceu no Delta) quem é a pessoa que veio percorrendo essa rodovia. Entrar em seus textos (isto é, introduzir-se neles repre- sentacionalmente) talvez seja tão difícil para os etnógrafos quanto entrar numa cultura (ou seja, penetrar nela imaginati- vamente). Para alguns, é possível que isso seja ainda mais difícil (vem-nos à lembrança Gregory Bateson, cujo clássjco ij M. Fortes, Thc 4Y11an1ic.r of dansbip n111011g lhe T,11/ensi, Lon<lre~. 9 \X'. Fcrns, B/11eJ Jrom Jht Delta, Gardcn City, 1. Y. o 30 o A outra questão preliminar ("de que o autor é autor?", ou o problema do discurso, como a chamei) também é pro- posta, de maneira mais geral, no ensaio foucaultiano "Que é um autor?" e num texto de Roland Barthes (mais sutil, a meu ver), ''Autores e escritores", publicado cerca de dez anos antes. (Barthes, 1982, p. 185-193).1º Foucault enuncia a questão em termos de uma distinção entre os autores (a maioria de nós) "a quem a produção de um texto, um livro ou uma obra pode ser legiúmamcnte atri- buída" e aquelas figuras, de peso bem maior, que "são autoras ( ... ) de muito mais do que um livro"; são autoras de "( ... ) uma teoria, uma tradição ou uma disciplina em que outros livros e autores, por sua vez, encontrarão seu lugar" (Foucault, op. cit., p. 153). Ele faz uma série de afirmações discutíveis sobre esse fenômeno: di7. que seus exemplos dos séculos XIX e XX (Marx, Freud etc.) são tão radicalmente diferentes dos ante- riores (Aristóteles, Santo Agosúnho etc.) que não devem ser 'º ll J3arthes, "Authors and writers", in S. Somag (org.), A Barlbes reoder. Nova York. ' o 31 o 1 1 i ' ◊ OBRAS E VIDAS d ºln eles· que o fenômeno não ocorre nas obras con1para os c . , . de ficção; e gue GaWeu, Newton ou Einstein, embota (talve7, sabiamente) Foucault não mencione este último, não são exemplos adequados desse fenômeno. Todavia, o fato de que os "fundadores da discursividade", como ele bem os denomina - autores que produziram não apenas suas obras, mas que, ao produzi-las, "produziram algo mais: as possibilidades e asregras de formação - de outros textos" - ,' são cruciais não só para o desenvolvimento de disciplinas intelectuais, mas para a própria natureza destas, é algo que, uma vez afixmado, fica flagrantemente óbvio. "Freud não é apenas o autor de A interpretação dos sonhos ou de Chistes e suas relações com o inconsciente; .Marx não é somente o autor do Manifesto comunista ou de O capital: os dois fundaram uma possibilidade interminável de discurso" (ibid., p. 154). Talvez ela apenas pareça interminável, mas sabemos o gue Foucault quer dizer. A maneira como Barthes formula tudo isso consiste em distinguir o "autor" do "escritor" (e, noutro ponto, a "obra", que é aquilo que o "autor" produz, e o "texto", que é o gue produz o "escritor" (Barthes, 1979, p. 73-82)).11 O autor cumpre uma função, diz Barthes; o escritor exerce uma atividade. O autor participa do papel do sacerdote (Barthes o compara a um feiticeiro maussiano), o escritor, do papel exercido pelo escriba. Para um autor, "escrever" é um verbo intransitivo - "ele é um homem que absorve radi- calmente o porquê do mundo num como escrever". Para o escritor, "escrever" é um verbo transitivo - ele escreve algo. "Ele esta- 11 R. Barthes, "Fwm work to text", in J V Harari, TextualstratcgieJ, Ithaca, N. Y. ◊ 32 o ESTAH LÃ ◊ belece um objetivo (demonstrar, explicar, instruir), do qual a linguagem é meramente um meio; para ele, a linguagem sustenta uma práxis, mas não se constitui numa pnixis. ( ... ) É devolvida à natureza de instrumento de comunicação, veículo do 'pensar'" (Barthes, 1982, p. 187, 189).12 Tudo isso nos faz lembrar bastante a professora de "re- açã0- fi.GGi0nal~ El.@ P-zdures-from an úzstitt:tion,-ae- R-andall ] ar-· reli, 13 gue dividia as pessoas em "autores" e "pessoas", sendo que os autores eram pessoas e as pessoas não o eram. Na antropologia, entretanto, é difícil negar o fato de que alguns indivíduos, como quer que os chamemos, instituem os termos elo discurso em gue, a partir daí, os outros passam a se mover _ pelo menos por albrum tempo, e à sua maneira. Todo o nosso campo diferencia-se nesses termos, quando enxergamos além das rubricas convencionais da vida acadêmica. Boas, Benedict, Malinowski, Radcliffe-Brown, Murdock, Evans-Pritchard, Griaule e Lévi-Strauss, para manter a lista curta, pretérita e variegada, remetem não só para determinadas obras (Padrões ····de cultura, Social-structure ou O pensamento selvagem), mas tam- bém para uma forma de abordar as coisas antropológicas: eles demarcam a paisagem intelectual, diferenciam o campo de discurso. É por isso que tendemos a descartar seus prenomes, depois de algum tempo, e a adjetivar seus sobrenomes: boasiano ou griaulista, ou, numa cunhagem sarcástica de Tal- cott Parsons ( ele próprio uma espécie de auteur barthesiano na sociologia), que sempre me agradou bastante, antropologia beneditina. " Barthes, ''Authors and writers". 13 Rnnda.ll Jarrell (1914-1965), escritor e poeta norte-americano. (N. da T.) o 33 o 1 • • 1 ◊ 08RAS E VIDAS , " . . ,, Essa distinção entre "autores' e escritores , ou, na ver- são ele Foucault, entre fundadores de discursividade e pro- dutores de textos particulares, não tem propriamente um valor intrínseco. Muitos dos que "escrevem" segundo tradições das ESTAR LÁ ◊ em termos do discurso, como um até que ponto e de que maneira compô-lo imaginativamente. ◊ o ◊ · e · Considerando tudo isso, c1uero tomar como exemplos_. qua.ts outros 1oram "autores" podem superar em rnlUto os seus modelos. Firth, e não Malinowski, é, provavelmente, nosso ilustrativos quatro figuras muito diferentes - Claude Lévi- melhor malinowskiano. Fortes obscurece Radcliffe-Brown a Strauss, Edward Evan Evans-Pritchard, Bronislaw MaliJ.10\vSki tal ponto que ficamos a r{os indagar como pode tê-lo _t_o_m- ad- o--~---e-R- u-thc-cB~e-·n-e-c·dict ::.._~que, digã~se o q~e mais se disser a seu res- como mestre. Kroeber fez O que Boas apenas prometeu. O peito, certamente são "autores" no sentido "intransitivo'' de fenômeno tampouco é bem apreendido na idéia simplista de fundadores de discursividade; são estudiosos que assi_naram "escola", que o faz parecer uma questão de formação grupal, seus textos com certa determinação e construiram teatros ele de nadar em cardume atrás de um peixe Jider, e não O que ele linguagem em gue um grande número de outros, de maneira é: uma questão da formação de um gênero, do movimento 110 mais ou menos convincente, apresentaram-se, apresentam- sentido de explorar possibilidades recém-reveladas de repre- se e, sem dúvida, ao menos por algum tempo, continuarão a sentação. Por último, também não se trata de um choque entre se apresentar. tipos puros e absolutos. Aliás, Barthes encerra ''Autores e escri- Pretendo lidar com meus exemplares de maneira bem tores" afirmando gue a figura literária característica de nossa diferente, não só por9ue eles são muito diferentes - um man- época é LUn tipo bastardo, o "autor-escritor": o intelectual clarim da intelectualidade parisiense, um membro graduado profissional, apanhado entre o desejo de criar uma estrutura de Oxford, um polonês andarilho e uma intelectual nova-ior- verbal fascinante, de entrar no gue Barthes chama de ''teatro quina -, mas por9ue, através deles, quero examinar questões de linguagem", e o desejo de transmitir fatos e idéias, de co- bem diferentes. Lévi-Strauss, 9ue discuto em primeiro lugar, mercializar a informação, e que acaba se entregando, inter- embora ele seja o mais recente, o mais obscuro e, em termos mitentemente, a um ou a outro desses anseios. Seja como for, literários, o mais radical dos quatro, coloca-nos dentro do tema no caso do discurso propriamente literário ou no do discurso em altíssima velocidade, em particulár se nos concentrarmos, propriamente científico, que ainda parecem inclinar-se, de como pretendo fazer, nesse livro anômalo que é Tristes Tró- maneira bastante clara, para a .linguagem como práxis ou para picos. A natureza extremamente textualiste desse livro,1 que faz a linguagem como meio, o discurso antropológico decerto sobressair a todo momento seu caráter literário, fazendo eco continua empacado como uma mula entre as duas alternativas. a outros gêneros, um após outro, e não se enguadra~do bem A incerteza que aparece, em termos da assinatura, como um em nenhuma categoria senão a que lhe é própria, faz com gue até que ponto e de que maneira invadir O próprio texto, aparece, ele seja, talvez, o texto antropológico mais enfaticamente auto- ◊ 34 o ◊ 35 ◊ : i . , ◊ OBRAS E VIDAS referente de gue dispomos, aquele que mais descaradamente absorve o "porquê" do mundo m.:im "como escrever". Além disso, como toda a obra de Uvi-Strauss, a relação desse texto com a "realidade cultural" (seja isto o que for) é oblíqua, dis- tante e complexamente tênue - um aparente aproximar-se que, na verdade, é um recuar - , de modo que questiona com proveito as concepções aceitas sobre a natureza da etnografia. Lévi-Strauss tem, sem dúvida, um modo característico de "es- tar lá". Pensem os antropólogos o que pensarem de Tristes Trópicos - que é uma bela história, uma visão reve.ladora, ou mais um exemplo do gue deu errado com os franceses -, pou- cos saem de sua leitura sem ser ao menos um pouquinho des- construídos. Evans-Pritchard, é claro, é um caso completamente dife- rente: um autor para cujo estilo - seguro, direto e arquitetônico - parece ter sido inventado o grande oximoro "clareza ence- guecedora". Etnógrafo-avenh1reiro, deslocando-se com expe- riente facilidade pelo mundo imperialista, como observador e ator, ele se dispôs a tornar clara a ·sociedade tribal, visível mesmo, como uma árvore frondosa ou um estábulo; seus li- vros são retratos daquilo que descrevem, esboços da vida real. O fato de esses livros, esses supostos modelos do que George Marcus e Dick Cushman chamaram de "realismo etnográfico",em sua resenha dos experimentos recentes nos textos antro- pológicos, haverem-se transformado em alguns dos textos mais intrigantes de toda a antropologia - lidos à larga e inces- santemente discutidos, vistos como ciência ou arte de alto nível, enaltecidos como clássicos permanentes ou como expe- rimentos hetetodoxos, citados como exemplos por filósofos ou celebrados por ecologistas - só faz sugerir que, em seu ◊ 36 ◊ ESTAR LÁ C• estilo decoroso, eles sejam tão astutos em sua construção quanto os de Lévi-Strauss, e igualmente instrutivoS.14 Os objetos sólidos que se dissolvem sob um olhar fixo não são rnenos fascinantes do que os objetos fantasmagóricos que se formam, e talvez se revelem ainda mais perturbadores. No caso de Malinowski, estarei menos interessado no· h0f1'.l~m-em.si,-so.hte_quem muito_já._s_e..es.creveu, do que naquilo_ __ _ que ele moldou. "Autor" barthesiano da observação parti- cipante, da tradição da escrita etnográfica calcada no "Não apenas estive lá, como fui um deles e falo com sua V07." (eni- bora não tenha sido o prime.iro a praticá-la, é claro, assim como Joyce, digamos, não foi o primeiro a usar a narrativa do fluxo de consciência, nem Cervantes o primeiro a usar o pica- resco), Malinowski fez da etnografia um assunto curiosamente voltado para dentro, uma questão de autotestagem e auto- transformação, e fez da redação dela uma forma de auto- revelação. A quebra da confiança epistemológica (e moral), gue, apesar de toda a sua vociferação externa, começou com --~le - como podemos ver por seu Diário, de publicação mais recente -, desembocou agora numa quebra similar da con- fiança expositiva e produziu uma enxurrada de remédios mais ou menos desesperados. O toque meditativo da "Introdução" de Loring Danforth (Quem sou eu para dizer estas coisas, com que direito e com gue finalidade, e como posso, enfim, conseguir dizê-las com franqueza?) é hoje ouvido por toda parte, em várias formas e com vários graus ele intensidade. 14 G. Marcus e D. Cushman, "Ethnographics as texts", in 13. Siegel (org.), Anrmal l"?.íwie1JJ qf Anlhro-pologr, v. 2, Palo Alto, Califórnia, 1982. o 37 e, ; : ., 1 , - . ◊ OBRAS E VIDAS Escrever etnografia "do ponto de vista do nativo" dramati- zou para lvialinowskí suas esperancas de transcender a si , , ' mesmo; para muitos de seus mais fiéis descendentes, dra- matiza o medo que eles têm de se iludir. Finah11ente, nos retratos esquemáticos e nas avaliações sucintas de Benedict, mais um aspecto da natureza auto-re- flexiva do texto a.ntrop.ológico-=-onde.....estou~u,GIJ.cl(';-~Stâc-) eles - ressalta com particular clareza: o modo como essa escrita sobre outras sociedades é sempre, ao mesmo tempo, uma es- pécie de comentário esópico sobre a sociedade do próprio sujeito. Para um norte-americano, resumir os zunhis, os kwa- kiutl, os dobus ou os japoneses, em sua totalidade e intei- reza, é, ao mesmo tempo, resmnir os norte-americanos em sua totalidade e inteireza; é torná-los tão p.rovincianos, tão extravagantes, tão cômicos e tão arbitrários quanto os feiticei- ros e os samurais. O famoso relativismo de Benedict era menos uma postura filosófica sistematicamente defendida, ou seguer coerentemente sustentada, por falar nisso, do que o produto de um modo particular de descrever os outros, um modo no qual as esquisitices distantes eram levadas a questionar pressupostos domésticos. "Estar lá" em termos autorais, enfim, de maneira palpável na página, é um truque tão difícil de real.izar guanto "estar lá" em pessoa, o gue afinal exige, no mínimo, pouco mais do gue uma reserva de passagens e a permissão para desembarcar, a disposição de ,suportar uma certa dose de solidão, invasão de privacidade e desconforto físico, uma certa serenidade dia.t1-. te de excrescências corporais estranhas e febres inexplicáveis, a capacidade de permanecer imóvel para receber in,sultos artísticos, e o ripo de paciência necessária para sustentar uma v 38 o ESTAR i,,A V busca interminável de agulhas invisíveis em palheiros .i.m,jsíveis. E O tipo autoral do "estar lá" vem ficando cada vez mais diBcil. A vantagem de desviarmos para o fascínio da escrita ao menos parte da atenção gue temos dedicado ao fascínio do trabalho de campo, que nos manteve aprisionados por tanto tempo, está não apenas em que essa dificuldade será entendida com mais clare;,:a, mas rnmbém em que _aprenderemos a ler com um olhar mais perspicaz. Cento e quinze anos de prosa , asseveraciva e inocência literária (se datarmos nossa profissão a partir de Tylor, como se convenciona fazer) são mais elo que suficientes. ◊ 39 o o capítulo 6 ESTAR AQUI De quem é a vida, afinal? Agora mesmo, esta tarde, fui com o abba Jérome visitar [a eúopel Emawayish e lhe dar canetas, üma e um caderno, para que ela possa anotar pessoalmente - ou ditar para seu filho - o manuscrito (de suas canções], deixando claro que, se o chefe da expedição ficar satisfeito, ele lhe dará o presente desejado. Palavras de Emawayish hoje à tarde, quando cu lhe disse, falando de seu manuscrito, gue seria especialmente bom que ela anotasse algumas canções de amor como as <la outra noite: "Existe poesia na Prança?" H depois: "Existe amor na Fran- ça?'' (Leuis, 1986, p. 43)1 Por mais que os antropólogos busquem seus objetos de investigação além dos muros da academia - numa praia ladei- renta da Polinésia, num planalto calcinado <la Amazônia, em 1 M. Leiris, "Phancom Africa", crad. de]. Chfford, S11(/úr, n. 15, 1986. O:, prirm:iros colchetes são meus, o segundo, do tradutor, e os grifos são cio origmal. Clifford traduziu apenas uma parte de Leiris, L1/lfriq11e fa11tôme, Pans, 1934. 1 1 ◊ OBRAS E VIDAS Akobo, Meknés ou Panther Burn -, eles escrevem seus relatos tendo a seu redor o mundo dos atris, das bibliotecas, dos quadros-negros e dos seminários. É esse o mundo que produz os antropólogos, gue os habilita a fazerem o tipo de trabalho que fazem, e dentro do qual o tipo de trabalho que executam tem de encontrar seu lugar, para ser considerado digno de atenção. Em si, o Estar Li é wna experiência de carrão postal ("Fui a Katmandu; você ji esteve lá?"). Mas é o Estar Aqui, como um estudioso entre estudiosos, que faz com gue o texto antropológico de alguém seja lido ... publicado, criticado, citado e ensinado. Não há nada de particularmente novo nisso; os milioná- rios excêntricos basicamente desapareceram da etnografia des- de a década ele 1920, e os especialistas, os consultores e os au- tores de livros de viagens nunca chegaram propriamente a ingressar nela (alguns missionários consegu.irnm, mas vestidos de professores, em geral alemães). A existência deste ou da- quele tipo de cátedra por trás de todo antropólogo, do College de France a All Souls, do University College a Morn.ingside He.ights, parece hoje fazer parte da ordem natural das coisas. Talvez existam algumas carreiras mais completamente acadc- mizadas - a paleografia e o estudo dos líquens -, mas não muitas. Entretanto, embora o fato de que quase todos os etnó- i:,:rrafos são tipos universitários de uma espécie ou de outra seja tão conhecido que chega a obscurecer a idéia de que as coisas poderiam ser diferentes, as incongruências implícitas nessa forma de vida dividida - alguns anos, de quando em vez, perambulando com pastores ou plantadores de ínhame, e uma vida inteira lecionando para turmas e discutindo com ◊ 170 ◊ ~ f j ESTARAQUJ ◊ colegas - começaram, recentemente, a se fazer sentir com mais agudeza. A distância entre interagir com outros onde eles estão e representá-los onde não estão, sempre imensa, mas não muito notada, de repente tornou-se extrern.amente visível. O que antes parecia apenas tecnicamente difícil - introduzir a vida "deles" em "nossos" livros - tornou-se delicado, em termos morais, políticos e até epistemológicos. Ã sujjisa~cede Lévi-Strauss, a segurança- de -Êvans-Pritchard, a impetuosidade de Malinowski e a imperturbabilidade de Benedict parecem hoje muito distantes. O que está em pauta é um nervosismo generalizado sobre toda a questão de se pretender explicar o outro enigmático sob a alegação de ter convivido com ele em seu hábitat natural, ou de ter vasculhado os escritos dos que o fizeram. Esse ner - vos.ismo, por sua vez, acarreta diversas reações, variadamente agitadas: atac1ues desconstrutivistas a obras canônicas e à própria idéia do cân9ne, clesmascaramentos de textos antropo- lógicos, baseados na Ideo!ogiek1itik,2 como continuação do -imperialismo por-outros meios, e toques de clarim convocando à reflexão, ao diálogo, à heteroglossia, ao jogo lin6:rüístico, à consciência retórica, à tradução performativa, aos registros literais e à narrativa na primeira pessoa como formas de cura.3 A pergunta de Emawayish está hoje em toda parte: Que acontece com a realidade quando ela é despachada para o exterior? 2 Crítica da ideologia. (N. da T.) 3 Para uma coletânea interessante do muito bom e do muito ruim, do culto e do pretensioso, do verdadeiramente original e do meramente deslumbrado, ver J. Cliffotd e G. Mateus (org.), W1iting c11/tt1re: the poetics and politics of ◊ 171 ◊ pedro Realce Ó OBRAS E VIDAS Tanto o mundo estudado pela maioria dos antropólogos - antes chamado de primitivo tribal tradicional ou folclórico , ' , e hoje chamado de emergente, em processo ele modernização, periférico ou submerso - quanto o mundo a partir do qual a maioria deles o estuda - o mundo acadêmico - passaram por vastas mudanças em relação ao que eram na época ele Dimdirn e Dirty Dick, de um lado, e do Centro de Pesquisa de Culturas Contemporâneas ele Colúmbia, de outro. O fon do colonia- lismo alterou radicalmente a natureza da relação social entre os que perguntam e observam e os que são perguntados e observados. O declinio da confiança em fatos brutos, proce- dimentos preestabelecidos e conhecimento descontextua- lizado no campo das ciências humanas e, a rigor, do saber especializado em geral, alteraram não menos essencialmente a concepção que têm os indagadores e observadores daquilo que estão tentando fazer. O .imperialismo, em sua forma clássica ele metrópoles e possessões, e o cientificismo, em sua forma clássica de impulsos e bolas de bilhar, ruíram mais ou menos ao mesmo tempo. As coisas foram menos simples, desde então, tanto do lado do Estar Lá quanto do lado do Etlmography, Berkeley, CaJifórcia, 1986. Para uma crítica um tanto afobada, ver G. Marcus e M. Fischer, Anthr_ojJology as cultura! nitique: an expcrirnen tal moment 111 the Human Sctences Chicago 1986 O tr . · · d , ., • , . u os recentes srnais os rnesm~s tempos incluem: J. Fabian, Time and the other: how Anthro )olo makes 1ts ob1ect, Nova York, 1983·] Cliffio· ~d "O Etl hi tll - gy . , · • , n "' u1ograp e au 1or11:v" Representatwns n 2 1983 118 1 ·-, ' _ , · . , . · , P· - 46; J. Ruby ( org.), A crack in the mirror: reflexive perspectives ill Anthropology, Filadélfia 1982· T As· d ( ) A t/; ·,h /. I h . ' , . a org. ' n ~'ºrº ogi, ant. t, e colomal encounter; Nova York, 1973; e D. I-J ,mes (or ) RemventtngAnth,m,o/o N v ·] • • } g. ' vr V', ova 1. or (, 197 4, ongw.almente publicado em 1969, o 172 o .1 ESTAR AQUI ◊ Estar Aqui da equação antropológica - uma equação que, hoje em dia, as qtúnciuilharias do Primeiro Mundo e as canções do Terceiro Mundo mais fazem ridicularizar do que resolver. o o ◊ .A transformação das pessoas sobre quem mais os antro- pólogos escrevem, em parte jurídica, em parte ideológica e em part; real~ onvertendo-as desuditos coloniais em citiadãos - · --- soberanos, alterou inteiramente (sejam quais forem as ironias envolvidas em Uganda, na Líbia ou no Camboja) o contexto moral em que se dá o ato etnográfico. Mesmo ac1ueles aJhures exemplares que não eram colônias, mas regiões interioranas sem recursos ou domínios fechados "no meio do mar" - a ' Amazônia ele Lévi-Strauss ou o Japão de Benedict -, aparecem sob wn prisma muito diferente, desde que a partilha territorial, Lumumba, o Suez e o Vietnã modificaram a gramática política do mundo. A dispersão global mais recente de povos antes encapsulados - argelinos na França, coreanos no Kuwait, pa- quistaneses em Londres, cubanos em lv1iam.í - só fe7. ampliar esse processo, reduzindo o espaço entre as mentalidades dife- rentes, como também o fez, é claro, o turismo movido a aviões a jato. Um dos grandes pressupostos em que se alicerçavam os escritos antropológicos, até data muito recente - o de que seus objetos de estudo e seu público eram não apenas sepa- ráveis, mas estavam também moralmente desvinculados, e de que os primeiros deviam ser descritos, mas não con\ridados a se manifestar, e os últimos deviam ser informados, mas não implicados -, praticamente se desfez. O mundo ainda tem seus compartimentos, mas as passagens entre eles são muito mais numerosas e muito menos protegidas. ◊ 173 o pedro Realce 1 1 l l ·1 1 i ◊ OBRAS E VJDAS ESTAR AQUI ◊ Essa confusão entre objeto e público, como se Gibbon4 descrevê-los ( ... ), f sou eu que vou] criá-los" (Malinowski, de repente se descobrisse com um público leitor romano, ou 1967, p. 150)6 - , num mundo da ÜPEP, da Associação de se o M. Homais5 publicasse ensaios sobre ''J\. descrição da Nações do Sudeste Asiático, de Things fall apart 7 e de vida provinciana em lvl.adame Bovmy" em La Revue des Deux tonganeses jogando com os Redskins de Washington (bem Mondes, deixa os antropólogos contemporâneos numa certa como de antropólogos iorubanos, cingaleses e teuas), soa não insegurança quanto ao objetivo da retórica. Quem deve ser apenas pretensioso, mas francamente cômico. "[O que] setor- convencido hoje em dia: os africanistas ou os africanos? Os J:?.OU irredutive]!:n~nt~ curioso", escrevell o metaetn~grafo J~ - - ----- ------::--- - a rn. e rica nistas ou os índios norte-americanos? Os nipologistas mes Clifford (embora talvez tenha pretendido dizer "duvi- ou os japoneses? E convencidos de quê: da exatidão dos fatos? doso"), "já não é o outro, mas a descrição cultural em si" Do alcance teórico? Da apreensão imaginativa? Da profun- (Cliffotd, "DADA DATA", 1987, p. 162-164).8 deza moral? É bem fácil responder "Todas as alternativas acima", porém não é tão fácil produzir l ill1 texto que assim o faça. Na verdade, o próprio diseito de escrever - de escrever etnografia - parece estar em risco. A entrada de povos antes colonizados ou proscritos (usando suas próprias máscaras e falando suas próprias palavras) no palco da economia global, da política de cúpula internacional e da cultura mundial tornou cada vez mais difícil sustentar a afirmação do antropólogo de gue ele é uma tribuna para os não-ouvidos, um representante dos não-vistos, um conhecedor dos mal-interpretados. O feliz "Eureca!" de Malinowski, ao deparar-se pela primeira vez com os trobriandeses - "Sentimento dê posse: sou eu que vou 4 E<l~arcl Gibbon (1737-1794), historiador inglês que, com sua Históna da decadencta e queda do Impbio Iv;1na110, fez uma das primeiras tentativas de reali- zat um trabalho histórico de cunho científico. (N. ela T.) 5 Personagem deMadameBowD', de Flaubert, que é um farmacêutico vaidoso e desconhecedor dos limites de seu saber. (N. ela T.) ◊ 174 ◊ Ela se tornou curiosa (ou duvidosa, ou exploratória, ou opressiva, ou brutal - os adjetivos vão mm1a escalada) porque a maioria dos antropólogos que escrevem hoje em dia en- contra-se numa profissão que, basicamente, formou-se num contexto histórico - o do Encontro Colonial - com o qual eles não tiveram nem querem ter nenhuma experiência. O desejo de se distanciarem das assimetrias de poder em que se alicerçou esse encontro, tanto na antropologia quanto em tudo o mais (e as quais,-por maisque sua forma se haja modificado, não chegaram propriamente a desaparecer), costuma ser muito intenso, às vezes preponderante, e produz uma atitude ao me- nos ambivalente em relação à própria idéia da etnografia: füs) confrontos ritualmente repetitivos com o Outro a que chamamos trabalho ele campo tal.vez não passem de casos 6 B. Malino,vski, A diary in the strict sense of the term, Nova York. 7 Primeiro romance (1958) do escritor nigeriano de língua inglesa Chinua Achebe, nascido em Ogicli em 1930. (N. da T.) 8 J. Clifforcl, "DADA DATA", S11/fur, n. 16. o 175 o ◊ OBRAS E VIDAS especiais da luta geral entre o Ocidente e seu Outro. Um mito persistente co ·lh d . , ~pam a o tanto pelos imperialistas qudantodpor n1tu,ro_s cnucos (ocidentais) do imperialismo tem 51 0 0 e un1a umca e d · · · ' b 1 . ecisiva congrnsta, ocupação ou esta-e ec1.mento do poder colonial . Plernento e111 .d,. . . , rmto este que tem seu com-1 eias S1ill1lares l , b . d . so à .indepen r . Am' . e e su lta escolomzação e aces- c encia. bos trabaU . · . da importância teórica ade uada ;aram c_o~1tta a atnbmção de atos reiterador de ~ • os rndíaos esmagadores . · opressao campanh- d "fi _ sufocamento de.rebfiliee..,~ . tle;· . -~ '_ -~ e paa 1caçao e por meios militares pel d' g ··. est:s tenham sido executados , a ou tnnaçao li · . por medidas ad.miiu· tr . re giosa e educacional s ativas ou com , · ' em dia, por complexas t . 1 - o e mais comum hoje micas sob a cap d . 1 nampu açoes monetárias e econô- a pos;ibiiidade p:r acliaJu~ .ª ext:r'.1ª· ( ... ) Não podemos excluir . . ' a ze1. o l1111UJno d e ali - ttuva de pesguisas de , , . que a rc zaçao repe- campo por rrulhares d · antropóloo-os bem c·oin . · e aspirantes a b ' · o por pratic t ·, anr:ropoloo-i,1 t l r • , an es Ja estabelecidos da ;:r', en 1a te1to parte de um f. , manter um cerro tipo de rela - es o~ço conttm10 de tro. (Fabian, 1983, p. 149)9 çao entre o Ocidente e seu Ou- Nem todas as afirmações são tão . . ~ t , .· cruas nem tao peremp-onas quanto essa Mas o d d • . ] . esta o e anuno ai projetado ("[E,·. te agora uma razão real para temer pelo fut . d , ~s- 0 fon do imperialismo ( ) , . .fi , uro a Mltropolog1a. ' ... s1gru 1cara O fim do f, • poloo-ia" di que 01 a antro- º' ' como sse outro observador alarmado e .d d · · ) ' muni o e um ptoJeto (Willis, 197 4, p. 146) w é conJp . d de se haver tr t ee1 ° a ponto ·~ ans armado num Jeitmotiv. Na antropolo . tal como na reQlao sulista de F ulkn . gia, 0 ' ª ei o passado ~ está morto como nem , ' ' nao apenas não seguer e passado· trabalh d d Po qu ' a ores e carn-e retornam e atrave' <· da e . ' " senta tent · tarefa de d ' am esqwvar-se da or enar a "relação entre o Ocidente e seu Outro" ;:-:9 F:-b-. - ,---- a rnn, Tiv1c and the othe,: o, .• 'º W S. WiJli . . " . . . s paienteses e grifos são do original. . s, Jr., Skeletons in th th . &mventing.Anthropology Eli.t . . e an ropolog:ical closer", in Hymes · UJnei uma quebrá de parágrafo. ' ◊ 176 o ESTAR AQUI o são tão comuns quanto costrunavam ser os que tentam, tam- bém pela escrita, assumi-la. Que tarefa eles deverão ter em ve;,; dessa - embora haja sugestões que vão desde virar a antropologia para dentro, fazendo-a debruçar-se sobre as mistificações da sociedade ocidental, até dispersá-la para fora, fazendo-a abarcar a miscelânea internacional da cultura pós- moderna - é menos claro. - ---+-- - ==== Tudo isso fica ainda mais terrível, levando a gritos angus- tiados de perigo e crise, pelo fato de que, ao mesmo tempo em que as fundações morais da etnografia foram abaladas, do lado do Estar Lá, pela descolonização, suas fundações epis- temológicas foram abaladas, do lado do Estar Aqui, por mna perda generalizada da confiança nas histórias aceitas sobre a natureza da representação, . etnográfica ou de outra natureza. Confrontados, no mundo acadêmico, com uma súbita explosão de prefixos polên:úcos (neo, pós, meta, anti) e de títulos de forma subversiva (Depois da virtude, Contra o método, Além da crença), os antropólogos viram acrescentar-se à sua preo- .cupação com o '.'Isso é correto?" (Quem somos nós para os descrever?) uma preocupação com o "Isso é possível?" (Pode o amor etíope ser cantado na França?), com a qual estão ainda menos preparados para lidar. De que modo alguém sabe que alguém sabe não é uma pergunta qu~ eles se tenham habi- tuado a fazer, exceto em termos práticos, empíricos: Quais são os indícios? Como foram colhidos? O que mostr~? Mas de que modo as palavras se ligam ao mundo, os textos à expe- riência e as obras às vidas, essa é uma pergunta que eles não estão minimamente acostumados a formular. · E agora eles estão - pelo menos aqueles dentre os antro- pólogos que não se contentam em exercer as habilidades cos- o 177 ◊ pedro Realce a imanencia do outro que comemos e e depois nos tornamos perigosos para os nossos. <:• OBRAS E VIDAS tumeiras - começando a se acostumar a fazeJ essa pergunta; e alguns, de modo meio vacilante, estão até tentando respon- dê-la, nem que seja porque, se não o fizerem, outros - os lin- giüstas, os semioticisras, os filósofos e, pior do que tudo, os críticos liLerários - o farão cm seu lugar: . A idéia ~oda de "evocar", em vez de "representar" [como 1dcal _do discurso etnográfico], é que ela liberta a etnografia da 1J1!t11eszs e da modãli3acleimptópriãde retórica cíentífica que unpLca "objetos", "fatos", "descrições" "induções" " liz - ' ' genera açoes", "verificação", "experimento", "verdade" e _:=onceitos similares, os quais, exceto como invocações vazias, na~ têm paralelo na experiência <lo trabalho de campo etno- grafico nem nos textos de etnografia. A ânsia de confor- midade aos cânones ela retórica científica fez do realismo cô:nodo da história natural a forma dominante de prosa etno- grafica, mas ele tem sido um realismo ilusório, que promove, por um lado, o absurdo de "descrever" entidades inexistentes, como "cultura" ou "sociedade", como se elas fossem insetos plenamente observáveis, ainda que meio deselegantes, e pror_n~ve, por outro lado, a pretensão behaviorista, igualmen- te ndtcula, de "descrever" padrões repetitivos de acão isolados do discurso que os agentes usam ao constituir e si~a; sua ação, tudo isso na certeza simplista de que o discurso básic_o dos observadores é, ern si mesmo, uma forma objetiva suficiente para a tarefa de descrever atos. O problema do realismo da história natural não é, como muitas vezes se alega, a complex1da_dc do chamado objeto de observação, nem tampouco a impossibilidade de empregar métodos sufi- ~entcm_e~te rigoro~os e replicáveis, e muito menos a suposta .llltratabilidade da linguagem da descrição. Ele reside antes numa falha de toda a ideologia visuaLsta do discurs~ refe~ rencial, com sua retórica de "descrever" "comparar" "clas- sificar,, ... " aliz " ' ' . _ e gener ar , e com sua presunção de uma sig- ru~;açao representacional. Na etnografia, não existem "coi- s_as ª ser obJetú de descrição, uma .aparência original que a Ln01iagem da descr1·ç;, " " 1 . , . ~- - <10 represente como o )Jetos mdexa- d01es para comparação 1 ºfi - liz - . ' , c ass1 tcaçao e genera açao; existe, ç. 178 ◊ ESTAR AQUI v ao contrário, um discurso, e também este não é uma coisa, apesar das afirmações equivocadas <le métodos tradutores de etnografia, como o est.rucuralismo, a etnociência e o diálogo, que tentam representar o discurso nativo ou seus padrões inconscientes e, com isso, cometem mentalmente o crime da história natural. (Tyler, 1986, p. 130-131)11 l sso é meio pomposo para uma disciplina tão pouco lapi- dada quanto a antropologia, e não é de todo coerente. Contudo, por mais bombásti.c; e febril gue seja sua tese (Tyler chega a pronunciar a etnografia como "um documento oculto ( ... ), uma conjunção enigmática, paradoxal e esotérica da realidade com a fantasia ( ... ), uma realidade fantasiosade uma fantasia de realidade") (ibid., p. 134), ela reflete o reconheci.n1ento, cada vez mais difundido, de que "dizer a coisa como ela é" não chega a ser um lema mais adeql.lado para a etnografia elo que para a filosofia desde Wittgenstein (ou Gadamer), para a história desde Collingwood (ou R.icoeur), para a literatura desde Auerbach (ou Barthes), para a pintura desde Gombrich (ou Goodman), para a política desde Foucault (ou Skinner), C>':' para a física desde Kuhn (ou Hesse). Quer o "evocar" solucione ou não o problema, quer o paradoxo o situe ou não, está bem claro que exúte um problema. Essa chuvinha de nomes, que poderia facilmente escalar para um aguaceiro tropical, se esquadrinhássemos todo o pa- norama do auto-exame metodológico nas artes e ciências, su- gere ("evoca", talvez) as dimensões do problema que hoje en- frentam os emógrafos, praticamente todos os quais têm pelo 11 S. Tylcr, "Post-Modern Ethnography: from documen t of the occult to occult document", inJ. Clifford e G. Marcus, W,iting mlt11re. v 179 O pedro Realce 1 t. 1 ! -, ◊ OBRAS E VI0AS ESTAR AQUI ◊ menos um resto de afeição pelos "fatos, descrições, induções contar histórias sobre como vivem outras pessoas, nem a mse- e [pela] verdade". O difundido questionamento das modali- gurança epistemológica implícita em formular essas histórias dades normativas de construção do texto - e das formas pa- em gêneros eruditos - coisas que são, ambas, bastante reais, dronizadas de leitura- não só deixa menos cômodo o realismo estão sempre presentes e fazem parte do conjunto. O pro- cômodo, mas também o torna menos convincente. Quer a "his- blema é que, agora que essas questões estão passando a ser tória naturaJ?' seja um crime mental ou não, ela já não parece discutidas abertamente, em vez de encobertas por uma mística tão natural, nem para os gue a lêem nem para os que a escre- ,r_qfissional, subitament~_2_.fardo __ da autoria parece mais pe- vem. Além d-a-h:ip-oconâiia móiãrgue ac:Ivém do exerc_íc_i_o_d_e _____ -:-1--- s-ado. Uma vez que se começa a olhar para os, textos de etno- uma profissão herdada de contemporâneos de l(ipling e ornfia além de olhar através deles, e se percebe que eles são L h b ' . yautey, á uma dúvida autora.! sobre si mesmo que provém construídos, e construídos para persuadir, aqueles que os pro- de exercê-la num universo acadêmico assediado por para- <luzem passam a ter muito mais por gue responder. De início, digmas, epistemes, jogos ele linguagem, Vorurteile, 12 epochés, essa situação pode ser alarmante, gerando no estahlishment bati- a.tos ilocutórios, S/s, prob!ématiques, intencionalidades, aporias f , d , · d das de mesa pela "volta aos atos' , e em seus a versa.nos e- e écriture - "Como fazer coisas com as palavras", "Devemos d ·d d safios calcados na vontade de poder. Mas, haven o tenac1 a e tencionar dizer o que dizemos?", "zl n_'y a pas de hors-texte",13 e coragem suficientes, é possível nos habituarmos a ela. "A prisão da linguagem". A inadequação entre as palavras e a experiência, bem como a tendência delas a levar tão-somente Se o período in1ediatamente à frente levará a uma reno- a outras palavras, são algo gue os poetas e matemáticos conhe- vação das energias discursivas da antropologia ou à sua dissi- cem há muito tempo, mas constituem uma descoberta bastante pação, a uma recuperação da coragem autoral ou à sua perda, nova no que concerne aos etnógrafos e têm-nos deixado, ou -dependerá de esse campo (ou, mais exatamente, seus prati- dei.xado alguns deles, numa espécie de confusão, talvez per- cantes potenciais) poder adaptar-se a uma situação em gue manente, provavelmente não. suas metas, sua importância, seus motivos e seus métodos ◊ ◊ ◊ A confusão pode não ser permanente, porque as angústias gue a provocam talvez possam ser dominadas, mediante um reconhecimento mais claro de sua verdadeira origem, O pro- blema básico não é nem a insegurança moral envolvida em 12 Preconceitos. (N. da T.) 13 "O tr aJ - . ex atextu· nao existe". (N. da T.) ◊ 180 ◊ serão todos questionados. Os próprios "fundadores de discur- sividade" aqui examinados ( e alguns outros não examinados, de peso pelo menos igual), que levaram o campo à sua forma atual, tiveram de superar enormes problemas de formulação e persuasão; a suspensão da descrença nunca foi aqui: conce- dida particularmente de bom grado. Mas eles foram pel~ menos bastante poupados no que toca a ataques à justificação de sua empreitada, ou à simples possibilidade de levá-la a cabo. O que eles fizeram pode ter sido estranho, mas foi admirável; ◊ 181 o pedro Realce pedro Realce pedro Realce pedro Realce ◊ OBRAS E: VIDAS pode ter sido difícil, mas era razoavelmente exequível. Escre- vei· etnografia hoje é escrever reconhecendo que essas pressu- posições estão mortas, tanto nos autores quanto no público. Nem a presunção de inocêl'.l.cia nem o benefício da dúvida são automaticamente concedidos; a rigor, a não ser por coefi- cientes de correlação e testes de significância, não são conce- didos em absoluto. ESTAR AQUI ◊ quo ou um jogo impossível de jogar, ele parece envolver o reconhecimento de que, como a mecânica quântica ou a ópera italiana, ela é um trabalho da imaginação, menos extravagante do que a primeira e menos metódico do que a segunda. A res- ponsabilidade ou o mérito pela etnografia não podem ser de- positados noutra porta senão na dos românticos que a so- nharam. - - -- - - ------!-:;-- - - - -------- f A situação de autores parcialmente convencidos, ten- tando convencer parcialmente os leitores de suas convicções parciais, não parece, à primeira vista, ser especialmente favo- rável à produção de obras de grande poder, obras capazes, a despeito de suas deficiências, de fazer o que fizeram as de Lévi-Strauss, Evans-Pritchard, Malinowski e Benedict: ampliar o sentido de como pode dar-se a vida. No entanto, é exata- mente isso que deve acontecer, para que o trabalho siga em frente; e, se for possível evitar a mera dedicação intensiva ("Não pense na etnografia, apenas pratique-a") ou a mera fuga ("Não pratique a etnografia, apenas pense nela"), isso deverá ser viável. O que se faz necessário é apenas uma arte comparável. Dizer que, em termos mais imediatos, o que está im- plicado em manter vivo e atuante esse gênero é uma arte - não uma realização menor, como a perícia, ou maior, como o esclarecimento - é também dizer que não se pode fugir ao ônus da autoria, por mais pesado que ele se tenha tornado; não há possibilidade de transferi-lo para o "método", a "lin- !:,>uagem" ou (manobra especiahnente popular no momento) "as próprias pessoas", redescritas ("apropriadas" seria um termo melhor, provavelmente) como co-autoras. Se existe um modo de refutar a concepção da etnografia como um ato iní- o 182 o 1 f 1. -1 ··-· Afirmar (a rigor, indicar, pois, como uma perspectiva aérea ou o teorema de Pitágoras, a coisa, uma vez vista, não pode ser não-vista) que escrever etnografia implica contar histórias, criar imagens, conceber simbolismos e desfiar figuras de linPUagem encontra comumente uma resistência, amiúde à ' feroz, em virtude de uma confusão, que é endêmica no Oci- dente pelo menos desde Platão, do imaginado com o imagi- nário, do ficcional com o falso, da compreensão de coisas com a invenção delas. A estranha idéia de que a realidade tem uma linguagem em que prefere ser descrita, de gue sua própria natureza exige que falemos dela sem espalhafato - pau é pau, pedq é pedra, rosa é rosa -, sob pena de ilusão, invencionice e auto-enfeitiçamento, leva à idéia ainda mais estranha de que, perdido o literalismo, também a realidade se perderá. Isso não pode estar certo, pois, se assim fosse, quase todos os escritos discutidos neste livro, tanto grandes quanto pequenos (bem como praticamente todos os textos de etno- grafia publicados atualmente), teriam
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