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Geertz Clifford. A Situação Atual

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86
til
5 A situação atual
nv I' a d lub s ial" ("d algum m d ,
, d rn sm cip , P n arn da mesma maneira"), até argu-
1111 Il'all arn nt in titu ionais ("qualquer um que se forme num departa-
11111 li nntr p logia é antropólogo"). Mas nenhum deles parece realmente
I I II ri . Nã pode tratar-se de que estudemos povos "tribais" ou "prirniti-
I I 11' lU , a sta altura, a maioria de nós não o faz e, de qualquer modo, já
I I 1110, muita certeza do que seja uma "tribo" ou um "primitivo", se é que
( •. Não pode tratar-se de que estudemos "outras sociedades", porque
I 1111111 'r ada vez maior de nós estuda a nossa mesmo, inclusive a parcela
l' 111 ' de nós - cingaleses, nigerianos, japoneses - que pertence a essas
d d "N d d d "I» "C1111 I NO i a es. ão po e tratar-se e que estu emos a eu tura , as ror-
I1 vida" ou o "ponto de vista do nativo", porque, nestes tempos herme-
111 , I ' mióticos, quem não o faz?
11 ) há nada de particularmente novo nessa situação. Ela existe desde os
1IIIIIIIIIIosdesse campo, quando quer que eles tenham ocorrido (com Rivers?
1111 11 rder? Heródoto?), e sem dúvida estará por perto em seu fim, se ele
I I tios últimos anos, contudo, ela assumiu uma certa nitidez e deu origem a
til , rta angústia, que não é fácil de descartar com atitudes como "são ossos
11111 io". Um incômodo crônico, do tipo que dá fisgadas, transformou-se
11111 1\ ôrnodo agudo, do tipo que irrita.
Iificuldade inicial de descrever a antropologia como uma iniciativa coe-
que ela consiste, muito especialmente nos Estados Unidos, mas em
I \I I nificativo também noutras partes do mundo, numa coletânea de ciên-
I, III1Iitodiversamente concebidas e unidas de maneira bastante acidental,
I ',Isarem todas elas, de um modo ou de outro (para citar mais um título
tIl' I ,I" que hoje imagino que seria julgado sexista), sobre O homem e suas
,n, A arqueologia (exceto a clássica, que manteve patrulhadas as suas fron-
II I "antropologia física, a antropologia cultural (ou social) e a linguística
111 11 Ipológica formaram uma espécie de consórcio de fugitivos reunidos, cuja
I I ' I S mpre foi tão obscura quanto foi declarada sua correção. A ideologia
" uatro Campos", proclamada nos discursos e cultuada nos departamen-
I unlversitários, manteve unida uma disciplina descentrada, feita de visões
II I 11 5, pesquisas pouco interligadas e alianças improváveis: uma autêntica
11111 l da vida sobre a lógica.
Mas há um limite para o que se pode fazer com os sentimentos, os hábitos
II Ip los liberais às vantagens da amplitude. À medida que avançam tecnica-
I 111 as várias ciências extra-antropológicas de que dependem as várias ciên-
I [ntra-antropológicas, a lógica começa a se vingar. Especialmente nos casos
I, 11Iropologia física e da linguística, o desvio da antiga aliança foi acentuado.
I primeira, os avanços na genética, na neurologia e na etologia viraram de
Entrando com passo desajeitado
Uma das vantagens da antropologia como empreitada acadêmica é qu
guém, nem mesmo os que a praticam, sabe exatamente o que ela é. G 1'\( 1
observa a cópula de babuínos, gente que reescreve mitos em fórmulas alg hr]
gente que desenterra esqueletos do pleistoceno, gente que elabora correla I
pontos decimais entre as práticas do treinamento esfincreriano e as te da
doença, gente que decodifica hieroglifos dos maias e gente que classifica 8, i
mas de parentesco em tipologias nas quais o nosso aparece como "esquimó",
dos se denominam antropólogos. O mesmo fazem as pessoas que anali :\111
ritmos dos tambores africanos, dispõem a totalidade da história humana '11
ses evolutivas que culminam na China comunista ou no movimento ecoJó I
ou refletem em geral sobre a natureza da natureza humana. Livros intitulu I
(escolhi alguns ao acaso) O cabelo da Medusa, O chefe e eu, A lamparina ver",
do incesto, Teoria da cerâmica e processo cultural; Do Kamo, Conhecimento i' I'
xão, A linguagem escolar americana, Pronunciamentos circunstanciais e O dialm
fetichismo da mercadoria apresentam-se, todos eles, como antropológicos, "I
faz também um livro que me caiu nas mãos sem ser chamado, alguns ano :111
de um homem cuja teoria é que os macedônios derivaram originalment
Escócia, com base no fato de tocarem gaitas de foles.
Há diversos resultados disso tudo, sem falar numa porção de belos x
pios de pessoas cuja ambição ultrapassa seu discernimento, porém o mais I
portante deles, sem dúvida, é uma crise permanente de identid:
Costuma-se perguntar aos antropólogos, e eles perguntam a si mesmo ,
que sua atividade difere do que fazem o sociólogo, o historiador, o psicól
ou o cientista político, e eles não têm nenhuma resposta pronta, exceto
sem dúvida há uma diferença. Os esforços de definir esse campo vão desd
tHi
pernas para o ar a antiga • b J:' la r I 1 dn l OIM I, <tU
cabeça, e levaram um número ada v 'l I wl I' d' 'S 11 l in int r s<d
evolução humana a achar que bem poderi 111 t l' nut . a di iplina biol j u
dar o assunto por encerrado. Na segunda, o advent da gramática gerativa ,.
vou à construção de uma nova associação com a psicologia, os estudos de in 01'
mática e outras empreitadas de alta tecnologia, majestosamente intitulada d·
"ciência cognitiva". Até a arqueologia, entremeada com a paleoecologia, a bio
geografia e a teoria dos sistemas, tornou-se muito mais autônoma e, um di I
desses, poderá começar a referir-se a si mesma de forma mais ambiciosa. T di
e~sadescosedura nos faz pensar em universos que se foram: a filologia, a hi 1;Ô
na natural, a economia política, o Império dos Habsburgo. As diferenças int I'
nas estão começando a aparecer.
No entanto, não é esse movimento centrífugo, por mais poderoso que 11
tenha tornado, que constitui a causa principal da atual sensação de desconfor
to. A história, a filosofia, a crítica literária e até a psicologia, mais recentemen
te, passaram por uma diversificação interna similar, por motivos semelhant s,
mas conseguiram manter pelo menos uma identidade geral. A empresa matriz
da antropologia decerto se manterá, ainda que a duras penas, por mais algum
tempo, nem que seja porque as pessoas interessadas no animal humano que
não se importam com a sociobiologia, ou as pessoas interessadas na linguagem
que não estão enamoradas da gramática gerativo-transformacional, podem en-
contrar nela um abrigo protegido dos imperialismos dos entomologistas e d /I
lógicos. Os problemas mais perturbadores vêm surgindo no ramo da disciplina
que ainda é o maior, o mais visível e o que mais costuma ser percebido pelo
mundo em geral como aquele que a distingue (e que é também aquele a que eu
mesmo pertenço): a antropologia social, cultural ou sociocultural. Se há pro-
blemas na periferia, eles são ainda maiores na capital.
A primeira das dificuldades, a mais sentida e mais comentada, embora eu
duvide que seja a mais importante, é o problema do "desaparecimento do obje-
to". Se algum dia foi cabível darmos aos "primitivos" esse nome, ou se real-
mente havia, mesmo no século XIX, muitos povos realmente "intocados" no
mundo, é certo que hoje mal chega a existir algum grupo que mereça essas ca-
racteri~ações. As terras altas da Nova Guiné, a Amazônia e talvez algumas paF-
tes do Artico ou do Kalahari são praticamente os únicos lugares em que se pod
sequer encontrar candidatos a sociedades "intactas", "simples", "elementares"
ou "sel~agens" (para invocar alguns outros termos obsoletos desse campo); e,
~a medida em que realmente existem como tais, elas estão sendo rapidament
incorporadas, como aconteceu antes com os índios norte-americanos, os abo-
rígenes australianos e os nilóticos da África, nos planos maiores desta ou da-
quela pessoa. Os "primitivos", mesmo os do tipo que celebrizou Boas, Mead,
M tlllJOws.I i ·Hv,l1.'·PI'lt hard.r l1l" p. .rim !li c tado, je m
ti I, 1 111, ad l' inai ria d s an L' p 1 g so iais não e tá zarpando para
111 111 I,\, o r istradas n s m pa ou entrando m paraísosna selva, mas atiran-
,10.' \ m assombro as entidades da história mundial, como a índia, o Japão, o
IIj~lro, a récia ou o Brasil.
ontudo, não é o desaparecimento de uma temática supostamente única,
.111 ~im sma, que se tem revelado um abalo nos alicerces da antropologia so-
l 11, sim uma outra privação, acarretada pelo envolvimento com sociedades
111 'nos proscritas: a perda do isolamento das pesquisas. As pessoas que furavam
ti Iinriz ou usavam tatuagens no corpo, ou que enterravam seus mortos em ár-
VOI' 'S, talvez nunca tenham sido os solitários que presumimos que fossem, mas
11I1,\' O éramos. Os antropólogos que partiam para os T alensi, a tundra ou os Ti-
I npia faziam de tudo: economia, política, direito, religião; psicologia e posse
11\ C na, dança e parentesco; falavam de como os filhos eram criados, de como
nstruíam casas, caçavam-se focas e se contavam histórias. Não havia mais
11111 uérn por perto, exceto, vez por outra e a uma adequada distância acadêmi-
• \, um outro antropólogo; ou então, quando havia- um missionário, um ne-
/ O iiante, uma autoridade municipal, ou Paul Gauguin -, ele ou ela eram
111 .ntalmenre postos de lado. Eram mundos pequenos, talvez, mas eram justa-
II1 .nte a nossa concha.
Nada disso existe mais. Quando se vai à Nigéria, ao México, à China, ou,
l'OInO no meu caso, à Indonésia e ao Marrocos, o que se encontra não são ape-
1115 "nativos" e cabanas de barro, mas economistas calculando coeficientes de
iini, cientistas políticos fazendo escalas de atitudes, historiadores cotejando
.10 umentos, psicólogos fazendo experimentos, e sociólogos contando casas,
I' ssoas ou ocupações. Os advogados, os críticos literários, os arquitetos e até os
[llósofos, não mais satisfeitos em "tirar a rolha do antigo enigma/ e ver os para-
loxos efervescerem", estão entrando em ação. Andar descalço pela Totalidade
I, ultura já não é uma alternativa, na verdade, e o antropólogo que tenta fa-
,/, -10 corre o grave risco de ser desancado por escrito por um crítico ultrajado
011 por um demógrafo enlouquecido. Hoje somos, claramente, uma espécie de
I ncia especial, ou, pelo menos, é bom que não demoremos a nos transformar
nisso. A única pergunta, agora que "do Homem" é um pouco demais como
" isposta, é: ciência de quê?
A resposta a essa pergunta dilacerante tem consistido menos em respon-
I -Ia do que em voltar a enfatizar o "método" que, pelo menos desde Mali-
nowski, é considerado o princípio e o fim da antropologia social- o trabalho
-rnográfico de campo. O que fazemos que os outros não fazem, ou só fazem
I) casionalmente, e não tão bem feito, é (segundo essa visão) conversar com o
homem do arrozal ou a mulher do bazar, quase sempre em termos não conven-
,---------------- --~
90 Nova luz sobre a antropologia
cionais, no estilo "uma coisa leva a outra e tudo leva a tudOOfllaiS",em língua
vernácula e por longos períodos de tempo, sempre observandomuito de perto
como eles se comportam. O caráter especial "do que osantrop6logosfazem",
sua abordagem holista, humanista, sobretudo qualitacivaefortementeartesa-
nal da pesquisa social, é o cerne da questão (como nos ensinamosa afirmar). A
Nigéria pode não ser uma tribo e a Itália não é uma ilhr, l1Iasumofício apren-
dido em tribos ou desenvolvido em ilhas ainda pod I'ovcladimensõesdo ser
que se ocultam de tipos mais rigorosos e mais organlzndos,coflloos economis-
tas, os historiadores, os exegetas e os cientistas políti 'ON,
O curioso, nesse esforço de nos definirmos em tCI'tlIo!dwffiestilo de pes-
quisa particular, coloquial e informal, radicado nUI11conjuntoespecífico d
habilidades improvisadoras e pessoais, e não 111 t 'l'lIl0H(In~uiloque estuda-
mos, das teorias que abraçamos ou das descob rcas íJ\l~~8rernmosfazer, é qll. '
ele tem sido mais eficaz fora da profissão do qu ' d 1111'0(lelll,
O prestígio da antropologia, ou da antropoloBi 1 odow!rural,pelo m -
nos, nunca foi maior do que é hoje na história, 11li 1110olll,llwítica literária,
na teologia, no direito, na ciência política, OLl, aI (r 1'lOllOlllO,na sociologia,
na psicologia e na economia (os casos diílc 1), (:111111\,I,jli·~trauss,Victor
Turner, Mary Douglas, Eric Wolf, Marshall S, 111111, F,(IIlI~lldLeach, Louis
Dumont, Melford Spiro, Ernest Gellner, Marvin 1IIII'INIJ~ikGoody,Pierrc
Bourdieu e eu mesmo (para ensaiar uma lis a 'lu 'd 1'llIllllldaheide lamen-
tar) somos citados por toda parte, por todo O 111\111110fllHlI'lIlorlaa sorte de Fi·
nalidades. A "perspectiva antropológica", no lIll'\ 1I11111~lOintelectualm
geral, está "na moda", e há poucos sinai d lU 11 Ipll li! 111\(loresde jargõ "
chamam de seu "alcance" esteja fazend 11I"1\ '1\ HII HIII~llIlc~cer.Dentro dn
disciplina, entretanto, o clima é menos rimistn, A pll\1'111irlcntificação 1\
"mentalidade do trabalho de campo" orno 0/1111111111111!1~IOlnadiferent s ~
justifica nossa existência, num mundo u s' 10111111111111Il1llllogico,só faz in
tensificar a preocupação com a respeitabili l,tI ' 111IllllIlllIll~ciplina,por lIIlI
lado, e com sua legitimidade moral, pOl' 01111'0,AI'IHllllllltllodoque s 'C '111
numa só aposta produz um certo n rvoslsm«, 11"1' Yllilllciraalgo muito
próximo do pânico.
Do lado da ciência, essa pr O Llptt 10 t '1111 11_,,!l1i111I10orn a qu se: (l
de saber se pesquisas que se ap j,1'11 cno 11111'11,111111111Illllltnrjll.:ssoal- 11111
dado pesquisador num dado momento, li111 '1Il1lilllllllhllllUllumrto loenl
d C'. • " 1" 11 11 I 111 l ( '11- po em ser sun t I1C'J'\'1nee O»)'IIVII, ~ 11111111,11,tcpro UZV'111,
" lativas" cc 1"· n" 11 UI: I " ' 1umu atrva , PI" JtJV:'lS 'xutns OU 11 I \'1 ~ \1"11~hll'nuns o qlh
1111(1 I fi k histól'jns pln\l,'/v 'i.~. ) Ilq II 111111111,11111111i 'i inlsmo, 11
S\I hj '1ivis 1110,o cSIt'I i. 1110( t ti V('~, li Iti t Id, 1111111,,I ~1I1r1I1111\~ildllSI I'ovas p ,L,
Ii lI'lI'ir.1(' ti I 11'1'11111'1I1,1~Il pl·11l(' 11111'11111111111111111111I'II~IIN\ I.II'OH • 111
A situação atual 91
li ntes - O estado mais temido, a ausência de paradigmas, é uma aflição per-
manente. Que tipo de cientistas são esses cuja técnica principal é a
ociabilidade e cujo principal instrumento são eles mesmos? Que podemos es-
p rar deles, senão uma prosa carregada e belas teorias?
À medida que a antropologia caminhou para ocupar seu lugar como uma
disciplina entre outras, ressurgiu uma forma nova de um debate antigo e por
d 'mais conhecido, Geisteswissenschaften vs. Naturwissenschaften [ciências do
spírito versusciências da natureza], e ressurgiu sob uma forma especialmente
virulenta e degradada - o déjà vu outra vez. Entrando tardiamente e com pas-
I) desajeitado, como disse Forster certa vez, referindo-se à Índia, para encon-
li' r seu lugar entre as nações, a antropologia viu-se cada vez mais dividida
ntre aqueles que se dispõem a ampliar e desenvolver sua tradição aceita -
11111a tradição que começa por rejeitar a dicotomia entre historicismo e cientifi-
lsmo e que, com Weber, Tocqueville, Burckhardt, Peirce ou Montesquieu,
linha com uma sciencehumaine- e aqueles que, temerosos de serem expulsos
11mesa por não estarem adequadamente vestidos, pretendem transformar esse
uml o numa espécie de física social, repleta de leis, formalismos e provas apo-
I!, icas.
Nessa luta, que irrompe por toda parte, desde os encontros acadêmicos
111lugares sofisticados até as "reavaliações" fantasiosas de obras clássicas, e que
V tn fIcando extraordinariamente acirrada, os caçadores de paradigmas detêm
t maioria das cartas, pelo menos nos Estados Unidos, onde, declarando-se "a
111'1'nte central", dominam as fontes de verbas, as organizações, revistas e ins-
I IIIi ões de pesquisa da profissão, e estão perfeitamente pré-adaptados à men-
111111[.de de lucros e perdas que hoje permeia nossa vida pública. Os jovens (e
1-'.01'1\,as jovens) zelosos de Cornford, determinados a conseguir todo o dinhei-
111 qu é desembolsado, estão hoje por toda parte, mesmo que o dinheiro de-1111lsado não seja tanto assim.
T davia, até os que estão do lado (politicamente) mais fraco, os que se in-
1 1\ 1I11 mais para uma visão das coisas no estilo livre, afligem-se com sua pró-
\,111 V riedade de falta de coragem, só que ela é menos metodológica do que
11I111'\1.Não estão muito preocupados em saber se a pesquisa "mim antropólo-
li, '10 nativo" é rigorosa, mas em saber se é decente. Quanto a isso, no entan-
ItI, 't!io muito preocupados.
11' bl ma começa com algumas reflexões incômodas sobre o envolvi-
I 1110 l p quisa antr ló ica com os regimes coloniais, durante o auge do
Ipt'I'lnl.ism O i I ntal, \ m uas ornbras de agora, reflexões estas acarreta-
1101'li '\lSfl 'S I, i11\( 1 1\lni,q I r ir Mundo sobre a cumplicidade
1 \1111)(11\ dlvi. I) d I Itlllllllllid 1<1' 'I CI' Squ ab m d id m e os que
Illlj('IO do, 111I • ( 11111111111(\ qll tllI t I01 li !\I 11 d \ tS Si t is a usa Õ S'"
92 Nova luz sobre a antropologia
particularmente perturbadoras para estudiosos que durante muito tempo
consideraram amigos do nativo, e que ainda julgam cornpreendê-lo melhor 111
que qualquer outra pessoa, inclusive, talvez, do que ele mesmo. Mas a c j I
não termina aí. Impulsionada pelas imensas máquinas da autodubitac li
pós-moderna- Heidegger, Wittgenstein, Gramsci, Sartre, Foucaulr, Derri 11
e, mais recentemente, Bakhtin -, a angústia se difunde numa preocupa 11
mais generalizada com a representação do "Outro" (inevitavelmente maiúscu
10, inevitavelmente singular) no discurso etnográfico como tal. Não será od I
essa empreitada apenas uma dominação exercida por outros meios: "heg 1111 I
nia", "monólogo", "vouloir-sauoir", "mauvaise flt, "orientalismo"? "Qu II1
somos nós para falar em nome deles?"
Essa não é uma pergunta que se possa simplesmente descartar, como 1111
tas vezes foi descartada por pesquisadores de campo calejados, como resr 1111
gos de antropólogos de botequim ou posto de gasolina; mas seria desejáv 1 1'1
ela fosse abordada com menos agressões e invectivas contra as supostas fal" I
mentais e de caráter dos cientistas sociais burgueses, e com mais rentativns It
realmente respondê-Ia. Houve algumas dessas tentativas, hesitantes e d I
ter bastante formal, mas, pelo menos com igual frequência, a hipo n 1I I
fez-se passar por auto exame e o "Abaixo todos nós!" (porque, afinal, os d, I11
tentes também são burgueses) fez-se passar por crítica. A mudança na iWI "
do etnógrafo, tanto intelectual quanto moral, acarretada pelo deslocam 11[(I li I
antropologia das margens do mundo moderno para seu centro, é tão P" 11 I
mente examinada pelos avisos de perigo iminente quanto pelas reivindi li
clamorosas de ciência. O mero mal-estar é tão evasivo quanto o mero ri (lI. 1
bem mais interesseiro.
Mesmo assim, no entanto, é possível que tudo seja para o bem, se nfí I 11 I
o melhor. A visão que as pessoas de fora têm da antropologia, como um, I 11 I
rosa força regenerativa nos estudos sociais e humanos, agora que ela final III 1111
está se tornando parte integrante deles, em vez de uma pequena diversl O I111
reral, talvez acerte mais no alvo do que a visão dos próprios antrop 1,[ O I,
que a passagem de uma obscuridade dos Mares do Sul para a celebrids I· 1111111
dial está simplesmente expondo a falta de coerência interna da antr polof I.
sua debilidade metodológica e sua hipocrisia política, além, talvez, d SUl 1I1
levância prática. A necessidade de elaborar, defender e ampliar uma ai (lI ti I
gem da pesquisa social que leve a sério a afirmação de que, ao c mpr' '1111 I ,
"outros", sem maiúsculas e no plural, ela é útil para circular ntr ,I ',~ 1111111
eles circulam entre si, ad hoc e tateantemente, vem produzind um. 'lt'1I li, 11
extraordinária. Talvez não seja inteirarnent lIJ'pr nd nt gu' "~,~.II1 1I
ção pareça ameaçadora para algun d qu ã panhndos n melo dcl.u uun
di R( ndall J, 1'1' 11 !TI, I um lu rir, O I r hlenu ti I.~ f:\S '/\ :1111'l'\S < ql!! I 1i
93A situação atual
lue vivem nelas queixam-se de que tudo parece amarelo. O que de foto
lI' iende é o quanto ela parece promissora e até salvadora para outros.
A conjunção de popularidade cultural e inquietação profissional que hoje
tcriza a antropologia não é um paradoxo nem um sinal de que se está per-
I indo um modismo passageiro. É uma indicação de que "a maneira antro-
I i a de ver as coisas", ou "a maneira antropológica de descobrir coisas" e
I umeira antropológica de escrever sobre coisas" (o que dá mais ou menos na
ma) realmente tem para oferecer ao final do século XX - e não apenas nos
do sociais - algo que não se encontra noutros lugares, e está em plena
p. ra determinar exatamente o que é isso.
1 'um lado, as expectativas talvez sejam grandes demais - na excitação
111do esttuturalismo, sem dúvida o foram -, e do outro, as preocupações
muito exageradas. Não obstante, puxado em direções opostas por avanços
I os nas disciplinas afins, internamente dividido por linhas acidentais mal
, Ias, sitiado de um lado pelo cientificismo ressurgente e, de outro, por
IOl'lnaavançada de aperto de mão, e progressivamente privado de seu ob-
oli rinal, de seu isolamento na pesquisa e de sua autoridade incontestável,
IlIp parece não só permanecer razoavelmente intacto, como também, o
mni importante, estender a influência da perspectiva que o define a áreas
'I.mais amplas do pensamento contemporâneo. Acabamos sendo muito
I '111 ntrar de mansinho, com o passo desajeitado. Em nossa confusão resi-
I" I fi rça.
1I1!)!! I gia é uma disciplina cheia de conflitos, eternamente em busca de
I I,,"'a capar de sua condição, eternamente sem conseguir encontrá-Ias.
I -mpre comprometida com uma visão global da vida humana - social,
11,11, biológica e histórica ao mesmo tempo -, ela está sempre recaindo
1111 11 Ire s, queixando-se desse fato e tentando desesperadamente, e sem
11,PI' lj tal' algum tipo de nova unidade para substituir a que imagina ter
111 t qu a ora, pela infidelidade dos atuais praticantes, teria jogado fora,
1 IId.lI11 nt . O lema é "holismo", decantado nos encontros profissionais e
tllVII n erai à luta (das quais existe um número enorme) nas publi-
r fia e pecializadas. A realidade, nas pesquisas efetivamente
"d,l~ n S trabalhos realmente publicados, é a enorme diversidade.
Ii.~IISS .s, li LI ~ intermináveis. As tensões entre as grandes sub-
101.tlllpO I. ntr P I i, fí i a, arqu I ia, anel' p 1 ia lin uística
101°1 i I \ 1111111'1I1 (011 S( iul) (Ill si 10 I' izonvclm -nrc l -m : clrninisrrn-
I)
das pelos mecanismos costumeiros de di r 11 ia ã e especializa e ,11) ti' II
cada subcampo tornou-se uma disciplina bastante autônoma. 15 nr I "li
ceu sem invocações lamuriosas de polímatas ancestrais - havia gi nnt 111
quela época - que supostamente "faziam de tudo". Mas as fi SIII I 1\
antropologia cultural como tal, que é o cerne da disciplina, têm-se 1 10 II ItI I
cada vez mais acentuadas e menos fáceis de conter. A divisão em )11.1
pensamento nitidamente opostas - em abordagens globais conc bi h \I 1i
como alternativas metodológicas, mas como visões de mundo, morais '111' I
cionamentos políticos arraigados - cresceu a um ponto em que os 110 li'
são mais comuns do que as conclusões, e a possibilidade de consenso m 11111111
de qualquer coisa fundamental parece remota. O afastamento que isso, 1111
ta, assim como o sentimento de perda, são consideráveis e sem dúvida sin I I I
mas é muito provável que sejam equivocados. A antropologia em geral I 11\
tropologia cultural em particular extraem a maior parte de sua vitalida I ,li
controvérsias que as animam. Não estão muito destinadas a posições finu
questões resolvidas.
O debate recente, muito celebrado na imprensa intelectual e no cir \I 111
acadêmico, entre Gananath Obeyesekere e Marshall Sahlins, duas das fi \lI
mais ilustres e cornbativas do campo, concerne à maneira como devem S 11
tender a morte do Colombo do Pacífico, o capitão James Cook, nas mã s 111
~avaianos,em 1779.' (Colombo "descobriu" a América quando procurav I ,
India; Cook, três séculos depois, "descobriu" as ilhas Sandwich - e, ant I1
Ias, a Austrália e a Nova Zelândia - ao procurar pela Passagem Noro SI I
Inflamados, eloquentes e intransigentes - além de causticamente engraça liI I
vez por outra -, os dois escancaram algumas das questões mais centrais e 111
geradoras de dissidência nos estudos antropológicos. Depois de ler esses d ; ,
se atacarem, por cima, por baixo e pelos lados, nas cerca de quinhentas págiuu
em que eles se agarram pelo colarinho, o que possa ter acontecido com Co I, I
por quê, parece bem menos importante e, provavelmente, menos determine V I
do que as questões que os autores levantam sobre como devemos entend 1" (
atos e emoções de povos distantes em épocas remotas. Em que consiste pro
priamente "saber" sobre "os outros"? Será isso possível? Será bom?
Com o risco de uma simplificação excessiva (mas não muito: nenhum de
ses dois guerreiros é dado a ideias obscuras), podemos dizer que Sahlins é UIII
esmerado defensor da ideia de que existem culturas distintas, cada qual COIII
"um sistema cultural completo da ação humana", e que elas devem ser entendi
das nos moldes estruturalistas. Obeyesekere é um esmerado defensor da id ;"
de que os atos e crenças das pessoas têm funções práticas particulares em SUII
vida, e de que essas funções e crenças devem ser entendidas em moldes psicol
• 2
glCOS.
'i
od rinal d ahlins, qu rI' u p 11.. Un nhuma modificação des-
I I' P P Ia primeira v z, du s dé da atrás, é que Cook tropeçou
Il,ti,l I E aval (isto é, da "ilha grande" do arquipélago havaiano propri-
I 11(0) P r casião de uma imensa cerimônia chamada Makahiki, que
1i quner m ses e celebrava o renas cimento anual da natureza, e cujo
I rcntr 1 ra a chegada do deus Lono, que vinha de sua casa sobre as
, i1\ li lizado por uma gigantesca imagem de pano de casca de amoreira e
t 11\ d aves, que era desfilada pela ilha durante um mês, no sentido dos
10 I relógio.
hnvaianos dividiam o ano lunar em dois períodos. Um deles era a épo-
11 Mal ahiki, quando a paz, os sacerdotes nativos de Kuali'l e o deus da íer-
I I L no, moldavam a vida do povo, e o rei permanecia imóvel. Durante
10 ti) .no, depois que Lono tornava a partir, ficando sua imagem de penas
V virada de costas, vinha um período de guerra, quando os sacerdotes
111111 s de Nahulu e o deus da virilidade, Ku, eram dominantes, e o rei tor-
, utivo. Cook, que chegou da direção certa e da maneira certa, foi toma-
I II)s havaianos, ou, pelo menos, pelos vários sacerdotes implicados, como
I 11'11:\ ao viva de Lono, e foi consagrado como tal por meio de complexos
I 11 grande templo da ilha.
I ) 'I is, por suas próprias razões, mas também em concordância acidental
o alendário que regia o Makahiki, ele partiu para o horizonte de onde vi-
l'ouco depois de zarpar, entretanto, um mastro partido obrigou-o a voltar
Ilti.1 para consertá-lo. Esse gesto fora dos padrões foi interpretado pelos ha-
IIIIS orno uma desordem cosmológica, que pressagiaria, se eles perrnitis-
I eu prosseguimento, uma convulsão social e política - uma "crise
1I111ralem que todas as relações sociais ... mudariam seus signos". Isso levou
[amente ao confuso fim de Cook: ele foi morto a facadas e pauladas, em
11 I entenas de havaianos reunidos, depois de desembarcar, irritado, dispa-
10 impulsivamente sua pistola para todos os lados. Consagrado como deus,
I I r chegado da maneira certa na hora certa, ele foi morto como um deus -
1111 ado para manter intacta e inalterada a estrutura -, por ter retornado ao
V tf da maneira errada na hora errada: um acidente histórico, apanhado
111:1 forma cultural.
1\ toda essa tese altamente fabricada e impecável a ponto de levantar sus-
Ias, Obeyesekere respondeu com um sonoro "Não!" - mais por razões mo-
'políticas do que empíricas, ao que parece. A seu ver, ela é degradante para
[iuvaianos (e para ele, pessoalmente, como "natural do Sri Lanka e como an-
pólogo que trabalha numa universidade norte-americana"), por retratá-los
110 selvagens infantis e irracionais, tão embriagados com seus signos e pres-
lo que eram incapazes de enxergar o que lhes estava diante dos olhos - um
N/IIIII /1/ 11//1, ",111/1 '1"1/,, 'ti
homem como qualquer outro - e incapaz d r < ir a ele com r alisrn pi' ti
co e bom senso corriqueiro.
A exposição de Sahlins é chamada de etnocêntrica, por impingir aos havai-
anos a ideia europeia de que a superioridade tecnológica dos europeus levado
os primitivos atônitos, ao depararem com eles pela primeira vez, a vê-Ias Cal. ()
seres sobrenaturais. E há quem diga - isso é o que dói realmente, sobretudo
para alguém como Sahlins, que, como quase todos os antropólogos, indu iv
Obeyesekere, vê-se como um tribuno de seus sujeitos, um defensor públi O
num mundo que os pôs de lado como desafortunados e desprezíveis - qu H
tese de Sahlins é neoimperialista: uma tentativa de silenciar as "verdadeiras vo-
zes" dos havaianos e, a rigor, dos "nativos" em geral, e de substituí-Ias pelas
vozes das próprias pessoas que foram as primeiras a dominá-los, depois a expl -
rá-los e, agora, na fase erudita e redatorial da grande opressão conhecida como
colonialismo, a obliterá-los.
A propósito do relato de Sahlins e das afirmações de que ele se baseia num
fato real, Obeyesekere escreveu:
Questiono esse "fato", que demonstro ter sido criado na imaginação europeia d )
século XVIII e de épocas posteriores, e que se baseou em "modelos míticos" pré-
vios, pertinentes ao temível explorador e civilizado r que é um deus para os "nati-
vos". Dito em linguagem clara, duvido que os nativos tenham criado seu deus
europeu; os europeus o criaram para eles. Esse "deus europeu" é um mito da con-
quista, do imperialismo e da civilização - uma tríade difícil de separar.
A subsequente guerra de papel entre os dois antropólogos pode ser acom-
panhada no divagante sumário da promotoria apresentado por Obeyeseker ,
no estilo "matar a cobra com o pau que estiver à mão" (ele invoca o terrorismo
cingalês, Cortés entre os astecas, O coração das trevas e uma coisa chamada "psi-
comimese simbólica"), e no sumário da defesa apresentado por Sahlins, mais
fluente e pertinaz, no estilo "e há mais uma coisa". (Um terço do livro de Sah-
lins compõe-se de dezessete apêndices de uma minúcia espetacular, entre os
quais se incluem "Sacerdotes e genealogias", "Política do calendário", "Os
Atua nas Ilhas Marquesas e noutras áreas", "Os deuses de Kamakau" e "Lona
em Hikiau".) De ambos os lados há uma abundante profusão de fatos, fatos su-
postos e fatos possíveis, que toca em praticamente tudo o que se sabe ou se su-
põe saber sobre o infortúnio de Cook e as condições que o cercaram.
Sahlins leva uma certa vantagem natural nesse arremesso de dados, porque,
como antigo oceanista de grande reputação, escreveu longamente sobre a et-
no-história polinésia em geral e sobre a do Havaí em particular. O trabalho de
Obeyesekere tem-se voltado quase que exclusivamente para o Sri Lanka, e el
construiu seu conhecimento do assunto em discussão através de três ou quatro
1)/
IIIIN I I i um p rtii nt d um r v "p r rina ão ao Havaí, para cotejar
minha v rsã m a do estudiosos da hi tória e da cultura havaianas".
M )como os dois estudiosos baseiam-se essencialmente no mesmo corpus
• t riC de materiais primários - diários de bordo, diários de marinheiros, his-
ria rais anotadas, relatos de missionários, alguns desenhos e gravuras e um
I unhado de cartas -, essa não é, em si mesma, uma diferença decisiva. É ape-
IIU~ uma diferença que impõe a Obeyesekere - cujo estilo de argumentação
I 110 a ser muito relaxado em termos metodológicos - um ônus maior da
prova do que ele parece perceber. ("Julgo terrivelmente difícil aceitar", "com
ual facilidade, seria possível argumentar", "parece razoável presumir", "é di-
IYlil acreditar", "considero esse relato ...extremamente plausível" e outros ape-
los dessa ordem à suposta obviedade, justamente das coisas que estão em
Ii.~ussão, pontuam seu texto do começo ao fim.) Se esse fosse o debate acadê-
111 i o que às vezes parece ser, Sahlins, mais sagaz, mais concentrado e mais in-
Imlnado, venceria sem esforço.
Mas não se trata desse tipo de debate. Apesar da retórica cientificista de
unbos os lados sobre a "busca da verdade", apesar dos insultos eruditos rebus-
.Id s e perfeitamente desnecessários (Obeyesekere diz, a propósito de coisa al-
uma, que falta a Sahlins uma "preocupação ética profunda", enquanto
ihlins diz, a propósito disso, que Obeyesekere é um "terrorista" literário), e a
lcspeito da interminável exposição de pormenores que só poderiam agradar a
11111 advogado, as questões que os dividem, no fundo, não são simples questões
I . fato. Mesmo que eles conseguissem concordar quanto à maneira como os
havaianos viam Cook e este a eles - e, na verdade, os dois autores não se dis-
tunciam tanto nisso quanto presumem -, continuariam em completa oposi-
~. no tocante a praticamente tudo o que importa na antropologia. O que os
para, assim como a boa parte dos profissionais da área, é sua compreensão da
liferença cultural: o que ela é, o que a produz, o que a sustenta e até onde ela
vai. Para Sahlins, ela é essência; para Obeyesekere, é superfície.
Aproximadamente nos últimos vinte e cinco anos, era do pós-tudo (pós-moder-
ni mo, pós-estruturalismo, pós-colonialismo, pós-positivismo), a tentativa de
retratar "como pensam (ou pensavam) os 'nativos'", ou mesmo o que eles estão
lil'lendo quando fazem o que fazem, viu-se sob considerável ataque moral, políti-
O e filosófico. A mera afirmação de "saber mais", que diríamos que qualquer an-
tr pólogo tem que fazer, ao menos implicitamente, parece pelo menos
[cvemente ilegítima. Dizer sobre as formas de vida dos havaianos (ou de qual-
luer outro povo) alguma coisa que os próprios havaianos não tenham dito expõe
() indivíduo à acusação de estar escrevendo a consciência de outros povos para
111 NO/I/I 111
e~es,.roteirizan~o sua alma. PaI: qu r < lm n já s foi t mp d c ntr P )11
gla simples de os Dang acreditam, os Dang não acreditam".
. As r~ações a esse estado de coisas - o que Sahlins chamou, num d seus 'li
saios rnars recentes, de "Adeus aos Tristes Tropel' - têm sido diversas, pr \I
padas. e um bocado confusas.' Os pós-modernistas questionam se os r luto
or?an~zados de o~t~as maneiras de estar no mundo - relatos que oferecem
plicações monológicas, abrangentes e demasiadamente coerentes - são r 1i
mente dignos de crédito, e se não estamos tão aprisionados em nossos modos I
pens~ento e percepção, que somos incapazes de apreender os dos outros, e DI
nos ainda de lhes dar crédito. Os estudiosos politicamente motivados intens s
s:~ hesitação, seguros de s~u terreno, têm conclamado a um trabatho antro~o
10gICOqu~ promova os destinos dos povos descritos, como quer que se entenda 11 I
ess~s destinos, e a uma subversão deliberada das desigualdades de poder entre "(I
OCldente.e o Resto". Tem havido demandas de "contextualização" de deterrni
nadas ~oCledades no SIstema mundial ('capitalista', 'burguês', 'utilitário') mo
demo' , em contraposição a seu isolamento em "ilhas da história", como di"l
outro_dos.tít~.os provocativos de Sahlins. Tem havido pedidos de resgate da di
mensao histórica das culturas "primitivas" ou "simples", muitas vezes retratada,
como estr~turas "frias", imutáveis e cristalizadas - naturezas-mortas humanas.
E tem h~vIdo apelos a uma reenfatização das características pari-humanas O
muns e Simples (todos raciocinamos, todos sofremos, todos vivemos num mun-
?O indiferente a nossas esperanças), em contraposição aos contrastes nítidos .
incomensuráveis da lógica e da sensibilidade entre um povo e outro.
Todos esses temas permeiam o embate entre Obeyesekere e Sahlins, apa-
~ecendo e reaparecendo sob formas diferentes em diferentes articulações - em
mtensos debates para determinar se os relatos havaianos oitocentistas de seus
costu~es e tradiç~e~ podem ser usados para reconstruir o passado histórico, li
se estao por demais Impregnados dos preconceitos cristianizadores dos missio-
nári?s que o~ registraram para ser dignos de confiança; se Cook e seus compa-
nhel~os haViam. ~prendido havaiano o bastante para entender o que os
havaianos lhes dl~lam; e se a abo.rdagem estruturalista tem que presumir que as
crenças dos havaianos eram uniformes na população inteira, cujos membros
~,ão estereotipadamente a~r~sentados, segundo a acusação de Obeyeseker I
como se pusessem em pranca um esquema cultural sem nenhuma reflexão",
Mas, no fim, os argumentos, opostos em todos os aspectos, dividem-se num
contraste nítido e simples, quase maniqueísta.
" P,~raObe!ese~ere, os havaianos ~ão racionalistas "pragmáticos", "calculis-
tas e estra;egIstas ; ~arecendo~se muito co~osc~ - aliás, ~om qualquer pessoa,
c~m a possível exceçao de Sahlins -, eles avaliam reílexivamenre as implica-
çoes de um problema em termos de critérios práticos". Para Sahlins, eles são ou-
1I ~I/IIrll "H/H I "')
, qu xi t m nun 11 1 LI IUn' di iMO, num" isterna cultural
.• humana", num "outra mologia", inteiramente descontí-
nalidade burguesa moderna", regida por uma lógica "que [tem] a
de não parecer necessária aos nossos olhos, mas de ser suficiente
ulturas diferentes", diz Sahlins, "racionalidades diferentes".
A I ra ionalidade prática" de Obeyesekere, no dizer de Sahlins (que tarn-
I hama de "antropologia pidgin" e de "nativismo popular"), mostra que
IloN fia [utilitária e instrumentalista] de Hobbes, Locke, Helvétius & Cia.
II ' ':i muito presente entre nós". A "teoria estrutural da história" enuncia-
101' ahlins, no dizer de Obeyesekere (que a chama de "reificada". "superor-
I u", "rígida" e "pseudo-histórica"), mostra que o que ainda está muito
n entre nós é o modelo irracionalista da mentalidade primitiva - Lé-
I\llIh1, Lévi-Strauss, os astecas de pensamento grupal de Tzvetan Todorov, e
1/1'ud de Totem e tabu, que achava que as crianças, os selvagens e os psicóti-
('I'. m uma coisa só.
que está em jogo, portanto, é uma pergunta que perseguiu os antro pó-
Ill! por quase cem anos, e que nos persegue ainda mais, agora que trabalha-
num mundo descolonizado: Como entender práticas culturais que nos
m estranhas e ilógicas? Quão estranhas são elas? Quão ilógicas? Em que
a razão, precisamente? Trata-se de uma pergunta que não se deve íormu-
r ,1\ nas sobre os havaianos do século XVIII, que desfilavam ruidosamente
11 imagens vestidas de plumagem de pássaros, tomando um coqueiro ("um
1 \ m com a cabeça no chão e os testículos no ar") pelo corpo de um deus, e
Ivolvendo sua vida em um emaranhado tão complexo de sacralidade e proibi-
_ o notório tabu - que, às vezes, mal conseguiam se mexer. Ela também
v ser formulada sobre os ingleses setecentistas, marinheiros e navegadores,
ando sem mulheres pelos oceanos em busca de descobertas - arcádias, eu-
sidades, ancoradouros, iguarias e a Passagem Noroeste -, e sobre a socieda-
inquisitiva e agressiva, sobre o mundo de "o saber é a glória" que, esperando
última instância por uma salvação temporal, mandava os ingleses para lá.
4
Os havaianos e os navegadores do Iluminismo estão agora muito distantes
nós, no tempo e no espaço. Isso é verdade, pelo menos, a respeito dos havai-
JlO que levavam o ritmo de vida regido por Ku e Lono. (Kamehameha II
io que pôs fim a esse ritmo, com sua famosa fogueira das vaidades no século
I ,que foi uma verdadeira inversão dos signos; e aquilo a que ele não pôs fim,
'I. ndo refeições com as mulheres e atirando ícones no mar, foi eliminado
10 cristianismo, pela cana-de-açúcar e pela navegação a vapor.) E também se
! lica aos navegadores que entraram à força nesse ritmo de vida, atrevidos, ig-
orantes e firmemente decididos a promover melhoramentos. Voltamos os
lhos para esses dois "povos" epara seu lendário "primeiro contato" por entre
100 MIINI /" .,,1., ""11/' ",,,1,, ,,,
as brumas da moderna ordem de vid (ou a. ra que o imp éri \I
ro-arnericanos e o divisor mundial "Oriente-Ocidente" se enfraqueceram 011
desapareceram, por entre as brumas da ordem pós-moderna). Além di s .vol
tamos os olhos para eles a partir de nossas posições particulares dentro dessa 01'
demo Nós os compreendemos como nos é possível, considerando quem som, )
ou aquilo em que nos transformamos. Não há nada de fatal nisso, nem para I
verdade nem para a imparcialidade. Mas é algo inevitável, e seria uma toli '
afirmar outra coisa.
Ê um grande mérito de Obeyesekere e Sahlins que nenhum dos dois di rn
outra coisa. Suas posições pessoais e seus projetos profissionais são francos e vi-
síveis. Obeyesekere afirma que, como autêntico "nativo" (ou "pós-nativo"?),
diretamente apanhado nas agonias atuais de uma ex-colônia destroçada p "
uma violência induzida, ele está imune aos autoenganos ocidentais e especial-
mente bem posicionado para enxergar o Pacífico do século XVIII, tanto branc )
quant~ de cor, como realmente era. Ele dedica seu livro a um taxista cingal 8
assassinado, que costumava transportá-Io em Colombo, em memória dos "mi-
lhares que foram mortos no mundo inteiro ... , pessoas comuns cujas famílias
sequer tiveram a oportunidade de pranteá-Ias". Escreve ele que "foi precisa-
mente a partir de [minhas] condições existenciais que se desenvolveu e flores-
ceu meu interesse por Cook" (e sua "ira" em relação a Sahlins e sua obra).
Em resposta, Sahlins se pergunta, como seria cabível, de que modo ele
Cook se haveriam tornado "responsáveis, de algum modo, pela tragédia do
amigo de Obeyesekere", e se a convocação dessa tragédia a serviço de uma dis-
puta erudita é inteiramente apropriada. Diz ele que, por mais branco e ociden-
tal que seja, está bem menos carregado de preconceitos etnocêntricos do que
alguém que, ao explicar "as antigas concepções havaianas dos homens brancos
através de crenças cingalesas e de sua própria experiência ... , afasta-se cada vez
mais dos havaianos e chega cada vez mais perto do folclore ocidental nativo do
divino versus o humano, do espiritual versus o material".
A vítima final ... é o povo havaiano. O bom senso empírico ocidental substitui-
lhe a visão das coisas, deixando-o com uma história ficcional e uma etnografia
pidgin ... Os rituais tradicionais se dissolvem; as clivagens sociais em torno das
quais girava a história havaiana são apagadas ... O povo havaiano aparece em
cena como um fantoche da ideologia europeia. Privada ... de ação e cultura, a his-
tória desse povo fica reduzida a uma clássica falta de sentido: eles viveram e sofre-
ram - e depois morreram.
Ê essa curiosa inversão - o "sujeito nativo", ofendido e injuriado, portan-
do-se como um universalista do Iluminismo, e o "observador estranho", dis-
tante e irônico, aparecendo como um historiador relativista - que confere a
101
d,t b t U pashos xeraordlrn ,'it .! li [mal, ameaça transformá-Ia de uma
t d um passado fugidio em ur a briga particular. Mesmo que, seguindo
I Y' k fe, tenhamos consciência da necessidade de levar plenamente em
I 11IO fato de que o que sabemos sobre o Havaí do "primeiro contato" chega
nós filtrado pelas perspectivas dos que o narraram, e de que ninguém em
1'1 alguma jamais viveu num mundo inteiramente distante das preocupa-
l de ordem prática, a redução desse Havaí a tamanha "construção europeia
mitos" continua a parecer mais um produto do ressentimento deslocado-
"li: " ideológica - do que dos fatos, da reflexão e do "bom senso".
]E ainda que, seguindo Sahlins, percebamos o perigo de perder para sem-
I a profundas particularidades de povos extintos de épocas extintas, ao
I\sformá-Ios em raciocinadores generalizados, movidos por interesses de or-
, I prática, e reconheçamos que há mais maneiras de silenciar os outros do
1' imagina o revisionismo pós-colonial, os problemas persistem. O encerra-
11 O dessas particularidades em formas de contornos definidos, firmemente
udas umas às outras como as peças de um quebra-cabeça, ainda corre o risco
sofrer a acusação de engodo etnográfico e excesso de brilhantismo.
Cheios de certezas e acusações e inteiramente dominados pelo desejo de
11 \I' ar pontos, Obeyesekere e Sahlins conseguiram, apesar disso, colocar jun-
, indagações teóricas fundamentais, de um modo que jamais teriam conse-
lido em separado; e levantaram questões metodológicas cruciais referentes à
li ada tarefa de "conhecer os outros". (A propósito dessas indagações e ques-
'S, talvez neste momento eu deva confessar que, à parte o esplendor estrutu-
lista que cerca suas análises, considero Sahlins claramente mais persuasivo.
un descrições são mais pormenorizadas, seu retrato dos havaianos e dos in-
I ses é mais profundamente penetrante e sua apreensão das questões morais e
políticas envolvidas é mais segura, menos suscetível aos ruídos desnorteadores
I s e presente confuso.)
Se eles elevaram o nível do debate antropológico - o que é um assunto
mnis importante, a longo prazo, para um campo em que realmente não exis-
t m respostas no fim do livro - depende de os que vierem depois (e já há um
l'UpO numeroso em cada um dos lados) serem capazes de sustentar sua intensi-
[ade e, ao mesmo tempo, refrear sua propensão a se ofenderem e a brigarem
p Iavitória; de serem capazes, em meio ao rancor alimentado e ao orgulho feri-
10,de continuar a conversar.
requentação intensa
'odas as ciências humanas são promíscuas, inconstantes e mal definidas, mas a
ntropologia cultural abusa desse privilégio. Vejamos:
10
Primeiro, Pierre Clastres. Aos 30 an ) qu. ndo fazia p - J"L dur O 1111
berceau do estruturalismo (o laboratoire anthropologique d laud L
Strauss), ele partiu de Paris, no início dos anos 1960, rumo a um cant rf1l0111
do Paraguai. Lá, numa região pouco habitada, de estranhas florestas animu
ainda mais estranhos - onças, quatis, urubus, caititus, cobras-cipó, li 11
bas -, viveu durante um ano com cerca de uma centena de índios "selva '11"
(como os chamou em tom aprovador, aliás com certa reverência), que aban II
navam seus velhos, pintavam o corpo com listras curvas e retângulos in li1\ I
dos, praticavam a poliandria, comiam os mortos e batiam com o pênis de, 1\1 •
nas meninas que menstruavam pela primeira vez, para torná-Ias loucam 1111
ardentes, como a anta de tromba comprida.
Ao livro que publicou em sua volta, Clastres deu - com uma insipi I ,
pré-moderna deliberada e quase anacrônica, como se se tratasse do diário missin
nário recém-descoberto de um jesuíta setecentista - o nome de Chronique (~ I
indiens Guayaki? Reverentemente traduzido pelo romancista norte-arneri anu
Paul Auster ("Creio ser quase impossível não amar esse livro") e tardiamente 111
blicado nos Estados Unidos, vinte 'e cinco anos depois, o livro, pelo menos '11\
sua forma, chega a exagerar no velho estilo etnográfico. Fornece uma descri, (I
do ciclo de vida "dos Guaiaqui", começando pelo nascimento, passando p II
iniciação ritual, casamento, caça e guerra, e chegando à doença, à morte, aos li
nerais e, depois destes, ao canibalismo. Lá estão as clássicas fotos estéticas, cuida
dosamente posadas: nativos seminus, fitando as câmeras com o olhar vazio. I,
estão os esboços museológicos a lápis e nanquim - machadinhas, cestos, v ri
nhas de fazer fogo, ventarolas contra mosquitos, suportes de plumas - que ),1
quase não se veem nas monografias. E, apesar de um certo lirismo ocasional .11
estilo Tristes trópicos sobre os sons da floresta ou as cores do entardecer, o estiln
da prosa é direto e concreto. Aconteceu isto ou aquilo, Eles acreditam em tal c 1
sa, fazem tal outra. Apenas a voz pensativa e tristonha na primeira pessoa, irrorn
pendo aqui e ali numa fúria moral, sugere que talvez esteja acontecendo ai O
além do mero relato de curiosidades distantes.
Segundo, James Clifford. Formadocomo historiador das ideias em Har-
vard no início dos anos 1970, mas convertido como autodidata à antropologia
e, mais tarde, aos estudos culturais (atualmente, ele leciona no Programa d
História da Consciência da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz), Clif-
ford, aos 52 anos, está bem mais para o Meio da Jornada do que Clastres na
época em que partiu para o Paraguai; mas eles são da mesma geração acadêmi-
ca - a que foi produzida pela contracultura, Clifford vagueia pelos anos 1990,
desconfiado e indagador, não entre "nativos" proscritos ou em meio a quai -
quer "povos", a rigor, mas no que chamou de "zonas de contato" - exposiçõe
etnológicas, pontos turísticos, seminários sobre espetáculos artísticos, consul-
I !I/I/ti, "" /",,1 10 I
II ) 11 r 11 ias , 11" iud N ultur i hotéi de viajantes.
I I I eu L l r ud m Londr ) l' u I ada pcl arqueologia. Passa pela Hono-
I \111m. Ia híbrida das convenç 5 de profissionais, pelos torcedores do fu-
I pl' 1 i nal e por navios afundad?s no Ano-~o~o chinês, enquant~ a
I ~ro 'I'empestade do Deserto carnpeia no ~olfo Persl~o. ~ememora sua m-
i I de "branco étnico", filho de um acadêmiCO da Umversidade de Colum-
uulnndo de metrô pela Nova York das canções populares. ~edita sobre a
11 da dominação e a "dinâmica global" diante de uma paliçada russa da
dói d 1820, reconstruída como um parque da herança multicultural na
,116rnia 'pós-moderna"'.
A livro que reúne essas excursões e paradas, numa fábula para nossa épo-
It' u o nome de Routes [rotas], com a intenção marcante de fazer um tro-
'11111 com roots [raízes], acrescentando-lhe o subtít~lo cuidadosamente
11\ -mporizador de Viagem e tradução no fim do século xx. Nele, emb?ra a f~a
I I'i I eira pessoa também apareça ao longo de to~O o texto, ~em mal~ asserti-
muito mais aurorreferente, não há uma narrativa construnva continua, et-
dGca ou de qualquer outro tipo. Ao contrário, ~á u~a série des~rd,~nada
li, plorações pessoais", não desti~a~as a re~;atar ~atlvos "" aldeias ne~
Ildições puras e diferenças culturaiS Isoladas ,mas pessoas indo a lugares,
IIlbientes híbridos", "culturas itinerantes'V
A prosa é variada e indireta. Ora é "acadêmica", o~ seja, a~str~ta e argu~
ntativa, ora "experimental", isto é, ensimesmada e ImpresslOmsta: mas .e
mpre discursiva, respaldando e preenchendo, dando ,com uma.da~ maos e tl-
IId com a outra, fazendo uma digressão para exammar uma l~ela, ret~oce-
ndo nos próprios passos para voltar ao assunto. Os tex:os vao de t:es ou
uitro páginas a quarenta ou cinquenta. As fotografias s~o repr~duçoes de
Isuações de catálogos - ilustrações de ilustrações - ou l11stantaneos ama-
orl ticos fora de foco, tirados às carreiras por Clifford. Não há nenhuma des-
1'1 ão de pessoas se casando, combatendo, cultu~ndo, d~clamando, morrendo
li fazendo o luto; nenhum relato de como as cnanças sao educadas ou o~de-
nios, aplacados. E enquanto, à exceção de uma passa,gem de Montaigne.
.Iastres faz uma única citação no livro inteiro, mesmo assim o resumo de um~
ráfrase de algumas páginas de uma história clerical da conqui~t~ do Par:g~al,
lifford apresenta centenas delas, literalmente, às vezes uma duzI,apor pagl~a,
de Mikhail Bakhtin, Stuart Hall, Walter Benjamin, Antonio Gramsci e
rcdric Jameson até Malinowski, Mead, Rushdie, G~ug~in, Amitav Gh~sh,
Michel de Certeau eAdrienne Rich - quase todas mais cnadoras de u~ clima
O que substantivas. Ele chama tudo isso - "escrito sob o signo sdaamblvalê~-
ia ..., in medias res ... , visivelmente inacabado" - de colagem. Como.as cal-
as mágicas de Joseph Cornell, "a beleza encerrada dos encontros fortUitos-
tO
uma pena, um rolamento, Lauren Ba ll", ou orno h téi p.1'( j
classés, "lugares de coleção, justaposição, encontro apaixonad )I, d nu] 1I
surrealistas lançaram suas "estranhas e maravilhosas viagens urb 11. ", 11'011I
"afirma uma relação entre elementos heterogêneos de um conjunt J' I I 111 ti
sentido, ... lut]a] por manter uma certa esperança e uma incerteza ltl -j 11",'
Em suma: (1) Um peregrino romântico numa Expedição autoavnll ••11I1 I
confrontando-se com o Outro Radical nas profundezas da selva (" 'LI ( I
realmente entre os selvagens", escreveu Clastres: "O imenso abismo n (I' 11I
... fazia parecer impossível que viéssemos a compreender uns aos outn ," ,11
(2) um espectador reservado, a meia distância, movendo-se sem des nvoluu»
por um salão de espelhos pós-moderno ("Noite nas ruas apinhadas: fuma IIII
carrocinhas de comida, rapazes e moças de um clube de artes marciais a 'UII I
um conjunto de jazz da Universidade do Havaí com um naipe inteiram 111
asiático de saxofones .... Em câmera lenta, um prédio [iraquiano] impl de,") I'
OS dois autores mal parecem pertencer ao mesmo universo, muito Jll 'li I I
mesma profissão.
No entanto, esses dois descritores do mundo, imaginadores do rnun III
comparadores do mundo, de formações e compromissos diferentes, e com p I11
co ou nenhum conhecimento um do outro (Clastres morreu, aos 43 ano ,1111111
acidente de automóvel em 1977, dois anos antes de Clifford começar a publl 1I
Clifford, apesar de todo o seu interesse pela antropologia francesa, nunca 11 '/ li
sequer a aludir a Clastres), conseguem entre si formular, nos termos mais ri 10111
sos, a questão mais crucial que a antropologia cultural enfrenta nestes remp:
pós-coloniais, pós-positivistas, pós-tudo. Esse é o valor, a viabilidade, a legidlll
dade e, portanto, o futuro da pesquisa de campo vernácula, localizada, de 1011 1I
prazo e próxima - o que, a certa altura, Clifford chamou coloquialmente I,
"frequentação intensa", e que Clastres exaltou em quase todas as páginas ("H I
tava eu olhar para a vida cotidiana a meu redor: mesmo com um. mínimo I
atenção, sempre podia descobrir alguma coisa nova")."
Sem uma teoria-mestra, sem um objeto distinto e, agora que todos os na!
vos são cidadãos e os primitivos são minorias, sem ter sequer um nicho pr ri
sional estável e inconteste, a antropologia cultural depende mais de li 1\1 I
prática de pesquisa particular do que praticamente qualquer outra ciência, 80
cial ou natural, para ter identidade, autoridade e direito à atenção. Se o trabn
lho de campo continuar - ou, pelo menos, assim se teme, por um lado, •
assim se espera, por outro -, a disciplina prosseguirá com ele.
Os "selvagens" remotos e indecifráveis de Clastres, encerrados num mundo d
caça, violência, provações e animais demoníacos - "as metáforas fatais da flo
10
s, 'gar falar a v rd de, !1m n primitivos do que pa~ecem.à
, 1 vi ta. Trata-se, a rigor, de refugiados que o governo paragualO havia
lido, I 1Sanos e meio antes, para um posto comercial do Estado na orla
, Ia - abatidos, desaculturados e "pacificados". Jogados ali com antigos
1 I. ( m quem selaram um "pacto de paz'? quase caricato), ainda vagan-
I I1 /I re ta, vez por outra, para caçar, e informalmente supervisionados
\1111 "pr tetor" paraguaio que lhes era muito mais solidário do que a maio-
I eu ompatriotas, que os viam como gado, eles estavam, por ocasião da
"d I I Clastres, em franco e acelerado processo de extinção.
II:U do ele se foi, os índios haviam-se reduzido dos cento e poucos origi-
I' Ira, no máximo, setenta e cinco. Cinco anos depois, embora ele não fosse
h durante uma visita ao Paraguai ("Não tive coragem. Que poderia encon-
I ~") stavam reduzidos a menos de trinta. 14 Quando da morte de Clastres,
11111desaparecido por completo - "tragados pela doença e pela ruberculo-
1\1011' S por falta de cuidados adequados, por falta de tudo", No dizer dele,
rum - em uma imagem obsedante -, como objetos não reclamados, ba-
111 • bandonada. "Desoladoramente obrigados a deixar sua pré-história, ti-
111 sido atirados numa história que nada tinha a ver com eles, exceto para
IIII(-los."
'l'oda a empreitada (colonial) iniciada no século XV está chegando ao fim; um
xmtinente inteiro logo ficará livre de seus primeiros habitantes, e esta parte do
I bo poderárealmente proclamar-se um "Novo Mundo". "Tantas cidades arra-
ndas, tantas nações exterminadas, tantos povos eliminados ao fio da espada, e a
mais rica e mais bela parte do mundo destruída em nome de pérolas e pimenta!
Vitórias mecânicas." Foi nesses termos que Montaigne saudou a conquista da
América pela Civilização Ocidental. '5
om base numa antropologia física improvisada e extremamente duvido-
, ilém de sumamente antiquada, Clastres viu os Guaiaqui como sendo, com
Ia a probabilidade, remanescentes dos primeiros habitantes humanos da re-
ti, talvez do continente inteiro. Embora sua cor variasse do "acobreado clás-
n dos índios, embora menos pronunciado, até o branco - não o branco
udo dos europeus, mas um branco opaco e acinzentado, como a pele cinzen-
Ia pessoa doente", ele os chamou, como tinham feito os paraguaios e os es-
nhóis em épocas anteriores, de "índios brancos", E era assim que eles se
m: quando nascia uma criança inusitadamente morena, e portanto, amaldi-
da, sua avó era obrigada a estrangulá-Ia.
Qualquer que fosse sua cor, a maioria desses Guaiaqui "originais" foi mor-
ou assimilada, no decorrer de uma guerra de conquista dos Tupi-guarani
ongoloides" e intensamente militaristas, que chegaram depois, e que ainda
1(1)
são o principal grupo indígena da região. poucos que s p. ram t 1''1 ti
aniquilação abandonaram o cultivo da terra, que praticavam há tant I 11 'I '"
fugiram para as florestas, transformando-se em caçadores nômade _ I 'V 111••
ao empobrecimento, ao exílio e à regressão cultural não (como n u 1':1 li"'
do continente) pelos europeus, que só começaram a atacá-Ias no III ) II
mas por outros índios. Assim, os Guaiaqui, primeiros dos primeiro h 111 1111
tes, não eram apenas "selvagens". Eram os selvagens dos selvagens - v ,tlf "
esvaecentes do socialmente elementar:
[Os Guarani] não conseguem aceitar as diferenças; impossibilitados d 1111
na-Ias, tentam incluí-Ias num código conhecido, num conjunto rranquillvu 1I1
de símbolos. Para [os Guarani], os Guaiaqui não pertencem a uma cultura 11
rente, porque não hd possibilidade de existirem diferenças entre culturas: el s • I 11
fora da norma, fora do senso comum e acima da lei - são Selvagens. Até s ti II
ses colocam-se contra eles. Toda civilização ... tem seus pagãos. 16
Portanto, eram a "selvageria", ou seja, Ia civilisation sauvage e seu d SI 11 ,
que mais interessavam a Clastres e, nesse aspecto, ele foi um estruturalista mil
to ortodoxo, embora nunca tenha usado esse termo ou empregado o vocabul
rio artificial do estruturalismo. Como seu mentor, de quem deveria '" I
herdeiro, ele contrastou essas sociedades (que Lévi-Strauss chamava de "qu '11
tes"), apanhadas num processo implacável e interminável de mudança hiscÓI
ca, com as sociedades (chamadas "frias" por Lévi-Strauss) que se recusaram, I
maneira inflexível e absoluta, a se tornarem parte desse processo, que lhe 01'11
seram resistência e procuraram, no máximo com sucesso extremamente t 111
porário, manter suas culturas estáticas, livres, comunais e não deturpadas.
"Não existem adultos", escreveu alguém recentemente [na verdade, tratava-s dtl
paladino de Ia civilisation civilisée, André Malraux, como Clastres sabia e pl'eslI
mia que seus leitores soubessem]. Essa é uma observação estranha a fazer em no.
sa civilização, que se orgulha de ser a epítome da maturidade. Mas, justarneru
por isso, talvez seja verdadeira, ao menos em relação a nosso mundo. É qu ,
quando pomos o pé fora de nossas fronteiras, o que é válido para nós, na Europa,
deixa de ter validade. Nós mesmos talvez nunca nos tornemos adultos, mas isso
não significa que não haja adultos noutros lugares. A questão é: qual é a fronteirn
visível de nossa cultura, em que etapa do caminho atingimos o limite de noss s
domínios, onde existem coisas diferentes e começam os novos significados? Não
se trata de uma pergunta retórica, pois podemos situar a resposta num tempo
num lugar definidos .... A resposta veio no fim do século xv, quando Cristóvã
Colombo descobriu os povos de além-mar - os selvagens da América.
Nas Ilhas, no México de Monrezuma e nas praias do Brasil, os homen
brancos cruzaram pela primeira vez o limite absoluto de seu mundo, um limit
10/
I" I I '111 i I ar n: imedi tam n 1l1, linha divisória entre a civilização e a
" 1h ri, ... indígenas represem, ram tudo o que era estranho ao Ocidente.
1<.11111 () uero, e o Ocidente não hesitou em aniquilá-los .... Todos eram habitan-
I de um mundo que já não se destinava a eles: os esquimós, os bosquímanos, os
111 traliano . É provável que seja cedo demais par.a avaliarmos as consequências
11\ tis ir portantes desse encontro. Ele foi fatal para os índios; mas, por uma estra-
IIh.l r viravolta do destino, talvez também venha a se revelar a causa da morte
11\ 'sp rada de nossa própria história, da história do mundo em sua forma atual. '7
Iloi p ra registrar, com detalhes tão delicados e pormenorizados quanto
Iv ·1 ( mbora nem sempre fique claro se ele está descrevendo algo que viu,
/I de que apenas ouviu falar, ou algo que presume ser verdade), as crenças e
lira' que compunham a vida dos Guaiaqui - os mitos do jaguar e as prova-
ti etapas de vida, as guerras inconcludentes e não direcionadas, e a natu-
ln potente e efêrnera da liderança - que Clastres escreveu seu livro. Em
",os mais exatos, ele o escreveu para expor a nós, que nunca poderemos en-
11',11' pessoalmente esses adultos selvagens como ele o fez, a lógica dessa vida
.11) ibalismo, infanticídio, pênis de anta e tudo o mais - e sua beleza moral:
minha parte, quero sobretudo lembrar a devoção [dos Guaiaqui], a gravidade
ti ua presença no mundo das coisas e no mundo dos seres. Frisar sua fidelidade
.xemplar a um saber antiquíssimo, que nossa violência selvagem desperdiçou
num só instante .... Será absurdo disparar flechas contra a lua nova, quando ela
d sliza por entre o arvoredo? Não para [os Guaiaqui]: eles sabiam que a lua estava
viva e que seu aparecimento no céu faria as [mulheres] derramarem o sangue
menstrual, que trazia ... má sorte para os caçadores. Eles se vingavam, porque o
mundo não é inerte e a pessoa tem que se defender. ... Durante muitos séculos,
Ieles] mantiveram tenazmente sua vida furtiva e tímida de nômades na vida secre-
ta da floresta. Mas esse refúgio foi violado, e foi como que um sacrilégio. 18
Como quer que tenha sido, sacrilégio, conquista ou a mania moderna de
udança e progresso, eles não tiveram alternativa. "Não havia nada a fazer. ...
luvia morte em suas almas .... Estava tudo acabado."19
Embora Clifford compartilhe da feroz hostilidade de Clastres ao "globalismo",
os "imperialismos", à "hegemonia ocidental", ao "neoliberalismo feroz", à
"transformação de tudo em mercadoria", aos "permanentes desequilíbrios de
poder das relações de contato", às "hierarquias de casta e de classe" e, é claro, ao
"racismo" (para usarmos as expressões de Clifford, mais em dia com a moda, se
m que menos eloquentes), e compartilhe também de sua simpatia pelos "do-
inados", pelos "vistos como exóticos", "explorados" e "marginalizados", ele
10M NI/IJII 1/1 11I'" ,/ til/li '1",1" '"
definitivamente não partilha da r n :1 d 1\ I 11\ 'I. o () ai n simpl s
e no distante como via real para o resga Ia 'fo1'1ll tllt!nU'/tt'ttir 'S de ia oie sacia-
le.Ao contrário, encara sua missão como nd a 1· 'prof rir uma crítica ri
rosa [da] clássica busca - 'exotista, antropológi a ri ntalista' - de 'tip
culturais, aldeões ou nativos' reveladores, de 'epícomejs] condensada]s] de co-
talidades sociais'", O que corresponde, é claro, exatamente ao que Clastres es-
tava tentando fazer com tanta paixão: chegar ao fundo das coisas, examinand
de perto e pessoalmente um punhado de índios massacrados e impotente ,
como bagagem não reclamada.
Clifford, que não está muito interessado no fundo das coisas, diz que quer
apenas retirar o que chama de "o habitus do trabalho de campo"- "um sujei-
to sem gênero, sem raça e sexualmente inativo, [que interage] intensamenr
(no mínimo nos planos hermenêutico/científico) com seus interlocurores" _
de sua posição de característica definidora da "verdadeira antropologia" e do
"verdadeiros antropólogos". Ele quer reduzir a "função autorizadora" de entra-
d~ nas florestas, desconstruir o "poder norrnativo" de viver entre pessoas que
atiram flechas na lua. Mas fica claro que tem em mente um objetivo bem maior
e mais radical do que sugere essa conhecida e cansativa construção de slogans.
Ele está decidido a libertar a antropologia de seu provincianismo de Primeiro
Mundo, de seu passado comprometido e de suas ilusões epistemológicas _
para lançá-Ia com vigor "em direções pós-exotizantes e pós-coloniais".
o trabalho intensivo de campo não produz uma compreensão privilegiada ou
completa. Tampouco o faz o conhecimento cultural de autoridades indígenas, de
"pessoas de dentro". Estamos diferentemente situados, como habitantes e viajan-
tes de nossos "campos" desimpedidos de conhecimento. Será essa multiplicidade
de localizações apenas mais um sintoma da fragmentação pós-moderna? Pode ela
ser coletivamente moldada em algo mais substancial? Pode a antropologia ser re-
inventada como um fórum de trabalhos de campo de rotas variadas - um lugar
em que diferentes saberes contextuais travem um diálogo crítico e uma polêmica
respeitosa? Pode a antropologia promover urna crítica da dominação cultural que
se estenda a seus próprios protocolos de pesquisa? A resposta não é clara: ainda
restam poderosas forças centralizadoras, recém-Hexibilizadas."
As perambulações de Clifford por museus, exposições, armadilhas para
turistas, parques do patrimônio cultural e similares são menos informais e ino-
centes do que parecem. Destinam-se a acelerar um redirecionamento, um
"re-enraizamento" da pesquisa antropológica: a afastá-Ia das descrições estáti-
cas de alta resolução de tal ou qual povo, em tal ou qual lugar, vivendo de tal ou
qual maneira, no estilo de Clastres, e fazê-Ia voltar-se para narrativas desarticu-
ladas e "descentradas" de povos, modos de vida e produtos culturais em movi-
I1 1/1/1111'11/1,/1/1/11 111')
I/l 11 O - vi jc ud ) mi tu nn to- , impr vi ando, entrando em choque,
lurand p la pr s pela d minação. Esses espaços, eventos, locais ou am-
!li nt ã aquilo a que ele pretende referir-se - tomando emprestado um
I rrn de Imperial Eyes, um estudo de textos de viagens coloniais feito por
M L . P "d ,,21aly oU1se ratt - como zonas e contato. .
Uma zona de contato, nas palavras de Pratt (citadas por Clifford), é "o es-
p ço em que pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contato
r íproco e estabelecem relações permanentes, que em geral envolvem condi-
• es de coerção, desigualdade radical e conflitos renitentes". Esta noção enfati-
'I. , no dizer da autora, "como os sujeitos se constituem em suas relações
" cíprocas", frisando a "copresença, a interação, as compreensões e práticas en-
trelaçadas ... em relações de poder radicalmente assimétricas".22 Ver por essa
p rspectiva o tipo de instituições pelas quais Clifford se interessa, lugares de
xposição e comemoração culturais, é vê-Ias como arenas políticas - "conjun-
t (s) de intercâmbio carregados de poder, de pressões e influências". Nessas
arenas, nessas colagens repletas de consequências, nessas caixas mágicas da vida
" al, a antropologia errante e livre de Clifford encontra seu "campo".
Entre os textos reunidos em Routes, a maioria dos quais parece absoluta-
mente efêmera, isso talvez fique melhor demonstrado no que se intitula "Quatro
museus da costa noroeste", que é uma comparação não apenas dos museus como
rais, dois nacionais e majoritários, dois tribais e oposicionistas, mas também de
NUasabordagens contrastantes do acervo e da exposição de artefatos indígenas; e
talvez transpareça de maneira ainda mais eficaz no ensaio intitulado "Meditação
do Forte Ross", que é um retrato sumamente original e poderoso, se bem que
um tanto tortuoso, do Pacífico Norte - Sibéria, Alasca e costa do Pacífico-
orno "zona de contato regional". "A América russa foi uma extensão da Sibé-
•.ia." "No Forte Ross, ... a história 'ocidental' chega pelo lado errado.?"
O tempo todo, no entanto, mesmo nos textos menos substanciais e mais
descartáveis, e a despeito de sua fachada cortês de noli me tangere, a seriedade
moral do trabalho de Clifford, sua preocupação pessoal com o futuro humano
, com o lugar dos despossuídos dentro dele, manifesta-se com a mesma inten-
sidade, clareza e persistência do trabalho de Clastres, com sua voz profética
mais mano a mano:
No Forte Ross espero vislumbrar minha própria história em relação a outras,
numa zona de contato regional .... Situadas na orla do Pacífico, meu lar por de-
zoito anos, as histórias oitocentistas do forte, vistas de um fin-de-siecle incerto,
talvez proporcionem "profundeza" suficiente para darmos sentido a um futuro, a
alguns futuros possíveis .... A história é pensada em lugares diferentes, dentro de
uma dinâmica global inacabada. Onde estamos nós nesse processo? Será tarde de-
110
Portanto: aproximação versus recuo, empirismo confiante versus "incerteza lú-
cida", QS imediatismos do local versus as refrações do descentrado, a estabilida-
de insular (e condenada) versus a comoção global (e estimulante). Essas talv z
sejam oposições binárias meio toscas, e, nessa matéria, não existem tipos pur ,
Mas, para os adeptos do especial, do singular, do diferente e do concreto - aLI
seja, entre outros, os antropólogos -, elas captam bastante bem a pergunta
aqui formulada: como devemos agora exercer nosso ofício?
A maneira já pronta de lidar com tudo isso seria ver Clastres como a voz
nostálgica de um passado extinto e esgotado, tanto profissional quanto real-
obsoleto, como a famosa caracterização lévi-straussiana dos trópicos -, e ver
Clifford como um homem que tem o futuro 1).osossos, concebendo uma an-
tropologia para uma era vindoura de interligação global, movimento, instabili-
dade, hibridismo e política anti-hegemônica dispersa. Mas isso dificilment
bastaria. A escolha não se dá entre lamentar o passado e abraçar o futuro. Tam-
pouco está entre o antropólogo como herói e como o próprio modelo do gen -
ral-eie-brigada pós-moderno. Ela está entre, de um lado, sustentar uma
tradição de pesquisa sobre a qual se erigiu uma disciplina "inexata" e parcial-
mente formada, talvez, mas moralmente essencial, e, de outro, "deslocar", "re-
elaborar", "renegociar", "reimaginar" ou "reinventar" essa tradição, em favor
de uma abordagem mais "multiplamente centrada", "pluralista" e "dialógica",
que veja como uma espécie de relíquia colonial o bisbilhotar a vida de pessoas
que não estão em condição de bisbilhotar a nossa.
No que fizeram até agora os partidários de uma antropologia em que o tra-
balho de campo desempenha um papel muito reduzido ou transformado -
um grupo atuante e crescente, do qual Clifford é apenas um dos membros mais
desta~dos -, há muito pouco a sugerir que eles representem a onda do futu-
ro." E verdade que o primitivismo rousseauniano de Clastres, a visão de que os
"selvagens" são radicalmente diferentes de nós, mais autênticos do que nós,
moralmente superiores a nós, e de que só precisam ser protegidos, presumivel-
mente por nós, de nossa ganância e crueldade, não está, salvo por alguns entu-
siastas da Nova Era, muito prestigiado hoje em dia. (Clastres escreveu ourro
livro antes de morrer, A sociedade contra o Estado, no qual desenvolveu em ter-
mos mais explícitos, para não dizer polêmicos, algumas das ideias expostas na
Crônica, mas essa obra não recebeu muita atenção.)" Nem mesmo os que ten-
tam desesperadamente proteger povos como os Guaiaqui contra a exploração
ocidental estão tentando cristalizar suas culturas no tempo ou preservar suas
ti 1111/1/(' 1111111/11 111
o i dad H:l'l. 111 li ntand dar-lhe voz emeu futuro próprio,
l I' rn nc nã ti' di i 1'1l. M ,se o tipo de pesquisa ambulante e a meia dis-
t, n ia que Clifford prati a e recomenda constitui um avanço em relação ao
tipo praticado com tamanha devoção por Clastres, no estilo intirnista e persis-
( inte, está longe de ser algo que saibamos com certeza.
Routes, que Clifford diz ser uma extensão de The Predicament ofCulture,
, u livro anterior, muito louvado e muito ridicularizado (aliás, um livro mais
r rte, menos desconexo e mais bem escrito do que Routes), parece mostrar um
aráter hesitante e gaguejante (que posso dizer, como posso dizê-Ia e que direi-
O tenho de dizê-lor) que não é inteiramente atribuível a sua natureza explo-
rarória e inacabada.T Clastres, fossem quais fossem sua ortodoxia e seu
I mperamento decidido, sabia aonde estava indo e chegou lá. Clifford, quais-
~luerque sejam sua originalidade e sua disposição de experimentar, parece blo-
queado, vacilante, atrapalhado em busca de uma direção. Talvez seja cedo
lemais para trocar as raízes pelas rotas.
História e antropologia
uvem-se falar muitas coisas hoje em dia - algumas esperançosas, muitas cé-
ticas e quase todas nervosas - sobre o suposto impacto da Ciência da Antro-
pologia sobre a Disciplina da História. Os textos das publicações eruditas
examinam o problema com uma ponderação inútil: por um lado, sim, por ou-
tro, não; é preciso cear com o diabo usando talheres compridos. Os artigos da
imprensa popular dramatizam-no como a última novidade no front acadêmi-
co: departamentos "quentes" e "frios"; serão as datas uma preocupação datada?
Os tradicionalistas ultrajados (não parece existir outro tipo) escrevem livros di-
zendo que isso significa o fim da história política tal como a conhecemos, e
portanto, o fim da razão, da liberdade, das notas de rodapé e da civilização.
Convocam-se simpósios, dão-se cursos e se proferem palestras para tentar dis-
secar o assunto. Parece que está havendo uma briga. Mas é um bocado difícil
saber exatamente a que diz respeito uma gritaria na rua.
Uma das coisas a que ela pode se referir são o Espaço e o Tempo. Parece
haver alguns historiadores, cuja educação antropológica terminou em Mali-
nowski ou começou por Lévi-Strauss, que acham que os antropólogos, indife-
rentes à mudança ou hostis a ela, apresentam imagens estáticas de sociedades
imóveis, espalhadas por cantos longínquos do mundo habitado, e há antropó-
logos cuja ideia da história é mais ou menos a de Barbara Tuchman, e que
acham que a atividade dos historiadores consiste em contar histórias admoni-
tórias, do tipo "e aí", sobre este ou aquele episódio da Civilização Ocidental:
II
"roman e v rdad ir Il (n: pJ' 'SI) 1\ d stinu I • n ' az I'
enfrentar - ou desafiar - os fat .
Outra coisa a que a briga pode se r ~ rir sã queno. p 11-
dor dos historiadores para os grandes movimento d p n amento e da açã -
a Ascensão do Capitalismo, a Queda de Roma - e o dos antropólogos para (l
estudo de pequenas comunidades bem delimitadas - o Mundo Tewa (qual?),
o Povo de Alor (quem?) -levam os historiadores a acusarem os antropólog S
de gostarem de minudências, de se atolarem nos detalhes do obscuro e do s m
importância, e levam os antropólogos a acusarem os historiadores de esquem -
tismo, de perderem o contato com os dados imediatos e as complexidades, d •
não terem "sensibilidade" (como gostam de dizer, considerando-se possuid -
res dela) para a vida real. Como muralistas e miniaturistas, eles têm certa difi-
culdade de perceber mutuamente o que cada um vê nas perfeições diminutas
ou nos desenhos grandiosos.
Ou talvez a briga se refira a Alto e Baixo, Mortos e Vivos, Escrito e Oral,
Particular e Geral, Descrição e Explicação, ou Arte e Ciência. A história sen-
te-se ameaçada (segundo se ouve dizer) pela ênfase antropológica no mund -
no, no comum, no corriqueiro, que a afasta das forças que realmente movem
mundo - Reis, Pensadores, Ideologias, Preços, Classes e Revoluções - e a
leva a obsessões inversas com algazarras, dotes, massacres de gatos, brigas d .
galo e histórias de moleiros, que só fazem levar os leitores e eles mesmos ao rela-
tivismo. O estudo de sociedades vivas, segundo se afirma, leva a uma concen-
tração no presente, a instantâneos do passado entendidos como nós quand
éramos moços ("O mundo que perdemos", "A queda do homem público"), e à
interpretação ilegítima dos contemporâneos como ancestrais (os sistemas d
troca kula na Grécia homérica, a monarquia ritualista em Versalhes). Os an-
tropólogos queixam-se de que a dependência dos historiadores nos documen-
tos escritos os torna presa de relatos eliristas e convencionalismos literários. O
historiadores reclamam que a confiança dos antropólogos no testemunho oral
os torna presa de tradições inventadas e da fragilidade da memória. Supõe-s
que os historiadores sejam arrebatados pela "excitação de aprender coisas sin-
guiares", e os antropólogos, pelo deleite da construção de sistemas, uns afun-
dando o indivíduo atuante no rápido suceder de acontecimentos superficiais,
outros dissolvendo por completo a individualidade nas estruturas profundas
da existência coletiva. A sociologia, diz Veyne, referindo-se com isso a qual-
quer esforço de discernir princípios constantes na vida humana, é uma ciência
cuja primeira linha não foi nem jamais será escrita. A história, diz Lévi-Strauss,
referindo-se com isso a qualquer tentativa de entender sequencialmente essa
vida, é uma carreira excelente, desde que ao final se saia dela.
11.1
I' almcnt I Is o 111' S' J' re a dis u ão, a esse espancamento meto-
dol ic fi 1 rand di otornias da metafísica ocidental, o Ser e o De-
vir revi irado ,n" vale a pena levá-Ia adiante. Já faz um bom tempo que os
. tereótipos do historiador como memorialista da humanidade ou do antropó-
I go como explorador das formas elementares do elementar deixaram de ter
rrande aceitação. Sem dúvida restam exemplos de ambos, mas, nos dois cam-
p ,a verdadeira ação (e o verdadeiro diviso r) está em outro lugar. Há tanta
isa separando quanto unindo, digamos, Michel Foucault e Lawrence Stone,
arl Schorske e Richard Cobb; e há tanta coisa ligando quanto separando, di-
ramos, Keith Thomas e Mary Douglas, Fernand Braudel e Eric Wolf.
O movimento centrífugo - qualquer tempo exceto agora, qualquer lugar
xceto aqui - que ainda marca as duas iniciativas, sua preocupação com o que
veio recentemente a se chamar "O Outro", com maiúsculas pós-modernas e
trêmulas aspas estruturalistas, garante uma certa afinidade eletiva entre elas.
Tentar compreender pessoas em posições muito diferentes das nossas, encerra-
das em condições materiais diferentes, movidas por ambições diferentes e to-
madas por ideias diferentes do que é a vida cria problemas muito semelhantes,
quer as condições, as ambições e as ideias sejam as da Liga Hanseática, as das
ilhas Salomão, as do conde-duque de Olivares ou as dos Filhos de Sanchez. Li-
dar com um mundo noutro lugar dá mais ou menos na mesma quando esse
utro lugar fica há muito tempo ou muito longe daqui.
Todavia, como mostra a irreversibilidade do slogan comumente usado
para expressar essa visão - "o passado é outro país", de L.P. Hartley- (já que
utro país definitivamente não é o passado), a questão é muito mais complexa;
equivalência da distância cultural entre, digamos, nós e os francos e nós e os
nigerianos é bem menos do que perfeita, sobretudo uma vez que, hoje em dia,
pode haver um nigeriano morando ali na esquina. Na verdade, nem mesmo o
cc ," cc lf' b ~ d "O ",nos ,o se que usca essa compreensao outro, e exatamente a mesma
coisa aqui, e é isso que explica, a meu ver, o interesse de historiadores e antro-
pólogos pelo trabalho uns dos outros, bem como os receios que surgem quan-
do esse interesse é levado adiante. O "nós", assim como o "eles", significam
coisas diferentes para quem olha para trás e para quem olha para os lados, pro-
blema este que não se torna propriamente

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