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A Capital da Geopolítica - Vesentini

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Prévia do material em texto

| ensaios 124
|
| |
|
| |
|
José William Vesentini
Professor Assistente Doutor no Departamento de Geografia
da FFLCH da Universidade de São Paulo
|
|
” .
DA GEOPOLITICA |
t
i
 
 
 
 
 
Coordenação editorial
Maria Carolina de Araujo E
Capa Ê
Ary Almeida Normanha
Edição de arte (miolo)
Antônio do Amaral Rocha É
Produção gráfica
Elalne Regina de Oliveira
Preparação dos originais
Emílio Satoshi Hamaya
ISBN 85 08 01721 9 à
1986 Vo
- Todos os direitos reservados !
|Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656
Editora Ática S.A. — Rua Barão de Iguape, 110 4
End. telegráfico “Bomlivro” — São Paulo
| 
 
SUMÁRIO
Nota prévia ......ccccccccccc errar erre
Introdução ...cccciiciccerra
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Sociedade, Estado e espaço — a problemática teó-
rica da cidade-capital ...........ccccccc ces
. A Capital e sua historicidade — Brasília e as analogias
. Subsídios à crítica da geografia política .............
. Geografia crítica e construção do espaço ............
. Capitalismo, Estado-nação e espaço ................
. A questão da geopolítica ..............cccccc..
Notas e referências bibliográficas, 172
A interiorização da Capital Federal na perspectiva
geopolítica ......ccccccccccc cce cerne
. Uma controvérsia geográfica... e política ..........
. “Planalto Central” e “história de Brasília” — sobre o mo-
vimento da ideologia .i.......ciccccisicciscrcrecs
. Os argumentos geopolíticos ..........cccccicoco..
. À nova Capital: operacionalização da geopolítica? ....
. “Redemocratização” e controle social ...............
Notas e referências bibliográficas, 191
« O governo JK e a construção de Brasília ..........
Os “cingiienta anos em cinco” .........ciiccscs...
- Entre a superexploração e a cooptação .............
. Integração territorial e regionalização ..............
. O projeto de dominação do empresariado industrial ....
. Brasília e o nacional-desenvolvimentismo ............
Notas e referências bibliográficas, 204
 
14
14
24
34
45
52
 
 
IV. O espaço urbano da nova Capital ................ 140
1. O Plano Piloto e as cidades-satélites ............... 140
2. A concepção urbanística ........cccciciciiccto 148
3, As contradições no interior do Plano Piloto .......... 156
4. Brasília e o Estado tecnocrático .................. 160
Notas e referências bibliográficas, 220
Considerações finais ..........ciicccssicrcsrecres 170
Fontes e Bibliografia ...........ccccissccssccrrrrs 231
 
 
 
 
NOTA PRÉVIA
Este livro é, com ligeiras alterações, a tese de doutoramento
apresentada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filo-
sofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
em março de 1985, com o título 4 capital da geopolítica; um
estudo geográfico sobre a implantação de Brasília.
Somos gratos à banca examinadora — composta pelos pro-
fessores doutores Manoel F. G. Seabra, Pasquale Petrone, Aldo
Paviani, Bertha K. Becker e Maria Stella M. Bresciani — pelas
sugestões e agudos comentários.
Gostaríamos de registrar também nossa gratidão pelos esforços
realizados por Carlos Alberto Vesentini, que leu os manuscritos
originais e forneceu valiosas sugestões.
E cabe a Manoel F. G.Seabra, orientador da tese, uma men-
ção especial de reconhecimento pelo apoio e estímulo dados du-
rante toda a pesquisa, além das críticas percucientes que admitem
outros pontos de vista.
Mencionamos, ainda, nosso débito para com o CNPq, que
durante dois anos nos brindou com uma bolsa de estudos.
 
 
 
 
INTRODUÇÃO
Começa a se tornar lugar-comum a afirmativa de que o espaço
geográfico é produzido e reproduzido pelos homens em suas rela-
ções entre si e com a natureza. Produto da — e, ao mesmo tempo,
condição material para a — práxis inter-humana sob determinadas
peculiaridades de tempo histórico, ele é, outrossim, um espaço
social.
Nesses termos, mesmo não sendo um reflexo imediato das
condições históricas e sociais de seu presente, já que muitas vezes
é herança do passado, uma certa característica do espaço — seja
o traçado das ruas de uma cidade, o estilo arquitetônico de seus
edifícios, sua localização em relação a outras partes do social onde
se insere etc. — possui sempre íntimas relações com essas condições
presentes, sendo por elas apossada. Apesar de mediar as relações
societárias e, por isso, facilitar ou dificultar certos procedimentos
e tendências, o espaço é transformado pela ação humana, Afinal,
as bastilhas são tomadas, as versalhes perdem seu papel de capital,
as ruas são alargadas, os prédios demolidos para novas construções,
o espaço remodelado em função da história, da luta de classes.
Isso posto, como explicar adequadamente a implantação de
Brasília? Como entender a transferência da Capital Federal do
Brasil de uma cidade litorânea, situada em área densamente po-
voada, para uma porção do interior distante das grandes concen-
trações demográficas? Por que essa realização, efetuada num perío-
do tido como democrático e elogiada pela maior parte dos escritos
acadêmicos que a abordam, acabou resultando numa obra extre-
mamente apropriada para os inimigos da democracia, para o Estado
autoritário?
A história recente é pródiga em exemplos a esse respeito. Eles
podem ser colhidos no noticiário cotidiano dos órgãos de imprensa.
Recordemos alguns, nas linhas abaixo:
Medidas de emergência foram decretadas ontem pelo presidente
João Figueiredo para vigorar por 60 dias no Distrito Federal, sob 
o argumento de proteger o Congresso Nacional de pressões de
“agitadores recrutados em várias regiões do País” com a intenção
de “pressionar e intimidar parlamentares no exercício de suas
funções” [...]. As medidas de emergência incluem busca e apreen-
são em domicílio; suspensão da liberdade de reunião e associação;
intervenção em entidades representativas de classes ou categorias
profissionais [...] (O Estado de S. Paulo, 20/10/83).
(Tratava-se, do ponto de vista do Governo, de facilitar a aprova-
ção de um decreto com inúmeras medidas econômicas que acaba-
riam por recair sobre o poder de compra dos salários em geral,
rebaixando-o.)
[...] em nota distribuída à imprensa, o general [Newton Cruz,
executor das medidas de emergência] proibiu a entrada de veículos
de transporte coletivo conduzindo pessoas com outra finalidade
que não fosse a de natureza desportiva, artística, cultural, turís-
tica ou para encontro com autoridades. [Nesse sentido foram]
colocadas barreiras nos postos policiais de acesso à Capital Federal
(Folha de S. Paulo, 21/10/83).
Depois que o Governo decretou as medidas de emergência em
Brasília, a Capital Federal não recebeu mais nenhuma das inú-
meras delegações que costumavam visitá-la, sempre que o Con-
gresso ou o Judiciário estavam por decidir alguma coisa de inte-
resse de categorias profissionais (Folha de S. Paulo, 14/11/83).
O presidente Figueiredo decretou ontem [nóvas] medidas de emer-
gência no Distrito Federal e em 10 municípios de Goiás [...].
Pelo decreto [...] estão impedidas as gravações em vídeo-tape na
região, que deverão ser examinadas previamente pela Polícia Fe-
deral, antes de levadas ao ar; nenhuma transmissão oral de esta-
ções de radiodifusão sonora poderá ser realizada sem a prévia
aprovação do órgão competente [...]; e está proibida a formação
- de caravanas que possam ter fins políticos [...] (Folha de S. Pau-
lo, 19/04/84).
(Neste caso, o Governo tratava de pressionar o Congresso para a
rejeição de uma emenda constitucional que propunha eleições di-
retas imediatas para o cargo de Presidente da República.)
A geografia dá as pistas dos motivos pelos quais as dez cidades
goianas foram incluídas na lista das medidas de emergência do
Planalto, junto com Brasília: controlando esses municípios, o
governo domina os acessos rodoviários e ferroviários para o Con-
gresso Nacional [...] (O Estado de S. Paulo, 19/04/84).
Desde 1964, a grande preocupação de todos os governantes de
Brasília foi a segurança. A cidade é uma fortificação sem mura-
lhas. Primor de eficiência. Nãosó pelo número de unidades e
efetivos militares. Principalmente, pelo refinamento e a rapidez
com que o policiamento trabalha [...]. Não há mundo melhor! 
9
As festas se sucedem, os salários são altíssimos, a graça dos fa-
vores é parte de rotina dos negócios oficiais. Nem parece que
Brasília fica no Brasil. No seu cotidiano, não há tensões. Greves,
desemprego e moratória são mazelas de um outro país [...]
(Senhor, (128), São Paulo, 31/08/83). .
Mordomias, privilégios, impunidade para os erros e negociatas,
grandes festas em que milionários e “especiais” negócios são
iniciados, boatos, intrigas, lobbies políticos e empresariais — a
cidade [Brasília] é um mercado paradisíaco em que tudo tem seu
preço e o importante é estar bem relacionado [...] (O Estado
de S. Paulo, 11/05/84).
Poder-se-ia objetar que tudo isso também ocorreria caso a
Capital Federal do País estivesse no Rio de Janeiro ou mesmo
“em São Paulo. É possível que sim. Todavia, nestas cidades certa-
mente a implementação das medidas de emergência seria mais
problemática, e maiores as formas de burlá-las; a proximidade com
o Brasil do desemprego, das greves e tensões sociais maior; a
segurança talvez menos eficaz, e as grandes festas mais discretas.
Pois o espaço não é neutro. Ele não determina de forma alguma
os acontecimentos, mas oferece obstáculos (mesmo que transpo-
níveis) para certas ações e favorece outras. E Brasília como capital
federal, convenhamos, se ajustou muito bem ao funcionamento |
desse Estado forte e distante dos interesses populares. Perscrutar
o porquê desse ajustamento é um dos escopos deste trabalho. As
explicações usuais — onde se considera que o autoritarismo pós-64
teria “desvirtuado” as belas intenções iniciais do plano de Brasília,
que essa cidade hoje não é mais aquilo que Juscelino Kubitschek
se propôs realizar etc. — não nos parecem convincentes. Assim
sendo, acreditamos na conveniência de evitar a atitude, frequente
nessas explicações, de considerar como um a priori a natureza
democrática do governo JK e do plano original de Brasília (tido
por vezes até como socialista), e partimos para uma interrogação
sobre as condições político-ideológicas que engendraram a nova
Capital do Brasil.
Ao buscarmos na geografia política subsídios teórico-metodo-
lógicos para analisar a questão da cidade-capital, deparamos com
as insuficiências dessa modalidade do discurso geográfico. Suas
noções e formas de abordagem para tal questão nos pareceram
inadequadas frente à perspectiva referida do espaçogeográfico
como social, como construção histórica. E as explicações geográ-
ficas sobre a implantação de Brasília, via de regra, omitem a luta
de classes dessa realização, deixando assim de apreender a natu-
reza política desse espaço construído. A título de exemplificação,
reproduzimos a seguir algumas afirmativas comuns a esse respeito: 
 
 
10
Há de admitir-se que avida do Rio de Janeiro, embora agradável
para turistas e visitantes estrangeiros, é dura para os que ali
residem permanentemente. Com o advento dos automóveis, o
traçado das ruas do Rio de Janeiro tornou-se intolerável. Os
engarrafamentos se sucedem [...]. Em contraste, engenheiros e
arquitetos brasileiros sonham com uma espécie de cidade ideal —
uma cidade de largas avenidas, altos e modernos edifícios [...].
Lembra-se o êxito de Camberra e de Washington, ambas capitais
planejadas [...]. Ninguém, que tenha experiência em planeja-
mento urbano ou que seja capaz de contribuir para a melhoria
da vida brasileira, deixará de responder ao desafio de construir
uma nova capital, uma cidade planejada desde o início, sem os
óbices de traçados de ruas já existentes ou de edifícios obsoletos
(JAMES, Preston E. e FaissoL, Speridião. The Problem of Brazil's
Capital City. The Geographical Review, New York, American
Geographical Society, 46(3):306-7, julho de 1956; trad. port.:
O problema da Capital do Brasil. Boletim Geográfico. Rio de
Janeiro, IBGE, 18(158), 1960. p. 775).
Cidade “artificial”, surgiu de uma vontade criadora que haveria de
se manifestar na prévia definição de diversos aspectos materiais e
formais [...] O subdesenvolvimento comparece como um ele-
mento de oposição, diante daquela “vontade criadora”, modifi-
cando os resultados esperados. [...] Vontade criadora e subde-
senvolvimento do País são, pois, os termos que se afrontam na
realização efetiva de Brasília. É de sua confrontação que a cidade
retira os elementos de sua definição atual (SANTOS, Milton. Bra-
sília, a nova Capital brasileira. Symposium sur Brasilia. Paris,
CNRS, 1965. p. 370-1; reproduzido pelo Autor no livro 4 cidade
nos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1965. p. 54-5).
O desejo de interiorização da Capital do Brasil foi manifestado
pelos inconfidentes, por José Bonifácio, logo no início de nossa
vida independente e consagrado nas diversas constituições repu-
blicanas. Essa vontade tem sido interpretada como um reflexo da
rejeição, por parte do povo brasileiro, de todas as reminiscências
coloniais, retirando a sede do governo de uma localização perifé-
rica em relação à configuração territorial do País [...]. Esta von-
tade reflete, ainda, o interesse do país independente em povoar o
vasto território colocando a Capital no seu centro geográfico [...]
(GEIcER, Pedro P. Evolução da rede urbana brasileira. Rio de
Janeiro, INEP, 1963. p. 425).
Politicamente, Brasília está construída no Interior para romper o
domínio do mar na civilização brasileira [...] A Capital repre-
senta o Ego coletivo do País. [...] O plano tem sido muitas vezes
comparado com a forma de um pássaro ou de um avião. As asas
Norte e Sul são zonas residenciais e o eixo monumental leste—
oeste é o corpo. Brasília é um pássaro que pousou na terra
[...]. Na psicologia de Jung, o pássaro é também um símbolo 
 
u
de salvação, um sinal de espiritualização (TUAN, Yi-fu. Topofilia,
São Paulo, Difel, 1980. p. 197-8).
Brasília [...] inaugura igualmente uma nova estratégia, aquela
orientada não mais para o mar e sim para o interior do continente
americano. Certo, a Capital do Brasil manifesta, por sua arqui-
tetura, seu traçado e sua morfologia, uma vontade “modernista”,
porém, as estruturas gerais que a alicerçam são as mesmas [que
alicerçaram] a transferência de Moscou para São Petersburgo [...]
(RAFFESTIN, Claude. Pour une geographie du pouvoir. Paris,
Litec, 1980. p. 173).
Afirmativas semelhantes poderiam ser multiplicadas, extraídas
tanto de outras obras geográficas quanto de estudos realizados por
sociólogos, historiadores, economistas, urbanistas etc. Contudo, não
seriam realmente necessárias, pois já foram apresentadas suficientes
citações de trabalhos de geografia (que, afinal, foi a disciplina
acadêmica que mais se incumbiu do fenômeno cidade-capital) sobre
a nova Capital do Brasil. O fundamental é que esses trechos repro-
duzidos, pinçados em obras expressivas *, deixam entrever alguns
procedimentos comuns em praticamente toda a bibliografia que
abordou a questão da implantação de Brasília. Antinomias abstra-
tas, como a oposição entre a “vontade nacional” e o “subdesenvol-
vimento”, substituem as contradições e lutas entre os agentes histó-
ricos reais. No lugar do processo histórico efetivo que originou a
construção de Brasília, referem-se à “vontade da Nação” — que
teria sido expressa por Tiradentes, José Bonifácio e outras perso-
nagens da “nossa história” — em interiorizar a Capital Federal,
colocando-a no “centro geográfico do Brasil”. Muitas vezes simples
analogias (seja com Washington, com São Petersburgo ou com
outras cidades-capitais de diversas épocas e sociedades) acabam
por dispensar maiores explicações sobre a transferência da Capital
do País para Brasília. E uma certa percepção do planejamento
como a racionalização da política ou do “crescimento caótico” das
cidades leva à apologia do plano original de Brasília, visto como
símbolo da “cidade ideal” ou da “esperança da Nação num futuro
sem subdesenvolvimento”.
* Convém notar que boa partedesses trabalhos citados não possui na im-
plantação de Brasília o seu principal alvo de preocupações e todos eles são
significativos na produção geográfica, quer como obras já tornadas clássicas
da geografia tradicional, quer como alternativas recentes de renovação —
por diferentes vias — dessa formação discursiva. Nesse sentido, os trechos
citados foram por nós selecionados apenas como demonstrativos dos imbró-
glios na abordagem da questão de Brasília como cidade-capital, e nunca
como uma pretensa avaliação crítica de cada obra. 
 
 
12
Nessas condições, julgamos que um estudo sobre a implan-
tação de Brasília deveria implicar uma reconstrução, ao menos
parcial, da abordagem geográfica do político. E como etapa neces-
sária desse empreendimento surge a apreensão crítica da geografia
política, com a análise de seus pressupostos e de suas teorias e
noções mais comuns utilizadas para enfocar o tema cidade-capital.
Tal empresa foi levada a cabo no primeiro capítulo deste trabalho.
Aí também foi examinado o significado pleno de “construção do
espaço”, categoria que subsume toda dimensão espacial da práxis
inter-humana sob o capitalismo e onde a questão de Brasília como
cidade-capital ganha sentido.
Na busca das determinações que tornaram Brasília possível,
na crítica à geografia política tradicional e na percepção do espaço
como condição e produto das lutas de classes, acabamos nos depa-
rando com o enigma da geopolítica. Pouco a pouco, ficamos con-
vencidos de que nenhum estudo sobre a implantação de Brasília,
ou mesmo sobre a instrumentalização do espaço pelo Estado ho-
dierno, pode elidir um exame referente a esse discurso (e prática
política). Nosso estudo relativo à geopolítica, encetado já no pri-
meiro capítulo, prossegue no segundo desta obra quando exami-
namos a questão da interiorização da Capital Federal no pensa-
mento geopolítico brasileiro.
No terceiro capítulo procuramos compreender a edificação de
“Brasília e a transferência da Capital Federal no contexto do go-
verno JK, em interligação com outros aspectos relevantes desse
período, tais como o avanço industrial e o Plano de Metas, a
criação da Sudene e a ideologia nacional-desenvolvimentista. A
implantação de Brasília, ocorrida no bojo de um processo — que
encerra toda uma dimensão geopolítica — de reordenação espacial
do território nacional, de uma (nova) regionalização do Brasil,
foi analisada numa perspectiva que privilegia o político como
fundante, observando-se os momentos de acirramento nas lutas de
classes e o projeto de dominação do empresariado industrial tor-
nado vitorioso.
Também o espaço urbano da nova capital foi objeto de estu-
dos, expostos no capítulo 4 deste trabalho. As diferenças entre o
Plano Piloto e as cidades-satélites, a natureza do plano original
da cidade, as segregações e contradições espaciais de Brasília, todos
esses elementos locais refletem igualmente, embora num nível
específico, as relações entre a cidade-capital e a sociedade brasi-
leira como um todo. Esses elementos da cidade não poderiam ser
omitidos, portanto, numa investigação sobre as relações espaço/
/política a partir da transferência da Capital do País para Brasília. 
C
A
V
E
C
E
E
:
=
=
.
 
 
 
13
Denominamos geográfica a esta obra * não por considerarmos
que ela estaria enquadrada numa “definição do campo de estudos
específico”, numa delimitação apriorística da pesquisa que seria
própria à geografia, mas sim porque a engendramos a partir de
— e simultaneamente em oposição a — toda uma tradição de
pensadores que se reconheciam (ou reconhecem), e são social-
mente reconhecidos, como geógrafos: Jean Brunhes, Camille Val-
laux, Léo Waibel, Yves Lacoste e outros. A partir deles porque
acreditamos que nosso estudo retoma e dá continuidade, num certo
sentido, a uma problemática que aí encontra seus artífices. Em
oposição a eles porque não se tratou de “aplicar” seus métodos e
conceitos na abordagem de um caso específico; tratou-se, isto sim,
de se contrapor a essa tradição (que, evidentemente, não é unívo-
ca), de criticá-la com vistas a superá-la, de abandonar algumas
de suas veredas abrindo outras.
Foi dito alhures que a geografia é (e será) aquilo que pro-
duzem os geógrafos, isto é, um corpo teórico constituído (embora
problemático) e um vir-a-ser em constituição, em aberto. A asser-
tiva torna-se mais plenamente verdadeira na medida em que enten-
demos o geógrafo como personagem imersa no social, nas suas
condições históricas, distante, portanto, da imagem sugerida pela
consciência (res cogitans) cartesiana. Tal atitude implica reconhecer
que o discurso geográfico não é proferido de fora do “objeto” —
o estudo “sobre” o espaço —, mas, ao contrário, ele deve ser
tomado como parte constitutiva desse espaço social, sujeito às suas
indeterminações, interligado às práxis que transformam esse real.
Nesse sentido, nosso trabalho pretendeu alargar as fronteiras do
possível na análise geográfica, recusando qualquer “modelo” pron-
to e partindo de uma indeterminação de origem, de questões pro-
postas pelo/ao real (aí incluindo-se a bibliografia que o teoriza).
Algumas dessas questões foram respondidas, outras reelabo-
radas, e outras, novas, surgiram a partir de nosso labor. Até que
ponto nosso esforço resultou numa contribuição efetiva para a
compreensão da implantação de Brasília como cidade-capital e,
ao mesmo tempo, para a renovação da geografia política, só o
tempo o dirá. Mas o tempo como história, na qual encontra-se
incluída, entre outras coisas, a polêmica teórica.
* O subtítulo original deste trabalho, ao ser defendido como tese de doutora-
mento, era “Um estudo geográfico sobre a implantação de Brasília”.
 
 
I
SOCIEDADE, ESTADO E ESPAÇO —
A PROBLEMÁTICA TEÓRICA
DA CIDADE-CAPITAL
Outrora, entrava-se em combate com uns poucos solda-
dos; ferravam-se pequenas batalhas e faziam-se prolon-
gados sítios. Hoje, travam-se grandes batalhas e, desde
que seja possível marchar livremente para diante, corre-
-se à capital, a fim de terminar a guerra de um só golpe.
Napoleão, ao que se diz, inventou esse sistema. Mas não
dependia de um homem, fosse ele qual fosse, a criação
de um sistema semelhante. A maneira pela qual Napo-
leão fez a guerra lhe foi sugerida pela situação da so-
ciedade de seu tempo, e lhe deu o êxito porque era
maravilhosamente apropriada a essa situação [...].
ALEXIS DE TOCQUEVILLE
1. A Capital e sua historicidade — Brasília
e as analogias
“Une capitale n'est pas absolument nécessaire à "homme”,
escreveu Senancour. ! De fato, nas sociedades onde não existem
dominantes e dominados, que lutam “contra o Estado” 2, não há
nenhuma razão para haver cidades ou aglomerados que funcionem
como capital. Mas, por outro lado, não há sociedade política sem
um local — mesmo provisório — que sedie a cúpula do Estado,
onde se exerça o governo.
“Não há Estado sem capital”, afirmaram Brunhes e Vallaux ?,
complementando ainda. que:
Esta pode ser, segundo a nação ou o Estado, um grupo de tendas
de palha ou de cabanas de madeira, um campo permanente, uma
aldeia diminuta ou um centro urbano como Londres ou Paris; 
 
 
15
pode ser fixa ou móvel, permanente ou provisória; porém, sob
esses diversos aspectos, encontra-se sempre o indispensável órgão
central do Estado, ponto de concentração dos meios e base do
pensar e da vontade dirigentes [...]. Seu futuro é aquele do
Estado cuja organização ela coroa. *
A capital — sua localização no território, seus fluxos com
as diversas unidades do território sob o domínio desse Estado,
seu traçado urbanístico e suas linhas arquitetônicas — representa
um aspecto visível, material, espacial enfim, das relações e imbri-
cações entre o Estado e a sociedade onde ele existe.
Com fregiiência, ocorreram casos de mudanças significativas
nos objetivos do governo, ou na correlação das forças políticas,
e que resultaram em transferências da cidade-capital. Inúmeros
exemplos podem ser citados. Após a guerra da independência norte-
-americana, os Estados federados resolveram decomum acordo
escolher um local considerado “neutro” (que não estivesse sob a
influência imediata de apenas um dos 13 Estados, não sendo,
portanto, nenhuma cidade importante da época, como Boston,
Nova York ou Filadélfia) para aí construírem a Federal City,
mais tarde Washington. * São Petersburgo (Petrogrado, hoje Lenin-
grado) foi fundada por Pedro, o Grande, nas proximidades do
mar Báltico, num momento de expansionismo do Império russo
para oeste. º Madri foi fundada no século XVI, com vistas ao
domínio sobre as tendências centrífugas: Filipe II achou ser esse
local central mais adequado para a obra de centralização política
e para vigiar com igual distância a Galícia, Múrcia, Andaluzia e
Catalunha.” No final do século XVII, Luís XIV deu início à
construção de Versalhes, que substituiria Paris como capital polí-
tico-administrativa da França (ou, de forma mais apropriada, como
local-residência da corte), por haver nessa cidade alguns motins
populares, muita pobreza e aglomerações. *
Por outro lado, todavia, a capital não pode ser estudada isola-
damente de seu contexto histórico, das condições econômicas, so-
ciais e políticas onde se situa. Não é possível elaborar-se uma
teoria das cidades-capitais que abranja num mesmo esquema a
Roma da Antiguidade, a Madri do século XVI e a Brasília de
hoje. Isso seria praticamente o mesmo que estabelecer uma teoria
da população única para todos os modos de produção º, ou então
“fundamentos de economia” comuns para todas as múltiplas for-
mas de historicidade -— desde sociedades ditas sem história até o
capitalismo avançado, passando pelo feudalismo, por Atenas ou
Esparta no século V a.C. etc. 1º É evidente que existem alguns
elementos comuns nas capitais das diversas sociedades de Estado,
presentes ou pretéritas, assim como existem genéricas caracterís-
 
 
16
ticas econômicas ou demográficas em comum nas inúmeras socie-
dades humanas. Entretanto, esses elementos ou caracteres em co-
mum são tão genéricos que pouco ou quase nada explicam sobre
o papel real desempenhado pela capital no Estado e na sociedade
específicos onde ela encontra sua razão de existir.
Dessa forma, uma transferência da capital no território, uma
reurbanização em seu espaço construído ou uma alteração em seu
papel político-administrativo são acontecimentos que não derivam
de pretensos “princípios gerais” do Estado ou da capital, mas que
efetivamente resultam de determinações sociais, de uma série de
condições históricas — desde algumas mais estruturais, aquelas
próprias da época ou dos fatores básicos à reprodução do sistema
sócio-econômico, até as que são mais conjunturais, próprias de um
momento específico (tais como alterações na hegemonia de grupos
sociais no interior do aparato do Estado, ou até mesmo motivações
psicológicas de algumas personagens-chave, que constituem um
fator de suma importância para certos casos, principalmente num
Estado absolutista) —., condições essas que no seu entrecruza-
mento engendram a racionalidade inerente a cada ato singular.
Mas a racionalidade social não é semelhante à mecânica ou à
matemática, que se inscrevem no campo do determinado a priori,
da necessidade absoluta, e sim uma determinação que se abre ao
indeterminado como possibilidade do novo, como necessidade em
permanente tensão com a contingência. 11
Assim, mesmo sem traçar uma análise pormenorizada, pode-se
afirmar que a construção de Washington está indissociavelmente
ligada a uma certa concepção bastante datada de federalismo e
democracia, entre outros fatores. Nas palavras de um autor que
analisa a democracia norte-americana pouco mais de três décadas
após a inauguração dessa capital, temos que:
As treze colônias que, simultaneamente, abandonam o jugo da
Inglaterra, no fim do século passado, tinham [...] a mesma reli-
gião, a mesma língua, os mesmos costumes, quase as mesmas Jeis,
lutavam contra um inimigo comum e por isso deviam ter fortes
razões para se unirem intimamente uma às outras e se absorverem
numa só e mesma nação. Entretanto, tendo sempre tido uma
existência à parte e umgoverno ao seu alcance, cada uma criara
para si interesses e usos particulares e repugnava aquela união
sólida e completa que teria feito desaparecer a sua importância
individual numa importância comum. 12
E ainda:
Há países onde um poder de certo modo exterior ao corpo social
age sobre ele e o força a marchar em certa direção. Outros 
 
 
17
há em que a força é dividida, estando ao mesmo tempo situada
na sociedade e fora dela. Nada de semelhante se vê nos Estados
Unidos; ali, a sociedade age sozinha e sobre ela própria. Não
existe poder a não ser no seio dela. [...] Examinar a União antes
de estudar o Estado é enveredar por um caminho eivado de obs-
táculos. A forma do governo federal, nos Estados Unidos, apa-
receu por último [...]. O governo federal não passa, aliás, como
acabo de dizer, de uma exceção: é o governo dos Estados a regra
comum [...]. A vida política e administrativa encontra-se con-
centrada neles em três focos de ação [...]. No primeiro grau,
encontramos a comuna, depois o condado, e afinal o Estado, 13
No cerne mesmo dessa concepção de democracia encontra-se
uma busca do novo, a fundação de uma nova República em
oposição ao mundo antigo, simbolizado pela Europa Ocidental da
Época Moderna; ou, em outros termos, no imaginário social da
nação norte-americana houve e talvez ainda haja a forte presença
de um lema impresso em toda nota de dólar — Novus Ordo
Saeclorum, uma nova ordem do mundo. 14
Foi por isso que dois clássicos da geografia política obser-
varam que:
o pensamento dominante no Congresso era o de assegurar a auto-
nomia e a igualdade dos Estados federados, impedindo que a
Capital adquirisse um poder exagerado, que naquela época era
já patente em vários países da velha Europa, particularmente na
França. 15
E foi também por isso, além do fato de não se adequar a
uma sociedade de capitalismo liberal em forte expansão, que malo-
grou o plano original da nova capital elaborado pelo engenheiro
francês Pierre-Charles L"Enfant, pois:
A despeito das firmes convicções republicanas de L"Enfant, o pro-
jeto que apresentou para a nova Capital era, em todos os aspectos,
o que os arquitetos e servos do despotismo haviam originalmente
concebido [...]. Washington tinha todos os aspectos de um so-
berbo plano barroco: a localização dos edifícios públicos, as im-
ponentes avenidas, as abordagens axiais, a escala monumental,
o verde envolvente. [...] Na verdade, esqueceu-se L'Enfant de
. que o tempo é um embaraço fatal à concepção barroca do mundo:
“sua ordem mecânica não admite crescimento, mudança, adaptação
e renovação criadora. Desempenho de tal natureza deve ser exe-
cutado uma vez, para sempre, em sua própria época. [...] A
demissão de L'Enfant foi o indício de que os proprietários e espe-
culadores comerciais, e não o governo, iriam exercer o principal
controle do desenvolvimento da Capital. 18 
 
 
 
18
A construção de Versalhes intersere-se, outrossim, nas deter-
minações próprias ao seu tempo histórico: o absolutismo monár-
quico, a obra de centralização político-administrativa e de unifi-
cação territorial, o capitalismo comercial, o mercantilismo e o
sistema colonial, a sociedade estamental... Enfim, num todo de
partes ou processos em interação — que se convencionou deno-
minar Antigo Regime 1”,
Nas palavras de um autor do século passado que procurou
entender a Revolução Francesa nas condições do Antigo Regime
francês, aparece que:
O Governo bem via esta revolução, mas só enxergava seu aspecto
mais material, ou seja, o crescimento da cidade. Via Paris esten-
der-se dia a dia e temia que se tornasse difícil governar uma ci-
dade tão grande. Encontram-se muitos decretos promulgados pelos
nossos reis, principalmente nos séculos XVII e XVIII, cuja fina-
lidade é parar este crescimento. Estes príncipes concentravam
sempre em Paris ou às suas portas a vida pública da França e
queriam que Paris permanecesse pequena. Proibem a construção
de novascasas ou então determinam meios de construção por
demais onerosos e locais pouco atraentes indicados de antemão.
É bem verdade que cada um destes decretos constata que todas
estas medidas não impediram Paris de estender-se. 18
Assim, a obra de centralização político-administrativa do abso-
lutismo na França fazia Paris crescer em detrimento das províncias:
Na França, a liberdade municipal sobreviveu ao feudalismo. Quan-
do os senhores já não administravam mais o campo, as cidades
ainda conservavam o direito de se governar. Até o fim do século
dezessete ainda encontramos cidades formando espécies de pe-
quenas repúblicas democráticas, cujos magistrados são livremente
eleitos pelo povo todo e responsáveis perante ele, onde a vida
municipal é pública e ativa [...]. As eleições foram abolidas pela
primeira vez em 1692. Então as funções municipais foram colo-
cadas em ofícios, quer dizer que o Rei vendeu em cada cidade
a alguns habitantes o direito de governar à perpetuidade todos
os outros. [...] Luís XI restringiu as liberdades municipais por-
que temia seu caráter democrático; Luís XIV destruiu-as sem
temê-las. Isto ficou comprovado quando as devolveu a todas as
cidades que puderam recomprá-las. Na realidade, não queria tanto
aboli-las quanto traficá-las e, se as aboliu, foi, por assim dizer,
sem pensar, como puro expediente financeiro. Coisa estranha,
o mesmo jogo prossegue durante oitenta anos, 1º
Se, por um lado, a unificação territorial e a centralização
político-administrativa operadas pelo absolutismo francês engen-
dram — apesar das tentativas de obstaculizar o crescimento de 
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19
Paris — o que poderíamos, talvez, denominar “macrocefalia urba-
na”, por outro lado, isso não era bem visto por alguns monarcas
do século XVII:
Noséculo XVII, quando os progressos do Estado francês impõem,
de forma absoluta, Paris como cidade-capital, os monarcas pare-
cem sentir repugnância ao instalar-se nela: elegem, junto à Capital,
residências especiais; primeiro Saint-Germain e Fontainebleau, de-
pois Versalhes, local onde a monarquia se fixará definitivamente
para brilhar com todo o seu esplendor e depois morrer. 2º
O plano urbanístico de Versalhes, barroco como o de
Washington, foi mais bem-sucedido que este, já que apropriado
ao absolutismo político da Época Moderna. Conforme Munford:
Quando foi traçado o plano de Versalhes, o próprio palácio foi
situado de um lado do antigo pavilhão de caça, onde Luís XIV
dirigira os primeiros galanteios a sua amante, Mme. de la Valliêre.
Mas, no plano de uma capital real, o local de encontro servia
agora a outra finalidade: o palácio atraía as novas avenidas da
cidade, assim como o próprio governante reunia o poder político
que outrora estivera disperso entre uma multidão de famílias feu-
dais e corporações municipais. Todas as principais avenidas con-
duziam ao palácio. E quando se erguiam os olhos, no meio da
rua, o palácio, o mais das vezes, fechava a perspectiva. A abor-
dagem axial servia como spotlight para concentrar a atenção no
príncipe. 21
O termo “cidade-capital” aplicado a Versalhes, contudo, não
deixa de ser problemático. Tanto que a maioria dos autores que
analisam a França do século XVIII aplicam esse termo indiferente-
mente a Paris ou a Versalhes. Esta última cidade servia de moradia
ao Rei — que afinal era quem, em última instância, decidia prati-
camente tudo: nomeava ministros, intendentes, legisladores, decre-
tava novos impostos... —, assim como à nobreza cortesã. Mas
em Paris concentravam-se as tramitações burocráticas e os proce-
dimentos administrativos de rotina — o “volume da papelada”,
numa expressão de Tocqueville 22,
A vida normal de Versalhes centrava-se nos gastos luxuosos
da corte:
A existência de Versalhes, com seu protocolo regulamentado com
as minúcias de uma coreografia, que respeitava e maltratava,
segundo os eventuais caprichos do amo, as hierarquias consagra-
das da ordem nobiliária, que impunha a todos os cortesãos o
“abominável veneno da mais insigne adulação”, criou literalmente
um novo “modelo” de nobre do qual a corte familiar no final
“da Idade Média, inclusive a itinerante e familiar de Francisco I, 
 
20
foi somente uma prefiguração muito distante. O Rei Sol teve
muito cuidado para regulamentar e ordenar tudo segundo um
estrito cerimonial. O nobre versalhesco tinha que permanecer
ocioso por obrigação, atento às menores mudanças de entonação,
ao mais leve pestanejo do Rei; e, apesar de não poder assegurar
a sua existência sem os socorros, pensões, dotes e regalias distri-
buídos durante o ano todo pela Coroa, mostrava-se ávido por
festas, caçadas, bailes e teatros, que somente serviam para ocupar
as suas horas. 23
Tanto Washington como Versalhes, portanto, cada uma à sua
maneira, deixam evidente que a construção de uma nova capital
é uma ação apenas compreensível nas determinações históricas
inerentes a cada situação específica. Todavia, isso não significa
que dessas condições peculiares de espaço e tempo, que dão sentido
ao ato, possa-se deduzi-lo como algo que “deveria necessariamente
ocorrer”. O eventual, o contingente, também desempenha seu papel
nas ações humanas. Mas esse contingente não é puro acidente
despojado de historicidade. É decisão — e como tal, não inscrita
na esfera da necessidade, da determinação completa. 2*
A transferência da Capital Federal do Brasil do Rio de Janeiro
para Brasília foi objeto de inúmeras comparações com outros casos
do gênero. A aproximação com Washington (e também, embora
menos comumente, com Ottawa e Camberra) foi frequente por
parte daqueles favoráveis à construção de Brasília; e o cotejo com
Versalhes, utilizado por muitos dos que assumiram uma posição
crítica em relação à mudança da cidade-capital. Examinemos
sucintamente os lineamentos desse procedimento comparativo %,
para colocar em realce, no que diz respeito ao tema em questão,
o vigor e os limites dessa abordagem.
Um autor que, no calor da polêmica sobre a oportunidade
de se transferir a Capital do País, elaborou uma “contribuição
para os estudos relativos a esse assunto tirando do passado exem-
plos instrutivos”, após ter argumentado que Washington foi tam-
bém “uma capital artificial edificada num sítio desfavorável” (e
fazendo amplo uso de noções e exemplos extraídos da obra clás-
sica de J. Brunhes e C. Vallaux), afirma o seguinte:
Como cidade que cumpre uma função bem determinada — uma
função que bem cumpriu nos cento e cingienta anos de sua
história! —, que foi construída com um objetivo preciso e dentro
de um plano predeterminado, Washington possui uma distinção
e mesmo uma dignidade evidente que ninguém poderá negar. É
por isso provável que venha a ser o grande modelo que procura-
remos emular [...] Na construção de nossa futura capital teremos
sobre os americanos a vantagem de um território já unificado,
 
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21
senhor de suas fronteiras definitivas [...]. Teremos também a
possibilidade de aproveitar todos os progressos da ciência e da
técnica modernas, com os quais L'Enfant nunca poderia sonhar.
E construiremos a nossa metrópole do planalto central quando um
novo estilo arquitetônico — que constitui a expressão plástica
primordial da civilização universalista do futuro -— parece brotar
em nosso solo com admirável pujança e originalidade. Que nossos
governantes tenham a visão de um Washington e de um Jefferson,
é tudo que agora precisamos esperar! 26
Um outro intelectual de peso no período, após ter arrolado
motivos econômicos e demográficos que apontariam para a neces-
sidade de não se mudar a localização da Capital do Brasil, argu-
menta:
Há finalmente um aspecto que certo pundonor mandaria velar se
não fosse também esclarecedor e influente: na mudança da Capital
haverá uma vaga, talvez inconsciente, preocupação de fugir às
massas e aos riscos insurrecionais. O mesmo que [...] já fizera
deslocar a corte francesa de Paris para Versalles. 2?
O paralelo entre Brasília e Versalhes ressurge a partir da
década de 1970, só que agora não mais enfocando a transferênciada capital por motivos de “segurança dos governantes”, e sim para
enfatizar o isolamento do Governo Federal no Plano Piloto — com
suas mordomias, corrupção, gastos supérfluos etc. — frente à
realidade das favelas, cortiços, desigualdades extremas, crescente
delingiiência etc., comuns nas grandes cidades do País. Em inúme-
ros jornais e revistas, inclusive do Exterior, surgem epítetos que
se contrapõem ao famoso slogan “Capital da esperança” 28, entre
os quais: “Versalhes do Planalto”, “Versalhes dos trópicos”, “Ver-
salhes do autoritarismo militar” etc.
O procedimento comparativo sempre coloca o risco de super-
ficialidade, de o estudioso não captar a especificidade do real
visado. E um tema político-espacial como transferência da Capital
oferece maiores riscos ainda, já que pertinente ao social-histórico,
reino porexcelência da descontinuidade, das diferenças, da alteri-
dade. Mas a supervalorização do singular também é perniciosa:
ela pode obliterar a generalização, que afinal está na base do en-
gendramento dos conceitos e categorias (mesmo que eles sejam
válidos apenas para um período histórico específico). O historiador
Edward H. Carr notou que quando categorizamos como Guerra
do Peloponeso aquele conjunto de acontecimentos ocorridos num
passado distante e numa sociedade bastante diversa da nossa, mes-
mo respeitando uma velha palavra, estamos, na realidade, utilizando
um termo que adquiriu tal generalidade que o aplicamos também 
 
22
à Segunda Guerra Mundial. 2? Existe nessa prática, “contra a qual
somente o pedante protestará” 3º, uma analogia implícita entre as
diferentes situações históricas que foram agrupadas sob esse termo
comum — “guerra”. O mesmo também ocorre com as categorias
de “revolução”, “cidade”, “sociedade”, “modo de produção”, “for-
mação econômico-social”, “Estado” e tantas outras — que são
aplicáveis a realidades diferenciadas (mas com genéricos caracte-
res em comum), e que só adquirem plena concretude quando histo-
ricamente determinadas, isto é, síntese de múltiplas determinações
abstratas. 81
A analogia, enfim, é um momento necessário ao conhecimento
do real. Mas ela constitui tão-somente a primeira aproximação, a
busca de aspectos genéricos, pois a essência de uma situação en-
contra-se nela própria, nas determinações de sua existência. O fato
de o procedimento analógico ser fundamental à elaboração de
categorias (e inclusive para avaliar seus graus de abrangência),
portanto, não deve enturvar que acontecimentos do mesmo gênero
— tal como a transferência da capital — possam adquirir signi-
ficados completamente diversos, em função de se darem sob dife-
rentes condições históricas. Um trecho de uma carta escrita por
Marx é elucidativo a esse respeito:
Acontecimentos surpreendentemente semelhantes, mas ocorrendo
num cenário histórico diferente, levam a resultados completamente
diferentes. Estudando cada uma dessas evoluções separadamente
e, então, comparando-as, é fácil encontrar a chave para a com-
preensão desse fenômeno; mas nunca é possível chegar a esta
compreensão usando o:passe-partout de alguma teoria histórico-
-filosófica cuja grande virtude é permanecer acima da história. 32
E num trecho em que examinava “o métodô da economia política”,
esse mesmo autor, verificando como uma categoria tão genérica
como “trabalho abstrato” (ou “trabalho em geral”) aparece em
sociedades completamente diversas, embora surja mais plenamente
na nação burguesa mais moderna, concluiu que:
Este exemplo mostra de uma maneira muito clara como até as
categorias mais abstratas -— precisamente por causa de sua natu-
reza abstrata —, apesar de sua validade para todas as épocas, são,
contudo, na determinidade desta abstração, igualmente produto de
condições históricas, e não possuem plena validez senão para estas
condições e dentro dos limites destas. 3º
A comparação de Brasília com Washington foi efêmera. Pro-
duto ideológico de um momento conjuntural específico — o gover-
no JK com seu ideário “nacional-desenvolvimentista”, onde a nova 
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Capital seria o “símbolo” e “síntese” da negação do subdesenvol-
vimento e afirmação de um “novo Brasil”, desenvolvido e inde-
pendente *! —, essa analogia soçobrou junto às ilusões típicas da-
quela situação histórica. Mas a realidade da nova Capital perma-
nece, com tanta semelhança em relação a Washington quanto o
arcebispo de Canterbury com o pontífice Samuel. º O ponto cen-
tral desse paralelo estava na aspiração mítica a uma “nova história
do Brasil” a ser consubstancializada pelo arranque industrial, que
tiraria o país da condição “semicolonial”, à semelhança da Revo-
lução Americana com a construção de Washington, que teria ini-
ciado a caminhada norte-americana rumo à situação de potência
mundial.
A analogia de Brasília com Versalhes da época do absolutismo
monárquico revelou-se mais duradoura. De fato, apesar das enor-
mes diferenças entre a França de fins do século XVII e do século
XVIII com o Brasil de desde o final da década de 1950, podem-se
identificar aspectos genéricos em comum sob vários ângulos: o
governar como atributo inerente a uma elite, que, portanto, não
deve sujeitar-se às injunções da massa; o relativo isolamento (em
especial após 1964, no caso de Brasília) dos governantes ou da
corte na Capital, que constitui quase que um “mundo à parte”
com suas festas luxuosas, mordomias, corrupção etc.; a arquitetura
monumental e rigorosamente controlada (descontadas as diferen-
ças entre o estilo barroco e o moderno) diferindo do “cresci-
mento caótico” ou “espontâneo” da maioria das demais cidades...
Quase que invertendo o argumento dos que, no período de vigência
da ideologia nacional-desenvolvimentista, encaravam Brasília como
o símbolo do “novo Brasil” desenvolvido e autônomo, um autor
escreveu:
Nós podemos então situar Brasília no contexto das exportações
de contradições que acompanharam a evolução do capitalismo |
americano no pós-guerra. Sua história é assim aquela das trans-
formações progressivas do capital e das modificações que elas
impõemà política e à produção do espaço no interior dos países
dominados. [...] A urbanização estratégica das cidades adminis-
trativas é substituída pela monumentalidade ao estilo de “Ver-
salhes do absolutismo”, que corresponde a uma centralização onde
poder econômico e decisão política se identificam. O urbanismo
atual, desta forma, realiza o contrapeso frente ao acentuamento
da parcelarização do exercício do poder e representa, ao mesmo
tempo, a globalidade do projeto ideológico do poder no espaço. 3º
Todavia, apesar de a analogia de Brasília com a Versalhes do
absolutismo monárquico possuir mais base de sustentação que
aquela com Washington, a construção e inauguração da nova Capi- 
 
24
tal do Brasil só é inteligível no seu contexto histórico. As condições
econômicas, sociais e políticas que dão sentido a esse ato — embora
ele não seja “deduzível” a partir delas —, que serão objeto de
comentários mais demorados nos capítulos 2 e 3 deste trabalho,
podem ser assim esquematizadas: o novo momento da acumulação
de capital, com a maior internacionalização da economia; a ideolo-
gia nacional-desenvolvimentista no governo JK; a influência do
pensamento geopolítico no aparato estatal e na política espacial do
Governo Federal; o planejamento mais centralizado da economia
com o Plano de Metas; o coroamento no final da década de 1950
do processo de engendramento de um espaço geográfico nacional;
a situação da luta de classes no período de 1945 até o governo
JK, ressaltando-se especialmente o projeto político do empresariado
industrial. Como toda ação histórica, a transferência da Capital
Federal para Brasília não é explicável por nenhuma “teoria geral”
da cidade-capital, mas pelas determinações específicas da situação -
que lhe deu origem, mais como política que como necessidade, e
sobre a qual ela — a nova Capital — reversivamente passou a
influenciar na condição de obra consumada.
2. Subsídios à crítica da geografia política
A grande insuficiência dageografia política tradicional —
desde Ratzel até algumas obras recentes, passando por J. Gottman,
J. Brunhes e C. Vallaux, Otto Maull, I. Bowman e outros” —,
principalmente, e não apenas no referente ao tema cidade-capital,
foi justamente a de não apreender a alteridade de cada situação,
procurando estudá-las apenas a partir de noções genéricas e a-his-
tóricas, tais como função, sítio e situação, capitais naturais e
artificiais, litorâneas e interiores. Essa modalidade da geografia
moderna subsumia na noção de função (político-administrativa)
toda a complexidade das relações e imbricações entre a capital,
o Estado e a sociedade, nas diversas formas de historicidade.
Embora esse discurso tenha contribuído para a compreensão das
relações mais abrangentes entre o homem e o meio natural, pouco
ou quase nada auxiliou na apreensão das relações homem—meio
historicamente determinadas que, em especial a partir do desenvol-
vimento do capitalismo e da Revolução Industrial, só são compre-.
ensíveis a partir das relações sociais.
Na raiz dessa insuficiência da geografia política tradicional
encontram-se os- pressupostos da origem e da existência dessa for-
mação discursiva, a maior parte deles comuns a todas as modali- 
 
 
25
dades da geografia moderna — física ou humana. O aparecimento
da geografia científica na Europa Ocidental do século XIX, época
da consolidação e fortalecimento dos Estados-nações, não é algo
casual, mas imprescindível para explicar seu papel na sociedade
capitalista e os vieses de seu corpo teórico. As duas principais
determinações históricas que estão na base da estruturação do
discurso geográfico moderno, incluindo-se aí a geografia política,
são a nova forma de organização espacial da sociedade que se
tornava então especificamente capitalista — o Estado-nação ou
“país” —, e a constituição de um sistema escolar público — a
“escolarização da sociedade”, que acompanhou a Revolução Indus-
trial e a urbanização por ela provocada. 38
A emergência e o desenvolvimento do modo de produção
capitalista, desde o período da acumulação primitiva até a eclosão
da Revolução Industrial no final do século XVIII e no século
XIX, acarretaram profundas transformações na percepção e nas
relações dos homens com o tempo e o espaço. Houve uma instru-
mentalização de ambos, que passaram a ser (re)construídos em
função dos imperativos do capital. Surge, então, a noção de tempo
útil, inicialmente nas manufaturas, sendo depois aprimorado com
a indústria moderna. Isso implica que:
[...] o patrão deve utilizar o tempo da sua mão-de-obra e cuidar
para que ele não seja desperdiçado: não é a utilidade, o que fazer,
quem domina, mas sim o valor do tempo ao ser reduzido a di-
nheiro. O tempo se converte em moeda: não se passa mas se
gasta. 3?
Também o espaço torna-se reestruturado tanto pelo político
(as alterações na natureza do Estado, seu fortalecimento/centra-
lização) como pela divisão territorial do trabalho — que promove
desde a separação entre a cidade e o campo até a formação de
um mercado mundial. 4º Mas o fundamental aqui é que a sociedade
burguesa organiza-se espacialmente sob a forma de Estados-nações:
“O Estado capitalista funciona como nação”. £!
Iniciado com a centralização político-administrativa e territo-
rial das monarquias absolutistas da Época Moderna, esse processo
atinge seu auge com o predomínio do capital industrial do
século XIX:
O Estado moderno, que mais tarde foi identificado à nação, tomou
corpo enquanto forma política mais avançada na transição do
feudalismo para o capitalismo [...]. As três grandes monarquias
(Espanha, França e Inglaterra) certamente não foram Estados
capitalistas. Elas coroaram, em uma ordem feudal, a dispersão do
que dominavam [...]. Elas protegeram os valores, as hierarquias,
 
 
26
as rendas da classe feudal. Mas, por outro lado, também tiveram
de adaptar-se a um mundo transformado, à expansão das forças
produtivas e à abertura de novos mercados pelos grandes desco-
brimentos. [...] a nação como mercado é, acima de tudo, a
concepção do capitalismo industrial. O resto é somente prepa-
ração. [...] A burguesia, nascida de fato para o poder, prega a
assimilação ideológica do princípio de 1789; a nação, como comu-
nidade involuntária, o território, uno e indivisível. O mercado
nacional será unificado, defendido, ampliado. O modelo alcan-
çará sua perfeição depois de 1871, sob o sopro da derrota e com
a ascendência das classes médias, quando cada cidadão se tornará
soldado e quando a escola instituirá o culto da pátria. 42
Pode-se ainda encarar esse processo de constituição dos Esta-
dos-nações sob outros ângulos *, mas um deles nos parece de
extrema importância para nossa finalidade neste item: o ensino
capitalista. O século XVIII e, especialmente, o XIX foram mo-
mentos de profundas reformas nos sistemas escolares, de laicização
da educação e notável expansão do ensino público. E a escola,
ao absorver uma boa parte dos contingentes humanos que come-
çavam a se concentrar nas cidades, inculcava nas novas gerações
idéias e atitudes adequadas à reprodução do capitalismo, ao forta-
lecimento do Estado-nação e ao controle social. A primeira coisa
que a escola ensinava era a pontualidade, equivalente à nova noção
de tempo:
Dispunha-se ainda de outra instituição não industrial que podia
ser usada para inculcar a “economia do tempo”: a escola. Clayton
lamentava que as ruas de Manchester estavam cheias de “crianças
andrajosas que não tinham o que fazer; que não apenas perdiam
Tempo, mas que ainda aprendiam costumes de jogos” etc. Elo-
giava as escolas de caridade porque ensinavam Industriosidade,
Frugalidade, Ordem e Regularidade: “os escolares são obrigados
a levantar cedo e observar as Horas com grande Pontualidade”
[...]. Uma vez dentro do recinto da escola, a criança entrava
num novo universo de tempo disciplinado. **
Ademais, a escola impunha uma homogeneidade no idioma,
algo fundamental para criar a identidade nacional:
Cavour não negou aos habitantes da Savóia o direito de falar sua
própria língua (mais próxima do francês do que do italiano),
numa Itália unificada [...]. Ele e outros italianos nacionalistas
apenas insistiam em que deveria haver somente uma língua e um
meio de instrução oficiais, em outras palavras o italiano, e que
as outras deveriam sumir, evaporar-se da melhor forma que pu-
dessem. [...] Mesmo assim, malgrado poderosos sentimentos e
lealdades nacionais (na medida em que nações transformavam-se 
J
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27
em Estados), a “nação” não era algo espontâneo mas um pro-
duto [...]. Precisava, portanto, ser construída. Daí a importância
crucial das instituições que podiam impor uniformidade nacional,
que eram principalmente o Estado, especialmente a educação do
Estado, emprego do Estado e (nos países que adotavam serviço
militar obrigatório) serviço militar [...]. Os sistemas educacio-
nais dos países desenvolvidos expandiram-se substancialmente du-
rante esse período, em todos os níveis. 5
Tal é o contexto, visto de forma sucinta, onde se dá o apare-
cimento da geografia moderna com Ritter e Humboldt, e onde
essa formação discursiva se desenvolve, em particular com sua
institucionalização nas universidades e nos sistemas de ensino de
todos os níveis. Um geógrafo francês já observou argutamente que:
A geografia escolar que foi imposta a todos no fim do século XIX
e cujo modelo continua a ser reproduzido ainda hoje, quaisquer
que possam ter sido os progressos na produção de idéias cientí-
ficas, encontra-se totalmente alheada de toda a prática [...]. No
entanto, o mestre, o professor, sobretudo dantes, obrigava a
“fazer” muitos mapas [...] A imagem mágica que deve ser re-
produzida pelo aluno é, antes de mais, a da Pátria. Outros mapas
representavam outros Estados, entidades políticas cujo esquema-
tismo dos caracteres simbólicos vem reforçar ainda mais a idéia
de que a nação onde vivemos é um dado intangível (dado por
quem?), representado como se tratasse não de uma construção
histórica, mas de um conjuntoespacial engendrado pela natureza.
É sintomático que o termo eminentemente geográfico *“país” tenha
suplantado, e em todas as matérias, as noções mais políticas de
Estado, de Nação [...]. 48
Inculcar uma ideologia patriótica e nacionalista, eis o escopo
fundamental da geografia escolar. Transmitir a idéia de que a forma
Estado-nação (ou “país”, termo ligado mais ao território e menos
à história) é natural e eterna; enaltecer a “nossa Pátria”, identifi-
cando seu futuro com o do “seu povo” ou “comunidade” (o que
pressupõe harmonia de interesses, localizando-se as contradições
no “estrangeiro”), e estudando os demais “países” — especial-
mente aqueles que estavam sujeitos ao colonialismo ou neocolo-
nialismo — sob a ótica etnocêntrica ou, ainda, sob o prisma bur-
guês de “competidores”.
Não é possível então concordar com Y. Lacoste, que relega
a função escolar da geografia à condição de epifenômeno *”, pois
além de o ensino ser desde sempre o grande mercado de trabalho
para aqueles que se formam num curso superior de Geografia, o
próprio desenvolvimento dessa formação discursiva vem ocorrendo
desde o século XIX de forma indissociável com os sistemas de 
 
 
28
ensino. Basta lembrar, por exemplo, do peso que exerceram Vidal
de la Blanche e Aroldo de Azevedo nos rumos seguidos pela geo-
grafia acadêmica (e não apenas a escolar) na França e no Brasil;
esses dois geógrafos, apesar das diferenças que os separam, tiveram
algo importante em comum: ambos começaram como autores de
livros didáticos para o ensino elementar e médio, transmitindo aí
uma visão da geografia que se tornou hegemônica durante décadas,
inclusive ao nível de teses e artigos acadêmicos. *º Basta lembrar,
ainda, a marginalização acadêmica de geógrafos como E. Reclus
ou P. Kropotkin, cujos escritos não eram adequados às finalidades
do ensino da geografia naquele contexto histórico de enaltecimento
do Estado-nação, e que acabaram sendo relegados ao esqueci-
mento, ao silêncio.
É inegável que o discurso geográfico também tem e teve liga-
ções estreitas com a dominação, com estratégias do poder para o
controle social através do espaço: os planejamentos urbanos e
regionais, os mapas militares e aqueles imprescindíveis para a
administração territorial, para a cobrança de impostos etc. E mes-
mo na guerra stricto sensu a geografia é utilizada, como o demons-
trou Lacoste a respeito da guerra do Vietnã *º: a destruição siste-
mática da rede de diques que protegem as planícies extremamente
populosas do Vietnã do Norte, com a finalidade de ocasionar vio-
lentas enchentes; as devastações florestais; o desencadeamento
voluntário de novos processos de erosão nos solos; a repartição
espacial da população, visando a urbanizá-la etc. Todas essas ações
pressupõem raciocínios e informações que estão no bojo da geo-
grafia. Mas a aceitação dessa evidência não corrobora a tese de
Lacoste de que a geografia sempre foi, desde a Antiguidade, um
discurso estratégico sobre o espaço, e que a geografia escolar
apenas serve para escamotear isso.
Em primeiro lugar, essa análise de Lacoste sobre a guerra
do Vietnã, que ele afirma ter sido uma “guerra geográfica”, tam-
bém poderia ser realizada com idêntico êxito por outros especia-
listas: psicólogos, antropólogos, sociólogos, ecologistas, químicos
etc. Por exemplo, os desenhos pintados nos aviões e helicópteros
norte-americanos, que eram escolhidos em função do que repre-
sentavam simbolicamente para a população local, e os métodos
de interrogatórios dos prisioneiros vietcongues são alguns elementos
que mostram a importância da psicologia na estratégia militar
moderna. E a tentativa de promover uma rápida urbanização não
se fundamenta apenas em informações geográficas, mas também é
objeto de pesquisas de sociólogos, antropólogos, economistas etc.
E ainda a escolha dos locais mais apropriados para bombardear,
em função das alterações no regime dos rios, não precisa neces- 
 
 
sariamente basear-se em estudos geográficos, pois pode ser reali-
zada por geólogos, ecologistas etc. Isso sem falar nos gases nocivos
ao homem e que foram aí testados, nos desfolhantes e no napalm. 5º
Na realidade, a guerra moderna não é propriamente nem “geo-
gráfica”, nem “química”, nem “cibernética” e nem “ecológica”,
embora seja em parte cada uma dessas coisas ao mesmo tempo.
E de fato uma “guerra científica” no sentido de, tendo fins polí-
ticos (inseparáveis dos econômicos), utilizar os meios fornecidos
por várias ciências e pela tecnologia moderna.
Em segundo lugar, ao não fixar as diferenças essenciais que
separam a “guerra” ou a “geografia” numa sociedade como a de
Atenas no século IV a.C. e a do capitalismo avançado da atuali-
dade, Lacoste generaliza demais e perde a especificidade de cada
situação.
A idéia atual de geografia, iniciada no século XIX, é inse-
parável da divisão capitalista do trabalho: da separação radical
entre trabalho manual e intelectual, da divisão acadêmica do conhe-
cimento, da institucionalização das ciências parcelares nas univer-
sidades e institutos de pesquisas. Não se pode, nem mesmo para
a Grécia antiga (em outras sociedades, como os povos chamados
de primitivos — que afinal também fazem suas “guerras” —, ou
como a China antiga, o absurdo torna-se maior ainda), falar em
geografia sem estabelecer profundas diferenças com o que enten-
demos hoje por esse termo. Os conhecimentos geográficos, relativos
à população, às cidades e ao meio rural, à vegetação e ao relevo
etc., de um. dado lugar ou de todo o mundo conhecido, não for-
mavam um corpo teórico próprio, sistematizado, mas se inseriam na
“filosofia”. E afirmar que os mapas da Antiguidade serviam primor-
dialmente para o imperialismo ateniense ou romano, para suas
expedições guerreiras etc. é desconhecer que essa instrumenta-
lização do conhecimento e da natureza — o servir necessariamente
para algo, normalmente ligado a “interesses materiais” — é produto
do modo capitalista de pensar, é enxergar outras sociedades de
forma etnocêntrica (ou melhor, sócio-cêntrica), sem perceber os
valores e a mentalidade do “Outro”. 5!
Mesmo a “guerra” é algo problemático quando abandonamos
o nível de generalidades. De fato, esse termo encerra características
abstratas em comum referentes a conflitos armados entre grupos
sociais que identificam o inimigo como “estrangeiro”. Mas será
tal ocorrência semelhante quando se der sob diferentes condições
históricas? Pensamos que não. A “guerra”, tal como a “geo-
“grafia”, só adquire completa concretude quando subsumida em
determinadas relações sociais; só aí ela(s) sintetiza(m) suas deter-
minações de existência, sua essência enfim.º2 E não se trata
 
 
30
apenas, no caso da guerra, de uma simples diferença entre o
númerode guerreiros ou da tecnologia empregada. Trata-se, fun-
damentalmente, do papel social da guerra em cada situação e do
seu próprio significado simbólico.
Nas sociedades ditas primitivas, por exemplo, a guerra é
algo comum. Uma de suas razões mais invocadas é a captura de
mulheres de outros grupos. E a guerra é fundamental para manter
a coesão da comunidade selvagem: confirma o Estrangeiro como
Outro (com o qual não se deve trocar mulheres, pois isso impli-
caria dar além de receber; a guerra, ao inverso, permite receber
sem dar nada), e o Nós como ser autônomo. 8 Mas essa guerra
não é decisão de chefes ou autoridades e sim da coletividade como
um todo: os guerreiros que, como Jerônimo, tentaram continuar a
guerra por motivos pessoais de vingança, mesmo após a sociedade
(no caso, os Apaches) ter se cansado desta, acabaram fazendo-a
sozinhos, abandonados pelos demais. ** Numa sociedade que des-
conhece o Estado, onde existem de fato interesses coletivos, a
guerra é essencialmente diversa daquela conduzida pela sociedade
política: nesta, não se guerreia apenas para expulsar os “outros”
de um território fértil em caça e pesca ou ainda para roubar-lhes
algumas mulheres, e sim para tirar proveitos mais permanentes
— seja a posse definitiva de um território (e até dos habitantes
domesmo), seja a escravização de populações ou ainda a extração
de uma parcela de seu excedente econômico (através de tributos
ao conquistador). Mas mesmo aqui as diferenças são muito mar-
cantes e convém não generalizar demais. 55
Já na sociedade capitalista, a guerra assume contornos carac
terísticos: é levada a cabo pelo Estado capitalista, que possui um
exército permanente; é realizada em íntima associação com os
interesses do capital hegemônico (seja o mercantil, como no pe-
ríodo da acumulação primitiva, seja o financeiro, como vem ocor-
rendo desde os primórdios deste século) e com a disputa entre
capitais enraizados nos diversos Estados-nações (incluindo-se aí
os conglomerados multinacionais, que também possuem interesses
mais fortes em certas áreas do globo, além de desejos de se
expandir para outras áreas); é cada vez mais “científica”, no
sentido de aplicar e/ou experimentar teorias e tecnologias produ-
zidas pela ciência moderna; e está interligada — sendo gerada
por, e, ao mesmo tempo, fonte geradora de — com todo um
conjunto de instituições políticas e econômicas que se pode deno-
minar “complexo militar”, onde a necessidade de constante reno-
vação dos armamentos é fundamental para os setores de ponta da
grande indústria. De forma sintética, pode-se afirmar que a guerra 
E
U
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S
S
a
 
 
31
hodierna deixa cada vez mais de ser um momento esporádico de
conflito armado entre grupos sociais diversos para se tornar per-
manente: não mais “a política prolongada por outros meios”, e
sim que a política (interna e externa) é que se torna o prolonga-
mento da guerra, da luta (psicológica, policial, econômica, cul-
tural...) concebida em termos militares/estratégicos. 5
Dessa forma, apesar de a geografia servir também para fins
militares, não se pode afirmar rigorosamente que essa seja sua
finalidade primordial. Nem a geografia faz parte da essência da
guerra capitalista, e nem esta está entre os pressupostos essenciais
do discurso geográfico. Isso significa que pode haver guerra mo-
derna sem que se faça necessariamente uso da ciência geográfica,
assim como pode existir geografia sem ser voltada para a guerra.
Não existe atualmente nenhuma “crise” da guerra (pelo contrário),
mas, por outro lado, existe de fato uma “crise” da geografia; e
este momento de reestruturação na ciência geográfica ocorre para-
lelamente a uma “crise” da escola.e a uma discutida “crise” na
forma Estado-nação com a crescente internacionalização do capi-
tal.5” Entre os pressupostos que foram constantemente repostos
pelo movimento da geografia moderna desde os seus primórdios
(através de suas obras, do tipo de preparação que oferecia aos
novos geógrafos, da renovação de seus conceitos e temas, de sua
expansão nas diversas instituições de ensino e pesquisa nas diversas
partes do globo) estão com certeza a legitimação do Estado-nação
em todos os níveis do sistema escolar e a contribuição para a
organização espacial do Estado capitalista. 58
Voltando, então, ao nosso tema da geografia política tradi-
cional e suas insuficiências no estudo das cidades-capitais (e
não só aí), podemos agora perceber mais claramente por que
esse discurso elaborou apenas noções a-históricas (função, sítio e
posição, capitais naturais, artificiais, litorâneas e interiores...)
para enfocar essa questão. Sendo uma modalidade da geografia
moderna (inclusive foram raros os especialistas desse ramo da
ciência geográfica que não estudaram também outros temas: o
urbano, o agrário, a geomorfologia etc.; e as fontes de inspiração
foram as mesmas que dos demais ramos: Ritter, V. de La Blache,
Ratzel, Humboldt. ..), a geografia política reproduziu as mesmas
determinações essenciais dessa formação discursiva, que, como
vimos, ligam-se à escola e ao Estado-nação. Não é de estranhar,
pois, que essa modalidade da geografia, assim como toda ciência
geográfica moderna, tenha enxergado em todas as sociedades (e
de todos os períodos históricos) o Estado-nação capitalista mo-
derno.
 
32
O Estado — assim como a cidade-capital — é visto realmente
nesse discurso como o Mesmo (com diferenças apenas quantita-
tivas, ligadas a uma lógica do progresso), quer se trate da França
de Luís XIV, de Atenas no século V a.C. ou dos Estados Unidos
em 1945. A própria existência de sociedades que desconhecem o
Estado é quase que ignorada: o chefe indígena muitas vezes foi
visto como um “Estado embrionário” e sua choupana como uma
“capital”. 5º Como o Estado nacional é projetado para o passado
(e para o futuro) — mas existem diferenças a se levar em conta
—, recorreu-se a metáforas organicistas *º acompanhadas da idéia
de progresso — o que equivalia, no fundo, a se tomar a nação
burguesa mais desenvolvida, na ótica do capital, como etapa a
ser atingida pelas demais sociedades, além de se identificar o
bem-estar de todos, concebidos como nação ou povo indiíviso, com
a segurança e a prosperidade do Estado.
Como se tratava de “naturalizar” o Estado-nação, exorcizando
sua historicidade e as lutas de classes que nele se dão, nada mais
compreensível que enfocar o espaço apenas sob o ângulo das rela-
ções entre os homens e a natureza. Assim, Ratzel escreve no
prefácio da primeira edição (1897) de sua obra:
Portanto, a idéia que originou e a elaboração deste livro é que os
Estados, em todos os estágios de desenvolvimento, são conside-
rados como organismos que possuem relações necessárias com o
seu território e devem ser, por essa mesma razão, estudados a
partir de um ponto de vista geográfico. º!
O objeto central da geografia política, então, foi o território,
concebido como espaço natural apropriado (ou apropriável) pelo
Estado:
A sociedade é o intermediário através do qual o Estado se une
ao território [...]. A história nos mostra, de uma forma muito
mais penetrante que o historiador, até que ponto o solo é a base
real da política. Uma política verdadeiramente prática tem sem-
pre um ponto de partida na geografia. 82
Daí a cidade-capital ser referida apenas em relação ao terri-
tório — sítio, situação, localização central ou periférica, marítima
ou interior... — e a sua natureza propriamente política (relações
com as lutas políticas, com a dominação, com as formas de governo)
ser reduzida à idéia genérica e pouco precisa de função político-
-administrativa. E daí se pensar muitas vezes na área central
do território como o local ideal para sediar a cidade-capital:
Os fatores históricos e nacionais do processo de estatização apre-
sentam no centro uma pureza maior, é aí que eles são mais du- 
 
33
ráveis. [...] E sempre que a evolução histórica acaba por favo-
recer a situação marginal, como ocorreu com Washington, Rio
de Janeiro, Buenos Aires ou São Petersburgo, a tendência para
retornar até uma situação geográfica central para a capital do
Estado decorre precisamente de uma esperança de maior pureza
do desenvolvimento estatal tanto no interior quanto na periferia, 83
/
Em suma, a geografia política — assim como a geografia
moderna como um todo — não escapou ao seu enraizamento
histórico. Mas isso não ocorreu ou ocorre apenas com o discurso
geográfico, embora aí assuma certas peculiaridades. No final do
século XIX, e nessa mesma Alemanha de Ratzel que conhecia os
problemas da unificação, foram comuns os estudos helenísticos
com a finalidade de “explicar” por que os gregos não fundaram
uma nação ao estilo moderno ou por que havia “traições” ou
guerra entre cidades-Estados que falavam a mesma língua.º** E um
historiador como E. H. Carr, ao citar vários exemplos de como os
valores e a situação histórica onde vive o pesquisador levam-no a
projetar questões do seu presente para o passado que as ignorava,
chega até a afirmar que o importante não é tanto o objeto de
que um investigador fala e sim o quem fala, onde ele vive e o
que pensa — “história significa interpretação” 8. Pensamos que
tal afirmação, mutatis mutandis, encerra um elemento de verdade
para todas as ciências humanas, incluindo-se a geografia.
Mas a ciência geográfica normalmenteignorou o sujeito do
conhecimento, o quem é (ou são) o geógrafo e em que condições
se efetiva seu labor. Suas fregiientes polêmicas sobre “O que é
a geografia?”, que se colocaram com intensidade desde mesmo os
seus primórdios %º, centravam-se, via de regra, no objeto: “É o
estudo das relações entre o homem e a natureza”; “É a ciência
dos lugares”; “É o estudo das diferenciações regionais que ocorrem
na superfície terrestre, entendida como a morada do homem”;
“E o estudo da paisagem”; “É a ciência humana que estuda o
espaço” etc. No fundo, aquela questão era reduzida à definição
ou delimitação de um “objeto de estudos específico” para a geo-
grafia. Mais recentemente, alguns autores pensaram ter avançado
em relação a essa questão quando substituíram “O que é a
geografia?” por “O que é o espaço?”; mas, além de continuarem
focalizando exclusivamente o objeto (e limitando-o a priori),
por vezes ainda se incorreu no quiproquó de imaginar que essa
categoria abstrata — “espaço” — fosse um ser (empírico e não
construção teórica) único para a física, a geografia, a matemática
e a psicologia. 
 
34
3. Geografia crítica e construção do espaço
No bojo da “crise” da geografia, dentre as alternativas que
renovam essa formação discursiva na atualidade, pensamos que
a mais profícua para o que diz respeito ao tema da transferência
da cidade-capital no território é aquela centrada na produção do
espaço. Não se trata de partir de uma enteléquia abstrata definida
de antemão por algum trecho fora de contexto extraído de J.
Piaget, A. Einstein, H. Poincaré, G. Bachelard ou algum outro
autor considerado importante nos meios acadêmicos e que tenha,
de uma forma ou de outra, abordado o “espaço”; e sim de
apreender a produção, pelos homens historicamente determinados,
do espaço geográfico. Trata-se de encarar o espaço geográfico
como social, fruto (e condição) do trabalho humano nas relações
dos homens entre si e com a natureza. Ou, nas palavras do
geógrafo David Harvey:
[...] o espaço criado substitui o espaço efetivo como princípio
dominante de organização geográfica. Na sociedade pré-industrial,
as diferenças naturais de utilidade de recursos e de ambientes na-
turais formavam a base da diferenciação geográfica [...]. A indus-
trialização teve o poder de alterar tudo isso. A urbanização do
campo implica a eliminação dos estilos de vida regionais através
das forças do mercado mundial. Os produtos e objetos úteis para
o consumo e uso tornam-se mais padronizados, mais numerosos
e menos vinculados à base local. E os então vibrantes estilos de'
vida das diversas regiões geográficas, junto com as paisagens espe-
cíficas que eles tinham formado, foram transformados [...]. A
estruturação do espaço torna-se cada vez mais importante [...]. 9
Todavia, mesmo reconhecendo o passo à frente representado
nessa percepção, por parte de toda uma corrente geográfica, do
espaço geográfico como social, em constante (re)construção pela
sociedade, pensamos que alguns imbróglios tradicionais ainda
persistem nas veredas da geografia crítica ou “nova”. Um deles
encontra-se subentendido nestas frases de Milton Santos:
O problema é aqui o da definição do objeto de cada disciplina
no universo do saber [...] o caso da geografia, cuja preocupação
com o seu objeto explícito — o espaço social — foi sempre dei-
xada em segundo plano. Insistimos em que essa falha é uma das
causas do seu atraso no campo teórico-metodológico e tem res-
ponsabilidade pelo seu isolamento. [...] A sociedade, que deve
ser, finalmente, a preocupação fundamental de todo e qualquer
ramo do saber humano, é uma sociedade total. Cada ciência
particular se ocupa de um dos seus aspectos [...] Em sociologia
coube a Simmel (1894, 1898), dentre outros, realizar um grande
 
 
B
E
R
F
X
E
 
 
35
esforço para delimitar o objeto, dando-lhe, assim, contornos dife-
rentes daquelas outras disciplinas humanas. Em geografia, a preo-
cupação com os princípios e as classificações fez com que fosse
perdido de vista o próprio conteúdo do qual deveria ocupar-se
[...].8
Com essa posição está se reproduzindo o mesmo procedimento
da criticada geografia tradicional: a ênfase no objeto (e mesmo
quando discutiam os “princípios” ou as classificações, esses geó-
grafos o faziam em relação a um objeto suposto) e a aceitação
acrítica da divisão acadêmica do conhecimento. E está se “apro-
priando” de um objeto — visto como “empírico” no sentido de
existir independentemente dos conceitos *º —-- que não é monopólio
de nenhuma disciplina, mas resultado de pesquisas e reflexões de
especialistas de inúmeras áreas (tais como H. Lefebvre, M.
Castells, M. Foucault e outros). E esse viés empirista de denegar
o sujeito pela supervalorização do objeto, além de tornar o próprio
objeto “morto” pela sua delimitação a priori e determinação com-
pleta pela rede de conceitos rígidos (que se voltam para instru-
mentalização, manipulação do real pelo Estado), acaba perdendo
de vista que o objeto não é só construído no “exterior” (pela
sociedade ao transformar a natureza), mas também na relação
sujeito—objeto.
Afirmar apenas que existem “diferentes percepções” do objeto
por parte dos indivíduos é obliterar a questão das relações entre
investigador e realidade. É colocar o problema apenas no método
ou na “melhor” ou “pior” percepção do estudioso, sem se apro-
fundar nas imbricações entre teoria e fatos, entre realidade e inter-
pretação, entre ontologia e conceitos. É necessário ir além, aban-
donando a idéia de um espaço geográfico “objetivo”, pronto e à
espera que alguém o explique adequadamente (com “boa per-
cepção”). Ou, em outras palavras, o geógrafo precisa
x
renunciar à idéia de que haveria nas coisas mesmas [...] um
sentido inteiramente positivo ou uma determinação em si prome-
tida ao conhecimento, como se isso que analisamos não se tivesse
já formado sob o efeito de um deciframento do sentido, em res-
posta a um questionamento da história, da sociedade [...]. Como
se o “objeto” não devesse nada a nossa própria interrogação, ao
movimento do pensamento que nos faz ir até ele e às condições
sociais e históricas nas quais se exerce. 7º
Não se propõe, com essas observações, um deslocamento do
empirismo peculiar à geografia para um idealismo ou racionalismo
voltado exclusivamente para o sujeito cognoscente, que “construi-
4
ria” livremente o objeto. O que se enfatiza é a interação entre 
 
36
esses dois pólos do saber, que não devem ser reduzidos a uma
dicotomia ou relação de exterioridade (privilegiando-se um ou
outro), mas vistos em sua complementaridade. Nesse sentido,
a afirmação de que os geógrafos (tradicionais) deixaram em “se-
gundo plano a preocupação com seu objeto explícito, o espaço
social”, parece-nos singela na medida em que elide o fato de
que esse “objeto” foi construído não só pelo movimento do modo
de produção capitalista ao transformar a natureza original em
segunda natureza, mas também pelos teóricos que refletiram sobre
isso, pelo conhecimento científico em suma, que foi e é cada vez
mais pressuposto para a ação do Estado capitalista. E esta cons-
trução teórica do “objeto” espaço social é recente, posterior à
Segunda Guerra Mundial (embora tenha colhido subsídios em
autores clássicos do século passado).
Nesses termos, o espaço social implicaria o seguinte:
O homem, ou melhor, a prática social, cria as obras e produz as
coisas. [...] A produção, no sentido marxista, supera a oposição
filosófica entre o “sujeito” e o “objeto”, assim como as relações
construídas pelos filósofos a partir dessa separação. [...] Ora,
o espaço (social) não é apenas uma coisa entre as coisas, um
produto qualquer entre os produtos; ele envolve as coisas, os pro-
dutos, ele compreende suas relações dentro de sua coexistência e
sua simultaneidade: ordem (relativa) e/ou desordem (relativa).
Ele resulta de um processo e de um conjunto de operações, e não
pode ser reduzido a um simples objeto. Portanto, ele. não pode
ser resumido a uma ficção, a uma irrealidade ou “idealidade”
comparável à

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