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DISCIPLINA DE HISTÓRIA MODERNA I Carolina Marchesin Moisés ANÁLISE DE GIUCCI, Guillermo. Viajantes do Maravilhoso: O Novo Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Guillermo Francisco Giucci Schmidt possui formação nas áreas de História e de Literatura, ambas pela Stanford University. Escreveu parte de “Viajantes do Maravilhoso”, inicialmente, como tese de doutorado em 1987, e a versão final foi publicada pela primeira vez em 1989. A edição utilizada, publicada em 1992 pela editora Companhia das Letras, tem tradução de Josely Vianna Baptista. O livro “Viajantes do Maravilhoso: O Novo Mundo” trata do imaginário europeu em relação ao novo continente descoberto nos fins do século XV, tendo como base os escritos de três viajantes dos séculos XV e XVI: Cristóvão Colombo, Alvar Nuñez Cabeza de Vaca e Hans Staden. Assim, Giucci mostra a relação do colonizador espanhol com o espectro de maravilhoso que envolvia a América, desde seu mais alto momento de deslumbre até o desencantamento final, tanto no plano geral quanto na especificidade de cada viajante analisado. Vemos que o tema do maravilhoso no imaginário europeu já foi tratado diversas vezes por historiadores, linguistas e sociólogos da modernidade, como Tzvetan Todorov em A conquista da América: a questão do outro (4ª ed., 2010), Stephen Greenblat em Possessões maravilhosas: O deslumbramento do novo mundo (1996), e o brasileiro Sérgio Buarque de Holanda em Visões do Paraíso (1969). Em sua análise, Giucci ampara-se nos conceitos de “outro”, de maravilhoso e de milagroso já anteriormente tratados por estes pensadores, sempre relacionando-os à sua tese principal que é o binômio remoto/maravilhoso. O autor tem suas principais fontes nos diários de três navegantes, como explicitado acima. Trata, primeiramente, dos diários de bordo das quatro viagens de Cristóvão Colombo à América: Diário de a bordo, Cartas de particulares a Colón y Relaciones Coetáneas, Raccolta di documenti e studi e Textos y documentos completos. A partir destes documentos, Giucci explora as influências de Colombo, sua relação com a Coroa espanhola, suas dificuldades no primeiro contato com os indígenas do Novo Mundo e sua forte conexão com o maravilhoso, que aos poucos toma um caráter de milagre e acaba por perder sua tamanha influência sobre o navegador. Seu segundo conjunto de fontes são os escritos de Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, Naufragios e Naufragios y Comentarios, no qual avalia o maravilhoso já enfraquecido e de direções deslocadas, em uma expedição à Flórida desde o início refutada por Alvar Nuñez. Percebe-se, principalmente a partir dessa fonte, a vivência do espanhol quando se depara com o oposto do maravilhoso que lhes era esperado - é uma situação de degeneração mas que o leva à reafirmação de seu poder frente ao nativo. A destruição total do discurso do maravilhoso é tratada a partir da última fonte analizada pelo autor, a Verdadera historia y descripción de un país de salvajes desnudos de Hans Staden. A partir desta fonte, posterior às duas últimas, Giucci aponta principalmente para as relações entre o maravilhoso e o sagrado, e o favorecimento da razão no período que tem grande repercussão no olhar europeu sobre a América - apresenta-se, a partir daí, a América desmistificada. O livro é dividido em cinco capítulos, e aqui elucidaremos rapidamente do que se trata cada um deles. O primeiro capítulo, intitulado “Condenação e redenção - a travessia ocidental”, trata dos relatos de viagem e da figura do navegante construída a partir destes. São retomados dois famosos viajantes da literatura universal: o Ulisses de Homero e o de Dante. Já nesses textos, o autor detecta a presença do maravilhoso em conjunto com o remoto, a curiosidade do navegante (com base em Aristóteles, um dever natural com tom de exigência) e o papel do dominante. Já em Homero, quando o rei aqueu domina o bruto ciclope, ocorre a identificação com o dever do europeu - de ordenar -, em relação ao aborígene distante que tem a função única de acatar as ordens e colocá-las em prática. Ainda neste primeiro capítulo o autor inclui os relatos hagiográficos medievais, colocando em questão as visões de “terra prometida” e de "paraiso" presentes nos relatos de peregrinação, e a importante associação do remoto às riquezas que se prolonga para o período das navegações - de acordo com o autor, “Na terra prometida todas as pedras são preciosas. E no contexto do relato hagiográfico, apoderar-se destas riquezas identifica o viajante como santo”. Este capítulo é importante para compreender as influências na1 construção do pensamento moderno, vindas desde a antiguidade e do medievo, que insistem em reafirmar o desconhecido e remoto como um local de projeções fantásticas e de riquezas. Vemos a imagem do viajante mudar quando seu motor muda, deixando a curiosidade e tornando-se a busca pelo mercado, transição muito visível no Ulisses de Dante. Temos, portanto, o Ulisses de Homero que estabelece a diferença entre dominante e 1 GIUCCI, Guillermo. Viajantes do Maravilhoso: O Novo Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 39. dominado, e o Ulisses de Dante que retoma a antiguidade ao mostrar os perigos do remoto, visto que é castigado com um naufrágio por sua curiosidade. A escolha de Giucci por Dante é interessante quando se tratando do assunto, principalmente pela relação deste com a antiguidade - segundo Jacob Burckhardt, historiador que trata do renascimento italiano, “Nem a Itália nem o restante do Ocidente lograram produzir um segundo Dante, que foi e permaneceu sendo aquele que, pela primeira vez e de maneira enfática, trouxe a Antiguidade para o primeiro plano da vida cultural” , demonstrando a influência que o autor2 teria nos primeiros séculos do período moderno. O segundo capítulo é intitulado “Maravilhas do Oriente” e concentra-se na representação do remoto enquanto local geográfico, tratado ou sob a visão de paradisíaco ou de monstruoso, mas sempre em oposição ao conhecido. O autor separa duas linhas de pensamento paralelas que caracterizavam o remoto: a primeira, baseada em Heródoto, que “registrava a diversidade dos costumes humanos e as qualidades assombrosas das terras” ,3 e a segunda que se desenvolveria na imagem do fabuloso. Giucci ainda atribui à muitos autores medievais o estímulo do pensamento maravilhoso, dentre eles Plínio, Solino, Santo Agostinho e Santo Isidoro. Conclui ele sobre a difusão do mesmo pensamento no medievo: “É claro que esta concepção do ‘outro maravilhoso’ - ainda que apareça à imaginação criadora europeia como independente de seu controle - emana da própria projeção europeia. E dessa projeção derivam formas híbridas, riquezas infinitas e impérios poderosos localizados em lugares semi-explorados, mas que se espalham como um fantasma pelo Velho Mundo. Maravilhas que despertam o assombro do europeu, lhe revelam os mistérios do mundo e o subtraem da trivialidade cotidiana. As inúmeras modalidades articuladas em torno da ideia do maravilhoso durante a Idade Média confirmam a enorme repercussão e o caráter popular desse fenômeno.”4 A seguir, ainda no capítulo dois, o autor realiza um estudo das representações do remoto nos mapas-múndi, que no período medieval eram completados por “emblemas teratológicos, símbolos teriomórficos, sagas, lendas e relatos de viajantes” . Giucci ainda5 trata das epístolas apócrifas, cartas que permitem ao escritor medieval refletir projeções que são totalmente opostas à sua realidade. O capítulo tem fim com uma introdução à análise 5 Idem, p. 80. 4 Ibidem., p. 80. 3 GIUCCI, op. cit., p. 70. 2 BURCKHARDT, J. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 157. dos relatos de viajantes, onde cita os escritos de sir John of Mandeville e de Marco Polo, sendo a primeira imaginária e a segunda real, mas que acabam por se confundir - a realidade e a ficção se unem para cumprir com as expectativas do leitor e para se ajustarem ao modeloeuropeu. Mesmo Polo, em seu relato, subtrai detalhes que não considera importantes e acaba por fomentar a ideia do remoto como um lugar utópico, que encaixa-se nos ideais europeus da época. Nos três capítulos restantes, o autor trata mais especificamente das já citadas fontes. O capítulo três, que tem por nome “Os conflitos do maravilhoso - Cristóvão Colombo”, já inicia retomando a ideia do viajante como comerciante e conquistador do outro. Vemos logo na chegada de Colombo na América uma associação do novo território às Índias, quando o almirante constata que o recém descoberto mostra-se simples em relação às deslumbrantes Índias. Ao interpretar os textos de Colombo, Giucci encontra na primeira dificuldade deste algo que inicia a decadência do maravilhoso: a língua. Sem a comunicação, Colombo não cumpre com o prometido para a Coroa espanhola, a evangelização dos nativos e busca por riquezas. Mais tarde, Colombo busca no milagroso a justificativa para seus atos e isso, apesar de colaborar em partes com o ideal do maravilhoso, acaba por aniquilar aos poucos este último e estabelece o domínio cristão nas Índias. No capítulo quatro “Máscaras rachadas - Alvar Nuñez Cabeza de Vaca”, vemos o maravilhoso degenerar-se a partir da percepção de Alvar Nuñez: em nove anos de cativeiro o viajante tem acesso ao tratamento que os espanhóis impuseram aos índios, vendo que o que acontecia na colônia era em muito contradizente com o que se colocava como os ideais da conquista, ele percebe que “os espanhóis, pelo contrário, degeneram no monstruoso” . A6 salvação de sua condição de náufrago capturado surge para Alvar Nuñez da mesma forma que para Colombo: a partir do milagroso. Ele e os outros três náufragos “aplicam” milagres e assim se inserem na sociedade ameríndia em uma posição de poder. Para Giucci, a partir daí “Não resta dúvida de que os contextos maravilhosos se empobreceram: a sistemática representação imaginária do excessivo das riquezas americanas perde parte de seu valor, sendo suplantada pela informação de corte realista. Mas, ameaçada pela imensidão de calamidades, ainda sobrevive, depositada num canto recôndito da América, a ilusão do maravilhoso.”7 7 Ibidem., p. 193. 6 Ibidem., p. 165. O quinto e último capítulo, “A manipulação do sagrado - Hans Staden”, apresenta as repercussões da descoberta no conhecimento teórico europeu. O autor logo retoma a relação com a antiguidade ao afirmar “por um lado, a superioridade dos modernos sobre os antigos confirmou-se através da glorificação da época presente e da celebração entusiasta da navegação e dos descobrimentos”, mostrando que a descoberta da América representa8 um rompimento com o passado e com a palavra divina - vê-se aí a influência do surgimento do pensamento racional. Vemos a influência dos antigos a partir dos estudiosos do século XX, como José Maravall, que relembra a ideia do século XVI de anões em ombros de gigantes - mais uma vez, a modernidade se reafirma apoiada nos antigos. A América é totalmente desmistificada com Hans Staden em duas fases: a primeira no naufrágio e a segunda na substituição do objeto de desejo (o objeto material, a riqueza) pela necessidade de defesa, quando o europeu já vê o Novo Mundo com expressões de medo e desorientação - “A América aparece, no relato de Hans Staden, não só desmistificada em relação ao modelo do maravilhoso que a recobria e deformava, como reconhecida em sua singularidade e em sua diferença radical com o referente europeu” . O9 parágrafo final do livro conclui o pensamento do autor: “No ocaso do maravilhoso americano não mais deslizam Países da Prata, nem do Ouro; tampouco títulos epônimos, menções à sabedoria dos antigos ou cantos à heroicidade do conquistador. Os condenados de Deus, argumentava Santo Agostinho, seriam atormentados no inferno pelos séculos dos séculos. Ao artilheiro alemão que volta desiludido para a pátria em 1555 resta pouco mais que a lembrança do seu sofrimento pessoal e a consciência do suplício infernal de uma época, para sempre gravadas na memória do tempo por seu livro e incrustadas em nossas consciência moderna como lembrança irrecusável da pobreza de nossas ilusões” .10 Conclusão Ao fim da leitura do livro de Giucci, no Epílogo, o próprio autor coloca: “a imagem do maravilhoso não morre com a descoberta e conquista da América” . A tese de Giucci é que11 essa imagem era peculiar no século XVI, sempre materializando o remoto em riquezas, que levou homens (não só viajantes e conquistadores, mas aventureiros e ambiciosos) a 11 Ibidem., p. 237. 10 Ibidem., p. 235. 9 Ibidem., p. 215. 8 Ibidem., p. 194. atravessar oceanos, fronteiras e florestas, a enfrentar mortes, fome e desilusões, tudo isso na sede pelos metais preciosos e especiarias prometidas pela construção do imaginário europeu. Somente com a realização da experiência o maravilhoso vai se desconstruindo em detrimento da realidade, que mostra-se sangrenta como Alvar Núñez a percebeu. Vemos aqui a importância do estranhamento da língua e do conflito com o religioso nesse papel, mas que ainda são colocados como barreira ao explorador europeu, que mais tarde usa destes para se colocar em uma alta posição na relação de poder que estabelece com o ameríndio. O autor coloca o descobrimento do Novo Mundo como fator de grande importância na construção do pensamento moderno, não somente na noção de maravilhoso, mas na exaltação da racionalidade que vemos se difundir com o Renascimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BURCKHARDT, J. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. GIUCCI, Guillermo. Viajantes do Maravilhoso: O Novo Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. MARAVALL, J. A. Antiguos y Modernos. Madri: Alianza, 1986.
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