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Curso quadr inhos em sal a de aul a Tiras e m Quadr inhos Paulo Ramos 66 1. Começando a conversa... Que atire a primeira ped ra quem nunca leu uma tira de quadrinhos antes. Ela é tão popular que merece sempre um capítulo próprio na his- tória da história em quad rinhos. Muitos persona- gens famosos surgiram n elas: Fantasma, Tarzan, Mandrake, Recruta Zero, Snoopy, Garfi eld, Hagar, Calvin e Haroldo, entre t antos outros que pode- riam ser citados. No Brasi l, vale registrar, Mônica e Cebolinha também fi zera m suas estreias em tiras, lá no comecinho da décad a de 1960, quando ain- da eram publicadas em pr eto e branco. Por serem tão conhecidas , não é de estranhar que sejam sempre utilizad as em sala de aula e em materiais escolares. Quem já folheou algum livro didático do ensino funda mental, em particular os de português e os de lín guas estrangeiras, sabe bem do que estamos fala ndo. Elas são muito co- muns nas páginas desses materiais. Um dos motivos dessa pre dileção pelas tiras no meio escolar pode estar relacionado aos jornais. Foi lá que essas histórias circularam durante déca- das, comportamento aind a visto nos dias de hoje. Não é coincidência a prese nça de muitas dessas sé- ries impressas no ensino. C omo muitos dos autores de materiais didáticos não são leitores habituais de revistas em quadrinhos, on de encontrariam, então, produções assim para leva rem à sala de aula? Nos periódicos jornalísticos, é claro. E agora também na internet. Afi nal, quantas e quantas tiras não são compartilhadas nas redes sociais diariamente? Elas são sempre um convite p ara se tornarem tema de alguma discussão a ser le vada aos alunos em sala de aula. Ainda mais porq ue esse tema vem carre- gado de humor, já que a maioria aborda os assun- tos com uma boa dose de comicidade. Mas essa é apenas a pont a do iceberg. Há mui- to mais a ser dito sobre e las. Como tudo na vida, quanto mais se sabe a re speito, mais efi cazes são as chances de um a abordagem bem- sucedida. Ainda mais se o foco é entender me- lhor as tiras para poder pe nsar em formas de como trabalhar melhor com elas no ensino. Vamos, então, aprender u m pouco mais sobre o assunto? Não esquecendo: você, qu e ainda não se inscre- veu em nosso curso, pode fazê-lo GRATUITAMENTE até junho. E não deixe de assistir às nossas vi- deoaulas, radioaulas, web conferências e consultar a biblioteca virtual, tudo n o AVA: lá no comecinho da décad a de 1960, quando ain- da eram publicadas em pr eto e branco. ava.fdr.org.br 8282 2. Os diferentes formatos das tiras Indo direto ao ponto: a tira é um formato que pode ser moldado de diferentes modos. É impor- tante que isso fi que claro para que se possa enten- der melhor os vários exemplos delas que circulam nas páginas dos jornais e, principalmente, na in- ternet, que modifi cou muito a maneira como elas vinham sendo produzidas no país até então. Mas, para compreender melhor essa história, é preciso dar uns passos para trás, retornando lá para o iní- cio do século XX. Os jornais do passado encontraram nos dese- nhos de humor uma forma de compor muito bem as páginas da publicação. Como não havia ainda fotos, os periódicos dos séculos 18 e 19 mescla- vam o noticiário com ilustrações chamadas à época de caricaturas. Elas eram produzidas em tama- nhos diferentes. Umas maiores, equivalente a uma página completa, e outras menores. O número de quadros também era variável. A arte podia ser resumida numa cena só ou então ser dividida em várias, como as HQs fazem. Havia um limite, claro, que eram as dimensões físicas da página. Mas mesmo essa amarra poderia ser contornada. No Brasil, um imigrante italiano chamado Angelo Agostini chegou a criar páginas duplas, como as que fez para a revista Vida Fluminense. Uma das his- tórias, “As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte”, publicada em 30 de janeiro de 1869, foi usada como base para consagrar a data como o Dia do Quadrinho Nacional. Angelo Agostini (1843-1910): um dos desenhistas de maior destaque da segunda metade do século XX no Brasil. Ele atuou em vários periódicos da época, primeiro nos de São Paulo e, depois, nos do Rio de Janeiro. O mais importante foi a Revista Illustrada, que teve papel de destaque nas discussões sobre o abolicionismo. Agostini é lembrado tanto como um dos pioneiros das histórias em quadrinhos no Brasil, quanto como um dos desbravadores da imprensa gráfi ca no país. A s av en tu ra s de N hô Q ui m , d e A ng el o A go st in i abolicionismo. Agostini é lembrado tanto como um dos pioneiros das histórias em quadrinhos no Brasil, quanto como um dos desbravadores da imprensa gráfi ca no país. A s av en tu ra s de N hô Q ui m , d e A ng el o A go st in i 8383 para curiosospara curiosos No Ceará, desde 2017, foi criado o D ia Esta- dual do Quadrinho no Ceará, sendo es colhida a data de nascime nto do quadrinista Luiz Sá: 28 de setembr o. A Lei, além de pr omover o nome desse prof issional, chamar at enção da sociedade para a produção dos qua dri- nhos no estado, ta mbém estimula as es- colas, em especial as públicas, a realiz ar na data atividades co m seus alunos. Saib a mais sobre a lei em sua Biblioteca Virtual n o AVA. Eram histórias criadas par a compor as páginas dos jornais da época, com moldes variados, a de- pender da diagramação q ue se pretendesse impri- mir. Mesmo na virada par a o século XX)), quando começaram a ser publicad os suplementos específi - cos para quadrinhos nos j ornais norte-americanos, a variação de formatos pa recia ser a regra, mesmo que alguns deles fossem p róximos ao das tiras. Isso mudou em 1907, q uando o desenhista Bud Fisher (1885-1954) participou da inaugura- ção de um novo modo de produção e distribuição das tiras nos Estados Un idos. Ao criar a série A. Mutt, depois rebatizada d e Mutt e Jeff, ele perce- beu que poderia vender a mesma história a mais de um jornal, desde qu e produzisse o material sempre no mesmo taman ho. O formato escolhido foi o horizontal e retangul ar. Pronto, estava cria- do o tamanho fi xo da tira. É bem verdade que aos do mingos os autores ti- nham um pouco mais de e spaço para a criação das séries, porque havia mais páginas para a impressão dos quadrinhos. Mas, de segunda a sábado, o pa- drão era o do formato fi xo. Esse modelo deu tão certo que, já na déca da seguinte, havia uma explosão de séries e perso nagens povoando as pá- ginas dos diários norte-am ericanos. Não demorou para que esse modelo de pro- dução fosse exportado. No Brasil, sabe-se que, no início da década de 19 30, os jornais já traziam M ut t e J ef f, d e B ud F is he r O s So br in ho s do C ap it ã o, d e Ru do lp h D ir ks colas, em especial as públicas, a realiz ar na 8484 Maurício de Sousa (1935): na scido em Santa Isabel, cidade próx ima de São Paulo, se tornou quase um sinôn imo de histórias em quadrinhos infantis no Br asil. Seus primeiros personagens foram publi cados na forma de tiras em jornais do grupo da Folha de S. Paulo a partir de 1959. Rapidam ente, conseguiu fi xar suas séries em vários outr os jornais. Desde o começo da década de 1 970, conseguiu bastante popularidade co m suas revistas em quadrinhos, tendo Mônica e Cebolinha como carros-chefe. T ira h or iz on ta l - L uc y & Sk y, de J .J .M ar re ir o T ira v er ti ca l - L uc y & Sk y, d e J .J .M ar re ir o páginas dedicadas às tira s e, nos anos seguintes, esse número só viria a a umentar. Em 1964, por exemplo, O Globo, do Rio de Janeiro, publicava 18 séries, todas estrangeiras . A Folha de S.Paulo so- mava a mesma quantidad e de histórias nesse ano, mas já trazia cinco criada s no país, a maioria por Maurício de Sousa (ele fazia as tiras de“Bidu e Franjinha”, “Cebolinha” e “Raposão”). Aos poucos, mais e mais séries e autores na- cionais passaram a ocupa r espaço nas páginas dos jornais brasileiros. Neste s éculo, sabe-se que já há mais jornais com produçã o de desenhistas brasilei- ros do que com conteúdo estrangeiro. O lado ruim é que há no país menos t iras do que antigamente. Nesse sentido, a interne t apresentou uma alternativa para a circula ção das histórias. Inicialmente, as páginas v irtuais tendiam a re- produzir o mesmo forma to de tiras adotado nos jornais, ou seja, horizo ntal e retangular. Quando os autores perc eberam que os ambien- tes digitais não traziam a s mesmas restrições de espaço dos diários, passa ram a: a) ampliar os for matos, criando narrativas qua- dradas ou então com o ta manho equivalente ao de duas, três ou até m ais tiras; b) alternar o uso dos formatos, conforme o ta- manho da história. Dizer que essas mudança s de formato foram iniciadas na internet seria um equívoco. Ainda no século passado as revistas em quadrinhos infantis, comuns nas bancas de rev istas e jornais, tornaram tradicional a presença da tira, mostrada na ver- tical, nas páginas fi nais, dividindo espaço com os créditos da publicação . Algumas coletâneas de tiras, vendidas em banca s, também adaptavam o 8585 molde da história para adequar melhor a produção ao novo suporte editorial. Mas não se discute que as mídias digitais tornaram ainda mais maleáveis esses recursos. Daí, você pode perguntar: mesmo com es- ses moldes diferentes, ainda podemos dizer que essas produções continuam sendo tiras? Vamos pensar juntos. Na internet, os autores também as denominam de tiras. Os leitores, pelo que se vê nos comentários deixados nas redes sociais, tendem a enxergar aquele conteúdo da mesma forma. Ou seja, a percepção é a de que, embora estejam em diferentes moldes, aquelas histórias continuam, sim, sendo tiras. Essa nova forma de olhar para elas ajuda a en- tender e a explicar porque as muitas das tiras utili- zadas nos livros didáticos e em exames como os do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) apresen- tam tamanhos tão variados uns dos outros. Não ra- ras vezes, é para adequar a história à diagramação da página (em vez de aparecer na horizontal, os editores optam por apresentar a história na ver- tical, por exemplo). Mas há também aquelas que foram criadas com essas dimensões diferentes. Na internet, são fáceis de encontrar. Com os alunos, essas características dos for- matos podem gerar uma boa discussão. Quais eles mais conhecem ou de quais são mais fami- liares? Onde viram essas produções? Se tivessem de desenhar uma tira, qual molde usariam para criar a história? Quais motivos levaram o estudan- te a fazer essa escolha? Note que não há respos- tas prontas, mas construídas na interação com os alunos. Colocado tudo isso, podemos entender melhor por que as tiras são um formato criado em dife- rentes tamanhos. A questão é o que se faz den- tro dessas dimensões variadas, que tipo de história se cria ali. Talvez cause estranheza dizer isto nos dias de hoje, em que as tiras são quase sinônimas de humor, mas nem todas são de cunho cômico. Houve até uma época no país em que estas eram a minoria, sabia? Tira horizontal com agrupamentos - Liz, de Daniel Brandão T ira e m f or m at o pe cu lia r - Le ne C ha ve s Tiras ou “tirinhas”?: sim, “tirinhas” é a outra forma como são chamadas as tiras, entretanto, preferimos evitar essa denominação por trazer uma conotação pejorativa à produção. 8686 Liz, de Daniel Brandão 3. Identificando os Gêneros de tiras Basta olhar as seções de tiras dos jornais – pelo menos dos que ainda publicam quadrinhos – ou então navegar pela internet para perceber que a grande maioria delas traz situações hu- morísticas. Em geral, essas produções se parecem muito com as piadas. Isso porque ambas criam uma narrativa para, no fi nal, revelar um desfecho ines- perado. É essa situação imprevista, inusitada, sur- real até, que costuma dar graça à história. Quando isso ocorre, costuma-se dizer que se trata de uma tira cômica. Ela pode vir com personagem fi xo, que dá título à série e aparece quase sempre, ou en- tão eventualmente, alguém criado especifi camente para aquela história (recurso que tem sido muito comum na produção brasileira atual), mas há sem- pre o cuidado em criar a piada ao fi nal. De tão comum que ela é, já virou até sinônimo de tira. Integram esse gênero muitas séries famo- sas. Como exemplos, os estadunidenses Recruta Zero, Charlie Brown e Snoopy, Hagar, o Horrível, e, claro, a não menos popular, inclusive em materiais didáticos, Mafalda, criada pelo argentino Quino. No Brasil, também há fartura de exemplos. Além de Maurício de Sousa, já citado anterior- mente, existem as criações de Angeli para a série Chiclete com Banana (com diversos personagens, como Rê Bordosa, Bob Cuspe, Os Skrotinhos, entre tantos outros), Glauco (Geraldão, Casal Neuras), Fernando Gonsales (Níquel Náusea), A. Silvério (Urbano, o aposentado), Iotti (Radicci), para citarmos alguns. E isso só entre os publicados em jornais. Se olharmos para os sites e redes sociais, temos outra leva de séries e au- tores. Algumas: Um Sábado Qualquer, de Carlos Ruas; Will Tirando, de Will Leite; Depósito do Wes, de Wesley Samp; Mentirinhas, de Fábio Coala; Tiras Não!, de Thales Gaspari; Ryotiras, de Ricardo Tokumoto. 8787 para curiosospara curiosos Urbano, o aposentado, personagem da série de Antônio Silvério, nasce u durante uma aula de sociologia no curso de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia Sa nta Doroteia, em 1982. A. Silvério é profess or e orientador no curso de animação do Nú cleo de Tecnologia Educacional (NTE), que te m como objetivo apresentar aos professo res o potencial educacional da linguagem da animação e possibilitar sua utilizaçã o em sala de aula. Durante o curso, são ex ibidos filmes sele- cionados para debate. A través da manipu- lação e confecção de dis positivos ópticos, os professores conhece m a história da animação e têm aulas pr áticas para a pro- dução de pequenos filme s animados em diferentes técnicas. Há também as que transitam entre a inter- net e os jornais. São casos em que os autores publicam nos jornais e, depois, levam os traba- lhos para seu site ou rede social ou então per- correm o caminho contrário. Ou seja, iniciaram Urbano, o aposenta do, de A. S ilvério na internet e conseguiram espaço no impresso. Malvados, de André Dahmer, Armandinho, de Alexandre Beck, e Bichinhos de Jardim, de Clara Gomes, são três bons exemplos contem- porâneos de produções assim. diferentes técnicas. 8888 SAIBA MAISSAIBA MAIS Armandinho: tirasarmandinho.tumblr.com/ Bichinhos de Jardim: bichinhosdejardim.com/Depósito do Wes: oslevadosdabreca.com/ Mentirinhas: mentirinhas.com.br/ Ryotiras: facebook.com/ryotiras/ Tiras, Não!: tirasnao.blogspot.com.br/ Última Quimera: ultimaquimera.com.br/ Um Sábado Qualquer: umsabadoqualquer.com/Will Tirando: willtirando.com.br/ Magias e Barbaridades: magiasebarbaridades.com.br/ Apesar da popularidade e difusão, é preciso esclarecer que a tira cômica não é o único gênero existente. Há outros, como as tiras seria- das, as tiras cômicas seriadas e o que temos chamado de tiras livres. Vamos ver uma a uma. As tiras seriadas (ou de aventura, forma sinônima) eram muito comuns em décadas passa- das. No Brasil, elas predominaram nos jornais por um grande período de tempo. A proposta era criar histórias em capítulos, apresentando ao leitor um episódio por dia. Na prática, funcionava como uma novela de TV ou algum dos vários seriados norte-a- mericanos exibidos atualmente. Além de construir uma narrativa maior, ajudava a fi sgar a atenção de quem acompanhava a série. Por conta dessa peculiaridade, a de serem se- riadas, e por terem temas relacionados à aven- tura, receberam esse nome. Muitos dos heróis queganharam fama no imaginário cultural do sé- culo XX tiveram início em tiras assim: Fantasma, Mandrake, Flash Gordon, Tarzan, Buck Rogers, Dick Tracy, entre outros. Algumas dessas séries são produzidas ainda hoje, embora mais restritas aos jornais norte-americanos (elas perderam mui- to espaço para as tiras cômicas). É possível ainda haver uma mescla entre os dois gêneros. Há algumas histórias que são criadas de forma seriada, porém, ao fi nal de cada capítulo trazem uma piada. Seriam, então, tiras cômicas seriadas. Algumas das sequências narrativas de Ed M or t, d e Lu iz F er na nd o Ve rí ss im o e M ig ue l P ai va 8989 Calvin e Haroldo, de Bill Watterson, costumam ser construídas dessa maneira (como as várias ve- zes em que os pais contratam uma babá para ser infernizada pelo garoto). O Brasil teve algumas tiras cômicas seriadas bem famosas. O detetive Ed Mort, de Luis Fernando Verissimo e Miguel Paiva, teve bom destaque nas páginas de jornais. Mais recentemente, o de- senhista Fabio Ciccone criou a série Magias e Barbaridades, com essas características, para a in- ternet. Ambas chegaram a ganhar coletâneas na forma de livros. Um quarto gênero que poderia ser citado é o que temos optado por chamar de tiras livres. São produções cuja marca é justamente não ter um rigor, uma rigidez no uso de elementos nar- rativos na composição da história. Nem narrativa precisa ser. Esses casos se parecem mais com expe- rimentações gráfi cas ou com produções literárias, como os poemas e os microcontos. Laerte, que criou os Piratas do Tietê, envere- dou por esse caminho em meados da primeira dé- cada deste século no espaço diário que mantinha (e que ainda mantém) na Folha de S. Paulo. Fez escola. Não demorou para que outros autores, al- guns deles colegas de página no diário paulista, se- guissem o mesmo rumo. As tiras de Rafael Sica (Ordinário) e algumas produções de Orlandeli (SIC) e José Aguiar (Quadrinhofi lia) podem ser citadas como exemplos de tiras livres. Magias e Barbarida des, de Fa bio Ciccon e Cabe destacar que o fato de citarmos séries aqui não signifi ca que elas possam ser au- tomaticamente transpostas para a sala de aula. Não! É necessário sempre que o professor ou o responsável pelo material didático faça uma leitura prévia da história para verifi car se ela está adequada ao que pretende e também à faixa etária do estudante. Embora um tanto óbvios, são cui- dados essenciais que devem ser tomados. Falaremos deles a seguir. Ca pa d e O rd in ár io , d e Ra fa el S ic a 9090 Os professores de literatura sabem há muito tempo que há a necessidade de se ter repertório de leitura para poder trabalhar bem os romances, contos e poemas em sala de aula. Dessa forma, com o domínio de um volume grande e diversi- fi cado de obras, fi ca mais fácil adequar temas e conteúdos à realidade dos estudantes e do pro- grama a ser desenvolvido na escola, de forma in- terdisciplinar ou não. O mesmo deve (ou deveria) ocorrer com as his- tórias em quadrinhos, independentemente da ma- téria a ser ministrada e do nível de escolaridade do aluno (fundamental I e II, ensino médio, EJA, 4. Leia e selecione bem as tiras universidade). Mas não é o que acontece. O co- mum, muitas vezes, é usar com os estudantes a primeira tira que aparece no Google, seja ela qual for, ou mesmo utilizar aquelas mais corriqueiras e facilmente encontradas nas bancas de revistas. Entretanto, o risco disso é trabalhar com algo que não atenda exatamente ao que se preten- de ou mesmo que seja inapropriado à faixa etária do estudante. do aluno (fundamental I e II, ensino médio, EJA, 9191 Sabe-se de casos de tiras criadas para leitores adultos (a maioria, aliás) que foram levadas até alunos mais jovens. Alguns chegaram a ser no- ticiados pela imprensa com ares de escândalo. O ponto importante a ser destacado é que a história não saiu sozinha do local onde foi veiculada (jor- nal, site ou outro meio) até as mãos dos estudan- tes. Esse processo foi mediado por alguém. Esse “alguém” precisaria ter maior cuidado e atenção na seleção desse material, o que provavelmente não aconteceu. Costumamos dizer que tudo (ou pelo menos quase tudo) pode ser ensinado com o au- xílio dos quadrinhos. Isso vale também para as tiras. A questão é ter clareza na proposta e usar a história certa. O problema é justa- mente esse: como saber qual a melhor narrati- va? É aí que volta a necessidade do repertório. A familiaridade com diferentes conteúdos irá faci- litar na hora da seleção. Tomemos como exemplo a situação das pes- soas portadoras de alguma defi ciência, um dos temas transversais a serem trabalhados no ensino básico, de preferência de forma tanto inter quan- to transdisciplinar. O desenhista baiano Luis Augusto trabalhou muito bem o tema em Fala, Menino, série em que alguns dos personagens apresentam características assim. Nela, o prota- gonista, Lucas, é um menino de quase dez anos, mudo, mas que ouve muito bem, inclusive as in- coerências ditas pelos adultos. Outro personagem é Caio, cadeirante, um garoto com inteligência su- perior à idade que tem. Também temos Rafael, que é cego. Outros integrantes da turma representam também algumas vítimas da sociedade, como o Diogo, um jovem morador de rua e pedinte. O Fala, Menino! foi cria do em 1996 pelo cartunista Luis Augusto (1972-2018) e publicado em livros e jorn ais, chegando a ter uma animação exib ida na TV. Nele, eram discutidos temas c omo preconceito, diferenças e responsabil idade social. Fala, Menino! As tiras em quadr inhos é uma co- letânea lançada pela edit ora Manole em 2010 e ainda em catálogo . Fala Menin o!, de Luis Augusto para curiosos 9292 As tiras da série podem fazer parte de diferen- tes ações a serem realizadas com os alunos. O que os personagens representam? Algum dos estu- dantes conhece alguém com essas características? Como essas pessoas são tratadas socialmente? Qual a posição da escola sobre o tema? Que atitu- des inclusivas poderiam ser pensadas? A depender do projeto que se crie, pode-se envolver toda a es- cola de modo integrado. Outro cuidado a ser tomado é o de contex- tualizar a tira selecionada. Assim como se faz com reportagens e trechos de obras literárias, é necessário indicar quem é o autor da história e o nome da série; identifi car o período em que foi criado e os personagens; dizer de onde aquele material foi extraído: se de jornal (qual?) ou de site (qual?) etc. Esses dados ajudam o aluno a si- tuar o texto. Sim, a tira é um texto que mescla elementos visuais com verbais escritos. Daí, por consequência, esses dados também preparam o caminho para a leitura da narrativa. E por falar em leitura, ela não pode estar dis- sociada da compreensão do conteúdo. Parece algo até redundante de dizer, mas é dessa forma, de texto em texto, de leitura em leitura, que vai se aprimorando o processo de construção de senti- do(s). É algo muitas vezes relegado a segundo plano, em detrimento de se trabalhar aspectos específi cos das histórias (qual o sujeito da oração dita pelo personagem, por exemplo). Texto pres- supõe leitura que, por sua vez, implica com- preensão. Sempre. Inclusive com tiras. Há poucos dados sobre como os estudantes compreendem as tiras. Mas, do pouco que há, os indicadores não são muito animadores. Percebe-se que há uma difi culdade na articulação en- tre imagem e palavra e, num segundo mo- mento, na identifi cação do humor presente na história, no caso das tiras cômicas. E é algo difícil mesmo. Entender uma piada é muito diferente de explicar a graça dela. Os FitoManos, de Raymundo Netto Jeanzinho, de Jean O kada 9393 Outra difi culdade para co mpreender as tiras é o fato de elas serem his tórias curtas. Se, por um lado, isso ajuda muit o na hora de preparar o material para ser levado a o aluno – são menos có- pias a serem tiradas, apre sentam uma leitura mais rápida etc. –, por outro,d emandam um volume muito maior de assoc iações com elementos externos à história, justam ente por ela ser curta. Vejamos um caso: as ti ras de Mafalda, tão comuns nos materiais did áticos brasileiros. Saber que a personagem é q uestionadora, adora os Beatles e acredita que a televisão manipula são elementos que ajudam a entender melhor a histó- ria. Só que muitas das n arrativas trabalham com a premissa de que o leito r já domine esses dados. Ter ciência da época da pr imeira publicação das ti- ras – décadas de 1960 e 70, na Argentina – pode fornecer outros elemento s importantes para des- vendar trechos pensados pelo autor, Quino. Uma vez mais, vale bater na tecla da necessi- dade de articular a leitur a com a compreen- são. É um exercício co nstante, mas que, se estimulado, torna-se cada vez mais automático e, se bem trabalhado, pode conduzir a leitores bas- tante críticos. Temas para isso as tiras têm de so- bra. Inclusive bem atuais . O repertório sobre elas – e a sua leitura prévia – irá revelar as que melhor irão se enquadrar no que pretende. Embora se possa fazer mu ito com elas, as tiras não irão resolver todos os problemas relacionados ao ensino. Nem elas, ne m os quadrinhos como um todo. Essas tarefas a inda estão nas mãos de quem conduz o processo de ensino-aprendizagem no país, que passa tanto pelos professores quan- to pelas autoridades e re sponsáveis por materiais didáticos. O ponto é sab er o que fazer com esse material. Pode-se fazer m uito, desde que seja com inteligência, criatividade e , claro, uma boa dose de bom-senso. É só querer. V ocê quer? Quino, ou melhor, Joaquim Salvador Lavado (1932): é um cartunista argentino, o pai da Mafalda, a menina que c onquistou o mundo – embora tenha s ido criada para protagonizar uma ca mpanha de publicidade da marca de eletrodomésticos Mansfi e ld –, inclusive a Unicef, que, em 1977, so licitou ao artista que as suas tiras ilustrass em a Edição Internacional da Campan ha Mundial de Declaração dos Direitos d a Criança. 9494 Referências CASTRO, Thiago Estevão Calixto de. Tiras cômicas on- line: mediação e interações na linguagem das tiras. 195 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia). Programa de Pós- Graduação em Tecnologia, Universidade Federal Tecnológica do Paraná. Curitiba, 2016. Disponível em: <http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/1802/1/ CT_PPGTE_M_Castro,%20Thiago%20Estev%C3%A3o%20 Calixto%20de_2016.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2018. MAGALHÃES, Henrique. Humor em pílulas. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2006. MARINGONI, Gilberto. Angelo Agostini: a Imprensa Ilustrada da Corte à Capital Federal, 1864-1910. São Paulo: Devir, 2011. NICOLAU, Vitor. Tirinhas & mídias virtuais: a trans- formação deste gênero pelos blogs. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2013. MOYA, Álvaro. História da história em quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. RAMOS, Paulo. Faces do humor: uma aproximação entre piadas e tiras. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2011. RAMOS, Paulo. Raio-X das tiras no Brasil. 9a arte: revis- ta brasileira de pesquisas em histórias em quadrinhos. 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Integra o Observatório de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e é um dos organizadores das Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos. É autor de vários livros e artigos sobre tiras. Todos os direitos desta edição reservados à: Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP 60055-402 - Fortaleza- Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax: 3255.6271 fdr.org.br | fundacao@fdr.com.br Expediente FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA João Dummar Neto Presidência | Marcos Tardin Direção Geral | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Viviane Pereira Gerência Pedagógica | Ana Paula Costa Salmin Coordenação Geral | CURSO QUADRINHOS EM SALA DE AULA: Estratégias, Instrumentos e Aplicações Raymundo Netto Coordenação Geral, Editorial e Preparação de Originais | Waldomiro Vergueiro Coordenação de Conteúdo | Amaurício Cortez Edição de Design | Amaurício Cortez, Karlson Gracie e Welton Travassos Projeto Gráfi co | Dhara Sena Editoração Eletrônica | Cristiano Lopez Ilustração | Emanuela Fernandes Gestão de Projetos ISBN 978-85-7529-853-4 (coleção) Este fascículo é parte integrante do projeto HQ Ceará 2, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha (FDR) e a Prefeitura Municipal de Fortaleza, sob o nº 001/2017. RealizaçãoApoio CRISTIANO LOPEZ (Ilustrador) é desenhista, Ilustrador e quadrinista. É desenhista-projetista do Núcleo de Ensino a Distância da Universidade de Fortaleza e ilustrador e chargista freelancer para o jornal Agrovalor, revista Ponto Empresarial (Sescap-CE) e Editora do Brasil. 978-85-7529-859-6 (volume 6) Os FitoManos, de Raymundo Netto
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