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FUNDAMENTOS SOC IO LÓG I COS DA ADM IN I S TRAÇÃO Vania Mart ins dos Santos Ma te r i a l d i dá t i co pa ra a d i s c i p l i na Fundamentos Soc i o l óg i cos da Admin i s t r ação dos cu rsos de Admin i s t r ação e Sec re ta r i ado Execu t i vo da UNIGRANRIO Duque de Cax i a s 2008 S UMÁ R I O CAPÍTULO 01: A SOCIOLOGIA E A ADMINISTRAÇÃO, p. 01 1.1 A NOVA REALIDADE DO ADMINISTRADOR, p. 02 1.2 O PONTO DE VISTA DA SOCIOLOGIA, p. 03 1.3 A SOCIOLOGIA APLICADA À ADMINISTRAÇÃO, p. 04 1.4 CONTRIBUIÇÕES DA CIÊNCIA DA SOCIEDADE PARA A ADMINISTRAÇÃO, p. 06 CAPÍTULO 02: A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E A TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE, p. 09 2.1 AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XIX, p. 09 2.2 A ORGANIZAÇÃO FEUDAL, p. 10 2.3 MUDANÇAS NO CAMPO, p. 11 2.4 A DECADÊNCIA DAS ATIVIDADES ARTESANAIS, p. 12 2.4.1 O declínio das corporações artesanais, p. 14 2.5 OS CONFLITOS IDEOLÓGICOS E SOCIAIS, p. 16 2.6 O SURGIMENTO DA GERÊNCIA, p. 20 2.7 REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: PROGRESSO HUMANO OU PROBLEMAS SOCIAIS? , p.22 2.7.1 As críticas à sociedade industrial, p. 24 CAPÍTULO 03: INDUSTRIALIZAÇÃO: O CASO BRASILEIRO, p. 28 3.1 A FORMAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA BRASILEIRA, p. 28 3.2 TRADIÇÃO E MODERNIDADE NO BRASIL AGRÁRIO, p. 29 3.3 ORIGENS DA INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA, p. 31 3.4 EMPRESÁRIOS E ADMINISTRADORES NO BRASIL, p. 33 CAPÍTULO 04: A SOCIEDADE MODERNA SEGUNDO OS CLÁSSICOS, p. 39 4.1 A DIVERSIDADE DA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA, p. 39 4.2 EMILE DURKHEIM E AS BASES DA SOCIOLOGIA, p. 40 4.2.1 A análise sociológica do suicídio, p. 41 4.2.2 A solidariedade na sociedade industrial, p. 42 4.3 KARL MARX E A CRÍTICA AO CAPITALISMO, p. 44 4.3.1 A alienação do trabalhador no capitalismo, p. 45 4.3.2 As contradições do capitalismo e a revolução operária, p. 46 4.4 MAX WEBER E A TEORIA DA AÇÃO SOCIAL, p. 47 4.4.1 O surgimento do capitalismo segundo Weber, p. 49 CAPÍTULO 05: SOCIALIZAÇÃO E INTEGRAÇÃO SOCIAL, p. 52 5.1 O APRENDIZADO SOCIAL DO SER HUMANO, p. 52 5.2 OS PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO, p. 53 5.3 SOCIALIZAÇÃO ORGANIZACIONAL, p. 54 5.3.1 Estratégias de socialização organizacional, p. 56 5.4 SOCIALIZAÇÃO E REPRODUÇÃO SOCIAL, p. 58 CAPÍTULO 06: A CULTURA, p. 62 6.1 CULTURA E SOCIEDADE, p.62 6.2 NATUREZA, CULTURA E SOCIALIZAÇÃO, p. 62 6.3 CULTURA E DIVERSIDADE, p. 64 6.3.1 Etnocentrismo e relativismo cultural, p. 65 6.3.2 Subculturas e contraculturas, p. 66 6.4 AS ORGANIZAÇÕES E A CULTURA, p. 67 6.4.1 Cultura organizacional e cultura nacional, p. 69 6.5 A CULTURA ORGANIZACIONAL NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO, p. 72 6.5.1 Cultura e comportamento do consumidor, p. 73 6.6 A CULTURA ORGANIZACIONAL NA PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA, p. 74 CAPÍTULO 07: AGRUPAMENTOS SOCIAIS, p. 79 7.1 GRUPOS E AGREGADOS SOCIAIS, p. 79 7.2 DINÂMICA SOCIAL DOS GRUPOS, p. 80 Vania Martins dos Santos 7.3 ESTRUTURA DOS GRUPOS, p. 82 7.4 GRUPOS PRIMÁRIOS E SECUNDÁRIOS, p. 83 7.5 A ATUAÇÃO DOS GRUPOS NA ORGANIZAÇÃO, p. 84 7.5.1 A Experiência de Hawthorne, p. 85 7.5.2 Conclusões da Experiência de Hawthorne, p. 86 7.5.3 Organização informal, p. 87 7.6 A CRÍTICA SOCIAL À ESCOLA DE RELAÇÕES HUMANAS, p. 89 CAPÍTULO 08: ORGANIZAÇÕES FORMAIS, p. 92 8.1 A SOCIEDADE DAS ORGANIZAÇÕES, p. 92 8.2 O PROBLEMA DA ORDEM NAS ORGANIZAÇÕES, p. 93 8.2.1 Múltiplos grupos e interesses, p. 94 8.2.2 Por que existe a ordem nas organizações? , p. 95 8.3 ORGANIZAÇÕES E BUROCRACIA, 96 8.3.1 Características e vantagens da burocracia, p. 97 8.3.2 Críticas à burocracia, p. 98 8.3.3 A aplicabilidade do modelo burocrático, p. 100 8.3.4 As transformações do modelo burocrático, p. 102 CAPÍTULO 09: A ESTRUTURA DA SOCIEDADE, p. 106 9.1 STATUS E PAPÉIS SOCIAIS, 106 9.1.1 O conflito de papéis, p. 107 9.1.2 Negociação e determinação de papéis, p. 109 9.1.3 Status, rótulos e identidades sociais, p. 110 9.2 A ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL, p. 111 9.2.1 Teorias de estratificação social, p. 111 9.2.2 Estratificação por castas sociais, p. 113 9.2.3 A estratificação por classes, p. 114 9.3 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO, p. 115 9.3.1 Gênero e raça como fatores de estratificação no Brasil, p. 116 CAPÍTULO 10: PODER SOCIAL, p. 121 10.1 O FENÔMENO DO PODER, p. 121 10.2 PODER E AUTORIDADE, p. 123 10.2.1 Tipologia da autoridade de weber, p. 124 10.3 LIDERANÇA, p. 126 10.4 ORGANIZAÇÕES E PODER, p. 128 CAPÍTULO 11: EMPRESAS, ESTADO E SOCIEDADE CIVIL, p. 132 11.1 EMPRESAS E SOCIEDADE, p. 132 11.2 O ESTADO NACIONAL NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO, p. 133 11.3 SOCIEDADE CIVIL E MOVIMENTOS SOCIAIS, p. 136 11.4 EMPRESAS, MEIO AMBIENTE E RELAÇÕES INTERNACIONAIS, p. 138 11.4.1 Gestão ambiental, p. 139 11.5 CONSUMO E MEIO AMBIENTE, p. 141 11.6 MOVIMENTOS DE CONSUMIDORES, p. 143 CAPÍTULO 12: ORDEM SOCIAL E MUDANÇA SOCIAL, p. 147 12.1 O PROBLEMA DA ORDEM, p. 147 12.1.1 controle social e ordem social, p. 147 12.1.2 A eficácia das instituições , p. 149 12.1.3 A legitimação da ordem, p. 149 12.2 COMPORTAMENTO DESVIANTE, p. 151 12.2.1 O Desvio como produto da sociedade, p. 153 12.2.2 Desvio e mudança social, p. 154 12.3 MUDANÇA SOCIAL, p. 155 12.3.1 Fatores da mudança social, p. 155 12.3.2 Atitudes individuais e mudança social, p. 157 12.4 MOVIMENTOS SOCIAIS, p. 159 12.4.1 Os novos movimentos sociais, p. 161 Vania Martins dos Santos CAP 13 - GLOBALIZAÇÃO: UM MUNDO DE RISCOS E OPORTUNIDADES, p. 167 13.1 A SOCIEDADE GLOBAL, p. 167 13.2 IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS , p. 169 13.3 FORDISMO E TAYLORISMO: AS BASES DA PRODUÇÃO EM MASSA, p. 172 13.3.1 As inovações do taylorismo, p. 174 13.4 DO FORDISMO À PRODUÇÃO FLEXÍVEL, p. 175 13.4.1 Toyotismo, p. 176 13.4.2 A especialização flexível, p. 178 13.5 O PROBLEMA DO EMPREGO, p. 180 13.5.1 A valorização do capital humano: promessa ou prática nas organizações?, p. 180 13.6 EFEITOS SOCIAIS DO PÓS-FORDISMO, p. 184 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 01 CAPÍTULO 01: A SOCIOLOGIA E A ADMINISTRAÇÃO 1.1 A NOVA REALIDADE DO ADMINISTRADOR Acreditamos que, para um administrador, as principais contribuições trazidas pela sociologia devem ser compreendidas à luz das intensas transformações que atingem o ambiente empresarial. Estas transformações têm estimulado os profissionais da gestão a procurar conhecimentos provenientes das ciências humanas, em busca de uma melhor compreensão sobre um fator que, no bojo destas mudanças, vem adquirindo relevância cada vez mais significativa nas organizações: o fator humano. O campo da administração encontra-se no começo deste século marcado pela percepção dos impactos das mudanças geradas pelo processo de globalização sobre a teoria e a prática dos negócios. Existe hoje um discurso bastante consensual entre os que vivem no mundo corporativo de que o atual contexto, marcado pela rapidez das mudanças e pelo acirramento da competição, guarda poucas semelhanças com o contexto de relativa estabilidade dos mercados restritos em meados do século passado. De acordo com esta perspectiva, tudo mudou no cotidiano das empresas: o trabalho centra-se em atividades criativas e não mais rotineiras; é realizado através de equipes, ao invés de ações isoladas; é orientado por líderes que substituem atitudes autoritárias pela delegação de poderes e responsabilidades aos colaboradores e, finalmente, requisita cada vez mais profissionais flexíveis, inovadores e capazes de enxergar a organização como um todo. Tudo pela satisfação do cliente, que agora constitui o principal foco das estratégias das empresas. É claro que estamos falando de processos que não se desenvolvem da mesma maneira em todas as empresas. Talvez o leitor, observando a própria organização na qual trabalha, note a ausênciade algumas destas características. Teremos oportunidade de abordar os diferentes contextos nos quais se dão as referidas mudanças. O que nos interessa, por ora, é que a discussão destes fatores de mudança coloca diretamente no centro das atenções o que esteve por um bom tempo relegado a segundo plano nas organizações: as pessoas. Afinal, não se pode falar em criação, inovação, capital intelectual, trabalho em equipe, responsabilidade, flexibilidade e satisfação do cliente sem falar em sua grande força geradora, as pessoas. Nunca a administração discutiu tanto o papel das pessoas no desempenho das empresas, a ponto de ter se tornado comum nos dias atuais a idéia de que o fator humano é o fator crítico de sucesso das organizações. Hoje, as empresas em maior sintonia com as tendências modernas de gestão não chamam mais seus integrantes de “empregados” e sim de “colaboradores”, atribuindo peso significativo ao valor que estes podem agregar à 1 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 01 organização. Parte significativa das teorias de recursos humanos hoje se dedica a estudar as maneiras mais eficientes de atrair e reter talentos na organização, acreditando extrair daí uma fonte poderosa de vantagem competitiva. Outro indicador do novo status das pessoas em relação às organizações é dado pela crescente importância dos consumidores na sociedade. As empresas que ambicionam vencer em mercados altamente competitivos, inevitavelmente incorporam a lei: os clientes são sua razão de ser. A expressão “o cliente é rei” se popularizou rapidamente no mundo corporativo, indicando um direcionamento de recursos e de estratégias organizacionais para a identificação dos desejos, gostos e necessidades dos consumidores, e a conseqüente oferta de produtos e serviços mais adequados a estes. Como podemos observar, este não é mais o mundo no qual os “clientes podem comprar carros Ford de qualquer cor, desde que sejam pretos”, como afirmara o presidente desta companhia no século passado. Nem mesmo aqueles que, ao menos aparentemente, não se encontram diretamente ligados às empresas são desconsiderados neste novo enfoque caracterizado pela centralidade do fator humano. As pessoas que não compram da empresa e não trabalham nela, mas que constituem a sociedade na qual ela atua, recebem cada vez mais a atenção das organizações. No século XIX, à época da Revolução Industrial, a legislação trabalhista, as regulações comerciais e os movimentos sociais eram precários e desarticulados, permitindo que a maximização dos lucros dos proprietários das indústrias fosse a única expectativa válida de negócios. Gradualmente, essa concepção é colocada em questão pela intervenção de uma série de movimentos sociais: operários, consumidores, defensores do meio ambiente, entre outros, fortalecem a idéia de que a relação de uma empresa com a sociedade não deve se resumir a produzir bens econômicos. As empresas então passaram a considerar como interlocutores-chave não apenas os segmentos sociais com os quais estabelecem relações estritamente comerciais ou profissionais (como fornecedores, compradores e órgãos públicos reguladores), mas também as comunidades que podem ser afetadas, direta ou indiretamente, pelas atividades da empresa – como é o caso, por exemplo, das atividades que geram danos ambientais. Começa a se fortalecer, então, a noção de toda empresa deve assumir compromissos éticos e sociais para com a sociedade na qual atua. É crescente a importância destes temas nos estudos e pesquisas em administração e, apesar de seus variados enfoques, há uma predominância da idéia de que evitar os custos de reparação resultantes de conflitos com os interesses da comunidade é um dos principais desafios das empresas que ambicionam progredir na competição global. Tantas mudanças, é claro, se refletem na própria forma como a administração caracteriza o elemento humano na 2 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 01 organização. No início do século XX, por exemplo, predominava no meio industrial a idéia de que os seres humanos possuíam uma natureza egoísta, cuja motivação encontrava-se associada exclusivamente a aspectos econômicos. Esta noção foi sendo gradativamente substituída por perspectivas que passaram a entender as características humanas de forma mais ampla e complexa. Aspectos emocionais, psicológicos, culturais e sociais, entre outros, foram incorporados à rede de fatores que passam a ser considerados nas abordagens administrativas sobre as organizações. Se isto representa realmente uma melhoria nas condições de trabalho e de vida para as pessoas é uma questão controversa. Muitas destas mudanças têm sido compreendidas como estratégias de sobrevivência das organizações em um novo contexto de relações econômicas e sociais. Vista desta perspectiva, a centralidade das pessoas para a administração é fruto da mesma busca que sempre motivou as empresas: ampliar os lucros. Tudo se resume a melhor conhecer o elemento humano que constitui as organizações, para melhor dominá-lo e dele extrair maiores vantagens. Tomando-se a questão por outro ângulo, o fato que se destaca é que novas perspectivas se abrem para a administração e elas não podem ser pensadas nem praticadas sem que se tenha em conta as pessoas e suas relações com as organizações. Ao longo deste caminho, a administração tem se mostrado aberta às contribuições de outros campos de conhecimento. Neste livro, serão exploradas as contribuições da sociologia para o melhor entendimento do fator humano nas organizações, bem como dos processos de mudança pelos quais vêm passando as organizações e a administração, que tornam cada vez mais necessária a compreensão deste fator. 1.2 O PONTO DE VISTA DA SOCIOLOGIA A sociologia é o estudo científico da vida social humana, dos grupos e das sociedades. Seu nível de abrangência varia desde a análise das interações dos indivíduos situados em um micro contexto social, como, por exemplo, uma rede constituída de amigos, uma família ou uma empresa, até a investigação de processos sociais de nível global. O ponto de vista central da sociologia convida a enxergar a realidade humana a partir de suas conexões com a sociedade mais ampla. É isto que o sociólogo Wright Mills (1972) chamou de “imaginação sociológica”, um recurso que nos ajuda a ver que a vida humana está envolvida em uma dimensão social que não pode ser explicada quando se olha para os indivíduos isoladamente, nem mesmo para a soma de seus atributos particulares. Dentro desta perspectiva, as ações das pessoas não se devem somente aos desejos e escolhas individuais, mas também a fatos ligados à sociedade, como a posição social ocupada no grupo, os papéis a 3 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 01 serem desempenhados, as normas, valores e padrões que caracterizam o ambiente social do qual fazem parte os indivíduos. O simples ato de se vestir, por exemplo, ainda que pareça um gesto isolado de um indivíduo, em função de seus gostos e preferências pessoais, é uma ação carregada de dimensões sociais, pois está conectada a um contexto social que o indivíduo leva em conta para desenvolver suas ações. A roupa escolhida para ira uma festa é geralmente diferente daquela escolhida para o primeiro dia de trabalho no novo emprego. Levamos em conta o que as pessoas vão pensar de nós, e também procuramos influenciá-las, tentando direcionar a imagem que formarão a nosso respeito. Nossas ações vão mudando conforme mudam as pessoas ao nosso redor, não só porque os indivíduos são diferentes uns dos outros, mas porque essas pessoas, através de suas interações, criam normas, padrões e expectativas que influenciam nosso comportamento. Estes aspectos fazem parte da natureza social da vida humana e constituem o foco de interesse da sociologia. Podemos dizer que a sociologia busca o entendimento dos fenômenos sociais – todos aqueles que surgem das relações que os homens estabelecem entre si como membros de sociedades. Para esta ciência, os aspectos sociais devem ter prioridade na explicação da realidade em que vive o homem. 1.3 A SOCIOLOGIA APLICADA À ADMINISTRAÇÃO A administração, segundo Chiavenato (1999), é uma maneira de utilizar os diversos recursos organizacionais, sejam eles materiais ou humanos, para alcançar objetivos e atingir elevado desempenho. Ela é importante em qualquer situação onde tais necessidades existam, e seja preciso alcançar objetivos individuais, grupais, familiares ou sociais. O processo administrativo, contudo, tem sido estudado e desenvolvido sobretudo por seu papel no desempenho das organizações. Estas vêm assumindo importância cada vez maior na vida social humana. A sociedade moderna é considerada uma sociedade organizacional, pois poucos são os aspectos da vida das pessoas que não estão relacionados com algum tipo de organização, seja ela empresarial, religiosa, educacional ou governamental. As organizações existem fundamentalmente porque certos objetivos só podem ser alcançados por meio da ação coordenada de grupos de pessoas e é neste ponto que se torna crucial o papel da administração. O administrador não é um simples executor de tarefas, mas sim aquele que possibilita que estas sejam executadas por outras pessoas em conjunto, de modo que a organização seja bem-sucedida em seus objetivos. Chiavenato (1999, p.6) chama a atenção para a classificação da administração como uma ciência social aplicada: “pois ao lidar com negócios e organizações, ela o faz 4 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 01 basicamente por meio das pessoas”. Na consecução de sua missão, a administração aplica os conhecimentos desenvolvidos nas demais ciências sociais, inclusive o arcabouço de conhecimentos sociológicos. Mas como a sociologia avalia o uso dos conhecimentos gerados em seu campo para tornar mais eficiente a gestão das organizações? As respostas a essa questão podem ser controversas, já que os sociólogos nunca estiveram em consenso quanto ao engajamento social e político de suas ações. A idéia de que a sociologia deve gerar conhecimentos com o propósito de melhorar a sociedade existe desde o surgimento desta disciplina no século XIX, quando autores, hoje considerados clássicos, analisaram as transformações provocadas pela Revolução Industrial na sociedade e sugeriram diversas formas de intervir nos problemas sociais derivados destas mudanças. Estes propósitos podem parecer tentadores para os administradores, que assumem a responsabilidade pela eficácia no alcance dos objetivos das organizações. Contudo, algumas questões devem ser levantadas a respeito destes usos da sociologia. Devemos, em primeiro lugar, permanecer atentos às diferenças que marcam os campos da sociologia e da administração, sobretudo pelo caráter pragmático desta última disciplina. Na perspectiva da administração, qualquer aspecto encontrado em uma empresa que influencie seus objetivos e resultados deve ser controlado ou manipulado para garantir o sucesso do gerenciamento desta organização. A sociologia, por outro lado, estuda os fenômenos que afetam as organizações sem necessariamente desenvolver ferramentas para intervenção ou controle desta situação. Embora a sociologia tenha produzido conhecimentos sobre fenômenos de grande interesse para a administração, como por exemplo a cultura, o poder e o conflito, a transformação destes conhecimentos em ferramentas de intervenção, que permitem controlar estes processos na realidade organizacional e atender as exigências pragmáticas dos administradores, nunca foi regra geral na sociologia. A sociologia busca muito mais compreender e interpretar estes fenômenos do que intervir sobre eles de maneira instrumental (BARBOSA, 1996; MASCARENHAS, 2002). Há um campo específico da sociologia que se encarrega da aplicação de conceitos, princípios e insights sociológicos para embasar decisões acerca dos problemas que afetam a vida das pessoas em sociedade, chamado sociologia aplicada (JOHNSON, 1997). Ao analisar os fenômenos sociais, o sociólogo produz uma compreensão de seus mecanismos de funcionamento, ajudando a prever e a controlar suas manifestações. As áreas de trabalho do sociólogo aplicado podem, por exemplo, incluir a coleta e análise de indicadores sobre a pobreza nas grandes cidades a fim de fornecer subsídios à elaboração de programas sociais para combatê-la. De modo semelhante, estudos sobre o estilo de vida 5 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 01 de um determinado segmento da sociedade podem nortear a adoção de estratégias de marketing de uma empresa. A sociologia aplicada ao campo da administração compreende aspectos que afetam a organização, tais como comportamento humano no trabalho, comportamento do consumidor, dinâmica de grupos sociais, estruturas de poder, transformações sociais, entre outros, e o faz de uma perspectiva particular, enfocando a dimensão social e cultural destes fenômenos. Esta abordagem nos permite, por exemplo, entender que o indivíduo não é um ser isolado na organização, mas um ser que atua em contextos sociais formados por grupos (internos e externos à empresa), organizações, sociedades e culturas e assim compreender melhor o comportamento humano na organização a partir da influência destes fatores. A análise destes contextos amplia, portanto, a compreensão das ações humanas. Dentro desta perspectiva, a atenção às transformações dos padrões da sociedade, de seus valores, normas de comportamento e formas de organização, permite ampliar a compreensão das tendências sócio-culturais que se configuram, e que podem se manifestar, por exemplo, em novas oportunidades de negócio, novas expectativas de grupos e comunidades quanto à atuação das empresas ou, ainda, novos arranjos políticos que venham a influenciar o desenrolar dos negócios. 1.4 CONTRIBUIÇÕES DA CIÊNCIA DA SOCIEDADE PARA A ADMINISTRAÇÃO A adoção da perspectiva de que a sociologia não só fornece explicações sobre o que ocorre nas interações humanas, como possibilita medidas de intervenção nestas interações, significa afirmar que é possível para o administrador utilizar as contribuições da sociologia para gerenciar de maneira mais eficaz as organizações. Contudo, devemos ter a consciência de que as escolhas feitas pelo administrador em sua prática gerencial permanecem no campo dos valores e não da ciência (WEBER, 1972). É importante esclarecer que os usos que são feitos da ciência, de qualquer ciência, têm uma natureza política, dada pelas preferências por este ou aquele caminho, este ou aquele resultado. O conhecimento da realidade podeser obtido cientificamente, mas as decisões sempre serão políticas, isto é, ligadas aos interesses e poderes dos atores envolvidos nas interações sociais que constituem as organizações e também a sociedade. Não há base científica que sustente o conceito de uma sociedade “melhor”, ou mesmo de uma organização “melhor”, pois julgamentos desta natureza estão enraizados em valores sócio-culturais e imersos em relações de poder. O que determina, por exemplo, que o lucro de uma organização esteja à frente da melhoria da qualidade de vida de seus funcionários 6 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 01 ou então de uma relação menos predadora com o meio ambiente? O papel do sociólogo não deve ser o de determinar qual o objetivo “correto” para as organizações, mas explicar porque certos objetivos em determinados contextos se tornam mais relevantes do que outros e mostrar as conseqüências que estes objetivos podem trazer. O caráter científico da sociologia esbarra em algumas questões específicas ao cientista social, que é, no final das contas, um ser humano estudando outros seres humanos. Observada esta condição, entendemos que não é possível estudar a vida social da mesma maneira que se estudam processos físicos ou biológicos, objetos do cientista da natureza. Em primeiro lugar, a margem de erro de quem se dedica a analisar a vida em sociedade sempre será maior, já que os fenômenos sociais não ocorrem com a mesma exatidão dos fenômenos da natureza; ao contrário, variam enormemente ao longo da história das sociedades. Apesar desta variabilidade, o sociólogo, utilizando-se de pesquisas científicas, é capaz de encontrar alguma regularidade nos fenômenos sociais, o que os torna relativamente previsíveis. Por outro lado, o sociólogo não deve estar isento de atuar da forma mais objetiva possível quando realiza seus estudos sobre a realidade social, utilizando para isto os métodos e técnicas que o desenvolvimento científico de sua época lhe oferecem. Isto é o que lhe permite ampliar o controle sobre suas preferências subjetivas, capacitando-o a perceber o que se passa na realidade com mais clareza, ainda que esta realidade não esteja de acordo com suas crenças e valores. Quando o sociólogo entrevista os funcionários de uma empresa, por exemplo, para entender as razões de determinado padrão de produtividade, deve ter cuidado com perguntas que encorajam os entrevistados a dizer exatamente o que o pesquisador, ou mesmo o dono da empresa, querem ouvir. Suas conclusões, como a de qualquer outro cientista, devem ser submetidas a verificações e confrontadas com os dados da realidade. A maior contribuição da sociologia para a administração vem de sua compreensão mais profunda do funcionamento das organizações, formando um quadro mais realista das situações nas quais os administradores têm de intervir no exercício de sua função. Entretanto, o sociólogo só pode obter esta compreensão se mantiver um distanciamento necessário que o permita ver as ações humanas de maneira mais complexa, envolvendo atores com interesses distintos, visões diferenciadas, que são afetadas por múltiplas influências. Neste ponto, a sociologia tem certamente implicações práticas na vida de quem gerencia empresas. Ela permite conhecer melhor o comportamento das pessoas na organização, bem como as relações e os processos sociais que nela se desenrolam. Ampliando nosso nível de compreensão sobre esta realidade, entendemos melhor as ações dos outros e nossas próprias ações e ampliamos nossa 7 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 01 capacidade de intervir sobre elas e de influenciá-las. Quanto maior o nível de informação sobre a situação em que atuamos, maiores as chances de tomarmos decisões acertadas (GIDDENS, 2005). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Lívia Neves de Holanda. Cultura administrativa: uma nova perspectiva. Revista de administração de empresas. São Paulo, v. 36, n. 4, p. 6-19, out./nov./dez. 1996. Ao longo de décadas, as teorias de administração têm gradativamente avançado de uma limitada perspectiva da organização como um sistema predominante técnico e movido por fatores internos, a uma visão que abarca fatores humanos bastante complexos, além das variadas formas de interação da organização com seu ambiente externo. Este movimento reflete as intensas transformações pelas quais passaram as organizações e as sociedades no século XX, mas em parte reflete também a necessidade de romper as amarras que limitam a visão sobre o processo de gerenciamento das organizações. Neste sentido a sociologia tem um papel importante a desempenhar na administração. CHIAVENATO, Idalberto. Administração nos novos tempos. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999. GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6° ed. São Paulo: Artmed, 2005. JOHNSON, Alan. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. MASCARENHAS, André Ofenhejm. Etnografia e cultura organizacional. Revista de administração de empresas, v.42, n.2, abr/jun2002. MILLS, C. Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. WEBER, Max. A ciência como vocação. In:_____. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara Editora, 1982. 8 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 CAPÍTULO 02: A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E A TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE 2.1 AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XIX A palavra sociologia é uma junção do termo latino socio (social ou sociedade) com o termo grego logos (estudo), tendo sido empregada pela primeira vez em 1839 pelo pensador francês Augusto Comte. O surgimento da sociologia está relacionado a um conjunto de transformações ocorridas na sociedade a partir do século XV e que se estenderam até o século XIX, determinando a ruína dos sistemas feudais e a configuração de uma nova ordem social. A produção econômica, a distribuição de poder, os valores e as visões de mundo estavam em transformação e os reflexos destas mudanças na vida social tornaram-se alvos da reflexão de diversos pensadores. Um importante ponto de ruptura com a antiga forma de sociedade foi provocado pelo movimento intelectual chamado Iluminismo, que, a partir de uma visão racional do mundo, se contrapôs às doutrinas da Igreja, ao poder ilimitado dos Reis e à intervenção do Estado na economia. Este movimento representou no século XVIII um dos pilares da sociedade burguesa em construção e favoreceu a criação de condições para uma abordagem científica da realidade social. O surgimento da sociologia representou, em grade parte, a iniciativa de alguns pensadores de aplicar as técnicas científicas ao estudo da sociedade. A Revolução Francesa de 1789 foi um dos marcos do fim do Antigo Regime. As guerras, os problemas econômicos e o acirramento da exploração sobre as camadas populares colocaram a França diante de uma grave crise social, que culminou em uma violenta revolução contra a monarquia absolutista dominada pelos membros da nobreza e do clero. Embora tenha contado com a participação dos pobres urbanos e dos camponeses, a Revolução Francesa representou a ascensão da burguesia ao poder. Os primeiros escritos de sociologia se deram sob o impacto destareconfiguração da ordem política. Intensas transformações sociais foram provocadas pela Revolução Industrial que, a partir do século XVIII, centra a atividade econômica na produção fabril em larga escala, com base na utilização crescente de máquinas. Nos campos, as atividades agrícolas são reestruturadas para atender às exigências das indústrias. Nas terras delimitadas pelos cercamentos, a criação de carneiros predomina a fim de abastecer as fábricas com a lã. Os camponeses expulsos de suas plantações engrossaram as fileiras do proletariado urbano, junto com os trabalhadores da manufatura esmagados pela concorrência com o trabalho mecanizado. As condições de 9 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 trabalho nas fábricas, por sua vez, são bastante precárias. O parcelamento das tarefas no novo sistema fabril distancia ainda mais o trabalhador do produto final de seu trabalho. A inexistência de leis trabalhistas permite altos níveis de exploração dos operários, submetidos a longas jornadas de trabalho e a baixos salários, não sendo rara a utilização de mulheres e de crianças sob as mesmas condições. As primeiras manifestações operárias fazem-se sentir através dos luditas, que revoltam-se contra as máquinas, e das associações que viriam a originar os sindicatos. As novas relações de trabalho, bem como os graves problemas urbanos característicos deste período, serão temas constantes nos trabalhos dos primeiros sociólogos. O século XIX oferecia um panorama que exigia dos pensadores da época um entendimento mais amplo da natureza das mudanças ocorridas, e sobretudo das conseqüências sociais que então se anunciavam. A nova sociedade tornava-se assim alvo de pesquisas e análises sistemáticas. Este novo contexto, como veremos, influenciará não apenas o surgimento da sociologia como também o da administração. 2.2 A ORGANIZAÇÃO FEUDAL De acordo com Huberman (1976), no mundo feudal, as relações sociais eram organizadas em torno da agricultura e do controle da terra. Esta era dividida em feudos, que consistiam em aldeias, onde viviam os camponeses, e em vários acres de terra comandados por um senhor, nas quais os camponeses trabalhavam como servos para os dois estratos superiores da sociedade: o clero e a nobreza. O sistema hierárquico desta sociedade, chamado estamental, era rígido e não permitia quase nenhuma mobilidade de um estrato social ao outro. A riqueza produzida nas atividades agrícolas era totalmente improdutiva. O clero e a nobreza acumulavam grandes fortunas, mas neste tipo de organização social não se criavam oportunidades de negócio nos quais estas fortunas pudessem ser investidas. Os feudos eram auto-suficientes. Os camponeses, embora trabalhassem quase todo o tempo para o senhor feudal, podiam utilizar algum pedaço da terra para obter seu próprio sustento e o de sua família, além de ser prática comum entre este estrato a fabricação de utensílios, mobiliário e vestuário de que necessitavam. O intercâmbio de mercadorias assumia uma função complementar a estas atividades e seu alcance era estritamente local. A inexistência de um sistema único de pesos e de medias, a escassez do dinheiro como moeda de troca, as péssimas condições das estradas e os altos pedágios cobrados eram fatores que desestimulavam empreitadas comerciais mais ousadas. Realizar transações comerciais na sociedade feudal do século XI era caro, difícil e perigoso demais. Sete séculos de transformações sociais transcorreram até a dissolução completa deste rígido sistema de vida. O mercado 10 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 cresceu e com ele floresceram as cidades e um novo estrato social, composto de mercadores urbanos, que deram início às atividades capitalistas. Gradativamente, o sistema feudal se desagregou, dando lugar a uma nova ordem econômica e social. Os primeiros pensadores da sociologia se dedicaram a compreender a crise social gerada pela profunda transição entre estas formas de organização da sociedade. Serão destacados, então, alguns aspectos desta transição, que criaram condições para o surgimento da sociedade capitalista – sociedade na qual nascerá não apenas a sociologia, como também a administração. 2.3 MUDANÇAS NO CAMPO Durante muito tempo, os camponeses viveram resignados em um sistema hierárquico bastante estático. O mercado era limitado e os senhores se apropriavam de praticamente tudo que era produzido em suas terras. A possibilidade de ascender socialmente era praticamente inexistente para os camponeses, que não tinham qualquer incentivo para fazer mais do que o necessário para sobreviver. Mas a situação começava a se modificar. O mercado havia crescido desde o século XI, quando as Cruzadas abriram uma riquíssima rota comercial entre Ocidente e Oriente, fazendo crescer o interesse por mercadorias estrangeiras e pela produção para mercados que ultrapassavam a esfera local. Grandes feiras haviam se tornado o principal local de transação de mercadorias provenientes de diversos pontos do mundo, transformando-se posteriormente em prósperas cidades comerciais. As cidades, que cresciam progressivamente, dependiam das zonas rurais para obtenção de alimentos e também de matéria-prima para as atividades manufatureiras nascentes. Os feudos, por sua vez, passaram a depender das cidades para obter os produtos manufaturados que eram oferecidos pelos mercadores, classe que vai adquirindo cada vez mais importância social e a quem interessava o rompimento das restrições ao comércio, típicas da sociedade feudal. Se, de um lado, o mercado se tornava mais próspero, de outro, o aperfeiçoamento tecnológico das formas de cultivo e dos meios de transporte provocava uma série de transformações nas atividades agrícolas dos feudos. A introdução do sistema de rodízio, permitindo o pousio da terra e a recuperação de sua fertilidade, resultou em um expressivo aumento da produtividade das terras. O transporte de pessoas e de mercadorias se tornou muito mais eficiente com a utilização de cavalos no lugar de bois, fator que beneficiou também a produtividade do trabalho humano no campo e favoreceu a obtenção de colheitas superiores. A produção excedente encontrou um próspero mercado para consumi-la e este novo cenário abriu novas possibilidades 11 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 de ação na sociedade. Pequenos empresários independentes começaram a surgir neste cenário: os camponeses, que trocavam o excedente de sua produção por dinheiro nos mercados locais e pagavam ao senhor feudal pelo uso da terra, compravam sua liberdade pessoal e abandonavam a condição de servos. Muito senhores perceberam ser vantajoso que suas terras fossem cultivadas por trabalhadores livres que lhes pagavam arrendamento, pois desta forma obtinham dinheiro que lhes permitia adquirir bens manufaturados e produtos de luxo. Além disso, o trabalho livre demonstrou ser mais produtivo que o servil. Com a evolução das atividades industriais nas cidades, uma outra forma de exploração das terras se tornou mais conveniente para a nobreza. Ela então reuniu e cercou as terras que antes eram parceladas entre vários arrendatários e criou grandes campos fechados,cuja produção foi direcionada para as necessidades da indústria. A agricultura foi em grande parte substituída pela criação de ovelhas, que apresentava uma dupla vantagem: necessitava de uma quantidade bem pequena de mão-de-obra e dava origem à lã, cujo preço no mercado era bastante atraente. Este novo sistema de cercamento dos campos, chamado de enclousers, resultou na expulsão de uma parcela significativa de trabalhadores, que foram privados de terras, de instrumentos e ferramentas de produção e obrigados a migrar para as cidades para garantir sua própria sobrevivência. Recém-chegados nas cidades, estes trabalhadores constituíram um importante contingente de mão-de-obra para a indústria. As atividades capitalistas invadiram o campo, deslocando progressivamente o objetivo da produção do suprimento das necessidades de subsistência para a busca do lucro. 2.4 A DECADÊNCIA DAS ATIVIDADES ARTESANAIS Outro pilar do sistema feudal a se desintegrar diante do avanço das relações de mercado são as oficinas artesanais – uma das mais antigas formas de organização da produção. Nestas oficinas, a produção era comandada por um mestre que, junto a seus aprendizes (alguns deles familiares seus), trabalhava em sua própria casa para suprir as necessidades de sua comunidade. As mercadorias eram geralmente encomendadas em pequenas quantidades e assim o nível de produção seguia adaptado às limitações do consumo. O mestre dominava todas as técnicas envolvidas no processo de produção e compartilhava este know- how com os aprendizes que, após alguns anos, podiam adquirir ferramentas, um pequeno estoque de matérias-primas e se estabelecer como mestres de sua própria oficina. Porém, o desenvolvimento dos mercados ampliou a demanda por produtos e fez nascer uma classe de mercadores capitalistas a quem interessava tirar proveito deste aumento do consumo. Esta classe assumiu um papel intermediário na 12 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 produção artesanal, com a função de fornecer matérias-primas e comprar produtos acabados que eram revendidos em mercados, longe do alcance dos artesãos que os fabricavam. Este sistema ficou conhecido como putting-out system, ou sistema de produção domiciliar. Nele o artesão perdeu uma parcela significativa de seu controle sobre a produção, uma vez que o capitalista que fornecia a matéria-prima era quem determinava as metas, os prazos e o preço da produção. O sistema era bastante vantajoso para esta última classe, que mantinha com os artesãos uma relação bastante flexível, fazendo e desfazendo os contratos de acordo com as oscilações da demanda. Contudo, neste sistema, os artesãos mantinham sob seu poder a concepção e a execução do trabalho, já que podiam determinar o número de horas trabalhadas, a forma de realizar as tarefas e as técnicas utilizadas na produção. Os capitalistas não possuíam nenhum modo de supervisionar o processo produtivo no ambiente domiciliar e, embora dispusessem do poder de descontar no pagamento dos trabalhadores os desvios das metas estipuladas, enfrentaram problemas para manter os prazos e os padrões de qualidade dos produtos. Não era difícil para os trabalhadores substituir a matéria-prima fornecida por outra de qualidade inferior, esconder imperfeições dos produtos e até mesmo desviar mercadorias. Chama a atenção uma lei do Parlamento inglês, de 1777, que permitia a realização de buscas no domicílio do trabalhador para averiguar tais desvios. Outra lei do mesmo ano tentava garantir que os artesãos terminassem e entregassem a produção determinada em um prazo máximo de oito dias. Os capitalistas encontravam também certa dificuldade para motivar os trabalhadores a produzir mais. Tentaram oferecer um pagamento mais atraente, mas os artesãos estavam mais interessados em garantir o suprimento de suas necessidades básicas. De acordo com os valores destes trabalhadores, um ganho financeiro maior não era tão importante quanto reservar um tempo para o lazer. Tornava-se então necessário para o capitalista intervir de maneira mais direta no processo produtivo, caso contrário, o resultado final da produção lhe escaparia ao controle. Os capitalistas passaram a reunir vários trabalhadores em um mesmo local de produção, para que pudessem supervisionar a execução de suas tarefas, forçando-os a trabalhar de maneira mais regular e sistemática, de acordo com o princípio da divisão do trabalho. De acordo com este princípio, cada trabalhador executava somente uma parte de todo o processo produtivo, de modo que a mercadoria só estava acabada após passar sucessivamente por várias mãos. Esta fase caracterizou a produção manufatureira, que antecedeu o surgimento da produção mecanizada. O capitalista transformou-se no proprietário do produto ao longo de todas as etapas de produção: contratava os trabalhadores para utilizar as matérias- 13 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 primas, os instrumentos de trabalho e as instalações e apropriava-se dos produtos acabados. O trabalhador não vendia mais o produto acabado ao mercador, mas vendia a sua própria força de trabalho, transformando-se no trabalhador assalariado. No lugar do artesão que dominava todo o processo produtivo, tem-se o tecelão, o fiandeiro, o tintureiro, e outros trabalhadores especializados, desprovidos de capital e de outros recursos de produção e que passam a depender do capitalista para obter um emprego e garantir seu sustento e o de sua família. Cabia ao capitalista vender os bens produzidos por estes trabalhadores a um preço que lhe permitisse pagar os salários, os custos de produção e obter um lucro para si. 2.4.1 O declínio das corporações artesanais Nem mesmo os artesãos organizados na defesa de suas atividades subsistiram às transformações promovidas pelo avanço da economia de mercado. Nas cidades, os trabalhadores artesanais dedicados a um mesmo ofício reuniam-se em corporações de ofício, retardando a intervenção da burguesia capitalista na estrutura de produção. Estas organizações foram inicialmente formadas para garantir a transmissão dos conhecimentos do mestre aos aprendizes, proporcionar ajuda mútua entre os trabalhadores e impor padrões de qualidade aos produtos. Funcionavam dentro de um regime que propiciava relativa igualdade entre mestres e aprendizes que com eles trabalhavam. As relações eram bastante cordiais, pois os aprendizes moravam na casa do mestre, compartilhavam deste ambiente familiar e tinham a perspectiva de um dia alcançar a maestria. A perspectiva de ascensão e não de oposição, marcava a relação entre estes atores. Os valores predominantes na cultura religiosa neste momento favoreciam condições de trabalho mais “humanas”. O repouso dominical, por exemplo, era praticado antes mesmo de ser estabelecido por lei. As corporações se organizavam sob um rígido conjunto de regras e tradições. Mantinham segredos quanto a certas técnicas artesanais e estabeleciam punições para trabalhadores que levavam esta arte para outros países. Regulavam o processo de competição, proibindo que uma corporação aliciasse ou subornasse trabalhadores e clientes de outrem, sob pena de multa. E sobretudo preocupavam-se com a qualidade do serviço, estabelecendo diversas regras para impedir o uso de material inferior e garantir que os associados passassem por uma rigorosa aprendizagem que lhe trouxesse o domínio do ofício. Outra funçãodas corporações era garantir o monopólio comercial nas cidades. Para realizar negócios em uma localidade, era necessário ser membro da corporação artesanal e fora dela não se podia exercer comércio sem permissão expressa. As corporações negociavam os produtos sob a tradição da prática do justo preço. Os artigos feitos e vendidos pelo artesão 14 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 tinham seu preço calculado à base do custo real de fabricação. Havia uma forte influência da noção medieval sobre a usura, que era moralmente condenável. Nesta lógica, o comércio não deveria objetivar o lucro, mas o benefício de compradores e vendedores. Uma das atribuições das autoridades municipais era impedir que as mercadorias fossem vendidas a preços excessivos, podendo até abolir os privilégios das corporações, quando estas usavam seu monopólio para auferir lucros excessivos. A alta de preços só podia ser determinada por fatores que alterassem as condições de produção, como uma má colheita que tornasse mais escasso o produto. Com o desenvolvimento do mercado e a necessidade de produção em maior escala, houve uma mudança nas idéias econômicas e a noção do justo preço foi substituída pela noção de preço de mercado. Daí em diante, a busca de lucros por um determinado grupo podia provocar uma alta de preços. A estrutura das corporações se transformou em direção à formação de grupos fechados e, assim, a igualdade entre os membros começou a ruir. Era interesse dos mestres, que monopolizavam a fabricação de manufaturados, evitar que o aumento do volume de produtos provocasse a baixa dos preços. Com isso, o ingresso de artesãos nas corporações, bem como sua ascensão à condição de maestria foi restringida pela cobrança de taxas e pela realização de provas rigorosas. Posteriormente, foi criada a regra segundo a qual somente os filhos de mestres poderiam tornar-se mestres. A imposição destas barreiras fez com que os artesãos mais pobres e seus filhos viessem a se juntar à classe operária urbana em formação. Já os mestres que prosperavam, adquiriam maior parcela de poder e formavam corporações cada vez mais fechadas, as quais chamavam “superiores”. Eram selecionadas, poderosas e ricas, influenciando até o governo municipal. Alguns membros abastados das corporações abandonaram a produção e dedicaram-se ao comércio, tornando-se capitalistas. As regras de cooperação, que favoreciam a harmonia nas relações entre os mestres e seus aprendizes, regrediram, dando lugar a uma série de relações conflituosas. Por fim, a estrutura das corporações, baseada em velhos métodos e velhos monopólios, se chocou com as necessidades de uma economia cuja mutação era progressiva, tornando inevitável a decadência destas organizações. Fincadas em rígidas tradições e em uma estrutura de mercado baseada no monopólio da manufatura e venda de produtos, logo se tornaram obsoletas para atender às necessidades do mercado em expansão e para absorver as inovações tecnológicas que então se processavam. A Corporação de Mecânicos Glasgow, por exemplo, tentou proibir James Watt de continuar experiências com a máquina a vapor, sob o argumento de que o inventor não era membro da corporação (HUBERMAN, 1976). 15 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 2.5 OS CONFLITOS IDEOLÓGICOS E SOCIAIS Os ganhos em produtividade obtidos com a evolução das formas de produzir foram muito importantes para a geração de um capital que, investido na promoção de avanços técnicos, acelerou o processo de transformação da organização produtiva. A revolução tecnológica daí resultante, eliminou as técnicas tradicionais utilizadas pelos trabalhadores e permitiu o alavancamento da produção em níveis até então inéditos na sociedade, lançando a Europa definitivamente na era industrial. Invenções tais como a lançadeira volante (1733), o tear mecânico (1787) e a máquina a vapor (1760) ampliaram enormemente a capacidade de produzir. A utilização da spinning jenny, invenção de James Hargreaves em 1765, tornou possível a um só homem fiar oitenta fios ao mesmo tempo. Além de capital e desenvolvimento tecnológico, as indústrias contaram também com uma vasta força de trabalho, constituída de pessoas que não possuíam mais nenhum meio de produzir seu próprio sustento. Quando destituídas da terra, das ferramentas e instrumentos de trabalho, não tiveram escolha, senão vender a única coisa que lhes restava: sua força de trabalho. Como vimos, dois grupos perderam o acesso aos seus meios de produção, indo engrossar as fileiras dos que precisavam trabalhar para outro em prol de sua própria sobrevivência. O primeiro grupo era composto pelos trabalhadores rurais expulsos do campo pelo processo de cercamento das terras. Muitos camponeses foram expulsos não apenas de suas terras, como de suas próprias casas. Aldeias foram destruídas e incendiadas e os campos transformados em pastagens. O pequeno proprietário não sobreviveu e foi obrigado a trabalhar para grandes fazendeiros. De pequenos ocupantes da terra se transformaram em assalariados. Muitos mudaram-se para as cidades, em busca de emprego, formando então uma parte da mão-de-obra necessária para a indústria. Outro grupo provinha dos trabalhadores da manufatura, desempregados com a decadência das oficinas. O sistema fabril, assentado no uso de poderosas máquinas e na divisão do trabalho, fabricava produtos com muito mais rapidez e menor custo que os trabalhadores manuais, sepultando de vez o trabalho de pequenos manufatores que ainda se mantinham independentes (donos de seus meios de produção). As máquinas venceram o modo de produzir obsoleto dos trabalhadores manuais, que então vendiam seus meios de produção e iam buscar sua sobrevivência no trabalho fabril. A produção mecanizada, ao sepultar as manufaturas, acabou assegurando um grande suprimento de força de trabalho para seu próprio desenvolvimento. A associação das máquinas à força do vapor foi o principal fator a incrementar o sistema fabril, possibilitando uma produção 16 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 em larga escala. A produção de mercadorias ampliou-se de modo expressivo e gerou um volume de riquezas inédito na história humana. Tais riquezas, contudo, permaneciam inacessíveis para a maioria da população, que experimentava altíssimos níveis de miséria. Embora a divisão da sociedade entre ricos e pobres já fosse conhecida de longa data, acentuava-se a linha divisória entre os dois grupos: os industriais lucravam muito com o aumento da produção, enquanto os operários eram intensamente explorados, trabalhando e vivendo em condições degradantes. De acordo com a mentalidade empresarial dominante na primeiras fases do industrialismo, as máquinas eram os principais bens do capitalista, merecendo sua preocupação, enquanto as pessoas representavam apenas um custo necessário. Por isso pagavam ao trabalhador o menor salário possível e exigiam-lhe o máximo de produção. Leis que protegessem os trabalhadores contra os abusos dos industriais eram praticamente inexistentes. Esta mentalidade foi influenciada pela visão de mundo individualista trazida pelo liberalismo clássico, que se tornou ideologia dominante no capitalismo.Os liberais se opuseram radicalmente às práticas paternalistas de assistência aos pobres, pois as consideravam “um modo de alimentar vadios que preferiam viver às custas dos vizinhos industriosos” (DICEY, apud HUNT; SHERMAN, 1997). Esta visão afirmava a primazia do indivíduo sobre o grupo ou a coletividade, confrontando a ética cristã que sustentou a sociedade medieval e que via a sociedade como uma espécie de família, onde os laços que integravam as pessoas eram mais importantes do que cada uma delas isoladamente. As convicções individualistas, ao contrário, afirmavam que o grupo nada mais é do que a soma dos indivíduos que o compõe, sendo estes a realidade fundamental de qualquer sociedade. Nesta perspectiva, o mercado deveria ser o espaço para a livre competição dos indivíduos que, embora motivados por interesses egoístas, acabariam promovendo o bem comum. Os industriais, por exemplo, motivados pelo interesse egoísta de obter mais lucros, concorreriam entre si para atrair os consumidores e acabariam aprimorando constantemente a qualidade de seus produtos, buscando formas de reduzir os custos de produção. O resultado: produtos melhores e mais baratos para os consumidores. Por outro lado, quanto mais acessíveis os preços dos produtos, maior o volume de compras, maiores os lucros dos industriais, assim desencadeando-se um círculo harmonioso de relações que promoveria o progresso econômico contínuo. Mas para que este mecanismo funcionasse perfeitamente, seria necessário que o mercado agisse livre de restrições, com base no livre jogo da oferta e da procura, atuando como uma “mão invisível” a harmonizar as ações humanas. Nenhuma autoridade ou lei, portanto, deveria determinar o que seria 17 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 produzido nem como os produtos seriam vendidos. Adam Smith foi o principal representante desta vertente, que criticava o Estado como corrupto, despótico e incompetente para conduzir os negócios na sociedade. Este cenário favoreceu uma exploração sem limites da força de trabalho dos operários. A jornada diária era longa, podendo chegar a 16 horas, sendo bastante comum o mesmo nível de exploração do trabalho infantil. Inicialmente, as crianças eram recrutadas em orfanatos, depois os próprios pais as enviavam para as fábricas, já que o rendimento médio do operário não era suficiente para manter a família. Assim um relato do século XIX retrata as condições dos trabalhadores que, ao milhares, se dirigiam ao trabalho ao apito da máquina: “O trabalho começava às cinco horas da manhã e acabava às cinco horas da tarde tanto no verão quanto no inverno [...] Era preciso vê-los chegar todas as manhãs à cidade e vê-los partir à noite. Há entre eles uma multidão de mulheres pálidas, magras, caminhando de pés descalços por cima da lama e que, à falta de chapéu-de-chuva, trazem, atirados sobre a cabeça quando chove ou neva, os aventais e as saias de cima para protegerem o rosto e o pescoço, e um número mais considerável de crianças pequenas não menos sujas, não menos pálidas e macilentas, cobertas de farrapos, todas engorduradas do óleo dos teares que lhes cai em cima enquanto trabalham. Estas últimas, melhor preservadas da chuva pela impermeabilidade das suas roupas, nem sequer têm no braço, como as mulheres de que acabamos de falar, um cesto onde estão as provisões do dia; mas trazem na mão ou escondem debaixo do seu casaco ou como podem, um bocado de pão que os deve alimentar até a hora do seu regresso a casa (VILLERMÉ, apud LAFARGUE, 1990, pp. 23- 24). Além das árduas condições de trabalho, os operários também residiam em habitações degradantes. As cidades cresceram sem o planejamento adequado para receber a grande massa de novos habitantes. A escassez de espaço elevou os preços dos aluguéis, restando aos trabalhadores as condições precárias nos arredores das cidades. A desigualdade social refletia-se na própria topografia da cidade: nos bairros elegantes, a burguesia; nos bairros periféricos, em habitações promíscuas e degradadas, o povo. O efeito das condições de habitação na saúde dos pobres tornava as epidemias e a morte fatos comuns nas áreas onde se amontoavam as habitações operárias. De acordo com Hobsbawm (1994, p. 221), havia três possibilidades abertas aos trabalhadores pobres à margem da sociedade burguesa: lutar para se tornarem burgueses, permitir que fossem explorados e oprimidos ou, então, poderiam se rebelar. A reação operária foi violenta. Inicialmente, os trabalhadores reagiram queimando e destruindo as máquinas, por considerá-las as grandes causadoras de sua miséria. Ficaram conhecidos como luditas e foram violentamente reprimidos pelo governo. A evolução da organização dos trabalhadores foi um fator bastante importante na melhoria de suas condições de vida. Através dos sindicatos, os trabalhadores se organizaram como 18 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 um grupo consciente na defesa de seus interesses e adquiriram importância política, embora tenham sido considerados ilegais até o primeiro quarto do século XIX na Inglaterra. Dentre os primeiros objetivos do movimento operário estava a mudança da legislação que restringia a própria existência de sua organização, pois era necessário sair deste estado de clandestinidade e organizar-se abertamente. Pouco a pouco, o movimento operário aproveitou-se destas conquistas legais para atuar na promoção de avanços na legislação social: seguros contra acidentes de trabalho e doenças e regulação do uso da mão-de-obra infantil e das mulheres foram algumas de suas reivindicações. Mas o movimento não se restringiu a lutar pela melhoria imediata da condição de vida operária e, inspirado pela ideologia socialista, vislumbrou a transformação da sociedade como um todo. Os primeiros socialistas buscaram inspiração nos ideais apregoados pela Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – e projetaram uma sociedade ideal livre de conflitos e de desigualdades sociais. O pensamento socialista evoluiu para uma crítica radical do capitalismo, considerado um sistema injusto, no qual os trabalhadores, principais geradores da riqueza social, ficavam com a menor parte destas riquezas, enquanto os que se apropriavam da maior parte dela nada faziam pelo bem-estar da sociedade. O principal alvo da crítica dos socialistas foi a propriedade privada dos meios de produção - máquinas, equipamentos, terras, minas, etc. – considerada a fonte da dominação dos capitalistas sobre os trabalhadores. Preconizavam a revolução da sociedade pelo movimento operário, abolindo a propriedade privada e derrubando os governos que representavam a classe capitalista. Criticando o liberalismo individualista, os socialistas defenderam a subordinação dos interesses do indivíduo às necessidades do grupo social. Os campos de oposição estavam fortemente marcados, caracterizando o século XIX como um século de agudos conflitos entre os grupos que emergiam da sociedade em transformação. Dentro da corrente socialista, o grupo representado pelos socialistas utópicos refletiu sobre aspectos diretamente ligados à administração, como a idéia de que as fábricas fossem gerenciadas pelos sindicatos, defendida por Robert Owen. Ao descrever a nova sociedade emergente do progresso técnico e científico, Saint-Simon afirmou que os melhores administradores seriam os tecnocratas, ou detentores do conhecimento.Charles Fourier, além de apresentar a idéia das comunidades auto- geridas, também preconizou a idéia de que o trabalho deveria ser fonte de prazer e estar adaptado às inclinações individuais. Em sua análise da sociedade industrial, os socialistas utópicos propuseram novas formas de organizá-la, criando, desta maneira, as bases para o surgimento da Teoria da Administração. Por esta razão, estes pensadores são 19 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 considerados precursores do estudo da administração (PARK, 1997). 2.6 O SURGIMENTO DA GERÊNCIA O alto nível de desenvolvimento tecnológico que marcou a Revolução Industrial jamais teria realizado todas as promessas de ampliação da capacidade produtiva e de geração de riquezas, se não tivesse sido combinado a um controle mais eficaz das tarefas por parte dos capitalistas. Neste sentido, a fábrica tornou-se a expressão máxima da combinação entre organização disciplinada do trabalho e tecnologia. Na fábrica, foi possível o exercício mais eficiente da vigilância, pois a produção passou a reunir numerosos operários em uma só oficina, ampliando as possibilidades de direção e de coordenação do trabalho. As instalações pertenciam ao capitalista, que detinha todos os recursos necessários para o trabalho, fator este que retirou dos operários o controle do processo de produção, transferindo-o para os capitalistas. A imposição de uma disciplina foi especialmente necessária neste momento, já que a primeira geração de operários era formada por camponeses expulsos pelos cercamentos, indigentes que vagavam pelas cidades, artesãos desempregados com a decadência das oficinas e toda sorte de pessoas muito pouco propensas a se adaptar a uma disciplina completamente estranha ao seu contexto social. À classe capitalista interessava descobrir novas formas de tornar mais produtivo o trabalho dos operários. Os problemas de adaptação dos operários às fabricas foram muitos, sobretudo os provocados pelo novo ritmo de trabalho determinado pelos movimentos das máquinas e pela rígida disciplina de horários que fixava o início, os intervalos e o término da jornada de trabalho. A consciência quanto à necessidade de treinamento dos operários era tosca, sendo freqüentes os acidentes de trabalho, sobretudo no manuseio das máquinas. Vários outros problemas se manifestaram, como o absenteísmo, a rotatividade de empregados, a embriaguez no ambiente de trabalho e as atitudes de revolta por parte dos operários. O problema da indisciplina dos trabalhadores não melhorou em nada com os avanços tecnológicos, como relata um industrial em 1743: “Nem metade do meu pessoal veio trabalhar hoje e não sinto um grande entusiasmo pela idéia de depender deste gênero de gente” (MARGLIN, 1978). No início da industrialização, a preocupação com a eficiência da gestão da fábrica era rudimentar e os capitalistas apostavam no desenvolvimento tecnológico como principal ferramenta para a ampliação de seus lucros. As transformações tecnológicas de fato representaram grande desenvolvimento da capacidade de produzir, mas passado este impacto inicial, os empresários passaram a se interessar pela adoção de formas de 20 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 gestão mais eficientes como forma de enfrentar os conflitos que emergiam no ambiente da fábrica e de garantir a lucratividade de seu negócio. A administração começou a surgir como objeto de estudo. Desenvolveu-se a percepção de que o gerenciamento, junto aos fundamentos básicos da produção – terra, capital e trabalho – é recurso indispensável para o funcionamento da organização. Um conjunto de conhecimentos sobre como administrar começa a se desenvolver até se transformar em teorias sistematizadas que apresentam os fundamentos, técnicas e estratégias de gerenciamento que devem ser adquiridas pelos que assumem posições de comando nas organizações. Com o desenvolvimento da administração como um campo de conhecimentos, o administrador deixou de ser visto como um empreendedor heróico, possuidor de marcante personalidade e de habilidades pessoais que lhes permitiam manipular praticamente sozinho, na base da tentativa e erro, os recursos de produção. O sucesso de um empreendimento passou a ser visto como fruto da aplicação eficiente de conhecimentos sistematizados sobre práticas de gerenciamento. A própria expansão das cidades, acentuada com a Revolução Industrial, também colocou uma série de problemas inteiramente novos, que exigiram a intervenção da figura do administrador, sobretudo pela emergência de questões de ordem pública que exigiam planejamento: abastecimento, circulação, alojamento, fornecimento de energia, segurança e salubridade para uma massa de pessoas que passaram a se concentrar em grandes aglomerados urbanos. O agravamento dos problemas sociais tornou a necessidade de planejar e ordenar as cidades uma questão ainda mais premente, que exigia uma intervenção mais eficaz por parte dos administradores públicos (REMOND, [197-?]). As características do sistema capitalista e suas conseqüências sobre a organização da sociedade acabam por tornar a gerência profissional uma estratégia indispensável à manutenção do sistema (BRAVERMAN, 1987). Em momentos da história humana bem anteriores à Revolução Industrial, a necessidade de coordenar grande número de trabalhadores esteve presente, como demonstram as Pirâmides, a Muralha da China, os grandiosos monumentos e arquedutos da antiguidade e dos tempos medievais. Contudo, estes empreendimentos se davam em ambientes onde o trabalho era escravo ou servil, a tecnologia estacionária e inexistia a necessidade capitalista de expandir o capital empregado, isto é, de gerar lucro. Por isto estas formas “primitivas” de gerenciamento eram marcadamente diferentes da gerência capitalista e permaneceram em um nível rudimentar. O capitalista tem de gerenciar o trabalho assalariado, que gera custo por cada hora improdutiva, além da tecnologia altamente dinâmica, sendo pressionado pela exigência de produzir um excedente de capital. É isto que estimula uma 21 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 nova ciência de administrar que, mesmo nos seus primórdios, era muito mais completa e eficiente do que qualquer forma anterior. Algumas questões emergiram neste novo sistema: como manter os trabalhadores interessados no progresso da indústria? Nas oficinas artesanais, o controle baseava-se na obediência que os costumes da época exigiam tanto dos aprendizes quanto do homem que os contratava. Mas no novo sistema, a tradição e o orgulho no trabalho passaram a desempenhar papel cada vez menor, pois o capitalismo criou uma sociedade na qual predomina o interesse próprio. Por parte dos operários, não havia interesse pessoal no êxito da empresa, a não ser na medida em que permitia um meio de vida. Como extrair dos empregados a conduta diária que melhor serve aos interesses do capitalista? Como impor sua vontade aos trabalhadores se estes efetuam um trabalho sob base contratual voluntária (contrato livre de trabalho)? A necessidade de ampliar a capacidade produtiva do trabalho humano, para tornar mais lucrativos os negócios, tornou a gerência uma buscaconstante de aproveitamento do potencial virtualmente infinito do homem em gerar riqueza. Enquanto todas as espécies animais trabalham seguindo determinações ditadas pelo instinto – o que gera formas relativamente fixas de realizar as coisas – o trabalho humano é indeterminado, pois depende não da biologia, mas de fatores tais como estado subjetivo do trabalhador, sua história passada, as condições sociais sob as quais trabalha, as condições da empresa e as condições técnicas de seu trabalho, como está organizado, como se dá a supervisão, e toda uma gama de fatores sobre os quais a gerência procura desenvolver formas de intervir, visando aumentar a capacidade humana de trabalho. 2.7 REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: PROGRESSO HUMANO OU PROBLEMAS SOCIAIS? Existem grandes divergências nas análises de pensadores sociais acerca das conseqüências da Revolução Industrial sobre a sociedade. As condições de trabalho a que foram submetidos os operários nas primeiras fases da Revolução Industrial eram extremamente precárias, mas a evolução do padrão de vida desta classe ao longo do século XIX – sobretudo em função de sua atuação no combate aos abusos cometidos pelos capitalistas – é ponto de divergência nas análises dos pensadores sociais. Segundo Drucker (1999), a Revolução Industrial trouxe muitos benefícios para a sociedade. Segundo sua análise, os operários das indústrias adquiriram uma vida melhor do que a dos trabalhadores das zonas rurais antes da industrialização, cuja existência era submetida à tirania dos senhores da terra. A existência de uma alternativa à sociedade arcaica que vigorava no campo constituía um motivo importante para explicar porque 22 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 as cidades atraíam tantos trabalhadores. Além disso, o progresso tecnológico saltava a olhos vistos, refletindo em progressos na medicina, aumentando a expectativa de vida das pessoas e, de modo um geral, elevando o nível de vida da população. Na sociedade consolidada após a Revolução Industrial, tornou-se possível, pela primeira vez na história humana, suprir as necessidades básicas de toda a sociedade. A vida cultural modificou-se bastante. A autoridade da Igreja Católica perdeu força, interferindo menos na liberdade de pensamento e nos rumos da investigação científica. Gradativamente, um novo modo de vida foi se constituindo, possibilitando uma gama mais variada de empregos, uma vida menos monótona e a fuga das condições incertas de existência no campo. A libertação dos padrões sociais estreitos da comunidade da aldeia, que eram fortemente vinculados a laços de dependência hierárquica, estendeu a margem de liberdade pessoal e deu origem a novas formas de relação entre as pessoas, novos grupos, agora não mais sujeitos apenas aos laços de família e ao parentesco de sangue. O estilo de vida urbano, cuja mobilidade tornou possível a ascensão na escala social, independente das condições de nascimento e de herança, tornou- se admirado e almejado como um novo ideal de vida para maior parte da população. E quanto aos conflitos e contradições comumente associados a este período? Segundo Drucker, foi encontrada uma solução dentro dos parâmetros da sociedade industrial, solução esta que passou pelo aperfeiçoamento da capacidade de gerir a produção industrial. Trata-se da revolução da produtividade, promovida fundamentalmente pela administração taylorista. Durante o século XIX, o aguçamento dos conflitos entre operários e industriais gerou a crença de que o capitalismo criava uma oposição intransponível entre as classes. Dentro desta ótica, os donos das indústrias exploravam os operários, concentravam a riqueza em suas mãos e empobreciam cada vez mais os trabalhadores, condenando o próprio sistema ao fracasso. Frederick Taylor (1856-1915), engenheiro que desenvolveu a gerência científica no início do século XX, também estava bastante preocupado com estes conflitos, mas entendia que estes eram desnecessários, já que proprietários e trabalhadores poderiam ter um interesse comum pela produtividade, construindo, assim, um relacionamento harmonioso. Um aumento da riqueza poderia ser gerado se os trabalhadores se tornassem mais produtivos, e esta riqueza poderia se traduzir em maiores lucros e melhores salários, beneficiando as duas classes que se confrontavam inutilmente. Taylor apostava que a administração eficiente era capaz de tornar mais produtivos os trabalhadores, mas para isso seria necessário que a fábrica fosse conduzida por gerentes profissionais e não por proprietários cujo nível de conhecimento não era compatível com o de seu capital financeiro (TAYLOR, 23 Vania Martins dos Santos Fundamentos Sociológicos da Administração Capítulo 02 1970). Este era um aspecto importante naquele momento, já que as máquinas ofereciam grande oportunidade de criar maior capacidade de trabalho e isto não era totalmente aproveitado, porque os próprios trabalhadores não eram mais produtivos que antes. A crença dominante até aquele momento era a de que os trabalhadores deveriam trabalhar mais horas ou esforçar-se mais durante a jornada para que a produção aumentasse. Taylor procurou demonstrar que o que faltava aos trabalhadores não era mais empenho e sim seleção e treinamento adequados, além de métodos planejados para realizar suas tarefas – algo que poderia ser oferecido pelo gerente profissional. Para Drucker, os números são significativos. Depois que a gerência científica começou a ser aplicada, a produtividade começou a subir à taxa de 4% ao ano nos países avançados. Foi justamente nestes países que se verificou uma elevação no padrão de vida dos trabalhadores. Parte disto reverteu-se na ampliação do consumo, o que gerou um efeito positivo para o desenvolvimento econômico. Drucker afirma ainda que foi possível produzir mais trabalhando-se menos, já que a jornada de trabalho nos países industrializados foi gradativamente reduzida, enquanto os níveis de produtividade só fizeram crescer. Isto fez com que, por volta de 1930, a gerência científica de Taylor tivesse se estendido a todo o mundo desenvolvido. O principal efeito social disto foi a transformação dos operários em classe média nos países desenvolvidos, consolidando a sociedade capitalista como uma alternativa viável de organização social. Este fator foi crucial para o declínio das idéias socialistas, que propunham uma transformação radical do capitalismo: que os meios de produzir – tais como as fábricas e as terras – fossem coletivizados e controlados pelo Estado, como forma de acabar com as desigualdades sociais. 2.7.1 As críticas à sociedade industrial No extremo oposto destas análises sobre os efeitos sociais da Revolução industrial, existem os pensadores que destacam o agravamento das desigualdades sociais como o principal entrave para a extensão dos benefícios da sociedade industrial à grande massa da população. Por um lado, como lembra Hobsbawn (1994), a transição da sociedade aristocrática para a sociedade industrial trouxe conseqüências positivas. No tempo em que reinavam as aristocracias, um conselheiro de Estado recusaria o pedido de um jovem e pobre advogado para um cargo no governo, sob alegação de que o pai deste era encadernador de livros e que, assim sendo, o jovem deveria se ater a este ofício. Na sociedade urbano-industrial, o filho de um encadernador de livros liberta-se da obrigação de agarrar-se
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